"Meia-Noite ou o Princípio do Mundo" de Richard Zimler (Gótica)
“Meia-Noite” é o mais recente romance de Richard Zimler, autor do best-seller intitulado “O Último Cabalista de Lisboa”.
Desta vez, a acção passa-se no Porto, no início do séc. XIX e conta a história de um rapazinho herdeiro de duas culturas cujos valores chocam frontalmente com os principais traços culturais que constituem a base da mentalidade portuguesa. Filho de pai escocês, John Zarco Stewart é alguém cujo liberalismo e espírito empreendedor colidem com a, então, ultra-conservadora mentalidade portuguesa. Para não falar da herança judia por parte da mãe, cuja fé tem de ser exercida no mais absoluto segredo, porque apesar de a Inquisição já não ter o mesmo poder de outrora (só foi oficialmente extinta em 1921), a segregação social de todos aqueles que pratiquem uma fé distinta é fortíssima e as retaliações sociais para os heréticos são de uma eficácia atroz.
Zimler exibe a sua mestria narrativa começando por contar a história do ponto de vista de um rapazinho de sete anos que encontra uma carta de amor, perdida entre as páginas de um livro numa biblioteca. O conteúdo da carta emociona-o de tal forma que a procura do amor absoluto, completo vai ser a sua ambição maior ao longo de toda a vida, marcando a linha do seu Destino. John Zarco Stewart vai ser um homem de afectos, coleccionando-os, como se de tesouros se tratassem. Daniel e Violeta (o amigo e o amor da infância), os pais (o amor absoluto e incondicional) e, claro, o curandeiro africano Meia-Noite o maior de todos os pilares afectivos que sustentam a vida de John, sem contar com Francisca (aquela que virá a ser a sua esposa) e as filhas.
É Meia-Noite quem coloca John em contacto com as crenças animistas africanas cujas lendas acerca da criação do mundo lhe ensinam o respeito pela Natureza, o equilíbrio entre os elementos, a alternância entre o bem e o mal, entre o tempo do Louva-a-deus e o tempo da Hiena.
E é Meia-Noite quem lhe ensina a enfrentar os próprios medos, a rugir para afugentar a Hiena (pois “quem persegue o mal persegue-o até à morte”), a lidar com a dor da perda durante o Tempo da Hiena. Meia-Noite é a pedra-base para a construção da personalidade de John, tornando-o capaz de amar qualquer ser humano por inteiro, independentemente da cor da pele.
Ao longo da obra verificamos o crescimento interior de John, a formação do seu carácter, pela voz de quem Zimler descreve, com a precisão cinematográfica já presente em “O último Cabalista de Lisboa” , a cidade do Porto, com as suas vielas escuras, tortuosas, com toda a sua beleza e mistério, o mercado e os seus cheiros, ruídos e gentes.
Zimler, um americano naturalizado português, dotado de um apuradíssimo poder de observação e enorme sensibilidade, descreve, com pormenores de um realismo angustiante, situações de perigo eminente ou mesmo de violência física, psicológica e até sexual dirigida às crianças durante as deambulações de John Zarco Stewart pelos bairros mais pobres do Porto, com Daniel e Violeta. A chamada de atenção para a fragilidade a que, por vezes, as crianças são expostas, pela indiferença dos adultos para com os sinais de perigo é de tal ordem que quase que podemos visualizar a cena impregnada de um suspense em crescendum que obriga a um virar de páginas compulsivo.
O Autor foca, também, a problemática do assédio sexual, a questão da infidelidade e a necessidade de autonomia e independência da mulher, bem como a forma como essa necessidade é encarada com desconfiança pela população em geral, colocando numa posição extremamente vulnerável qualquer figura feminina que tente, de alguma forma, destacar-se em alguma área.
Por outro lado, a simplicidade da cultura dos boxímanes (a tribo de Meia-Noite) contrasta fortemente com a desconfiança e arrogância quer dos portugueses quer dos americanos quanto à forma como vêem os negros.
Na segunda parte do romance, passada nos Estados Unidos, John prossegue a sua demanda dos afectos perdidos durante o Tempo da Hiena. Nesta fase do romance Zimler alterna as vozes narrativas de Stewart, já adulto, que se tornou um humanista liberal, com a voz de Memória, filha de Meia-Noite, cujo nome serve para recordar as suas origens no Continente Africano (para Meia-Noite África é memória). Memória relata o clima insuportável de uma plantação de algodão na Carolina do Sul e a opressão a que os negros são sujeitos mesmo às portas da Guerra Civil Americana, após a qual o tratamento igualitário entre brancos e negros está longe de constituir uma realidade.
Ao longo de todo o livro, está presente a simbologia do pássaro ou o ser alado que sobrevoa os diferentes continentes e vê a humanidade como um todo. No início da história, os pássaros aprisionados no mercado do Porto causam uma profunda impressão em John. Tal como a pena branca do pássaro da felicidade, amuleto com o qual Meia-Noite presenteia John na infância e que o acompanha na sua viagem à procura da felicidade perdida, durante o Tempo da Hiena. A mesma pena que é o símbolo do livro e que marca o início de cada capítulo.
A figura alada faz, também, parte da capa, retirada de uma gravura de Albrecht Dürer, representando um gaio azul, juntamente com o esboço de uma caravela.
O mar e os céus como duas extensões de azul a unirem a terra e os homens.
Um romance histórico-épico que une dois continentes e três culturas.
Uma obra prima.
Ímpar.
Cláudia de Sousa Dias
2 Comments:
Adorei este livro.
Tal como adorei toda a série dos Zarco...
Mas este foi ou é provavelmente o melhor.
Mais um excelente trabalho de analise e divulgação.
Palavra de honra que adoro este blog.
Obrigada, Mr. Nonsense!
este é também um dos meus preferidos.
Mas penso que,nas entrelinhas se nota quando gosto realmente de um livro e quando só gosto "assim-assim"...
:-D
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