“Crónica de uma travessia – A Época dos Ai-Dick-funam” de Luís Cardoso (Dom Quixote)
Luís Cardoso nasceu em Timor.
Licenciou-se em Silvicultura pelo Instituto Superior de Agronomia de
Lisboa e concluiu uma pós-graduação em Direito e Política do
Ambiente pela universidade Lusófona. Foi o representante do Conselho
Nacional para a Resistência Maubere em Lisboa.
Crónica de uma travessia
é um livro de carácter autobiográfico, editado pela primeira vez
em 1997. Depois desta obra escreveu ainda Olhos de Coruja, Olhos
de Gato Bravo (2002), A última Morte do Coronel Santiago
(2003) e Requiem para um Navegador Solitário (2007) e O
ano em que Pigafetta completou a circum-navegação (2013).
Sobre a obra de que aqui tratamos hoje,
o recentemente falecido poeta, romancista e crítico literário
Urbano Tavares Rodrigues escreveu o seguinte :
«É um livro que funde o género
biografia e romance, resultando dali uma “crónica” com elementos
ficcionados...».
E também que:
«Passa neste livro um sopro de
natureza, através do entrosamento de duas culturas, uma delas ainda
carregada de elementos mágicos».
O livro terá, portanto,
características biográficas por nele estarem presentes as marcas
dos lugares, das pessoas que os habitam e marcaram de alguma forma a
memória do autor, como a vida na aldeia onde cresceu, os périplos
realizados com o pai, enfermeiro de profissão e, mais tarde,
prisioneiro de guerra na ilha de Atauro. A tudo isto, junta-se o
exílio contado na primeira pessoa pelo narrador, que retrata os
tempos de juventude em plena década de 1970, depois de concluir o
ensino secundário e ingressar no Ensino Superior em Portugal.
Na trama, embora sem ocuparem um lugar
central nos acontecimentos, passam também personagens históricas,
da cena política ou das artes e das letras, tais como Xanana Gusmão,
José Afonso e Adriano Correia de Oliveira.
Um dos aspectos mais fascinantes do
livro consiste na descrição das tradições religiosas do povo
maubere, do sistema de crenças local, assente num sincretismo
religioso, resultante da presença portuguesa na região e influência
do catolicismo, de onde brota uma fusão de elementos das religiões
antigas com elementos do cristianismo, introduzidos pelos
missionários Jesuítas.
Outra questão amplamente debatida no
romance é o acesso à educação e ao emprego pelos habitantes de
Timor durante o Estado Novo, uma época em que o tipo de ensino a
seguir pela criança era previamente determinado consoante o estrato
social, à semelhança do que acontecia o território continental.
«O liceu era um local muito
selectivo onde estudavam os filhos das altas autoridades europeias,
que chegavam de manhã com sono, nos carros oficiais, e eram
acordados nas aulas pelas professoras, esposas de súbditos e
subalternos: “O menino Pedro dormiu mal?”. Os filhos dos
funcionários menores e colonos que chegavam nos seus carros
particulares: “Pedro, cale-se!” (…) e os filhos dos
funcionários nativos: “número 77, ou te calas ou rua!”».
«Face ao grande insucesso escolar e
à falta de saídas profissionais, foi instaurada uma escola técnica
com o nome do então Ministro do Ultramar, Silva Cunha. Um edifíci
omoderno, que me lembrava um pombal, e acolhia um numeroso
contingente de jovens timorenses, maioritariamente oriundos do
interior. Procuravam uma informação técnica e rápida que desse
acesso a um emprego.»
O que salta à vista em Crónica
de uma Travessia é uma de sociedade extremamente
estratificada e a quase inexistência de mobilidade social. A própria
descrição das zonas mais rurais de Timor, que, como sabemos, era na
altura era uma colónia portuguesa, em pouco difere das descrições
dadas pelas pessoas mais antigas em Portugal daquilo que era a
sociedade do Estado Novo no continente.
Crónica de uma travessia
explora ainda, de forma detalhada, para além da questão da
estruturação social local, os conflitos entre a administração
portuguesa e os chefes tribais das aldeias mais remotas. Face a isto,
o discurso do narrador é eficaz em trazer a lume situações de
abuso cometidas por governadores portugueses e chefes da
administração local, em particular na forma como humilhavam os
chefes das referidas tribos locais.
