“Deus nasceu no Exílio” de Vintila Horia (Âmbar)
Vintila Horia nasceu na Roménia. Filho de um engenheiro agrónomo esteve, desde tenra idade, sob os cuidados de uma preceptora de origem francesa que o levou a gostar da poesia de Baudelaire e Rimbaud ou a apreciar escritores como Anatole France e Gourmond, ao ensiná-lo a exprimir-se num francês de estilo literário.
Foi nomeado adido de imprensa em Roma (1940) e, posteriormente, colocado em Viena. Em 1942, foi preso pelos alemães e condenado ao exílio. Viveu-o, durante muitos anos, em Buenos Aires, onde ganhava a vida como escriturário, num banco. Mais tarde e ainda durante o exílio, mas já em Espanha, trabalhou duramente e durante largos anos, como empregado de hotel, repórter e correspondente literário. Em 1958, no âmbito das comemorações do segundo milénio de Ovidio, também ele exilado – e que acaba por falecer na antiga Dácia, território pertencente à actual Roménia, pátria do Autor – Vintila Horia reconhece-se nos “Tristia” do poeta que se tornou a persona non grata do Imperador Augusto e que, isolado na longínqua Dácia, se deixava dominar – e definhar – por pensamentos sombrios. Decidiu, então, escrever um romance que seria o diário do expatriado Ovidio em Tomos, cidade que, segundo a lenda, teria sido fundada pela figura sinistra da terrível princesa feiticeira, Medeia.
Alguns dos acontecimentos históricos que marcaram aquele período do início do milénio I D.C., são projectados no quotidiano das personagens, à semelhança do que faz Pasternak, Tolstoi ou Irène Némirovsky. Mas no caso de “Deus nasceu no exílio” o enquadramento histórico dá-se nos últimos anos do governo do Imperador Augusto e com a presença do exército romano na Dácia, a colidir com as invasões de outros povos, vindos do Norte e do Leste, pressionados pela fome, com a tomada da cidade de Tomos pelos Dácios e o assédio de Getas e Sármatas.
Um dos aspectos mais fascinantes desta narrativa é, no entanto, a evolução do narrador, a pintar o quadro do devir emocional de um escritor no exílio a acompanhar a transformação do rio de emoções como um processo que se desenvolve lenta e gradualmente e se traduz na alteração, de forma quase imperceptível, da forma de olhar as gentes, a paisagem a cultura, os objectos e a própria cidade. Os laços afectivos vão sendo consolidados através do convívio assíduo no quotidiano. O factor tempo, aqui, adquire um papel decisivo.
Em Roma, o Poeta havia levado uma vida superficial, rodeada de luxo e amigos, atraídos pela fama e riqueza de que usufruía. O exílio trouxe-lhe a percepção de que “podemos morrer sem estar mortos”. Ou seja, quando se é privado da expressão, sob a ameaça de expropriação de tudo aquilo que liga alguém à sociedade – casa, trabalho, amigos, família. Para o Ovidio de Vintila, a ideia de morte solitária e fora de Roma afigura-se-lhe, inicialmente, insuportável. Depois, apercebe-se que em Roma esteve sempre muito mais solitário do que no exílio.
Chega então à conclusão de que “O Tempo da loucura e da esperança é o tempo da espera de Deus”. Que pode nunca chegar. Ou chegar apenas no momento derradeiro. Assim “Deus” nasce no exílio. Ou melhor, do exílio. Este deus será Zalmoxis para os Getas, o Messias para os judeo-cristãos, para Ovidio não se chega a saber se realmente se converte ou se encontra um Deus renovador da esperança. Na realidade, o Ovidio deste romance não chega propriamente a converter-se, apesar de admirar a crença no deus Único partilhada pelos Getas, Cristãos e Judeu. Percebe sim, a necessidade urgente do estabelecimento de uma nova ordem, fundamentada por uma ética humanista a ser implantada no território do império, a substituir a máquina de morte estado Romano. Uma nova ordem, assente no diálogo entre as várias etnias que se cruzam no império de forma e desfazer medos irracionais, uma vez que o terror xenófobo está na ordem do dia e é o catalisador de violentos massacres. O que implica uma redefinição de valores onde o primado seja o respeito pelo Outro. O protagonista e narrador está convencido de que o apelo pela dignidade humana se perdeu com a morte da República, com Júlio César, isto é, no momento em que os homens deixaram de poder criticar um chefe de estado que se assume como um deus omnipotente, esquecido da sua condição humana.
