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Sunday, January 31, 2010

“De Castelo em Castelo” de Louis Ferdinand Céline (Dom Quixote)




A partir de 1944, a II Guerra Mundial não foi apenas uma gloriosa ofensiva do exército Aliado contra as forças do Eixo, por toda a parte em retirada. Foi, também, a epopeia, porventura menos gloriosa mas nem por isso menos dramática de todos aqueles que compreenderam que o seu tempo tinha chegado ao fim e iniciaram uma fuga desordenada através da Europa em ruínas.

De Castelo em Castelo é o romance de um desses percursos: de Paris a Sigmaringen, na companhia de Pétain e seus ministros, da Alemanha para a Dinamarca e, enfim, de regresso a França, para Meudon, onde o Autor e protagonista deste romance auto biográfico viverá, amargurados, os seus últimos anos.

De Castelo em Castelo é considerado, juntamente com Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito, um dos grandes livros de Céline.

Louis Ferdinand Destouches (Céline) nasceu em Courbevoie, nos arredores de Paris, em 1894, vindo a falecer em 1961. Detentor de uma personalidade geradora de polémica, ficou conhecido para a posteridade por professar um obsessivo anti-semitismo. Colaborou, durante o período da Ocupação, com as autoridades alemãs. Um facto que o obrigou a viver uma penosa existência no pós-guerra, até 1952, ano em que já de volta ao país Natal, se instala, definitivamente, em Meudon. Apesar da controversa biografia é, apesar de tudo, considerado um dos mais geniais escritores franceses do século XX. De Castelo em Castelo é o primeiro volume de uma trilogia que se completa com Nord e Rigodon.

O estilo de Céline é marcado por uma intensa verborreia que jorra a uma velocidade de cruzeiro, cujo impacto nos leitores se assemelha a uma explosão de gases e lava do Vesúvio à época da destruição de Pompeia, no século I, ou do maremoto que assolou a Indonésia em 2006.
O discurso deste médico-escritor, também protagonista do romance, é uma catarse que visa o esvaziar de um abismo profundo de esgotos emocionais provenientes de um ego doente, a vomitar, ao longo de quase 370 páginas, o ódio ao mundo e o desprezo pela quase totalidade da espécie humana. O veneno é expelido sob a forma de virulentas invectivas, disparadas àqueles que de facto, lucraram com a guerra e saíram com a imagem limpa, assumindo a postura de heróis, numa exibição quase patética do desespero de quem se encontra do lado dos vencidos, através de um interminável desfile de uma galeria de ódios de estimação, algumas invejas e muitos rancores.

No entanto, o facto de a sensibilidade do Autor perecer estar voltada, sobretudo, para o sofrimento animal em detrimento do humano faz dele uma personagem, no mínimo, intrigante. A compaixão parece jorrar muito mais facilmente quando direccionada ao reino animal, do qual parece excluir a humanidade: a única cena comovente no romance é aquela que descreve a morte de uma das suas cadelas, as quais habitam, com o narrador, o imenso castelo que lhe serve de refúgio. Este parece dedicar, também, um sincero sentimento de ternura, misturado com algum paternalismo, à jovem esposa, Lili, uma bailarina clássica, sem emprego após a guerra, fruto do rótulo de “esposa de um colaboracionista”.

A ausência de compaixão nota-se através da frieza e assepsia com que descreve a agonia dos doentes terminais na ala do hospital de Copenhaga reservada aos doentes oncológicos, lembrando a descrição de um aviário ou matadouro onde as vítimas aguardam, resignadas a hora derradeira. O tom é impessoal, revelando um descaso que, por vezes, é difícil perceber se realmente se está a referir a seres humanos, ou se se trata de um humano a falar de outros humanos. Do que não restam dúvidas é que a voz deste narrador pertence a um ser que está convencido da sua superioridade: um super-homem ou um semi-deus. Quase poderíamos dizer que o mesmo narrador descreve aquilo que poderia ser o cenário do “inferno” de Dante ou a transposição de um quadro de Hieronymous Bosch para a escrita.


A mesma indiferença crua não se manifesta, no entanto, no tocante à expropriação dos bens materiais a que é sujeito o recheio do castelo de que é proprietário, vendido em hasta pública.


