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Monday, January 14, 2008

“Um Capricho da Natureza” de Nadine Gordimer (Dom Quixote)


A escritora sul-africana Nadine Gordimer, galardoada, em 199, com o Prémio Nobel da Literatura é, actualmente, membro executivo do Congresso de Escritores sul-africano, sendo considerada a mais importante ficcionista de Africa do Sul nos dias de hoje.


Um Capricho da Natureza é um romance que assume contornos biográficos sobre a vida de uma jovem, de origem judia, nascida em pleno regime de apartheid ao qual ganha, desde tenra idade, uma aversão que pode ter a ver com as histórias relacionadas com os pogroms, no tempo do terceiro Reich na Europa – reminiscências de episódios de perseguição nazi sofridos pelos seus parentes.

Hilella, a protagonista, apesar de nascida no seio de uma família conservadora torna-se, para muitos, numa adolescente problemática, cujo comportamento irreverente, desafiador das convenções e da ordem estabelecida, incomoda as mentalidades mais tacanhas cuja pusilanimidade cai no conformismo. Apesar de tudo, Hilella não deixa de assumir, por vezes comportamentos de risco, como na altura em que foge de casa na companhia de uma colega de escola, para dançar num night club ou aquando da evasão do país na companhia de uma estranho, do qual não possui quaisquer referências. A predisposição de Hilella para confiar em desconhecidos parece ser uma característica recorrente no seu carácter que a leva a embarcar, não raro, em situações arriscadas, das quais se consegue salvar, praticamente, devido ao factor sorte.

Amada por muitos e detestada por outros tantos, Hilella é quase sempre vista como uma figura polémica.

O facto de não existirem laços muito fortes que a liguem à família, a qual deixa quase sempre Hilella entregue a si própria, ou então, convenientemente depositada em colégios internos. Um facto que acaba por lhe proporcionar o desenvolvimento de estratégias de luta pela sobrevivência e também a consolidação das suas próprias convicções. Um conjunto de situações que a torna completamente independente face a essa mesma família, supostamente de orientação.

Hilella é, sobretudo uma jovem cuja integridade não lhe permite aproveitar-se das vantagens inerentes ao facto de ter nascido branca, num país como África do Sul, onde há cerca de década e meia atrás, a cor da pele fazia toda a diferença no que dizia respeito ao usufruto dos direitos de cidadania.
Esta Hilella criada por Nadine Gordimer poderia, de facto, ter escolhido o caminho mais fácil e obter a recompensa de ser tratada como uma princesa, em casa da tia Olga. Opta, no entanto, por se aliar àqueles que estão “do outro lado”. Do lado dos excluídos. Juntar-se-á, por isso, à maior parte dos presos políticos deportados ou refugiados, partilhando com eles a incerteza do exílio.

Uma característica curiosa é a de Hilella nunca conseguir identificar-se com os valores e a forma de estar da família de origem e dos brancos em geral, no seu país de origem.

Será, por esse mesmo motivo, uma das principais peças da engrenagem que irá colocar o processo de mudança em andamento.
Hilella conta, para isso, com dois factores decisivos: a sua natureza emocional, a qual só conseguimos adivinhar pelas atitudes ou comportamentos demonstrados – um forte espírito de camaradagem e fraternidade genuína, muito mais autêntico do que o desejo piegas de praticar caridade desenvolvido pela tia Pauline ou pela prima Charlotte -,aliando-se àqueles cujo apoio não lhe falta nos momentos cruciais, independentemente da nacionalidade, estrato social, ou cor da pele. Hilella é, verdadeiramente a sport of nature – uma verdadeira camarada ou uma natureza genuinamente solidária, traduzida erroneamente por “Um capricho da Natureza”. E outra característica que se revela decisiva e que leva a que as pessoas se associem a ela é o magnetismo da sua beleza, colorida por uma refinada sensualidade a qual aprisiona, cativa as pessoas em geral.

Esta obra de Gordimer debruça-se sobre inúmeros aspectos relacionados com a história do contingente africano no século XX, como as consequências do processo de descolonização e desmembramento de vários impérios coloniais: o conflito racial entre Boers, Zulus, Bantus, trazem à luz situações que ilustram o absurdo do regime e as proporções escandalosas do nível de discriminação que chega a atingir laivos de obscenidade.
Igualmente escandalosa e abusiva é a intromissão do Estado nas relações pessoais entre cidadãos sendo essa mesma intervenção justificada apenas com base na diferença da cor da pele.

A própria capa do livro ilustra a prepotência da situação, que a Autora quis denunciar com a publicação deste livro: uma mão branca tapa a boca a um rosto negro, em cujo olhar se nota a humilhação e o constrangimento por não poder protestar pelo abuso de que é alvo. A gravura pretende representar a impotência de todo um continente que se vê amordaçado.