As primeiras frases de Vintila que empresta a voz ao amargurado Poeta romano exercem no leitor uma espécie de sortilégio, prendendo-o a um poderoso vórtice emocional, como as garras de uma harpia. As páginas viram-se as palavras sugam o leitor hipnotizando-o como o olhar de uma serpente. Ou da Medusa.
“Fecho os olhos para viver. Para matar, também. E nisso sou o mais forte, pois ele só os fecha para dormir e o próprio sono não lhe traz nenhum alívio. As suas trevas são habitadas por mortes, assombradas por crueldades. Eu sei que ele não gosta do repouso, tal como todos os grandes da terra. O repouso deixa-os a sós com a consciência e os remorsos, com o arrependimento de ter agido sempre como um poderoso, ou seja, como um homem aterrorizado pelo seu poder.”
A prosa de Horia pulula de sentimentos dolorosos, violentos. Um caldeirão onde se cozinham, em fogo lento, o ódio, a amargura, a desolação e o desespero a espelhar a paisagem física de uma cidade à beira-mar, no pico do Inverno, num dos lugares mais inóspitos da Europa: a foz do Danúbio, junto ao Mar Negro.
As descrições de Vintila Horia em Deus nasceu no exílio abundam em elementos sensoriais, com predomínio de elementos visuais e auditivos. A junção do bramido do mar com os gritos lancinantes das gaivotas e o uivo dos lobos, ajudam a pintar um quadro sinistro quase fantasmagórico, a servir de cenário ao crepitar do fogo negro do ódio do Poeta, fazem o narrador aproximar-se muito do tom das Irmãs Brontë, sobretudo de Emily, autora de O Monte dos Vendavais:
“ Adoram-no como a um deus, mas ninguém o ama. Porque ele é o autor da Paz (…) e criou o maior império de todos os tempos, mas é também o Autor do Medo, em particular o medo dos outros e o seu próprio medo.
A tempestade de neve faz vibrar o tecto. O mar geme ao longe, as vagas na noite transformam-se em longos fantasmas de gelo (…). Nunca tinha ouvido um bramido semelhante, acompanhado pelo crepitar da neve gelada, nas paredes exteriores.
E, Além deste grito agudo que se abate sobre mim como uma onda, o gemido do mar soa como a própria voz da noite, como se o Tempo tivesse uma voz e ela se fizesse ouvir num único ponto da terra: aqui.
A minha casa fica quase encostada às muralhas da cidade (…) precipitando-se sobre o primeiro ser vivo que encontrara, uma velhota que regressava do mercado, esfacelando-a num abrir e fechar de olhos. Acorri aos gritos das pessoas e tive tempo de ver o lobo, trespassado por uma lança, jazendo sobre a própria vítima, no meio da neve ensanguentada. Pensei nela nesse mesmo instante. Não consegui impedir-me de lhe desejar uma sorte semelhante, o que infelizmente é impossível, uma vez que os lobos nunca entram em Roma. Mas um leão ode escapar-se dos bestiários, de noite, penetrar nos jardins do Palácio Imperial e fazer o que nenhum homem teve, até agora, coragem de fazer…
Fecho os olhos e mato (…). Fecho os olhos e vejo. Eu sou o Poeta, ele não é senão o Imperador.”
A justificação de Augusto para decretar o exílio de Ovidio prendeu-se, oficialmente, com razões de ordem moral. Augusto quer mostrar-se empenhado em zelar pela moral dos cidadãos Romanos e o acto dissidente do autor de A Arte de Amar, a colectânea de versos eróticos que adquiriam a forma de um manual de instrução para amantes inexperientes ou pouco refinados na “arte", constituía uma provocação deliberada ao líder do Império. Preocupação que espicaça a revolte do protagonista sobretudo depois de o Imperador ter obrigado Lívia, com quem veio a casar, a divorciar-se do anterior marido, estando esta ainda grávida. O poeta abomina um homem que, para esquecer o próprio passado, tem de afastar aqueles que, a todo o instante, lho recordam.