É também notória a ausência de indiferença face ao sucesso de alguns colegas escritores, seus contemporâneos, a gozar de uma confortável situação financeira, causando-lhe uma ardente revolta nas entranhas, expressa em linguagem acerada: o despeito é mais do que evidente e passionalmente dirigido com especial eloquência a François Mauriac e Jean-Paul Sartre. Os editores são, também, como não podia deixar de ser, especialmente visados.


Mesmo os nazis, apesar de confessar ter-se-lhes vendido para garantir o fornecimento permanente da despensa, durante a ocupação, inclusive a alimentação da mulher e dos seus cães, não escapam ao chicote espinhoso da língua de Céline, que os apelida de “falsos”.


Os sentimentos do Autor, vertidos para a voz do narrador, que exprime em relação aos alemães são ambivalentes: consciente da contradição inerente à forma como tratam, com absoluta cortesia, aqueles a quem torturam ou condenam ao inferno, não consegue deixar de sentir por eles alguma admiração. Principalmente pela forma como se tentam rodear de tudo quanto assume a expressão máxima da beleza, cultura e refinamento, atribuindo-lhes um elitismo quase renascentista.

No entanto, o mesmo narrador nem tenta disfarçar a própria duplicidade nas atitudes associadas ao próprio comportamento: adula enquanto trai, elogia aqueles que despreza. Defende, as mesmas teorias raciais da história que sustentam a ideologia nacional socialista, acredita nas teses de Lombroso, acerca do “criminoso nato” e da constituição física, tida como “típica do criminoso” – teses que, na altura, já estavam a ser sido refutadas com bases científicas. Demonstra, pelo contrário uma evidente admiração pela robustez física das camponesas alemãs e da etnia germânica.


O discurso de Céline, incendiário como as bombas da Luftwaffe, prossegue ao longo do romance onde a palavra é usada como de agressão, sendo que as frases terminadas, na quase totalidade com reticências e pontos de exclamação, transmitem mais do que passionalidade, o clima de instabilidade vivido na época.
O Autor ressente-se do facto de os seus próprios livros já não se publicarem e praticamente não se venderem, porque associados ao colaboracionismo alemão, afirmando-se incapaz de vestir a máscara de “bom-rapaz”. Invectiva os políticos franceses do governo de Vichy, a maior parte dos quais lavaram descaradamente as mãos depois da vitória dos aliados, colocando-se ao lado dos vencedores, após anos de colaboracionismo com o eixo.
A denuncia do falso moralismo de todo um continente, inclusive figuras públicas moralmente inatacáveis, é feita através da escrita, usada como arma..
Também como profissional de saúde, à época em que escreveu este romance, Céline já tinha visto melhores dias, mas atribuía a falta de clientes ao seu próprio empobrecimento e à impossibilidade de comprar e sustentar um automóvel para se deslocar a casa dos seus clientes, granjeando-lhe o descrédito da opinião pública. Desvalorizava, no entanto, o peso de factores como a falta de actualização de conhecimentos e métodos clínicos e o papel desempenhado por um temperamento irascível, na exclusão sentida na vida profissional.


No entanto, a parcela de realismo de Céline está patente na forma como consegue transpor para o papel, a ferocidade humana, inerente à luta pela sobrevivência, numa época de crise aguda, a afectar todas as classes sociais. Esta faceta animal do ser humano encontra-se descrita nas cenas que ilustram a disputa pelos géneros alimentícios, em plena praça pública, onde o pão branco tem o mesmo valor do ouro. A fome faz, inclusive, com que alguns membros de arrogantes famílias aristocratas, desçam da torre de marfim que geralmente ocupam, para procurar comida, juntamente com as rudes classes populares. Uma humilhação a que quase chegam a submeter-se, duas das habitantes do castelo Hllenzollern de quem o Autor fala no romance. O orgulho acaba, no entanto, por falar mais alto, fazendo com que se refugiem na protecção dos muros da propriedade, os quais ocultam, de forma eficaz, a decadência económica da estirpe e, também, a fisionomia pouco atraente, uma vez que o retrato das características genéticas, descrito por Céline, lembra mais uma caricatura do que, propriamente, os príncipes e princesas típicos dos contos de fadas, o que transforma o episódio num dos momentos da mais refinada ironia, presentes no romance.

Por outro lado, a crueldade, humana, expressa com a crueza habitual que caracteriza o estilo do Autor, revela-se na sordidez com que políticos, médicos e militares negoceiam, por exemplo, uma droga essencial para tratamento de doentes terminais e feridos de guerra: a morfina.

