“Lavagante”de José Cardoso Pires (Ed. Nelson Matos)
Por altura do décimo ano do falecimento do Autor, a editora Nelson Matos decidiu, de comum acordo com a família, publicar um texto inédito, o qual existia somente em algumas versões manuscritas ou dactilografadas, do qual o presente texto seria a versão mais recente. Escrito entre 1962 e 1968, o texto sofreu alterações, saindo apenas da obscuridade meio século depois de se verificarem os acontecimentos mencionados no romance.
O local da acção
O cenário onde se desenrola a primeira parte da história tem o sabor do relato de uma notícia ou uma crónica com um cheirinho de investigação policial. A primeira cena decorre no bar de praia A Lanterna, situado na margem sul do Tejo. A narrativa está a cargo de alguém que possui o dom de manter uma aura de mistério à volta das personagens, cuja neblina vai conseguindo dissipar, gradualmente, por camadas. Por último, a narração dos acontecimentos é acompanhada pelas mais saborosas iguarias, apreciadas pelo exímio gourmet e enólogo que é o narrador.
A localização temporal adivinha-se pelas condições meteorológicas – o pino do Verão – e pela indumentária dos transeuntes, que trazem roupas e acessórios de praia. Está-se no final de Julho de 1962, os que vem enquadrar a trama nos factos históricos de que falaremos mais adiante.
À mesa do bar A Lanterna estão sentados o narrador e o jornalista, a conversar, de forma simultaneamente casual e compenetrada, envolvendo também o barman, de ouvido atento, diligente e prestável como só se faz aos clientes assíduos e com quem se estabelece uma prolongada e gradual camaradagem.
O jornalista e o narrador observam os transeuntes, sendo o primeiro aquele que se atreve a comentar, de uma forma velada, a situação política da época e o fenómeno abjecto da delação, ao lançar uma observação aparentemente inocente acerca dos hábitos dos veraneantes:
“As pessoas devoram-se umas às outras, só se preocupam com o próprio umbigo”.
É a partir desta observação que se estabelece a linha orientadora do romance. A partir desta frase introdutória e aparentemente casual, o jornalista passa a comentar as dificuldades da profissão, o próprio acto de escrever como actividade viciada, condicionada. O tom é sarcástico quando refere que é a Censura quem escreve pela mão dos jornalistas guiando-os sem permitir o mais pequeno desvio: “Quem sabe escrever amanhã quando a censura acabar?”. À mesa, onde se serve espadarte fumado, está exposta a cegueira provocada pela ignorância que grassa num país onde, a mão de quem escreve, treme e escreve com medo.
A metáfora do Lavagante
“É mais saboroso que a lagosta e parece mais selvagem porque não se adapta tão bem aos viveiros”. A frase é do barman d’A Lanterna. Para o narrador, porém, a conotação psicológica associada a este animal é bastante mais sinistra: “um animal de tenebrosa memória, paciente e obstinado, e terrível nos seus desígnios”.
Nesta frase, está implícita a caracterização do Engenheiro Sapo, o grande vilão deste romance em forma de narrativa, membro da polícia política. A sua conotação com o lavagante advém da forma insidiosa como atrai as presas para a armadilha: alimentando-as dentro de um buraco até que estas estejam tão gordas que já não conseguem sair, altura em que se prepara, então para as devorar. No fundo, tem o mesmo procedimento da bruxa da estória de Hansel e Gretel. Tanto o engenheiro sapo como a bruxa do conto dos Irmãos Grimm são ambos lavagantes, uma vez que possuem a mesma capacidade de premeditação do animal que engorda e alimenta a presa, atraindo-a simultaneamente para uma situação que a expõe aos perigo e a coloca em situação vulnerável e da qual só se apercebe quando é tarde demais para escapar.
Cecília, a lavagante fêmea ou a síndrome de Estocolmo
A principal personagem feminina da trama é uma estudante de arquitectura, usada como isco pelo Lavagante Maior: o engenheiro sapo, membro de elite da PIDE, caçador dos opositores à ideologia do regime que, então, ocupava o poder. A lavagante fêmea será usada pelo lavagante macho para capturar o safio, o médico que colabora com os detractores do regime colocando o exercício da profissão acima das conveniências políticas. Trata-se de Daniel Lobo cujo ego é, durante largas semanas, engordado pela atenção de uma mulher invulgarmente atraente.