Ovidio acaba, ainda, por ser o bode expiatório do comportamento dissoluto da filha Júlia, viúva do General Marco Agripa. Após enviuvar a jovem coleccionava amantes causando escândalos com o objectivo de desafiar a autoridade do pater-familias. A impudicícia de Júlia é, assim, imputada a Ovidio cujos versos são acusados de corromperem a filha do imperador.
O início do exílio desta personagem é marcado pelo desespero e pela desolação, fruto do isolamento a que se vê forçado mediante a expulsão da cidade que ama, dos amigos, da família ou, simplesmente dos conhecidos que o admiram, para habitar uma cidade estranha e ouvir, diariamente, uma língua que se revela impenetrável aos ouvidos romanos se mistura, por vezes, com o grego dos comerciantes de onde resulta um dialecto híbrido.
A cidade de Tomos apresenta-se-lhe tenebrosa. O clima rigoroso, gélido no Inverno, os ventos uivantes da costa, a paisagem sombria fazem-no pensar em Medeia e inspiram-no a escrever uma peça de teatro. Tomos é a cidade onde se auto-exila esta lendária e terrível mulher para expiar os crimes cometidos. O nome da cidade significa “corte” ou “amputação” em grego. Por isso, será para o poeta a cidade da ruptura onde o desespero dos condenados encontra eco nos gritos lancinantes das gaivotas. O narrador vomita literalmente uma tempestade de ódios acumulados, a qual rebenta periodicamente, roubando toda e qualquer esperança de felicidade.
Mas na obra de Vintila, a mesma cidade adquire também um significado literário impregnado de fatalismo.
Há, na vida do poeta, a partir do momento em que vem viver para aquela região do Império, um corte em relação a um passado, marcado por um estilo de vida mundano, para passar a adoptar uma forma de vida mais discreta, voltada para a introspecção e para o aprofundamento da temática e da forma da própria escrita, precisamente na cidade que Medeia escolheu para se refugiar dos seus crimes, após ter assassinado os filhos e o irmão, desmembrando-o e espalhando as partes do corpo deste último pela costa mediterrânica, com o objectivo de atrasar a perseguição do pai, em busca de vingança. Mais uma demonstração do quanto Augusto consegue ser requintado na forma de se vingar.
O poeta receia, no entanto, a todo o momento uma carta a ordenar a sua execução. Sente-se como um condenado, na arena, a defrontar um grupo de felinos de grande porte, onde a esperança absurda de escapar à morte é o acto de atirar areia para os olhos do destino, metamorfoseado numa pantera ou de um leopardo.
“Um exilado por motivos políticos nunca se sente em segurança”. Apercebe-se, então, de que “os casos de deserção são cada vez mais frequentes, os homens estão cansados de matar, querem viver em paz, constituir uma família e cuidar de um lar ao invés de sobreviver indefinidamente de saques e pilhagens”.
O Tempo e a Narrativa
Pode-se identificar, uma analogia que se traduz na aproximação de duas épocas históricas: aquela de que trata o romance e o período em que Horia escreveu a obra, no pós guerra de 1945. A acção, apesar de se desenrolar no século I DC, alude frequentemente ao tempo presente, no auge da Guerra Fria, sobretudo quando o velho Drizzace assume por um breve período o comando da narrativa, um narrador secundário que o narrador principal, Ovidio, decide incluir nas suas memórias:
“Podíamos viver em paz, se não tivéssemos medo uns dos outros. O medo faz-nos falar linguagens diferentes. E a vida torna-se numa guerra sem fim, a vida é a guerra, cada vez mais, a cada dia que passa. E fabricam-se armas em vez de se inventarem palavras de paz.”
A Acção do Tempo e a adaptação à nova realidade
Nos primeiros capítulos, a solidão do protagonista prende-se com o facto de lhe ser impossível partilhar as coisas de que mais gosta: os pequenos prazeres da vida, como os livros, a leitura o acto de declamar para os outros, o teatro, os banquetes. Ou, simplesmente, os detalhes do quotidiano doméstico, relacionados com o conforto da própria casa.