Também o cianeto se torna um bem essencial, mais valioso que o ouro, dada a utilidade em casos extremos, como por exemplo, fugir a uma morte lenta e dolorosa em situação de tortura às mãos do inimigo.
No momento em que sai de Copenhaga, depois de um período de férias forçado e já de regresso a França, Céline decide, então, escrever as suas memórias e dar a conhecer a sua versão da fase final da guerra, a partir de 1944. É o momento em que o exército hitleriano começa a retirada dos territórios ocupados em consequência do novo peso da ofensiva dos Aliados, fruto da participação activa dos Estados Unidos na guerra. O Autor dá a entender existir uma zona fronteiriça entre a França e a Alemanha, secularmente reivindicada e disputada por ambas as nações, que acaba por ser tanto alemã como francesa. O que explica, em parte, o porquê de tantos Franceses encararem a ocupação alemã com relativa naturalidade.

No final da página 158 da presente edição, o autor faz referência aos víveres, vindos de Portugal, cortesia de Salazar, para serem distribuídos naquela região. O discurso de Céline não deixa de exibir, apesar da autenticidade dos factos que coincide com factos e testemunhos da época, uma faceta marcadamente anti-social que encontra, talvez, a sua máxima expressão na forma impávida como assiste a uma lobotomia, realizada a sangue frio nas salas cirúrgicas do III Reich, por médicos de credenciais duvidosas e pela maneira de se referir à imigração europeia, ao manifestar o receio de uma “invasão amarela”, dado o ritmo de crescimento demográfico no continente asiático. Apercebemo-nos, no entanto, já depois de entrar no “espírito do romance”, de um factor determinante e em grande parte responsável pelo estilo vulcânico de Céline: a malária. Grande parte do romance foi escrito durante intensos acessos de febre, de onde brota o estilo delirante que domina o discurso narrativo da obra.

Guerra, sobrevivência e relatividade de valores

O Autor observa, com invulgar perspicácia, a qual não está isenta de uma boa dose de cinismo, a forma como a anomia e a precariedade fomentam o crescimento dos fenómenos socialmente tidos como marginais e nos nossos dias, associados à exclusão social, como a prostituição, consequência de uma maior vulnerabilidade e falta de orientação dos jovens. É o caso de Hilde, a filha do capitão VonRaumnitz. O caso do comissário Papillon, enxovalhado e esbofeteado publicamente pelos nazis e humilhado pela turba enfurecida é também, disso exemplo, assim como a forma em este se transforma no alvo do desprezo ostensivo e violento da opinião pública que se estende, também, à jovem sua companheira. O Autor parece comover-se com a beleza e a fragilidade femininas, desde que não contaminadas por sangue judeu, negro ou asiático.
No entanto, o humor cínico é a nota dominante no romance, sobretudo na descrição da cena que envolve o bispo cátaro, o qual consegue passar à frente da extensa fila para a casa de banho pública, ao afirmar-se perseguido desde o século XIII.
A descrição do caso Nenneuil, o delator dos delatores, deixa entrever o desejo secreto do Autor de, também, saltitar de um lado para o outro, conforme as conveniências e as vantagens oferecidas. No entanto, a humilhação a que Neunneil é sujeito, cujo ponto culminante é o par de bofetadas desferido por um SS furibundo e cujos rumores se espalham pela povoação inteira, deleitando daqueles que se dedicam aos mexericos, faz com que tal ideia nem sequer chegue a vir a lume.
O deboche está presente nas hostes alemãs, o que desperta alguma reserva em Céline, o qual deseja proteger a jovem esposa do assédio sexual que sofre Lili a jovem esposa, por parte de ambos os sexos. No entanto, é a prestação de cuidados médicos de profissionalismo duvidoso, com particular incidência em intervenções cirúrgicas à próstata mal sucedidas, que causa horror entre as hostes das SS e o exército do Reich. Céline confessa, com displicência, ter-se servido de micro frascos de cianeto para obter favores, não só das SS mas também de políticos franceses, supostamente do lado dos Aliados, usados como salvo-conduto e factor de prestígio.

Em termos políticos, Céline equipara Nasser, Franco e Salazar, ao colocá-los no mesmo patamar enquanto estadistas, facto que é elucidativo para quem tiver dúvidas acerca do teor da política do Estado Novo.

