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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, December 14, 2009

“O Pássaro Espectador” de Wallace Stegner (Teorema)




Filho de imigrantes escandinavos nos EUA, Wallace Stegner nasceu no Iowa em 1909. Formou-se na Universidade do Utah, em 1930, tendo-se doutorado cinco anos depois pela Universidade do Iowa. Professor de literatura nas Universidades do Wisconsin, Harvard e Stanford onde dirigiu o Creative Writing Center desde 1948 até 1971, altura da sua jubilação. Faleceu em 1993, em Santa Fé, no Novo México.

Wallace Stegner iniciou a carreira literária em 1937, com o romance
Remembering Laughter e ganhou o Prémio Pulitzer com Angle of Repose. O livro de que aqui tratamos, O Pássaro Espectador obteve o National Book Award, em 1977.

A trama de O Pássaro Espectador consiste no dia-a-dia de um agente literário reformado, imbuído da nostalgia da juventude e da angústia causada pelo envelhecimento e consequente degradação física e ampliada pela dos entes queridos e pessoas com quem partilha o quotidiano.

O protagonista, Joe Allston é uma pessoa não propriamente de trato fácil, um pouco solitário, algo misantropo, que oculta uma extrema sensibilidade por detrás da máscara de frieza e ironia. A isto junta-se um gosto estético exigente, depurado e avesso a exageros, o que faz dele um crítico exigente nas lides literárias.
Implacável e dotado da mesma inteligência, tradicionalmente atribuída à ave nocturna que o inspira a olhar para a vida com a postura de um “pássaro espectador” - o bufo real, companheiro de Athena, a ave que representa o conhecimento.

Um dia, ao encontrar um postal de alguém que conheceu durante uma viagem á terra dos seus pais, na Dinamarca, Allston decide procurar o diário que escreveu durante a referida estadia e, assim desenterrar gradualmente um passado que é ilumina e reinterpreta à luz do presente, colocando-se como espectador diante do filme da própria vida.

A viagem à Dinamarca ocorre nos anos 1960, altura em que Joe e a esposa, Ruth, entram na meia-idade. Durante a mesma viagem, o então agente literário aproveita para visitar a aldeia de onde a mãe é originária, antes de emigrar para os Estados Unidos.
Joe começa por visitar Copenhaga onde conhece a condessa Astrid, prima de Karen Blixen, cuja família é detentora de propriedades na aldeia onde viveu a mãe de Joe.

Localização Espacio-temporal

O texto de O Pássaro Espectador tem dois tempos e dois locais de acção. O primeiro, é o tempo presente e passa-se nos Estados Unidos, na segunda metade dos anos setenta, durante o qual o protagonista enfrenta os limites impostos pela rotina da vida de reformado. O segundo tempo narrativo passa-se mais de dez anos antes, na Dinamarca.

Este segundo tempo e consequente localização espacial advêm da leitura do diário por Joe, a pedido de Ruth. Joe lê uma parte da própria vida como se fosse uma história, um filme, olhando para o narrador/autor do diário que é ele próprio, como se se tratasse de um personagem fora de si mesmo, isto é, assumindo o papel de espectador. Esta atitude só se torna possível devido a este desfasamento temporal.

Personagens

Joe é agente literário de profissão unicamente porque as necessidades do quotidiano o obrigaram a seguir uma profissão que lhe permitisse ganhar dinheiro, ao invés de seguir a vocação.
A esposa, Ruth, é uma mulher generosa, afável, mas algo puritana, que encara o dever de auxiliar os outros como uma missão no que respeita ao trabalho de entretenimento levado a cabo com idosos e doentes terminais. A Joe, esse espírito missionário não o seduz e as tarefas associadas a este tipo de actividade deixam-no em estado de depressão iminente. Ruth é uma mulher de convicções fortes, gosta de esclarecer, esmiuçar as questões até ao âmago, por mais desagradáveis que se lhe afigurem, ao passo que Joe sente-se confortável ao reservar uma parte do seu eu para si mesmo – um quarto ou uma ala do palácio que é a própria afectividade, ou uma parcela do ego secreto a que só ele tenha acesso.
Esta luta entre ambos é a força motriz que impele o desenvolvimento do romance: o choque de duas vontades opostas.