Mas à medida que o tempo passa, esbatem-se os contornos das paisagens e cenas do passado e é em Tomos e nas cidades circunvizinhas que o Poeta começa a construir uma nova teia de afectos, que o acompanha até ao fim da vida. Afeiçoa-se a Dokia, a governanta de origem Geta, a qual contrata para o serviço doméstico. A jovem é o oposto da racional Fábia, a esposa romana. Também não se parece nada com a voluptuosa Corina, a amante, que deixou na cidade de Rómulo e Remo. Dokia é antes uma guardiã do lar, a incarnação de Vesta. O poeta solitário sente-se mimado, apesar da reserva da jovem, envolta numa aura de mistério, que não fala da vida privada. A dignidade com que atravessa o dia-a-dia e o brio demonstrado na execução dos seus afazeres, fazem o velho patrício romano sentir uma crescente admiração por uma criatura vinda de uma tribo considerada bárbara.
“Como não apreciar este mutismo amuado? Como não gostar dela? Mas os ensinamentos d’ A Arte de Amar’ são inúteis, perante este pedaço de mármore que nunca foi polido por uma carícia”.
“Se não fosse Dokia, gritaria de raiva e de tédio. Nos dias de neve, de tempestades de gelo, fica junto de mim, ao canto do lume e conto-lhe a minha vida. Amamo-nos sem nunca nos tomarmos, sem nunca o dizermos. Sinto que a minha presença lhe é indispensável (…) . Amamo-nos de uma forma que faz pensar em duas flores crescendo em árvores diferentes (…) mas só se podem tocar através da mudez distante das suas cores e dos seus perfumes, no meio da estupidez e da indiferença das coisas.”
Ao compará-la com Corina, o amor da juventude, recorda:
“Só a amava a ela e nunca amei ninguém senão a ela. Corina foi a praeceptorix do praeceptor amoris. Éramos da mesma idade e entendíamo-nos desde o primeiro instante. Júlia não é mais casta do que Artémis (a cortesã que conheceu em Tomos) e sem dúvida é-o menos do que Corina”.
“…procurava por toda a parte uma imagem em Roma e da minha vida passada; encontrei duas: o focale de Corina e o ódio por Augusto”.
O desvanecer da paixão por Corina, ao longo das décadas, deixou espaço a um vazio emocional, dando à alma uma solidão quase tão pungente quanto o exílio decretado pelo imperador.
“E quem amei desde então? O amor não era senão uma palavra vazia de todo o sentido. Ninguém amava ninguém nesta cidade imensa, prestes a iluminar-se com os fogos da morte e do prazer”.
O exílio põe fim a um ciclo de vida marcado por uma existência dedicada quase exclusivamente ao hedonismo e marca o início de uma época a partir do qual é compelido a olhar o mundo com outros olhos:
“E foi nas margens do Ponto Euxino, junto a essas águas que parecem negras como se fossem o berço da noite, que aconteceu começar a ser um homem.”
“Tomos era para mim o nome da morte. E agora penso com prazer na minha cidade , na minha casa nos meus amigos, nos que deixei em Ístria (parte inferior do Danúbio, próximo da foz), Amigos, mulheres que amo ou julgo amar, esperam-me nesta margem que deixei de considerar hostil. O que é a vida senão a amizade, o amor?”.
Entretanto, recebe notícias de Roma, família, amigos e conhecidos enviam-lhe presentes, mas receiam comprometer-se diante do todo-poderoso imperador, ao interceder por ele.
“Quem recebe uma carta minha tem o cuidado de não a ler em público!”.
Manifesto Contra a submissão aos tiranos
A presente obra constitui um autêntico libelo face a governos totalitários, pela veemência com que invectiva a prepotência da intervenção do Estado, representado pela vontade de um único homem, na vida particular dos cidadãos e na liberdade de expressão. Não só quando se trata da publicação de uma obra literária, este tipo de arbitrariedade torna-se igualmente castrador quando se manifesta no simples acto de amordaçar do cidadão comum impedindo-o de dizer mal de quem governa. Nesta categoria, podem enquadrar-se tanto Augusto como Hitler ou Ceaucescu.
Ovidio critica, amarga e tristemente, a crescente pobreza de espírito de um povo referindo-se sobretudo aos Gregos mas também aos Romanos:
“Como os Gregos ficam insignificantes quando louvam um chefe político. Perderam tudo: a liberdade, a riqueza e, tal como eu, até o direito de maldizer. De todos os dons passados, conservaram o do comércio, mas isso não chega para manter um povo na primeira linha em relação aos outros. Têm, ainda, filósofos e poetas, mas a sombra obscureceu as suas obras e irá fazer-lhes secar, pouco a pouco, a fonte do génio.”
