“O Japão: uma antologia de estudos sobre as gentes” de Lafcadio Hearn (Cotovia)
Tradução de Humberto de Brito
Lafcadio Hearn foi um jornalista de
ascendência greco-irlandesa, que desembarcou no Japão em 1890,
tendo servido de ponte cultural entre aquele país e os EUA, nos
finais do século XIX, e cuja estadia naquele país serviu de base
para a edificação da obra de que hoje aqui tratamos.
Lafcadio Hearn nasceu na Grécia a 27
de Junho de 1850, filho de pai anglo-irlandês e mãe grega. Foi
criado por uma tia-avó, nos arredores de Dublin, e viu-se obrigado a
abandonar os estudos, pouco depois dos dezasseis anos, para ajudar a
sustentar a sua família. Aos dezanove anos, parte para os EUA, onde
se torna repórter, especializando-se em criminologia. Passa por
graves dificuldades económicas, partilha o quarto com pessoas de
condição humilde, ex-escravos, negros e outros imigrantes, a viver
em condições extremamente precárias, numa América ainda
fortemente vergada sob o forte preconceito racial.
Motivos profissionais levam-no a viajar
às Índias Ocidentais depois ao Japão, por cuja cultura Hearn se
apaixona. Casa com uma jovem japonesa, estabelece-se naquelas
paragens, começa a trabalhar como professor e jornalista. Morre em
1904, aos cinquenta e quatro anos, vítima de um ataque cardíaco.
Adoptou o nome japonês de Yakumo Koizumi.
Os contos presentes nesta antologia
relatam situações paradigmáticas dos principais traços culturais
que compõem a civilização japonesa, e resultantes do imenso
património imaterial e tradição oral daquele país, que fez o
Autor mergulhar no universo das lendas e superstições provenientes
sobretudo das zonas rurais, num momento de viragem histórica do
Japão onde se começava, nos finais do século XIX, a verificar o
eclodir da primeira vaga da industrialização a par de um forte
desenvolvimento urbano, incrementado por um êxodo significativo das
zonas mais rurais para as cidades. O livro traz nas entrelinhas o
estertor do período feudal, marcado pelo domínio dos samurais como
chefes tribais nas aldeias e o desabrochar das cidades. Hearn
mostra, com um extraordinário poder de observação e descrição
detalhadamente subtil, os elementos que tecem a conjuntura
propiciadora de grandes alterações na estrutura demográfica,
migrações internas e mudanças profundas na estrutura social.
Lafcadio Hearn vai traçando o esboço das alterações que
lentamente se desenvolvem no seio das relações familiares e se
traduzem num certo afrouxamento dos laços entre gerações,
nomeadamente no tocante à autoridade do patriarca sobre as gerações
mais jovens, que com a saída da aldeia e da proximidade do círculo
familiar, passam a ter mais autonomia em relação à condução da
própria vida, nomeadamente nas suas escolhas sentimentais.
Os contos japoneses de Lafcadio Hearn
salientam, como já foi dito, os valores tradicionais da cultura
nipónica, como o respeito pela natureza, a veneração pelos
antepassados, o amor pelo sublime. Mas relativamente à forma de
organização social o principal traço ilustrativo da mentalidade do
povo japonês do fim do século XIX que se encontra exposto nas
entrelinhas dos contos que compõem este livro, são as atitudes-tipo
que realçam o valor da palavra dada e o amor à verdade, formando
assim Eu colectivo, ou Superego, no dizer freudiano, que vemos
vocacionado sobretudo para o trabalho, o sentido do dever, o
cumprimentos de regras, edificando uma sociedade essencialmente
normativa e sem grande margem para rasgos de individualismo.
O respeito pelas leis da natureza
encontra-se patente no primeiro conto Pedaços de vida e de morte,
onde o culto da água é sacralizado com o objectivo de manter “pura”
a água dos poços, mostrando assim a consciência do povo japonês
da relação entre a necessidade de manter limpa a água dos poços e
a Saúde Pública. A água pode ser assim, consoante se cuida dela ou
não, o portal da vida ou da morte. O seu bom estado de conservação
torna-se assim garantido pela sacralização da água do poço de
forma a evitar que os seres humanos a contaminem por negligência ou
descuido, prevenindo a disseminação de infecções.
Em quase todas as estórias deste livro
figuram deuses e espíritos de antepassados que surgem no imaginário
e mitologia das gentes do Japão de forma a difundir o que para eles
parece ser de suma importância: a história, a cultura, o respeito
pela hierarquia, a coesão familiar e tribal. O conto Do cabelo
das mulheres (of women's hair: a Glimpse of unfamiliar Japan)
que trata disto mesmo, servindo-se para tal de um traço da cultura
tradicional nipónica: de como as mulheres penteiam o cabelo.
Trata-se da descrição do complicadíssimo ofício das cabeleireiras
japonesas a incluir um detalhado conhecimento de toda a casta de
pormenores diferenciadores da casta social, idade, ou estado civil de
cada mulher.