«Meu pai confidenciava-me que as
histórias e os rumores que corriam nas Knuas (povoações) e
sobretudo aquelas que eram contadas pelo seu protector e padrinho
Mestre Mário Noronha, genro do falecido D. Boaventura, tinham outro
enredo. Que a rainha de Manufahi era linda e branca, pelo que,
atormentava a cabeça e atraía a cobiça do comandante militar e
Same que, embora casado e pai de um filho, sucumbia de paixão por
aquele feitiço, feito mulher indígena. E ele, militar, guardador de
interesses da pátria e dos segredos íntimos da Nação, tencionava
resgatá-la dum enlace que achava contra-natura e contrariava toda a
intenção da demanda e da conquista. Tal paixão e atrevimento
custou-lhe caro pagando com a vida, a ira do chefe tribal e marido».
O Autor inclui, também, no romance a
referência a um episódio histórico muito pouco divulgado antes e
depois da Revolução de Abril e, por isso mesmo, desconhecido para a
maior parte dos portugueses: a invasão de Timor-Leste pelo Japão,
durante a Segunda Guerra Mundial. A leitura deste romance de Luís
Cardoso encarrega-se de mostrar ao leitor que o Estado Português
afinal não escapou totalmente à guerra, ao contrário do que
afirmava a propaganda do regime, já que Timor fazia parte do Império
Ultramarino Português.
« (o meu pai) Foi chamado para
fazer o curso de enfermagem na altura em que deflagrou e Segunda
Guerra Mundial: quando os Japoneses entraram em Timor, já andava a
municiar os comandos australianos que moveram uma intensa e
desmesurada defesa contra os nipónicos».
Mas o aspecto mais presente no romance
e que acompanha a trama do princípio ao fim é o choque de
civilizações, onde esse evidencia a intenção de uma nação
submeter e esmagar a outra no seu orgulho intrínseco.
Crónica de uma Travessia é, pois, a
história de um tempo perdido e dos primórdios da resistência e
autodeterminação da identidade do povo maubere e um livro que se
torna inquietante pela proximidade de um tempo que críamos distante,
face aos dias de hoje e reflectido num quotidiano que gostaríamos de
ver afastado dos nossos olhos à mesma velocidade do afastamento
intergaláctico.
12.01.2012-02.10.2013
Cláudia de Sousa Dias
8 Comments:
Confio na opinião de Urbano Tavares Rodrigues e na tua! A ler logo que possa...
Beijinhos e agasalha-te ;)
Obrigada M.!
Sim, por aqui não podemos facilitar cm o frio...
Boa tarde, adorei muito esta publicaçã.
sugiro que coloca também as referências (os livros que citaram nesta publicação) para que os leitores possam compreender melhor. se faz uma citação sem colocar a página, o autor e ano de publicação, traz muito confusão para eu pessoal.
Obrigado
Já escrevi esta crónica há muito tempo. Mas creio que a citação de Urbano Tavares Rodrigues foi retirada de uma revista. Talvez a "Ler"-
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Ou então na própria badana ou contracapa do livro. As citações são retiradas do próprio livro, na edição que ali vêem. Infelizmente não o tenho comigo, neste momento, senão procuraria a página correspondente a cada uma delas.Estou neste momento a viver em Inglaterra e a minha biblioteca ficou, na sua maior parte em casa dos meus pais em Famalicão. Para o Reino Unido só trouxe os livros que não li, e entretanto tenho agora uma biblioteca em inglês ainda mais volumosa que a que tenho em Portugal. Um dia vai ser um pesadelo levá-los todos oara lá e finalmente reunir os meus livros todos. Em Português e inglês.
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Hoje já não escrevo como escrevia naquela altura. Desde que acabei o mestrado, tenho vindo a escrever de forma muito mais lenta, precisamente porque me demoro agora a investigar o que já foi escrito e observando o rigor de citar a respectiva fonte. Mas há muito tempo que não escrevo aqui. Desde 2017, creio. Penso voltar a fazê-lo, quem sabe, este ano que vem, 2021.
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