Ovidio faz amigos, embora com algum receio: o soldado Honório, o taberneiro Hérimon, Flávio, o capitão desertor e pacifista, Teodoro o médico grego, que percorreu o Oriente Próximo e trouxe novidades acerca de um novo profeta na Palestina e fundador de um culto revolucionário.
A distinção do Poeta compensa a falta de juventude, num homem que já ultrapassou os cinquenta anos, e dá-lhe a possibilidade de acrescentar mais algumas conquistas femininas ao já vasto curriculum. O Autor de “A Arte de amar” já não tem, no entanto, paciência para artifícios nesse domínio. A ligação com a cortesã Artémis, a quem aprecia mas cujas máscaras e fantasias sexuais e representações de figuras mitológicas durante o acto sexual o entediam de morte e fazem a relação entrar em entropia. Nem Artémis, Ovidio vê apenas, “um fragmento da impureza do Olimpo”. Também o interesse de Lídia, a taberneira de Hérimon, cuja paixão ou admiração que nutre pelo poeta, visa em grande parte unir o útil ao agradável, ao tentar encontrar no amor a porta para a sobrevivência, deixa de ter valor para um homem cada vez mais exigente com os afectos, cuidadosamente filtrados.
Sem se aperceber, o discurso amargo e inconformista dos primeiros anos de exílio vai cedendo lugar a uma voz mais resignada adoptando, simultaneamente, um tom mais doce: a ligação ao local, aos seus habitantes, à cultura a aquisição gradual dos elementos básicos da língua nativa, ajudam a solidificar novos afectos e a vencer o sentimento de urgência em voltar. Por outro lado, um regresso implicaria novo desenraizamento, uma vez que as pessoas que agora habitam Roma já não são as mesmas. Os hábitos mudam e as cidades alteram, ainda que subtilmente, a própria configuração: os edifícios são demolidos e outros construídos no seu lugar e o exilado deixou, entretanto, de crescer, juntamente com a terra que o condenou ao exílio.
“Roma está como o passado, perdida para sempre, já vivida, ou seja, afastada de mim, como um objecto estranho, que pode ser reconstituído com o pensamento e a imaginação, mas que não está ao alcance da mão”.
Exílio, depressão e necessidade de conforto espiritual
A diminuição da vontade de regressar é, no entanto, directamente proporcional à perda da fé:
“Choro. Tenho medo, tenho frio e os deuses já não existem. A crueldade deles é a marca da sua inexistência não é mais do que o reflexo dos novos medos e de tudo o que não ousamos fazer sem remorsos”.
Na cultura romana, e na religiosidade que lhe está associada, há toda uma ética que transcende a moral, na qual os deuses são, muitas vezes, levados a expiar as próprias faltas. Esta ética perde um pouco da sua eficácia e validade com o esplendor e autoridade de um imperador como Augusto, o qual tratou, ele próprio, de se consagrar como um deus ao tornar-se num intocável.
A partir daqui, estão criadas as condições psicológicas e sociais para a invasão de um novo credo que expulse a adoração de um tirano.
Apesar de a crueldade estar também inerente ao deus dos judeus, esta é suavizada no pela dissidência do fundador do Cristianismo. Porque o medo sempre condicionou as atitudes dos cidadãos e o Homem “continuará a mentir para obter o perdão” (pág 17).
Ovidio não deixa de notar o facto de, por exemplo, o deus dos Getas, Zalmoxis, ser fruto de uma escolha e não uma imposição de um chefe de estado.
No tempo em que Horia escreve o romance existe, já, a convicção de que é a sociedade quem detém este papel e não os deuses. No tempo de Augusto, havia o hábito de transformar um acto de justiça ou a aplicação da lei num caso do direito penal, em espectáculo de multidões de forma a assegurar a submissão pelo medo, uma vez que, para este Ovídio Horiano,“os deuses foram substituídos por um homem e o Império tornou-se a imagem desta terrível metamorfose. A lei é-nos imposta por um homem e os deuses estão mortos.”
É daqui que nasce a necessidade da procura de uma outra verdade: um deus a quem se possa admirar.
Entretanto, à mente chega-lhe sempre a imagem recorrente de Medeia como uma maldição. Ela é a figura que incarna o “símbolo dos meus primeiros sucessos em Roma e fundadora de Tomos”. Logo, a imagem de marca para cidade no imaginário trágico do Poeta, para quem a literatura é a projecção da vida e das emoções humanas.