As origens de Hilella

A protagonista do romance é filha de uma mãe inconformista, Ruth, a ovelha “negra” da família. Ruth rompe com os tabus e com a hipocrisia dos padrões de conduta da família tradicional ao abandonar o marido, a filha, a casa, o país, voltando as costas a uma realidade social onde não pode exprimir livremente o direito à selecção, escolha ou troca do seu parceiro sexual, sem sofrer represálias.

Algo semelhante parece estar também, destinado a acontecer a Hilella, noutras circunstâncias: Hilella não é casada mas as suas amizades devem excluir negros. A sua sexualidade está também comprometida, seja ela desenvolvida com parceiros brancos ou negros, primeiro em casa da Tia Olga, depois em casa de Pauline.

A evasão de Hilella é um grito de liberdade e independência que se traduz não só num desafio às autoridades oficiais, como também um acto de afirmação do direito de presidir às suas próprias escolhas.

Outra característica da personalidade de Hilella é a dificuldade em estabelecer laços afectivos sólidos com figuras femininas, nomeadamente com aquelas às quais é atribuído o papel de matriarca, - talvez pelo facto de as mulheres que desempenharam essa função na sua própria família terem falhado redondamente no desempenho dessas mesmas funções, na altura em que a jovem mais precisava da sua orientação, segundo critérios construtivos e pedagógicos e não assentes em falsos moralismos e em padrões de conduta baseados numa moral obsoleta e cheia de contradições.

Isto traduzir-se-á mais tarde, na dificuldade demonstrada por Hilella, em criar laços e cumplicidades típicas entre mulheres, sem no entanto entrar em conflito com elas, como por exemplo o caso da mulher do médico com quem chega a trabalhar ou da esposa do diplomata em casa de quem é governanta.

Aparentemente, Hilella sofre de uma espécie de “síndrome de filha abandonada”, consequência directa de ser sucessivamente descartada pelos membros da família – sobretudo pelas mulheres: a mãe, a amante do pai, a ta Olga e, por último a tia Pauline. O pai não quer sobrecarregar a amante com a filha do anterior casamento e as tias têm dificuldade em, por um lado aceitar as escolhas de Hilella (Olga) e, por outro, em lidar com situações inesperadas que mexem com as emoções mais atávicas que se manifestam numa total inabilidade em lidar com a explosão da sexualidade da prole adolescente dentro do agregado (Pauline).
Olga, inicialmente trata-a como uma boneca de estimação, um bilbelot caro.Para ela Hilella “é como se fosse sua filha”.
Mas não é, na realidade, sua filha.

É apenas “como se fosse”.

Na primeira ocasião em que Hilella se comporta de forma a que a tia ultra-conservadora considera como “traição à sua classe”, Olga desfaz-se dela, da mesma forma que se descarta do caríssimo gato de porcelana Imari, depois de este se partir. O gato apesar de restaurado, deixa de ser um objecto coleccionável perdendo grande parte do seu valor.

Tal como Hilella após regressar a casa depois de efectuar um passeio com um jovem negro.
Em casa de Pauline, a puritana activista do movimento anti-apartheid, ao qual se entrega com uma convicção quase fundamentalista, Hilella está inserida num ambiente familiar caracterizado por estilo de vida típico de classe média-alta. A Tia Pauline não vê, aparentemente, quaisquer problemas no facto de Hilella se relacionar com negros, aos quais abre, clandestinamente, as portas de sua casa, permitido a entrada indiscriminada de todas as facções do movimento, inclusive extremistas e oportunistas.

No entanto, a partir do momento em, que toma consciência da atracção sexual entre Hilellla e o seu filho mais velho Sasha, Pauline passa a encarar a sobrinha como uma mulher perigosamente fatal, como Ruth, a irmã transviada. Pauline sempre receou as mulheres que dão largas aos impulsos sexuais, associando-as geralmente a destinos trágicos.
O ciúme jocastiano em relação ao filho, Sasha, e o receio de contaminação da filha Charlotte fazem-na expulsar Hilella de casa, entregando-a à sua própria sorte. A justificação desta atitude incide no facto de “achar que a maturidade sexual de Hilella denuncia, também, a capacidade de sobreviver sozinha, pressupondo um amadurecimento simultâneo de todas as restantes faculdades.

Hilella conta nesta fase, com a ajuda do factor Sorte – para além de uma magra mesada da tia Olga, enquanto não arranja emprego – o que acaba por compensar a falta de experiência e qualificações.

A oportunidade de fugir para o Ghana advém-lhe de uma aliança com um jovem jornalista que se revela ser de pouca confiança, mas uma vez fora da África do sul, a Fortuna vem, mais uma vez, ao seu auxílio.
É precisamente numa praia do Ghana que vem a conhecer aquele que mais, tarde será o seu primeiro marido.
Mas antes, Hilella fará várias amizades dentro das esferas do movimento anti-apartheid. Hilella usa o seu magnetismo como forma de lhe abrir portas que mais tarde lhe permitirão não só garantir a sua sobrevivência, como também de ser um agente de mudança a um nível transcontinental. O seu raio de acção passa não só pelo Ghana, mas também por Angola, Moçambique, Inglaterra, Estados Unidos e, também, Leste Europeu.

