“Estação Carandirú” de Dráuzio Varella (Palavra)
No ano de 1989, o médico psiquiatra Dráuzio Varella decide elaborar um estudo sobre a transmissão e evolução do vírus da SIDA, observando os doentes infectados da Penitenciária do Carandirú, uma das maiores da América do Sul. Para tal, passa a exercer clínica naquela instituição, em regime de voluntariado, no estado de S. Paulo.
A partir do primeiro dia em que atravessa o limiar da porta de entrada daquele edifício, descobre um mundo paralelo: uma ilha, onde se reproduzem a miséria e todo um sistema de relações económicas clandestinas, com a conivência das autoridades, e todo um leque de trocas sociais e emocionais em tudo semelhantes à organização social existente “lá fora”.
Ao atravessar o portão que dá acesso ao edifício administrativo para tratar das formalidades burocráticas, o Autor depara-se com a frase que lhe é atirada para os olhos e que melhor parece descrever o ambiente local:
Cadeia é um lugar povoado de maldade.
Na realidade, trata-se de um verdadeiro inferno, físico e real, formando um planeta onde imperam o ódio e a desconfiança, que emanam de uma luta impiedosa pela sobrevivência. Um lugar onde, no entanto, os afectos surgem entretecidos de forma insidiosa e paradoxal, como a resistência em tempo de guerra.
O sentimento inicial de desconfiança, experimentado pelos detidos em relação ao médico, evidencia-se também, entre os funcionários que mudam bruscamente de assunto quando este se aproxima Estes últimos receiam tratar-se o investigador de alguém que trabalhe para a Amnistia Internacional, a quem apelidam de “líricos”, sem contacto com a realidade, pela insistência em olharem de forma unilateral os direitos dos prisioneiros. Estes receiam, por sua vez, que um estranho, mesmo sendo um médico, os coloque numa situação embaraçosa ou delicada, por mais bem-intencionadas que sejam, em consequência de um comentário ingénuo.
Mas do ponto de vista dos funcionários, todos o cuidado parece ser pouco para conseguir manter os detidos sob controlo: dentro da cadeia, uma porta só é aberta quando a seguinte e a anterior são fechadas. O lugar exibe um slogan que parodia uma frase do evangelho:
É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar preso na Casa de Detenção.
A qual está longe de ser o Reino dos Céus. Os funcionários têm de vestir calças escuras ou jeans para se distinguirem dos prisioneiros. Entre estes últimos há todo um sistema de estratificação social: aqueles que são trabalhadores no cárcere e exercem as mais variadas funções, dentre as quais variam, também, os graus de prestigio atribuídos a cada um deles.
Aqueles que colaboram ao exercer algum trabalho administrativo (monitorizado) são quem usufrui de estatuto mais elevado e gozam de uma vida mais tranquila, ao trabalharem na secção onde chegam os outros presos para fazerem o registo.
A despersonalização
Aos detidos, quando chegam ao estabelecimento prisional, são-lhe retirados quaisquer objectos pessoais e são obrigados a vestir o uniforme prisional. O objectivo é não sobressair em relação aos demais. É-lhes também atribuído um rótulo, consoante o artigo do código penal correspondente ao crime cometido. Os violadores e pedófilos são os prisioneiros mais odiados, tendo de ser despachados para o piso 5, para não correrem o risco de serem mortos. Este ódio radica no medo de colocarem em risco as mulheres e os filhos, durante as visitas. Há também aqueles que pedem para trabalhar em troca da redução da pena.
A cela infecta, apelidada de “masmorra”, alberga aqueles cuja saúde está minada por doenças infecciosas, como a tuberculose ou a SIDA, grande parte deles já em estado terminal. Devido ao receio de contágio, estes detidos são mantidos isolados e em condições de insalubridade inimagináveis.
No estabelecimento prisional do Carandirú não existia, então, um serviço especializado em Psiquiatria, sendo a medicação desta especialidade ministrada por médicos de Clínica Geral e igual para todos, desde depressivos a esquizofrénicos ou psicopatas.
As condições sanitárias também não eram melhores: em alguns pavilhões, no auge da sobrelotação, só era permitido aos presos defecarem dois dias por semana.
Lá fora o roubo era, para muitos deles, o primeiro prémio da lotaria: ou seja, a porta que permitiria o estabelecimento do próprio negócio. O livro é escrito sob a forma de relato, numa perspectiva que muito aproxima o narrador de um investigador, ligado ao jornalismo mas também às ciências do comportamento. A postura é a de um antropólogo: um observador neutro que nunca emite juízos de valor e descreve comportamentos, hábitos e rituais de forma objectiva, sem procurar influenciar o leitor. No entanto, a sensação com que se depara, ao entrar naquele lugar, é a de que são todos inocentes ou vítimas das circunstâncias, mesmo tendo cometido crimes cujo paroxismo de violência nada fica a dever ao mais sanguinário thriller norte-americano.