Mas um dos principais factores que contribui para o declínio deste III Reich é a minimização das condições climáticas e geográficas por Hitler, também já tidas como pouco relevantes por Napoleão Bonaparte, na altura em que se preparava para invadir a Rússia: o frio das estepes, vindo dos Urais. Tal como o seu predecessor, Hitler decide ignorar ou simplesmente esquece-se da importância de equipar devidamente um exército contra o frio. Um facto que dá a Céline o pretexto para identificar, a partir daqui, as falhas estratégicas do Reich, motivadas por um pueril excesso de auto-confiança perdendo, desta forma, terreno face ao objectivo inicial: a submissão total da Europa.

O episódio que descreve as condições em que se processa a viagem de regresso de uma visita a um campo de concentração nazi, de volta a França, durante a qual o médico Céline tem de assistir a um parto de uma camponesa alemã, em condições impossíveis, fá-lo reforçar o sentimento de admiração pela capacidade de resistência daquelas etnia.

A personalidade escorregadia do Autor e a forma como entabula amizade quer com aliados quer com elementos das tropas do Eixo, a exactidão com que descreve o comportamento e atitudes colectivas dos franceses, durante a Ocupação, coincide de forma inquietante, se descontarmos os rancores e as frustrações pessoais, com a visão da escritora judia, morta em Auschwitz, Irène Némirovsky acerca do carácter do povo francês, naquela altura. Um comportamento pautado pela mesquinhez e pelo egoísmo, em parte fruto das circunstâncias e, em parte, por preconceitos culturais fortemente enraizados, assim como uma espécie de pusilanimidade que rouba toda e qualquer capacidade de enfrentamento de qualquer tipo de Besta.


Cláudia de Sousa Dias

12 Comments:

Blogger Gustavo Carneiro said...

Apesar da dúbia moralidade do autor, ele parece até relatar umas verdades inconvenientes. É saudável conhecer todos os pontos de vista de um dado assunto...

PS: isto parece um erro: "Ressente-se do facto de os livros de os seus próprios livros..."

11:35 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

escapou-me a repetição do segmento da frase durante a revisão.

:-)

Vou já corrigir.


csd

10:00 AM  
Blogger K said...

Excelente!! Apesar de ser um grande sacana, Céline é grandioso na sua "verborreia"!

Deixaste-me com vontade de reler!!!

7:30 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

eheh...!


csd

11:18 PM  
Blogger P said...

Cláudia, faz algum tempo que não passava aqui.
Concordo com K, uma quase genial incontinência verbal!
P.

11:04 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

:-)


Pois é Bau...!
Inicialmente appetecia-me por o livro para o lado e passar ao seguinte, mas depois começou a interessar-me a maneira como sentia as coisas e a forma de passar as emoções de alguém que foge ao convencional...


csd

4:59 PM  
Blogger P said...

Compreendo a vontade de pôr de lado...

10:51 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Mas foi só durante as primeiras 100 páginas...

:-D


csd

1:53 AM  
Anonymous Hilton said...

Muito interessante seu blog! Convido-a a visitar o meu:www.poesiadiversidade.blogspot.com Um abraço fraterno e ti aguardo!

10:49 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada Hilton!

estou muito contente é com a reacção das pessoas a este post!


obrigada pela visita.

csd

10:55 PM  
Anonymous samartaime said...

Bravo, Cláudia!
O Celine é tão horrivel de ler quanto um escritor espantoso. Costumo dizer que é um exemplo perfeito da irresistivel atracção do mal. lol
Não deixaste escapar nada do que é importante no livro. Está lá tudo o que marca a escrita de Celine, não só neste livro.
Inclusivamente o balanço entre o horror de tudo, a crueza do relato e as súbitas criticas lúcidas a «amigos» e «inimigos».
É evidente que, depois da guerra, lhe seria duro viver onde quer que fosse na Europa. E no entanto foi na Europa que escolheu ficar: é caso para dizer que até nisso escolheu «à Celine»!
Dificilmente a Resistência Francesa o esqueceria - até porque era um grande escritor e os franceses sabiam-no: desprezaram o homem, respeitaram-lhe a obra.

12:40 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

pois é, Samartime...ama-se e odeia-se ao mesmo tempo...é mesmo assim!


csd

10:57 AM  

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