A análise dos clássicos por este Ovidio de Horia revela, quer por parte do autor quer da personagem um conhecimento, erudição e sensibilidade estética de profundidade notável:
“O que fazem as obras-primas do passado senão cantar estes amores proibidos que enchem as leis de Augusto de parágrafos, impondo penas e prisões?” e conclui: “Não será ele, de facto, o herói de um adultério e toda a sua vida sentimental não será um longo cortejo de farsas e crimes punidos pela Lex Júlia de adulteriis et pudititia”? E aponta do dedo acusador: “Fez leis para punir os outros, porque se considera acima de todas as leis. O que o contraria e lhe recorda aquilo que na realidade é,são os meus versos”.
Medeia é a personagem que fascina o narrador em proporção directa ao horror que lhe inspira: durante o sono, Ovidio é atormentado por pesadelos que envolvem feitiços, lendas e superstições inspirados sobretudo, por cenas da “Odisseia”. Acorda com o canto do cuco que o obriga a regressar à realidade e o arranca de uma espécie de transe hipnótico. Trata-se de mais um recurso de estilo do Autor, que recorre à metáfora da ave que é, desde o nascimento, exilada em ninho alheio.
Medeia chega-lhe sempre à mente como uma maldição, cuja voz se projecta nos gritos das gaivotas:
“…um piar que me dilacera a alma, como se fosse o prenúncio de uma desgraça, como se tentasse ressuscitar a memória de uma outra vida consagrada aos mais terríveis crimes? Pairam sobre as águas e lançam o seu grito agudo no meio da tempestade, como se quisessem lembrar-se do peso do passado (…) o mundo está cheio de dor e a vida passa através dos homens como este vento, fazendo tremer o corpo e a alma: o Inverno aproxima-se e o Verão foi só esse curto espaço de deslumbramento em que a morte se torna possível (…). Esta mulher causa-me horror e, ao mesmo tempo, inspira-me piedade. Foi joguete dos deuses que impelem os homens para a prática de coisas odiosas, para melhor os punir de seguida.”
O Inverno continua, a ser o seu principal inimigo, dos ossos e da mente, a estimular o desenvolvimento do reumático e do pensamento depressivo. Aprende, no entanto, a encará-lo como pausa e reflexão. Tempo de escrever.
Imperialismo, Paternalismo e Romanização
O paternalismo Romano nos territórios conquistados preocupa cada vez mais o Poeta: “Um dia, Augusto deverá submeter à lei de Roma esta terra, até para lá do Danúbio, para lhe dar a paz e a prosperidade”- frase recheada de ironia e cepticismo.
A Tomos chegam, a dada altura, os invasores bárbaros, pressionados pela fome. Ao observar o contacto dos comerciantes gregos com a população local, Ovidio verifica que “os gregos já não são os guerreiros de outrora” . Estão “embrutecidos pela falta de inteligência e pelo comércio” enquanto que os Getas estão, por sua vez, “embrutecidos pela miséria e pela ignorância”.
Para o narrador, os Gregos, por mais defeitos que tenham, nunca caíram tão baixo como os romanos, por nunca terem adoptado a crueldade, mostrada sobretudo nos jogos de circo. Estes jamais foram populares na Grécia: “Os Gregos nunca fizeram do sangue e da morte um espectáculo de multidões”.
Há na obra uma interessante dicotomia que envolve a oposição de duas formas de vida tão díspares que implicam dois sistemas de valores que não poderão deixar de entrar em conflito: uma economia de guerra, que sobrevive da conquista de territórios e a vida tranquila do dia a dia subordinada à divisão do trabalho, à produção e à partilha.
Este conflito ideológico dá-se entre o centurião Valério, que representa a força bruta e o primado da prepotência e da ignorância – o chamado “homem-máquina”. Neste caso, uma máquina de morte (pág 241), movida pela ambição e revestindo-se de uma total a ausência de compaixão manifesta na frieza implacável com que tente extrair informações a Ovidio acerca do desertor Honório, pressionando o poeta, o qual se encontra em franca desvantagem, caído em desgraça perante a família imperial: “O império precisa de soldados, não de poetas”. A sós Ovidio desabafa: “Uma denúncia é suficiente para te atirar para a prisão ou para o exílio. A amizade e o amor morreram”.