Relativamente
à conciliação das relações amorosas e deveres familiares a
estória Uma cantadeira de Rua vem compor o retrato
sublime e trágico de um drama amoroso, numa sociedade onde o
casamento é, por norma, arranjado pela família, pelo que, uniões
baseadas unicamente no afecto ou na atracção sexual são vistas
como imaturas ou irresponsáveis, acabando geralmente por se
dissolverem fruto da pressão social que se verga ao peso do
interesse do clã.
Em Kimiko assistimos à viagem
pelo quotidiano de uma gueixa, mas sem o romantismo açucarado dos
filmes da indústria cinematográfica de Hollywood, na altura ainda
inexistente.
Em Numa ponte o narrador relata
um episódio que lhe é contado por um companheiro transitório de
viagem: um condutor de riquexó, o qual o põe ao corrente de um
episódio insólito, surreal. Uma parábola sobre códigos de honra
em situação de guerra.
N' O
caso de O-Dai é abordada a problemática da aculturação,
resultante de um choque civilizacional sofrido por um povo que sofre
a tentativa de colonização por estrangeiros com os quais tem
relações comerciais. A população encara inicialmente com bonomia
as trocas culturais e a aquisição de novos usos, mas não tolera a
falta de respeito para com aquilo que considera como seus valores
fundamentais, nem o esmagamento das próprias tradições, cuja
espinha dorsal é o respeito pelos antepassados e o culto dos mortos.
O conto pretende ser um alerta ou chamada de atenção para a
inflexibilidade da doutrina do calvinismo que, baseando-se na Teoria
da Predestinação, parece desconhece ou desprezar valor da
solidariedade.
O
texto À Deriva é uma crónica de uma noite de
tempestade, contada com os mesmos mecanismos estilísticos de uma
lenda, e cujos protagonistas são os marinheiros que desafiam a
morte, a qual é esconjurada pela demonstração, o temor e respeito
pelos deuses que preservam a Fortuna na esperança de escaparem a um
fim trágico...
Diplomacia, ou as armadilhas da
linguagem, é uma estória de humor macabro que poderia também
chamar-se de “As virtudes da astúcia num senhor feudal” numa
estrutura social onde o crime é punido de forma implacável e
impiedosa.
Já um karma passional é uma
arrepiante estória de fantasmas de cariz com ecos das histórias do
folclore irlandês que se funde com as estórias tradicionais da
cultura nipónica que envolvem o elemento do sobrenatural, onde a
crença numa vida para além da morte se cruza com a inclinação dos
protagonistas para amores fatais, que parecem conduzir as almas de
forma inexorável em direcção à ruína.
O último conto, intitulado
Sobrevivências deixa já entrever ao leitor uma sociedade em
transformação, onde o controlo social no meio urbano surge já
esbatido, face ao meio rural onde era exercido pelo patriarca do
respectivo clã familiar. Ali vigora a força do costume que,
naquelas paragens é a lei dominante, mas na cidade, o controlo
social é processado de uma forma mais institucional e formalizado.
Verificam-se também significativas mudanças no seio da estrutura
social e nos hábitos diários em todos os segmentos da sociedade: a
classe média encontra-se numa posição particularmente delicada,
numa espécie de enclave, sofrendo pressões de vários tipos: a da
autoridade dos chefes, vertical portanto; a competição dos pares,
isto é, horizontal; e o ódio dos mais pobres, isto é vertical
ascendente. A combinação destas três formas de pressão, torna a
classe média num grupo particularmente frágil, submetido a uma
tensão social constante.
Estes contos japoneses de Hearn são
narrados com a técnica discursiva de quem escreve um diário, dando
aos leitores uma visão que poderíamos classificar de antropológica.
O narrador descreve a paisagem, o indivíduo ou grupo social, as
formas de solidariedade, a estrutura familiar, os ritos, as crenças,
o património imaterial, em suma, a Cultura do povo japonês, que
para os Europeus ou Americanos na transição do século XIX para o
século XX se apresentava como a mais distante, longínqua, estranha
e, por isso, exótica.
O locutor vai descrevendo o que
observa, recorrendo muitas vezes a informadores especializados, uma
cabeleireira, um pescador, uma aguadeiro, um soldado, um condutor de
riquexó, etc, para registar através do discurso oral, a forma de
viver e do sistema de crenças das gentes locais, que vai transcrevendo para os seus apontamentos. O narrador
principal, que organiza e compila os depoimentos dos seus
informadores, desdobra assim a sua narrativa em múltiplas vozes, sem
contudo fazer juízos de valor, mantendo a neutralidade face ao
discurso ou opinativo dos seus interlocutores.
O Japão é uma delicada
filigrana literária, artesanal mas contudo sublime, na simplicidade
das suas narrativas sem floreios pomposos, a formar um conjunto de
textos transgenéricos, situando-se, algures, entre a crónica de
viagens, a lenda, o mito e o conto gótico, numa espécie de simbiose
entre a cultura irlandesa (com as suas histórias de fantasmas) e
nipónica, as quais que farão as delícias de todos aqueles que
sintam o poder irresistível da atracção de outras paragens e
outras épocas.
03.06.2013-14.01.2014
Cláudia de Sousa Dias
2 Comments:
Que vida curiosa a desse autor! Abriste-me, claro, o apetite pelo livro!
Beijinhos ;)
Os contos são bastante comoventes. E dá para conhecer a cultura japonesa...
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