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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Sunday, November 08, 2009

A Linguagem das Fontes” de Gustavo Martín Garzó (Teorema)



Gustavo Martín Garzo, nascido em Valladolid no ano de 1948, é licenciado em Filosofia e Letras tendo-se especializado em Psicologia. É fundador das revistas literárias Un ángel más e El signo del gorrión. Colaborou e participou em vários congressos de literatura. Está casado com a escritora Esperanza Ortega.
De entre a sua vasta obra literária destacam-se os seguintes títulos: 2001, La soñadora; 2000, El valle de las gigantas;1999, Las historias de Marta y Fernando; 1997, El pequeño heredero; 1997, Ña y Bel; 1996, La vida nueva; 1995, La princesa manca, 1995, Marea oculta; 1994, El lenguaje de las fuentes.


Laivos de surrealismo que aparecem sob a forma de sonhos, delírios, visões, alucinações, por via natural ou química, são algumas da principais marcas presentes no discurso narrativo da personagem principal, José, marido de Maria, uma das figuras centrais do Evangelho que, nesta estória de ficção, acumula a função de narrador, criando uma evidente intertextualidade com o autor de A última Tentação de Cristo, Nikos Kazantzakis.

José e Maria revelam-se aos olhos do leitor, neste romance de Gustavo Martín Garzó, como protagonistas de uma história de paixão, posse e fúria, por onde vagueiam sombras de anjos que vigiam de perto a voragem do desejo e do desastre.


José, enquanto apaixonado, é submetido a um conjunto de forças que não compreende ou domina, revelando-se como uma personagem tão enigmática quanto inquietante.
Da mesma forma, a personagem Maria, construída por Garzó, deixa entrever alguns traços de personalidade insuspeitáveis e mesmo susceptíveis de despoletar alguma polémica.


Gustavo Martín Garzó obteve com este romance, o Prémio Nacional da Narrativa em Espanha no ano de 1994 e é considerado como um dos autores mais prestigiados do país vizinho.


Personagens e Trama


José, enquanto narrador, é um homem que se perde no tumultuoso rio das suas memórias, sobretudo no momento em que sente aproximar-se a hora derradeira. Recorda, sobretudo, Maria enquanto adolescente, o noivado e o estranho consentimento do pai.


A acção desenrola-se no interior da mente do envelhecido e solitário carpinteiro, num monólogo interior, polvilhado de alucinações visuais, auditivas e conflituosos diálogos com anjos. Sonha acordado com estranhos seres antropomórficos que identifica com seres angélicos, imateriais e de força descomunal, que julgam ser os responsáveis pelos controle dos seus movimentos, tendo como dever monitorizá-lo. José parece, também, sofrer de crises periódicas de privação de sentidos que antecedem as visões/alucinações.


Os anjos de Garzó


Os chamados “anjos” que se acostumou a ver periodicamente são seres de beleza andrógina, frios e incapazes de sentirem emoções. Têm aspecto masculino, mas são desprovidos de pénis, assemelhando-se a eunucos – daí a dificuldade em controlar algumas necessidades de cariz fisiológico. O que leva o leitor a concluir tratarem-se de seres de carne e osso, submetidos a um tipo de mutilação, comum na época, em algumas civilizações orientais. Os poderes de que gozam parecem ser fruto da imaginação delirante e dos medicamentos ingeridos pelo velho carpinteiro.
Maria é, também, frequentemente assolada pela visita desses “anjos” que a deixam perturbada, com o espírito alienado e com acentuadas alterações de humor.


Ambos os cônjuges parecem sofrer, cada qual, de um tipo específico de esquizofrenia, sendo esta estimulada tanto pelo crescente estado de senilidade de José quanto pela ingestão de substâncias mitigadoras da dores atrozes do num braço em processo de gangrena, após sofrer um acidente de trabalho. No caso de Maria, a tendência para sofrer visões e alucinações parece estar associada aos acessos se epilepsia, facto que perece relacionar-se com episódios de alteração da percepção.


Esta mãe de Jesus de Nazaré – personagem que quase não é mencionada ao longo do livro, estando praticamente ausente do pensamento do pai adoptivo - , construída por Garzó, apresenta-se-nos com uma deficiência física: uma mutilação resultante de uma pancada na mão com um objecto contundente tendo, a partir de então, gangrenado e sofrido uma amputação. O resultado de um castigo físico dado pelo pai como punição de uma tendência socialmente mal vista na sociedade judaica: a cleptomania. O livro é, portanto uma chamada de atenção para a tendência para levar ao extremo a aplicação da lei e respectiva punição.


A simbologia das fontes


O título A Linguagem das Fontes advém da tradição judaica que associa a presença feminina à água que mata a sede.