A descrição e análise detalhadas dos gestos e comportamentos de Cecília pelo narrador assemelham-se ao estudo de um etólogo que observa os movimentos de um animal selvagem no seu habitat, dissecando-os. Como na cena em que a jovem entra no bar, acompanhada pelo Sapo – como boa princesa que se preze, extraída dos contos de fadas – “Também não se chegou demasiado ao companheiro, como fazem as mulheres quando pretendem afugentar qualquer presença inesperada, qualquer recordação”. Na realidade, esta parece tratar-se de uma relação fria , norteada apenas por uma simbiótica troca de interesses de parte a parte, fazendo suspeitar ser esta figura dona de uma personalidade fria, calculista e bastante interesseira, pela ausência de ostentação de qualquer ponta de embaraço pelo sucedido nos últimos meses.
O comportamento frívolo de Cecília cria um forte contraste com a perturbação do jornalista, amigo de Daniel: Tinha (...) um rosto soberano e quase frio; e os olhos pintados , só os olhos (…) - “Cabra”.
Em relação ao companheiro – o Sapo – o retrato (e a alcunha) é inequívoco: "Temos presentes as suas ameaças aos microfones na época das eleições e as rusgas que o tornaram célebre". O narrador termina a primeira parte do relato na altura em que o sol se aproxima do horizonte e o vinho tinto velho é servido pelo barman, dois factores que proporcionam um ambiente que convida a confidências.
2ª parte - a história de Daniel Lobo
Uma semana após a conversa com o jornalista é a vez do médico, Daniel Lobo, recém-saído da prisão, ir ter à Lanterna onde conversa também com o narrador.
Após a saída do médico, o barman comenta discretamente com os dois companheiros da mesa a relação de Daniel com Cecília, comparando-o a Pigmalião, por ter tentado aperfeiçoar a sua musa em termos ideológicos. Daniel é Pigmalião apenas por tentar moldar a mulher amada à semelhança de um mito, um ideal, um arquétipo de intelectualidade. Ao visitar a Lanterna, encontra os seus amigos à mesa. Junta-se a eles e, então inicia, na primeira pessoa, o relato da história do seu relacionamento com Cecília.
Retrato Físico e Psicológico de Cecília
A mulher que consegue seduzir Daniel Lobo tem a aparência típica de uma mulher do Norte de Portugal , de entre Douro e Minho. Cecília parece exibir o aspecto físico de das antigas mulheres celtas, atendendo à descrição do jovem médico:
“Exemplar celta. A Cecília vem de uma família de camponeses próximos do mar de uma região do Norte habitada pelos celtas...” (…) cabelo claro busto pequeno em relação às coxas, que são longas e possantes, pernas e pés sólidos (herdados de camponeses habituados a cobrir descalços grandes distâncias arenosas). E, para terminar uma fria altivez, dominando um corpo vivaz. “Cavalo de cem moedas”, chamavam noutros tempos à avó dela e a expressão era a de marchantes determinados que tinham batido todas as feiras e vilas (…). A sua herança foi essa. A sua raça partiu de camponeses da planície e de “cavalos de cem moedas”, passada agora a um apuramento de cidade”.
Cecília encontra-se, na época em que conhece Daniel Lobo, em Lisboa, matriculada na faculdade de Arquitectura, para poder continuar a fazer uma vida liberal na cidade e, ao mesmo tempo, usufruir de uma confortável mesada dos pais. Cecília leva uma vida dupla, em virtude de uma educação conservadora, que condena a sexualidade fora do casamento. No entanto, anseia por um estilo de vida liberal, o que faz com que se sinta compelida a esconder dos seus os hábito que pratica na cidade.
Trata-se de uma jovem culta, ou que, pelo menos tem acesso à oferta cultural fora do mainstream da época. Um facto que se torna evidente quando refere Bergman, Visconti, Sam Fuller, James Joyce ou Henry Miller, em conversa com Daniel. O isco perfeito para caçar revolucionários.