Hilella acaba por revelar uma maior facilidade na criação de laços quer de natureza sexual quer de amizade com figuras masculinas. Sente-se, sobretudo, próxima de personagens que tenham uma causa pela qual lutar e que se envolvem em acções concretas para o eclodir de uma transformação efectiva das estruturas, como o primeiro e, posteriormente, o segundo marido, ambos negros.

Os seus casamentos constituíram uma verdadeira pedrada no charco no seio da sociedade sul-africana e mesmo nos círculos diplomáticos transcontinentais.

A escrita de Gordimer

Um Capricho da Natureza é uma obra que adquire contorno de romance/biografia pelo discurso, objectivo, frio, de pendor quase que jornalístico, utilizado pela Autora durante a maior parte do romance. É, também, uma obra fortemente voltada para a intervenção política e social.

Como contraponto, surge-nos uma escrita emocional, de carácter poético e, não raro, carregada de uma forte sensualidade, sobretudo nas cartas de Ruth, em alguns relatos, nos diálogos de Hilella com o primeiro marido Whaila e no desespero contido nas cartas de Sasha, na prisão:

Deitada ao lado dele, olhando-lhe as mãos pálidas, as coxas, o ventre: vendo-se a si própria como incompleta, abandonada, algures. Ela examina-lhe o corpo minuciosamente e sem pudor, e ele acorda para a ver a fazê-lo, e sorri sem dizer porque: ela é a primeira que não finge que as cores diferentes e a diferente textura dos seus seres não é um fascínio aterrador(…).

- Quando me tocavas, a princípio, isto era uma luva (e ela pega-lhe na mão negra e espalma-a na anca), isto era uma luva. Verdade. A cor negra era uma luva. E por toda a parte, pelo teu corpo todo, a cor negra era como um manto. Uma coisa que Deus te deu para vestires(…). Não são nada como uma peça de vestir. São tu. És tu. E não são negras, são de todas as cores da carne. Não sabes? Nas lojas – e nos livros! – a “cor da carne” é a cor dos Europeus! Não a cor de qualquer outra carne. Só a dos Europeus e mais nenhuma! Olha para as tuas unhas, são rosa malva, porque por baixo apele é cor-de-rosa. E (virando-lhe as palmas das mãos), aqui a cor é como se vê por dentro daquelas grandes conchas que se vendem em Tamarisk. E isto, esta pele maravilhosa, de seda negra que eu estou a puxar para cima e para baixo (o pénis dele na mão dela), quando a ponta aparece é rosa-âmbar. Dizem-se tantos disparates acerca do tamanho da coisa dos negros, mas nunca ninguém disse ainda que ela não é só negra… (sic).


Duas vozes da mesma Autora que mostram a qualidade da sua escrita e o génio que lhe valeu o prémio Nobel.

Cláudia de Sousa Dias

12 Comments:

Blogger jp(JoanaPestana) said...

sempre plena Ameixaclaudia
toma lá um kisse
:)

8:41 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Outro para ti! Já tinha saudades!

Já te mandei a receita das ameixas rechadas com nozes marinadas em vinho?!

CSD

1:21 PM  
Blogger jp(JoanaPestana) said...

Nope! Ainda bem que entretanto me sentei :)*

12:13 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Acabei de te enviar agora!

Mas entretanto se não a receberes, também a tens disponível no blog do nandokas!

Um beijo e delicia-te!


CSD

12:29 PM  
Blogger Nilson Barcelli said...

Não li, mas tomei boa nota porque me pareceu interessante.

Bfs, beijinhos.

5:50 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada nilson!
Beijo grande


CSD

1:06 PM  
Blogger Gonçalo Mira said...

Olá Cláudia. Queria enviar-te um e-mail sobre uma coisa que não adianta estar a dizer aqui, mas não encontrei nenhum endereço de e-mail do blogue. Deixo-te o meu, para que possas entrar em contacto comigo, se não te importares: goncalomira@gmail.com

Beijinho*

3:34 PM  
Blogger Carla Gomes said...

De Nadine Gordimer recomendo "O Conservador" e este que aqui nos deixaste será uma próxima leitura sobre a qual me debruçarei:)

Obrigado e beijinhos:)

10:09 PM  
Blogger inominável said...

olha, nem li bem esta tua recensão... mas queria dizer-te que acertaste na minha gravidade ;) parece que não sou de muitas subtilezas LOL

10:29 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Enviado, Gonçalo!

CSD

10:56 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Tomarei nota, Carla!

beijo e obrigada!


CSD

10:56 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Querida Inominável!

Fico felicíssima pela tua "gravidade".

Não, não foste pouco subtil...

...eu é que estou habituada a ler nas entrelinhas!

É doença profissional.


;-)


CSD

10:58 PM  

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