Como contraponto, temos a figura de Flávio capitão, o soldado que deseja a vida e não a morte como companheira:
“Nunca soube o que era o amor. Só o imaginei através dos livros. (…) Em Itália, via a Natureza através de Virgílio e de Horácio e o amor através da tua “Arte de Amar”.
As sementes deixadas pela literatura no quotidiano dos homens são, para o poeta, a esperança que poderá desencadear, a longo prazo, a mudança, devido à marcas impressas na vida dos cidadãos, através da canalização de emoções transmitidas e da forma como se estabelecem as relações entre os homens, fazendo a esperança sobreviver,nem que seja por um curtíssimo espaço de tempo, tal como a areia atirada para os olhos da pantera, na arena de Augusto...até que a humanidade seja surpreendida pelo salto final do leopardo, num cataclismo final.
Entretanto o tempo em que vive parece ser a era onde dominam as trevas: “O amor, neste momento da nossa história, está proibido aos Romanos. Só é possível numa sociedade protegida da mentira, do medo e do conformismo”.
Já o soldado Mucaporus que explica a sua deserção em nome de um ideal mais elevado como a paz e uma melhor qualidade de vida e pela saturação do modo de viver preconizado pelos Romanos:
“Porque sou dono dos meus dias e das minhas noites. E porque ninguém me obriga a matar. Sou livre".
Apesar de se sentir fascinado pela narrativa de Teodoro acerca dos acontecimentos da Palestina que envolvem o nascimento de um Homem que dizem ser filho de deus, Ovidio mostra-se algo céptico:
“Não ter de matar, ser livre, ter a certeza da vida eterna, não acredito que religião alguma, nem mesmo a de Zalmoxis, assegure aos seus crentes tais direitos, que nenhuma lei, nenhum culto consegue definir com precisão”.
O contacto com os Getas da montanha com o culto e os rituais de adoração a Zalmoxis e os diálogos com o sumo sacerdote dá-lhe uma explicação possível para a situação e para a ausência da ajuda, esperada durante longos anos por parte dos amigos e que lhe dá algum conforto espiritual. Vintila Horia cria, aqui, uma intertextualidade com o génesis e a parábola da expulsão do Paraíso:
“Amaste muito e os amores foram a causa dos teus sofrimentos de agora. Não penses nunca que a tua poesia te traiu; nem que é o amor que expias em Tomos. O julgamento de Augusto não tem valor no que respeita à alma. Augusto, também ele, agiu sob a pressão do Deus que te trouxe até aqui. Pecaste por amor. O amor é conhecimento. O verdadeiro pecado é aquele que não podemos ou não ousamos exprimir”.
A ideia, vinda do cristianismo, de que o mal está no âmago da natureza humana, que o ser humano é impotente face ao despotismo do destino, do azar e da fortuna, implica que o homem seja desresponsabilizado pelos seus actos (vide pág, 229). Trata-se de uma fé, a que culpa o Destino ou as Parcas, muito mais cómoda do que aquela que vem do Oriente, com raízes judaicas a implicar uma punição para os actos dolosos, temida tanto por Augusto quanto por Hitler.
Recursos de estilo
O ritmo da acção acelera com a morte do Imperador e a sucessão de Tibério que, inicialmente, governa sob o concelho da Imperatriz-Mãe: Lívia.
O Autor sinaliza esta morte fazendo a personagem narrador notar uma série de indícios que se manifestam sobre a forma de presságios, tendo como base o complexo sistema de crenças e superstições romano.
Assim se explica a presença do pio da coruja, na pág 153, a anunciar o nascimento da lua cuja luz, “é prateada como as flechas”. Também a referência a “uma água ardente e negra que corre para o mar” , mostra a ligação com a morte, pois o mar é o lugar onde morrem todos os rios. Da mesma forma, o vislumbrar de um corvo que sobrevoa a região, voando baixo e a gritar de surpresa e terror. Para Ovidio, “As águas do rio, tinham a cor deste grito”.
O pessimismo recusa-se a abandoná-lo:
“Tenho alguns anos de vida pela frente e duvido que o tempo em que viva seja um tempo privilegiado”.