Há, ao longo de toda a trama, no que toca ao envolvimento desta personagem feminina, uma constante duplicidade (ou falsidade), tal como no lavagante um aspecto que parece abarcar todas as dimensões do seu carácter. Uma ambiguidade sinistra que se torna patente até mesmo na dedicatória que escreve no livro oferecido a Daniel, à laia de aviso:
É necessário cometer amiúde algumas imprudências, mas convém que sejam devidamente calculadas (Napoleão). Lembranças de Cecília
No que toca ao comportamento, Daniel é o primeiro a detectar alguma arrogância nas atitudes da jovem, nomeadamente na forma como o aborda pela primeira vez, ao transformar pedidos em ordens.
Daniel consegue, também, detectar alguns sinais de desajustamento social, patentes na forma como lhe tremem as mãos, que suam com facilidade.
A maturidade corporal comporta também algumas contradições: “Mão adulta, face adolescente. Cecília tinha o corpo marcado pela indecisão, apesar do tronco bem definido e da firmeza do andar que, esse sim, era acabado, tranquilo e sem a autoridade voluntária com que se deslocam as jovens.”
Noiva de um militar, embora por um curto período de tempo, Cecília revela, ao abordar Daniel pela primeira vez, mais um aspecto do seu carácter enganador: Cecília aprecia o noivo como um objecto sexual, um mero animal de prazer, quando faz notar que “possui um belo corpo”. No entanto, faz questão de deixar claro que não o admira. Também a distância, entre o lugar onde supostamente estuda e o local de residência do namorado favorecem a camuflagem de que necessita para fazer a vida que deseja:
... era uma vantagem para uma jovem que precisa da liberdade e protecção aos olhos dos pais para a sua liberdade.
O terceiro momento da narrativa: o alpendre na casa de praia
O clima que envolve o cenário onde se insere o relato dos acontecimentos que levaram ao desfecho da acção muda ligeiramente ao passar d’ A Lanterna para o alpendre da casa de praia, para onde se retiram as personagens/expectadores – um ambiente mais intimista, tranquilo e onde as paredes não tenham ouvidos.
É lá que Daniel se sente à vontade para recuar dois meses na sua vida e relatar, com todos os detalhes, aos amigos o sucedido na madrugada de 2 e Maio de 1962.
A dificuldade de reconstrução de um episódio tão conturbado tem, para Daniel, uma semelhança muito próxima com a impressão que lhe é transmitida pelos farolins de um carro em noite de nevoeiro. Daniel crê que a memória é a capacidade de aprisionamento de momentos dispersos, capturados pelo flash da máquina fotográfica cerebral. Para Daniel, esses momentos “existem mas levantam-se e desaparecem ao sabor das ondulações”- Tal como os sinais emitidos pelo farol aos navios no meio do nevoeiro. A partir daí, será função da memória a tarefa de recriar, ligar e “traçar o desenho exacto de um cerco de pesca”. E “Cecília é um punhado de instantes luminosos”. Durante os encontros com Daniel, a curiosidade deste acerca da jovem aumenta com a percepção do perigo e os diálogos incidem sempre em assuntos que possam suscitar o interesse do médico.
A referência ao Sapo e à relação de Cecília com o elemento da polícia política é também aflorada numa destes diálogos: o Sapo conhecia-a desde pequena, era íntimo da casa e insinuava-se sub-repticiamente.
A relação de Cecília com o lavagante Maior é, como já foi dito, a de uma cómoda simbiose, onde se verifica um certa tendência para a síndrome de Estocolmo, isto é, o sentimento expresso de alguma simpatia e benevolência em relação ao abusador: “Sim, tenho ouvido dizer coisas dele. Mas a mim diverte-me. Tem uma bela casa, um yatch, dois carros...Para uma pessoa, quando está chateada é mais do que o suficiente. E depois é inofensivo. Ou quase. Trata-me por “menina”, como quando andou comigo ao colo, em casa do meu pai. Acho que isso o excita. Mas vai à cautela...”. A atitude de Cecília para com o protector, típica de uma acompanhante de luxo. Por outro lado, verifica-se uma contradição entre a cultura exibida e a superficialidade demonstrada no que toca à hierarquia de valores e compreensão da natureza humana.