A condessa Astrid Roddig

Uma intrusa amável, bela e misteriosa. A beleza advém-lhe dos genes escandinavos que lhe conferem a aparência da beleza clássica das lendárias fadas e feiticeiras, a par da distinção que lhe é transmitida pela via da cultura inerente a uma das mais antigas e tradicionais famílias da Dinamarca. Já a aura de mistério que a rodeia poderá estar relacionada com a atitude esquiva e algo segregadora que parecem adoptar aqueles que a conhecem de alguma forma. Parece haver, também, algo de intrigante na complicada trama das relações familiares de Astrid, o que, indirectamente, acabará por se estender à família do próprio Allston.

O Conde Eigil Roddig

Egil Roddig, o irmão maldito da família de Astrid causa em Allston o efeito clássico da primeira impressão: o primeiro impacto é negativo, fruto da extrema arrogância de Roddig, impressa no tom de voz, que dirige aos outros como se fosse o dono do mundo. Pouco depois, parte dessa primeira impressão desfaz-se ou desvanece-se. Allston admira o desembaraço, a visão, o espírito empreendedor e a ambição do aristocrata. No entanto, apercebe-se de algumas marcas ideológicas no seu discurso que se opõem esta impressão favorável: um interesse desmedido pelo aperfeiçoamento genético da espécie humana, o apreço pelas teorias raciais da história – as quais já há mais de uma década haviam sido refutadas. A estes indícios junta-se uma evidente tendência para a formulação de ideias e projectos de grande magnitude, por vezes a roçar a megalomania e uma certa falta de humanidade, a raiar o desrespeito pela espécie humana e, simultaneamente, uma evidente observância de uma ética muito ao estilo Göeringiano.


Referências Literárias

A obra O Pássaro Espectador comporta inúmeras referências literárias e intertextualidades, desde o imperador Marco Aurélio ao polémico Nikos Kazantzakis, do qual faz uma enigmática e sibilina citação que consegue despertar o interesse de Ruth: “Amaldiçoado será aquele cuja sede for saciada”. Esta sede representa a curiosidade que precipita a descoberta e a desilusão, confirmadas por outra citação que se lhe segue: “ o arrependimento e a culpa são emoções secretas e egoísticas”, o que dá consistência e corpo a esta linha de desenvolvimento.

A Passagem do tempo e a noção de irreversibilidade: a irrecuperabilidade do tempo e das oportunidades perdidas

Estas são as duas principais componentes que sobressaem em ambas as narrativas, que formam o romance na sua totalidade. O primeiro elemento está patente na referência constante aos sinais de envelhecimento, ao qual está implícito um certo grau de conformismo, frustração e recalcamento, eivados de estoicismo.
Com o outro elemento, a perda de oportunidades a que se vê obrigado alguém que tem de ignorar a própria vocação em prol da sobrevivência, sucede algo parecido. E também, da mesma forma, com o amor, onde à amada se afiguram mais urgentes as obrigações familiares do que a procura de outros lugares onde assentar raízes e desenvolver em pleno o seu potencial.

Há, no início do romance, uma personagem que afirma em relação ao desenvolvimento das doenças, que o tempo não as deixa atingir o seu potencial máximo, encarregando-se de exterminar os seus portadores. Acaba por concluir que com o potencial de desenvolvimento das pessoas sucede exactamente o mesmo. A morte faz a sua colheita antes que esse fenómeno ocorra.

John opta assim por, durante muitos anos, ocupar-se da escrita dos outros, muitas vezes de escritores medíocres ao invés de escrever os seus próprios livros. A submissão a um emprego sofrivelmente remunerado, acaba por atirá-lo, quase no fim da vida, para uma situação de relativa degradação económica e, simultaneamente, para um casamento estável, seguro e desapaixonado.

A escritora Karen Blixen, aparece como personagem na segunda narrativa. Desempenha o papel de sibila ou fada, numa casa semi-escondida no meio de um bosque de faias, cuja luz verde e dourada faz lembrar um eclipse, noites brancas, instantes recheados de magia...

Parecia não ter marcas no rosto e os seus olhos eram como que grandes demais para o rosto. Uma cara de pássaro...”
“... a casa de campo, herdada e provavelmente repleta de amores perdidos crimes e sussurros do passado que ela transcrevia para as suas histórias.” “O que é isto?”; “Isto? Isto é a segurança.” Deste breve diálogo pode-se depreender que Karen e Joe são igualmente pássaros espectadores que, um dia, decidiram trocar o protagonismo e a liberdade pelos bastidores e o anonimato.
“Karen é uma bruxa, feiticeira; (...) a condessa, Lorelei, mas nem por isso menos vidente”.

