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Wednesday, March 09, 2005

"Aclive" de Marta Duque Vaz

O livro da adololescência de Marta Duque Vaz, um riquissímo mundo interior povoado de afectos, nostalgia e muita criatividade

Olhando para a capa de “Aclive”, da autoria de Francisco Dinis, que dá rosto ao “poemário” de Marta Duque Vaz, vemos um declive acentuado que parece ser o precipício de um pico situado algures na cordilheira dos Himalaias, com as agulhas dos seus cumes mais altos a perfurar as nuvens.

Mas ao invertermos a capa vemos um “aclive”, isto é, pelo processo de segregação de fundo, a nossa vista realça-nos, através de uma ilusão de óptica, o branco gélido de um iceberg realçado por um céu de um negro opaco numa noite polar sem lua nem estrelas.

A capa está, por isso, ligada ao poema cuja temática dá o nome ao livro - “Noite sem poesia” - , do qual falaremos mais adiante.

Marta Duque Vaz ofereceu-me o seu “poemário” da adolescência e início de uma vida adulta (uma colectânea elaborada entre os catorze e os vinte anos), que exibem a turbulência de emoções em alguém que está a sofrer as “dores do crescimento” e vive o conflito gerado a partir da luta pela independência, pela autonomia, sofrendo, por vezes, decepções.

O primeiro poema intitulado “Depois” é, segundo a Autora, como que um aviso no qual, ela adverte os seus leitores de que o que está contido nos poemas de “Aclive” são apenas as palavras que traduzem uma forma de sentir que já passou, isto é, trata-se de uma recordação de algo que já foi sentido e, por isso mesmo, transfigurado pela memória (que é selectiva) e trabalhado pela beleza das palavras, como esclarece no poema seguinte intitulado “Noção”.

A Autora prossegue a sua catarsis em “incerteza” onde, através da escrita, mostra a dificuldade em acrescentar algo relativamente a tudo o quanto já foi dito acerca da forma de transpor as emoções para o papel em formato de poesia. São contudo, as últimas duas quadras deste poema que, por si só, contém toda a alma do mesmo, começando já a revelar o interior da Poeta e a ilustrar a necessidade de fazer uma reengenharia emocional, de fechar um ciclo e recomeçar uma nova etapa da vida.

“Quarto” mostra a sensibilidade então tipicamente adolescente da Autora, refugiada no seu próprio mundo de cuja janela tenta compreender o exterior – aproveito, aqui, para salientar a qualidade dos quatro primeiros versos e dos dois últimos do mesmo poema. Observamos a mesma necessidade de refúgio num mundo interior em “Noctívaga”.

A poesia está, também, presente na alma do poema “Cinderela sem Vocação”, apesar da sua naïfté, mais uma vez a temática da conquista da autonomia - poema no qual se destacam alguns versos de particular beleza, embora, algumas das comparações utilizadas ganhassem, provavelmente, mais “força” se convertidas em metáforas.

Do poema “sentir”, destaca-se a segunda quadra que contém o essencial do mesmo.

“Deixa-me ser” exprime a ânsia de liberdade, seguindo-se “Desconhecer” com destaque para a última estrofe. Depois chega-nos o “Poeta”, um dos mais belos da obra, juntamente com “Calma ou Insónia”, quadro que revela a sensualidade secreta da Autora e que transparece, também, em “Reparo” – pormenor de grande sensibilidade -, depois um “Momento” de trocadilhos que exprimem a fluidez temporal da existência humana e um sonho de felicidade intocada pela crueza da realidade em “Monte Some”.

Em “Canto” temos, mais uma vez, os transtornos emocionais da adolescência, o sonho de felicidade ideal em “Sempre assim” e a felicidade adiada em “Espera”, uma limitação imposta pela impossibilidade temporária de liberdade de escolha.

Espreita, de seguida, a volúpia em “Delícia”, expressa, numa forma mais sublimada, em “Lúcida”, misturada com a nostalgia do passado.