Nesta perspectiva, encontramos em Estação Carandirú alguns aspectos linguísticos curiosos tais como o de apelidar um saco de comida de Jumbo. Este era trazido das famílias, vindo directamente (ou não) da famosa cadeia de supermercados.
Dentro do aspecto da sociologia que se liga à psicologia, o Autor nota que os suicídios são mais frequentes de manhã ou ao amanhecer, após longas noites assoladas pelos demónios do desespero.
O investigador registou, também, recorrendo a entrevistas, o facto de as mesmas noites terem ficado mais calmas após terem permitido visitas internas. Um aspecto comovente que decorre desta mudança é a preocupação com a limpeza do local e op asseio pessoal que se acentuam nos dias em que os detidos recebem a família. O ritual das visitas na fila de espera é uma das cenas do livro descritas com maior precisão e detalhe, permitindo uma quase perfeita visualização da mesma, assim como a percepção das inúmeras nuances dos sentimentos quer das visitas, que vão ver os seus entes queridos à cadeia – a esposa, a namorada, os filhos, a mãe do detido – quer dos próprios detidos. Trata-se de uma quebra da rotina, uma lufada de ar fresco e sol, vindos do lado de fora. Outro aspecto assinalado é a corrupção endémica dos funcionários, que fecham os olhos ao tráfico de droga dentro do estabelecimento.
O estudo da Sida e das formas de propagação da doença
Perseguindo os objectivos a que se tinha proposto inicialmente, o autor deste relato verifica existirem indivíduos que contactam frequentemente com o vírus mas não o contraem, como é o caso de um dos travestis que se dedica ao exercício da mais velha profissão do mundo.
Por outro lado existem formas de propagação inimagináveis, sobretudo entre os toxicodependentes, cuja alteração do estado de consciência não lhe permite tomar o mínimo de precauções. Passa, então, a dedicar-se ao tratamento este grupo de risco atacando em duas frentes: no tratamento propriamente dito e na prevenção.
A partir de então, o respeito e o afecto pelo médico crescem de forma exponencial. O que não impede que, por vezes, se aproveitem da ingenuidade ou do desconhecimento deste acerca das artimanhas praticadas lá dentro. Afinal, trata-se de malandros de profissão...
A ordem e a limpeza
Verifica-se, também, que a organização da limpeza é um elemento estruturador fundamental para a manutenção da ordem dentro da cadeia. A corporação dos “faxineiros” é constituída pelos líderes carismáticos, isto é, pelos elementos mais respeitados da instituição. Esse respeito advém-lhes da observância das normas que suportam o código ético entre os seus elementos. Por exemplo, aquele que denuncia um colega, nunca fará parte dessa mesma corporação. Aqui, também não são aceites os violadores. Os homossexuais estão, também, proibidos de mexer em comida.
Os funcionários administrativos da mesma instituição prisional olham este tipo de estrutura interna e informal segundo uma visão darwinista das relações humanas entre prisioneiros: “Os mais hábeis dominam os mais fracos. Tiram o partido da selecção natural.” No entanto, “o diálogo da Administração com a Faxina é fundamental para a manutenção da ordem e o controlo da violência.”
Uma das conclusões que se podem extrair, após longos meses de observação, é a de que “ na prisão, nem tudo o que parece é” e o comentário mais inocente pode ter consequências imprevisíveis. Um visitante pode cometer, inadvertidamente, uma indiscrição que chegue aos ouvidos de um administrativo, comprometendo um número considerável de indivíduos.
Os defensores dos direitos humanos e membros da Igreja são malvistos pelos funcionários, por estarem convencidos que estes só se interessam pelos direitos dos criminosos, nunca das vítimas.
Observam, ainda, que o verdadeiro criminoso é bem comportado dentro da cadeia porque quer sair o mais rápido possível, para voltar ao activo.
A Administração daquele estabelecimento prisional estabelece, normalmente, alianças com os líderes.
Um factor importante para grande parte dos prisioneiros é a crença no divino, o que lhes traz conforto espiritual. No filme, a cena de conversão à fé poderá ter o seu quê de patético mas é perfeitamente entendível e verosímil. O prisioneiro sente a necessidade de obediência a uma entidade superior, de saber que se cumprir as normas, será absolvido. E a religião proporciona-lhes esse conforto. Um colo para se refugiar. Um Pai.