Nas palavras de Karen está a chave do romance, que nos surge como um castelo com várias salas secretas que se vão desvendando página a página.
Para Karen, “o mal se existe não é feio como um sapo. Muitas vezes é até mais bonito do que aquilo que as pessoas referem como bom. Isto é, pode ser extremamente sedutor. Daí as pessoas sucumbirem”.

A personagem que incarna o mal no romance é, sem dúvida, o irmão de Astrid. Segundo as palavras de Karen, “A verdade é que Eigil nunca poderia ser desinteressante ainda que tentasse. Se o conhecerem pode ser que o achem fascinante.”
Karen escolhe a vida tranquila e segura na Dinamarca, abandonando o continente que ama: África. No entanto, a Europa fá-la sentir-se “enferrujar, sem brilho, quando o que desejava era sentir-se brilhante e utilitária (…). A segurança é uma faca de dois gumes”. Karen dentro do humor cáustico que caracteriza o seu discurso, chama de “cotovelos” aos americanos, devido à forma arrogante como arrumam os adversários “como quem dá cotoveladas”.

Mas para o protagonista, a ferida maior será talvez a dor da perda do filho, obcecado com o radicalismo da contracultura beatnick do final dos anos 1960, cuja morte deixa em Joe, mais uma vez, a sensação de uma oportunidade que se esvaiu e a sensação da irrecuperabilidade. Daí a necessidade de viajar até à Dinamarca, a terra onde o filho perdeu oi que restava da própria lucidez…
Em relação aos outros escritores, Joe Allston estabelece com eles uma relação de impiedosa crítica em relação à superficialidade e ao uso e abuso de conteúdos sexuais. (A negação, por parte do autor, da ideologia mórmon, de que fazia parte a sua própria família que se traduz na projecção deste modelo de estrutura familiar, transposta para uma das famílias europeias na segunda narrativa do romance?). A descrição desta segunda trama é, toda ela, feita sem recorrer a juízos de valor, mas nota-se que o protagonista de afasta, de forma deliberada, daquele modelo ou estilo de vida. Na escrita, Allston demonstra uma clara aversão pela utilização do sexo como forma de exibicionismo e satisfação dos objectivos do mercado, direccionados para o lucro imediato. Sobretudo, pelo facto de este tipo de escrita excluir as faixas etárias mais idosas e sexualmente menos activas.

A leitura final do diário de John Allston constitui o climax do romance preenchendo, assim, as expectativas lançadas no início pela frase de Kazantzakis, uma vez que Ruth insiste em não deixar um único recanto da alma de Joe na obscuridade.
Joe demonstra ser o pássaro espectador que jamais deixa de ser a ave nocturna que voa das trevas para a luz, contempla a paisagem e regressa às trevas na mais completa solidão; à terra das bruxas e das fadas, do sol da meia-noite, deslumbrante e belo a lembrar a vida àqueles que já não a têm para despertar o desejo da chegada da Grande Ceifeira.


Cláudia de Sousa Dias

8 Comments:

Blogger P said...

Gostei.
Estou a ler 'O Mar em Casablanca' do FJ Viegas.
Cláudia, tantos livros para ler, tantas folhas em branco e o tempo que perco a fazer coisas que não interessam a ninguém mas que justificam o ordenado... O que me apetece dar um pontapé nisso tudo... (desculpa o desabafo, pode ser apenas uma questão de má gestão do tempo, ou de preguiça...)
abraço
P.

7:02 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada Baudolino...

Também me parece muito interessante. Agrada-me o estilo de Francisco José Viegas, embora ainda só tenha lido um romamnce dele...e também a poesia.

Quanto ao que sentes, não te preocupes é aquilo que é partilhado pela maioria das pessoas que gostariam de passar o tempoa crescer com os livros...que servem para isso mesmo, para lá do aspecto lúdico.

um grande beijinho


csd

10:34 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada.


fá-lo-ei.


csd

10:35 AM  
Blogger inominável said...

Olha, sobre pássaros: leste "Pássaro Pintado"? É um livro terrível... O conteúdo é de arrepiar... Mas confesso que gostei, como quem gosta de apreciar a morte de frente...

Bjos

11:16 PM  
Anonymous Anonymous said...

Your blog keeps getting better and better! Your older articles are not as good as newer ones you have a lot more creativity and originality now keep it up!

3:00 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Não li, Inominável...

Podes dizer-me qual é o Autor?

csd

10:31 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

If you are no kind of spam, dear anonymous, I would like to thank you for your kindness

:-D

csd

10:33 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

vou pesquisar o título na nel, Inominável...


csd

4:55 PM  

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