Estas palavras criam, mais uma vez, uma aproximação entre o tempo histórico da narrativa e o tempo presente, vivido pelo autor durante a escrita do romance. O cepticismo no caso do Autor, é dirigido à onda de euforia e desenvolvimento económico do pós segunda guerra mundial, ao dirigir um olhar especialmente preocupado à corrida ao armamento nuclear e à crescente tensão entre as duas maiores superpotências do globo.
Deus nasceu no exílio é, para além de uma bela monografia da vida de um exilado político, um verdadeiro tratado de sociologia no que toca às mudanças sofridas por uma Europa em transformação, em duas épocas tão distantes no tempo como o século I na nossa era e o século XX.
O final do romance é marcado por uma aparente resignação face ao fim que se aproxima.
Ovidio acabará por falecer no meio da solidão, apesar dos muitos que o amam. É um novo exílio que começa, numa metáfora inspirada na Fénix, a ave que nunca morre, apenas se transforma numa coisa diferente, depois de destruída pelo fogo. Da mesma forma, um homem novo se prepara para renascer da cinzas, num mundo em guerra. Sob a égide de uma nova ética. Em todas as épocas histórias, em infinito devir.
Cláudia de Sousa Dias
18 Comments:
Muito bem, gostei de ler, porque também amei o livro.
Parabéns pela análise.
quebo, Petra!
obrigada pela visita.
é sempre uma delícia encontrar alguém que tenha lido o livro para trocar impressões.
csd
Olá Cláudia! Feliz 2010 para ti também...
Olha, acho interessante que a literatura romena ou de origem "algo" romena comece a emergir... a Herta Muller é mais um exemplo. A propósito: conheces algum livro dela em PT? Alemão ainda me custa a ler (3 anos de Berlin não chegam!!! LOL). O tema dela tb é a repressão e a vida sob a tirania... e sobre como a linguagem se inventa para dar conta dessas experiências tão íntimas e pessoais...
E olha, li o Caim do Saramago. Não achei assim tão mau como a crítica vociferou. Claro que faz lembrar um pouco o Candide, de Voltaire, mas tem tiradas de linguagem muito boas... O resto, paciência, é só a Biblia. Nem exagese é.
E para achares que sou mesmo uma pateta alegre: ando a ler, pela segunda vez, "O chão que ela pisa" do Salman Rushdie. Ele há coisas assim...
Beijinhos de ano novo... ano novo, beijos novos LOL
pois é...
Vou então fazer uma pesquisa sobre a Herta, mais logo na biblioteca.
Quanto ao Saramago, estou com muita vontade de ler até porque em Março voui apresentar o"Ensaio Sobre a Cegueira" no Cineliterário. Por isso convémn ler o máximo de obras do nosso Nobel que conseguir até lá.
Tb acho que está a ser alvo de uma campanha para o dasacreditar, primcipalmente junto de pessoas que o não leram...
csd
Bem.. desculpem a intromissão mas eu já li " A terra das Ameixas verdes" da Difel, da Herta Müller.
È um livro de uma rara beleza de escrita. Seca. Com uma inusual capacidade de dizer como se processam as relações humanas em tempo difíceis, de ditadura, onde o medo e o silência andam sempre juntos a subjugar tudo e todos...
sim, mas pelo que eu já lá vi em exposição, não têm só esse...mas logo já te digo mais alguma coisa...
beijinho...
csd
Obrigada Petra... vou seguir este conselho de leitura...
Conheço pessoas que nunca tinham ouvido falar da Herta e que a passaram a amar... por sorte ainda na língua original...
Bjos
:-) Roberto ti manda un tenero abbraccio.
que interessante...
mas em Romeno ou alemão?
ontem por acaso não consegui ir À bibioteca...mas vou tentar hoje ao fim da tarde...
CSD
Grazie mille, Roberto...
csd
uma análise excelente do livro que desconhecia...
está em fim de edição...
é uma questão de procurar no stocks das livrarias e feiras do livro.
a muito bom preço.
:-)
csd
parece ser um livro extremamente complexo, pelo menos no que se refere à profundidade temática; ainda assim, consegues trasmitir-nos a sua essência, ainda com uma muito boa análise.
abraço.
e mais denso do que complexo, emocionalmente é uma verdadeira montanha russa!
csd
Mais uma face oculta da lua revelad aqui. Vão sendo tantas. Obrigado
bjs
P.
e esta vale mesmo a pena...!
csd
Este livro deve ser fantástico!
por acaso é dos melhores que já li na última década.
csd
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