O Pavilhão Amarelo, aquele em que os prisioneiros procuram refúgio, é para onde geralmente se escondem aqueles que correm risco de vida, que fogem ao ódio dos colegas: os violadores, assassinos, pedófilos. Os “amarelos” dão, assim, o nome ao pavilhão, por perderem a cor no edifício sem janelas devido à falta de sol como se requer num Pavilhão de Alta Segurança.
Inquietante é a constatação, para quem já é hóspede da instituição há longa data, de que quando o ambiente está demasiado calmo na cadeia é sinal de que algo de grave se irá passar, pelo que muitas vezes, a solidão acaba por ser uma boa estratégia de sobrevivência, como é o caso do velho Jeremias. Lá fora, espera-o uma vida nova. Sem laços que o liguem à cadeia.
Entre os travestis, a competição também é intensa. Competição pela ostentação. Por outro lado, a união entre eles torna-se fundamental, por uma questão de sobrevivência.
As cenas mais dramáticas do livro são aquelas em que se assiste a uma sessão de “chuto” na sala onde os toxicodependentes se drogam; a mordidela do rato, na página 268 e claro, a cena do massacre na prisão, lembrando um filme sobre o holocausto nazi.
“Estação Carandirú” é um livro que, juntamente com o filme de Hector Babenco, testemunha aquilo que há de melhor e pior na natureza humana: a solidariedade e o altruísmo, na maior parte das vezes rodeada por um oceano de cinismo e desrespeito pela vida humana.
Cláudia de Sousa dias
18 Comments:
oies claudia!
aqui é o eduardo, do textosterona.blogsome.com
obrigado pelo comentário.
você tem email ? pode me escrever ?
egismael@yahoo.com.br / eduardo@brindz.com.br
gostaria que você me recomendasse um livro, tipo a Sombra do Vento do Zafón. estou lendo um agora, memórias da menina má - Vargas Llosa. E ouvi falar um de um escritor mexicano chamado Pedro Paramo - Juan Zulfo.
Obrigado e ótima escolha - estação carandiru é ótimo!
parabéns pelos textos brilhantes!
e essa frase eu não conhecia - ouro sobe azul. o que quer dizer ?
Gostei de ler.
Um abraço
Fiquei mesmo muito interessada neste livro, Cláudia.
Mais um vez parabéns pelo trabalho exaustivo.
bjs
Um dos melhores livros que li em muito tempo.
Parabens pela escolha e pelo excelente trabalho.
olá Eduardo!
A expressão "ouro sobre azul" quer dizer algo que é maravilhoso.
A raiz da espressão vem, talvez, da joalharia ou do vestuário, ou da cerâmica de Limoges (dourado sobre azul cobalto).
As jóias antes eram apresentadas em estojos de veludo azul ou negro.
o céu nocturno é azul escuro, quase negro, a servir de pano de fundo Às estrelas que lembram diamantes.
csd
obrigada, Toutinegra!
é sempre bom ver-te por aqui
;-)
csd
Obrigada, Cristina. o livro tem também a vantagem de se ler ocm bastante fluidez.
csd
Mais um excelente trabalho de divulgação e uma escolha acertada.
Comprei o livro numa viagem que fiz ao Brasil e devo dizer que adorei.
Parabens pelo blog (acho que já o disse uma vez) está excelente...
Já tinha ouvido falar do livro mas ainda não tive hipótese de o ler.
Mas agora fiquei mesmo com vontade.
Só posso dar os parabens pelas excelentes postagens que tenho visto neste blog.
obrogada ao Sr X e Mr Nonsense. o vosso blog é também um dos meus favoritos
:-)
CSD
Deixo-te também uma sugestão. The Ice Queen, Alice Hoffman.
beijinhos e bom domingo ^-^
e está à venda cá nas livrarias?
o título interessa-me...
:-)
csd
srsrsrs com que então Claudica!
E eu que te tinha na conta de Cláudia! rsrsrsrs
tenho andado a claudicar, tenho...
:-P
CSD
A intensidade com que adentra nos mais variados temas alimenta meus retornos ao seu espaço!
até
obrigada, Juan!
csd
Aqui há uns anos estive de férias no Brasil e encontrei um livro deste autor chamado "O Médico Doente" (e como já conhecia este livro) por curiosidade comprei.
Não sei se está a venda em Portugal mas se estiver aconselho a ler.
É a experiencia dele enquanto doente com febre amarela em 2004 depois de uma viagem à Amazonia.
A maneira como ele escreve é qualquer coisa de único
a registar!
obrigada.
um abraço.
csd
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