Em “Barco de Barro”, vemos uma divagação sobre o sonho de liberdade combinada com o desejo de regressar sempre a um porto de abrigo, um apego às raízes num texto em formato de prosa. A escrita é extremamente naïf embora, revele já todo o potencial criativo de Marta Duque Vaz e a sua grande sensibilidade.

O sentimento de saudade antecipada impõe-se em “Vou Ficar” e em “Primeiras Folhas”. Estes dois poemas ilustram o final de uma adolescência idílica, povoada de sonhos - que se reflecte no verso “O verão que se despede na esplanada” - , juntamente com a tomada de consciência da realidade “ao cair das primeiras folhas”.

Assistimos a uma partida ou separação expostas na nudez de uma “Verdade” de grande significado polissémico e à nostalgia dolorosa de um tempo passado em “Rever”.

Passamos, em seguida, à desilusão em “Entardecer”, que traduz a ânsia desesperada por um novo dia, pelo encerramento de um ciclo e começo de uma nova etapa de esperança. A noite traz, exactamente, a esperança de um novo dia com a promessa de uma felicidade renascida, tal como acontece com a Primavera.

“Cartas e Quadros” é um recordar dos momentos perfeitos, aprisionados, cristalizados no tempo.

Temos, também, o medo da perda em “Inconsciência”, pela sensação de que tudo na vida é efémero.

“Abetum” mostra um ser solitário à espera de um rumo, à sua frente, um leque infinito de possibilidades.

N’ ”As mãos de Vargas” a poesia faz o elogio à arte e à destreza das mãos do artista.

Mais uma vez, a presença da nostalgia de um sonho desfeito em “Praia de Areia Preta”.


Com “Distância”, estamos, novamente, em presença da dor da perda, a consciência da irreversibilidade da morte. Na paisagem descrita em “De Longe”, um poema povoado de vivências de um passado que não conhece em primeira mão, mas que imprimiu a sua marca. São dois poemas que falam da temática que dá título ao livro. Mas é em “Noite sem poesia” que a dor da perda se manifesta em toda a sua dimensão, reflectindo-se nos objectos, nas pessoas, nos rituais, no vestuário mas, sobretudo, na casa e no próprio clima expresso no verso “Quando Novembro entrou comigo”. Novembro anuncia a chegada do Inverno e o final dos dias amenos do Verão de S. Martinho. Novembro traz consigo o frio, o gelo das geadas e das neves, sinónimo de morte; e a noite sem lua nem estrelas - sem poesia - significa a desolação, a morte da alma e da alegria. Sem dúvida, um dos melhores, se não mesmo o melhor dos poemas de toda a colectânea.

Segue-se “Uma data” fundamental na vida da Autora exprimindo um afecto pleno, total, indelével.

“Por dentro” é mais um poema nocturno em que a beleza da noite se manifesta em todo o seu esplendor numa poesia de grande valor estético e riqueza estilística que será grandemente realçada pela eliminação de algumas partículas.

Em “Sem Tempo” e “Presente” apercebemo-nos da sensação de que tudo é efémero e por vezes, não há tempo ou espaço para cultivar a felicidade, tal como já foi referido no parágrafo 18º, no já citado poema "Inconsciência" a propósito dos poemas nele mencionados.

“Abrigo” exprime a necessidade de conforto e aconchego tal como no poema seguinte, “Santa Cidade”.

O livro termina com chave de ouro, sob a forma de um poema-desejo, uma chama a arder crestando a brancura do papel, intitulado “Chama por mim” que mostra todo o potencial de Marta Duque Vaz como poeta.

Uma poeta insubmissa, idealista com uma escrita recheada de rebeldia mas também de nostalgia e alguma saudade.


Cláudia de Sousa Dias

2 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Que boa surpresa, encontrar isto aqui! Esta miuda devia era publicar um livro e outro e outro.
Não me refiro a este passo na sua adolescência, importante sim, mas ao que ela escreve na actualidade.
Mulher. Adulta.
É muito, muito bom.
Lê-la é muito bom.
Saia um novo livro de
Marta Duque Vaz! É urgente!

Cristina Vilar

6:32 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Concordo plenamente!

Tem um imaginério e um interior riquíssimo.

E uma personalidade fora de série!


CSD

5:21 PM  

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