Para os conhecedores das estórias do Livro mais reproduzido de sempre - a Bíblia, para quem não sabe – as figuras femininas mais veneradas estão sempre associadas à água, como Rebeca, Raquel, a mulher de Samaria, cujo papel é o de abastecer as casas, a família, os animais, do bem indispensável à vida. A “Fonte” é, assim, a metáfora do útero do qual sai a vida (água).


Nos textos mais antigos da tradição judaica, a beleza poética das palavras exprime o apreço pelas coisas simples e, por vezes, rudes, estão presentes no quotidiano. No dia-a-dia de José, à beleza agreste do ambiente e das mulheres locais, junta-se os medos e as superstições quando se trata de interpretar fenómenos que não compreende, lidando com alguma dificuldade com os “anjos” que impedem a consumação do casamento com a mulher que ama.


Já Maria revela-se ao leitor através dos olhos de José, como um ser simultaneamente frágil e detentor de uma força igual à dos anjos que lhe assolam o espírito. A jovem mostra-se assim capaz de atingir extremos de crueldade e de compaixão, o que faz dela um ser paradoxal, cheio de contradições. Maria tem, assim, atitudes completamente díspares como é o caso do episódio com o jovem pastor, espancado até à morte, durante o qual a jovem pensa apenas em testar o próprio poder e da solidariedade com o eunuco Gratus, vítima da crueldade de Herodes. além de que Maria, neste romance, aparece com uma personalidade algo sibilina, conseguindo prever, por exemplo, algumas atitudes do monarca despótico, o que lhe possibilita a sobrevivência no meio da adversidade. O instinto de protecção associado ao impulso e sentimentos maternais estão muito vincados na sua personalidade.


Realismo Mágico


Mais do que o surrealismo, o realismo mágico parece ser o estilo dominante na escrita de Gustavo Martín Garzó em A Linguagem das Fontes, sendo disso exemplo, os transes a que são submetidas as duas personagens principais. Em relação a Maria, esta Ficava como que a ouvir vozes no silêncio e no seu olhar havia então uma qualidade de estranheza que podia dar ao seu rosto uma expressão displicente e até cruel, fazendo José sentir-se como aquele que ao entrar em casa descobre logo que ninguém estava à sua espera e que deve retirar-se imediatamente.


Sabendo o lugar de importância que, na tradição judaica, se atribui à hospitalidade, esta comportamento da protagonista feminina assemelhar-se-ia, segundo as crenças da época, a uma estreita relação com o sobrenatural.


Outro elemento de forte carga simbólica é a presença da estrela Sírius, assim como o seu posicionamento, associado ao aparecimento daquilo que acredita ser um anjo, a coincidir com as crises de epilepsia.


Também a presença do anjo que assoma ao imaginário de José, no final da vida e já em avançado estado de senilidade, ao qual chama de Abdenago, devido à sua obstinação e temperamento indomável, faz lembrar um eunuco oriental de características helénicas.


O semblante é sinistro, frio, desprovido de emoções, uma vez que a sua missão parece ser realmente, o de transportar o protagonista para o Vale da Morte.


O realismo mágico está presente no quotidiano do casal e, particularmente, nos últimos dias de vida da personagem-narrador, pela presença de fenómenos aparentemente inexplicáveis como os figos que amadurecem inesperadamente antes do tempo ou do massacre das galinhas, dentro da capoeira. Também a recordação de José da visita do “Anjo” a Maria, na altura da fuga para o Egipto, logo após a tragédia sucedida com Gratus, parece ser uma ligeira deturpação dos acontecimentos relacionada com a visita dos eunucos da Corte, amigos de Gratus e dos seus amigos.


Para quem lê a obra, Abdenago assemelha-se mais a um eunuco, vítima de um flagelo semelhante ao do pastor, devorado pelos chacais, mas cujas capacidades são amplificadas, quer pela ingestão de substâncias químicas do ancião quer pela alteração de consciência e deturpação perceptiva da esposa. Abdenago, a quem José toma por um anjo, tem um comportamento estranho, lembrando antes um sicário, enviado pela corte com a missão de envenenar José com um opiáceo dissolvido no vinho. Ou, ou de lhe aliviar as dores, preparando-o para a morte. Trata-se da personagem mais ambígua do romance. O que é uma mais-valia para o já de si elevado teor de polissemia da obra. O ataque cardíaco que marca o dramático final da obra é, também, atribuído a este misterioso benfeitor.


