"O Evangelho das Rãs" de Luísa Monteiro (Quasi)
Neste romance, Luísa Monteiro fala-nos do amor como a forma mais elevada de utopia, sobretudo, quando este é sinónimo de transgressão.
No amor nada é racional. E porque esse mesmo amor “é um pássaro rebelde” - como afirmava a efervescente Carmen, ao som da provocante melodia de Bizet -, não pode caber dentro do espaço limitado do socialmente correcto.
É por isso que a transgressão está presente desde o início até ao fim da obra, pela mão dos dois protagonistas do romance – Marcos e Vitória – cujas trajectórias de vida encontram, respectivamente, um paralelismo com as vidas de Óscar Wilde e Virgínia Woolf, personagem à qual a Autora dedica a obra.
A trama desenrola-se ao longo de três momentos que implicam uma mudança quanto à localização espácio-temporal.
Na primeira parte, intitulada de “A aldeia”, a acção decorre numa pequena povoação algarvia durante o período do Estado-Novo. A Autora começa por, logo no início, atirar a primeira pedrada no charco: o protagonista masculino, o jovem pároco Marcos, arde numa paixão desesperada por uma criatura selvagem, etérea, lembrando a bravia deusa Diana, uma mistura de fada e duende que brinca com as emoções dos comuns mortais e que parece concentrar em si o fogo verde da vida.
Sendo de origem judia, a pequena feiticeira dos bosques, que atende pelo nome de Violeta é, por isso mesmo, extremamente difícil de aprisionar no redil de ovelhas do pároco. Que, para saciar a paixão animal não correspondida, passa o tempo a seduzir as jovens adolescentes, por vezes ainda impúberes, que gravitam à volta da sua paróquia e que lhe são confiadas pelos pais.
A agreste Violeta desperta, também, a atenção da ultra-sensível Vitória, a poeta (oriunda de uma família burguesa ligada à maçonaria), cujo olhar negro é, fatalmente, aprisionado no bosque verde-esmeralda do olhar de Violeta.
As personagens femininas que gravitam à volta dos dois protagonistas são fascinantes, pela extrema fragilidade emocional e solidão que delas emana. As excepções são, obviamente, Violeta - pela sua aparente volubilidade - e Gertrudes, com o seu ar maternal e o seu afecto quente e doce como pão a sair do forno. Os seus voluptuosos e requintados cozinhados fazem lembrar Tita, a personagem do romance de Laura Esquível intitulado “Como água para Chocolate”.
Após as eleições de 1953, o pároco, até aí ultra-conservador, começa, gradual e imperceptivelmente a interiorizar ideias revolucionárias…
Vitória também não consegue adaptar-se ao mundo claustrofóbico da aldeia…
…e refugia-se no seu próprio mundo durante sete anos.
O inconformismo de ambos obriga-os à procura de novos horizontes…
Na segunda parte intitulada de “A Cidade” (a utopia do tempo), assistimos a um desconcertante volte-face nas vidas de Marcos e Vitória cujos caminhos se cruzam, por um momento, passando depois a divergir, de uma forma irreversível.
Marcos largou o hábito, esqueceu Violeta, abraçou ideias revolucionárias, transformou por completo a sua sexualidade, casou com Vitória cuja personalidade, entretanto desabrochou juntamente com o talento e a vida social, despertando a sua figura andrógina o interesse do ex-padre.
Mas para ambos, os interesses e ambições são opostos, bem como a visão e expressão dos afectos, sendo o casamento apenas a máscara que esconde os verdadeiros desejos de ambos tal qual a face oculta da Lua.
No terceiro momento da narrativa, intitulado de “O Solar (A utopia da História)” ocorre mais uma reviravolta na vida de um e abate-se a fatalidade na existência de outro…
Luísa Monteiro habituou-nos, já, a uma escrita de grande riqueza estilística, mas anti-convencional, de carácter associacionista, recheada de conexões, trocadilhos linguísticos e filosóficos, que conferem a alguns trechos um ritmo e musicalidade extremamente cativantes, uma sonoridade envolvente, remetendo, ao mesmo tempo para uma pluralidade quase infinita de significações. Um exemplo é o simbolismo das rãs (pps 36 e 37) a significar o umbilicalismo do gineceu – espaço feminino por excelência -; ou a parábola do anãozinho e da rosa contada pela “rã-matriarca”, a ama Gertrudes.
As vidas de Marcos e Vitória têm, de certa forma, alguma semelhança com as de Óscar Wilde e Virgínia Woolf. O primeiro, pela necessidade de ocultar da sociedade os impulsos da líbido, a segunda, pela necessidade imperiosa de se libertar das amarras dessa mesma sociedade para exprimir livremente a sua forma e necessidade de amar e ser correspondida – a sua última e maior utopia.
Para Vitória, libertar-se das raízes que a amarram à terra e partir mar adentro, em direcção à liberdade, enfrentando as ondas cruéis, o frio, o gelo da morte, torna-se inevitável…Tal como para Virgínia…O Destino espera-as a 11 de Outubro com um abismo de 73 anos…
Duas flores que se incendiaram na água, e que a Autora aproxima, num romance que faz lembrar Arundhati Roy e o seu “o deus das pequenas coisas” pelo constante questionar de tabus acerca de “quem deve ser amado. E quanto. E como.”(sic)
Um livro desconcertante pela beleza das palavras.
Um poço de angústia expresso no coaxar das rãs.
Um grito no silêncio, quebrado pelo marulhar das ondas.
Cláudia de Sousa Dias
4 Comments:
adorei o que dizes sobre este livro e podes ter a certeza q o vou comprar. obrigado
Não imagino sequer quem seja a autora mas pelo que li acho que vou comprar e aventurar-me na leitura.obg.
Minha querida CSD,
Eu conheço a autora e, certamente, irei ler o livro.
é sempre útil ter o teu blog por perto!
beijo
Ainda bem que gostaram. Ela vai estar presente na feiro do livro em Famalicão no dia 23 de Abril.
Se quiserem dar cá uma saltada e trocar impressões com ela...
Haverá tb mais uma série de actividades que depois tratarei de po-los ao corrente! Beijinhos!
CSD
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