Cecília, a mulher que se olha ao espelho
Cecília tem o hábito de usar o espelho nos lugares públicos para verificar a postura. Para Daniel Lobo, este tipo de mulher, “ A mulher que se olha ao espelho é aquela que está permanentemente diante de si mesma. O pavor do ridículo(...) origina(...) uma incapacidade de se entregar cujas consequências são, por vezes, dolorosas. A mulher que se olha ao espelho preza-se demasiado (ama-se é o termo) para conseguir deixar de se estudar nas circunstâncias mais adversas e procura compensar as suas quebras de autoridade com uma crítica impiedosa das situações absurdas”.
Também o Autor atribui às mãos o veículo máximo de expressividade, logo a seguir ao olhar.
Pode-se ainda considerar uma marca da genialidade do mesmo Autor o enquadramento das atitudes e gestos das personagens principais tanto nos acontecimentos históricos da época, a anunciar aquilo que se irá passar cerca de doze anos depois (espírito visionário) , com o 25 de Abril de 1974. Exemplo disso, é a momento em que o casal se detém na baixa a admirar a desenvoltura com que as mãos da vendedora de flores sacam os cravos vermelhos do molho, “com graça de bailarina”, precisamente no dia da prisão de Daniel.
O clímax da acção: O encontro no snack bar da Rua da Prata
O rescaldo do ocorrido na madrugada de 1 de Maio de 1962. trata-se de o chamado “Dia seguinte”. Marcado pela repressão da revolta popular e estudantil que vai levar ao desfecho da trama. O levantar do último véu. Os acontecimentos parecem ter sido de uma violência de tal ordem que as pessoas, nesse dia, não conseguem reparar quão agradável está o tempo, um perfeito dia de Primavera, após um longo e deprimente Inverno que assolou a na Baixa de Lisboa. Uma clara alusão à política repressiva do Estado Novo e à possibilidade, muito real, de uma mudança na direcção do vento.
“Nas últimas semanas o céu esteve ligeiro, aliviado e era a Primavera (…) tal como ela costumava chegar a Lisboa, depois de muitas hesitações e muito trabalho para vencer as nuvens da costa. As pessoas mal dão por isso.” Parece haver algo que funciona como distractor e coloca as pessoas como que num estado de alienação, como se fossem sonâmbulas. Trata-se do Medo.
“Mas neste dia 2 de Maio a multidão da Baixa andava alheia aos céus e às águas luminosas do Tejo. Olhava as fachadas dos edifícios, salpicados de balas.”
É desta forma que José Cardoso Pires alude à revolta estudantil de 2 de Maio de 1962, violentamente reprimida pelo Exército e pela PIDE-DGS. Neste contexto, a sua personagem, Daniel, decide arriscar a vida ao exercer a profissão sem atender fronteiras políticas, cuidando dos feridos revolucionários.
“Enquanto Daniel tratava dos feridos e a cidade andava em guerra Cecília, no seu quarto de mulher só, fumava cigarro atrás de cigarro”.
Cecília, enquanto isco oferecido ao safio Daniel pelo Grande Lavagante, pensa tratar-se o médico de um importante membro de ligação com os revolucionários. O olhar de triunfo que exibe no momento da prisão de Daniel não deixa dúvidas quanto à sua personalidade.
Na opinião de Daniel, “O Lavagante acaba por libertar o safio para ganhar uma outra presa”. Neste caso, o lavagante fêmea, a qual tenta, no último minuto, salvar a própria imagem diante de Daniel. Trata-se de uma mulher previdente que não sabe de que lado soprará o vento no futuro. Para uma lavagante como Cecília a imagem, o disfarce, é tudo o que realmente importa.
O disfarce, o apetite pela presa e o prazer da caça.
Cláudia de Sousa Dias
4 Comments:
Ora aqui está aquele a quem eu teria dado o Nobel...
pena já ter falecido...
até há muito pouco tempo atrás não conhecia nada dele...
csd
Não podemos conhecer «tudo», sequer aquilo que gostariamos ter conhecido com mais tempo.
E é assim com tudo. Mas é bom: há sempre mais alguma coisa para descobrir.
isso é uma grande verdade...
entretanto vou preparando outro post para este fim de semana...
csd
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