Do blog http://leganasdulcesenojospicantes.blogspot.com/extraímos a análise mais exacta da personagem Abdenago e a sua relação com José:


Leer sobre Abdenago puede ser todo un shock, no sólo por la descripción física que hace Martín Garzo del personaje (constitución humana, expresión atormentada cercana al pathos laocooteniano, esfínteres incontrolados, respiración forzosa, voz metálica) o porque el autor lo dota de cualidades que según la tradición católica estos no poseen (como por ejemplo leer el pensamiento), sino por ese proceso de metamorfosis tan desagradable, agónico y degenerativo que lo acerca tanto a la especie humana y que casi nos degrada. Abdenago, al igual que otros que rondaban a José, estaba muy lejos, valga la redundancia, de cualquier imagen angelical. Más bien, todo lo contrario. Se les presenta como entes agresivos, violentos, vengativos, dispuestos a todo.
Sin duda alguna, si José es el verdadero protagonista (y merecido) de " El lenguaje de las Fuentes" (Gustavo Martín Garzo, 1994) por la trascendencia de su persona como padre de El Mesías, Abdenago es la gran revelación de la novela. De hecho, desde que la leí allá por el año 2002, estoy esperando una novela especialmente dedicada a las andanzas de Abdenago por la tierra...En fin, un ángel caído, como muchos otros
.


O estranho carácter de Maria não fica nada a dever ao de Abdenago em matéria de ambiguidade, cabendo-lhe para além do que já foi dito, uma certa dose de dissimulação, característica tradicionalmente atribuída às mulheres, tendo como base o capítulo do Génesis. O José de Garzó parece, no entanto, encontrar a chave que explica este comportamento:


Talvez porque aqueles encontros com os anjos deixassem nela aquele obscuro transtorno em relação à própria constituição do real; talvez porque a mentira e o engano tivessem uma profunda raiz paradisíaca e fossem indissociáveis da felicidade e da satisfação.


Ao que não é alheio o medo do castigo ao assumir-se como um ser “diferente” que talvez aumente esta necessidade de ocultação dos fenómenos a que estão associadas estas visitas. José, numa das suas alucinações, chega a ver a esposa às cavalitas de um destes “anjos”, o que lhe despoleta um acesso de ciúme.


O flagelo da castração


O romance A Linguagem das Fontes aborda a questão da castração masculina, muito comum em algumas culturas orientais, na época. Há um jovem púbere que é raptado, violado e castrado por um grupo de beduínos e cuja situação é mantida em segredo pelos homens de etnia judaica, cujo pudor faz com que tentem manter as mulheres ignorantes da situação. No entanto, a curiosidade destas é superior à prudência dos homens. As mulheres judias são retratadas por Garzó como detentoras da de um sentimento de compaixão e solidariedade que atinge o patamar do sublime. Principalmente no que toca ao momento da fuga e suicídio deste, após o que é devorado pelos chacais, animal conotado segundo a tradição bíblica, às forças do Mal.


Um aspecto de grande ousadia por parte de Garzó, ainda neste romance, consiste na insinuação de que Maria poderia ter sido violada, durante uma privação de sentidos, deixando no ar a dúvida de que a concepção do filho da Virgem ser de origem divina ou sobrenatural, ao lançar a suspeita de se tratar antes de um fenómeno tão comum quanto a reprodução da humanidade. Outro, será o acentuar da senilidade de José, à medida que a narrativa se aproxima do seu terminus.


Um curto romance deste José com uma jovem beduína, durante a estadia no Egipto, não consegue ofuscar este amor obsessivo, apesar da beleza perfeita da adolescente. Ele abandonara Puah e, anos depois, fora Maria a pagar-lhe com a mesma moeda.


“(…)Não protestou quando a viu dirigir-se para Jerusalém para ser integrada nos círculos secretos dos seguidores do seu filho, com quem nunca consegui simpatizar”.


O final da narrativa está já marcado pelo episódio da invasão de Israel pelos Romanos.


E as últimas cenas são protagonizadas por presença de Maria, intacta na sua beleza de jovem, e pelo sinistro anjo que abandona o cenário após ver concluída a sua missão: observar e prestar assistência e encaminhamento para a morte do pai daquele que então se intitulava “o Messias”.


Uma narrativa que tem tanto de belo e sublime como de intrigante.



Cláudia de Sousa Dias

4 Comments:

Anonymous samartaime said...

Este nem sabia que existia. Fiquei muito curiosa e tenciono ler.
Parece que me deste uma boa dica!
Abraço!

9:19 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Penso é que será difícil encontrá-lo.

a publicação em português é da Teorema e se calhar só indo directamente À editora ou aos alfarrabistas.

em Portugal acontece uma coisa curiosa sobretudo a partir do final ou meados da década de 1990: todos os livros que ferem susceptibilidades no campo da religião, nomeadamente do catolicismo são discretamente atirados para fora do mercado.

é o caso de Nikos Kazantzakis,com "A Última Tentaçãop de Cristo" José Rodrigues Miguéis comn "o Milagre segundo Salomé" e agora "A Linguagenm das Fontes" de Garzó.

espero que consiga encontrá-lo...


CSD

10:35 AM  
Anonymous samartaime said...

Essa informação paralela ainda me espicaçou mais a curiosidade...

12:46 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

:-)


imagino que sim...

agora é correr os alfarrabistas todos de Lisboa, Porto e Coimbra...



csd

3:13 PM  

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