HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!
Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!
About Me
- Name: Claudia Sousa Dias
- Location: Norte, Portugal
Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!
Monday, April 29, 2024
Friday, March 08, 2024
Portugal Amordaçado: depoimento sobre os anos do fascismo - Mário Soares (Arcádia)
Quando olhei pela primeira para este livro, o que me chamou a atenção, muito antes do título metaforicamente dramatizado, foi o subtítulo, por conter a palavra “depoimento”. Trata-se pois de um testemunho, de uma visão, de um olhar e um sentir do que foram os anos, metade de uma vida, quase, debaixo de um regime ditatorial. Mas antes de passar ao comentário do livro propriamente dito, penso que valerá a pena citar aqui, respectivamente, o prefácio, pelo punho do próprio Mário Soares, para esta primeira edição portuguesa de 10 de Junho de 1974 (a escolha da data também não foi por acaso) e, a seguir, o posfácio de Alfredo Barroso, na contracapa do livro: «O livro que agora se publica, pela primeira vez em edição integral Portuguesa, foi escrito durante o ano de 1971, quando me encontrava no exílio em Itália e em França, e editado em versão francesa encurtada pela Calmann-Levy, em Abril de 1972, sob o título de «Le Portugal Bailloné». Trata-se fundamentalmente de um depoimento despretensioso sobre os anos do fascismo e sobre a «luta indomada e indomável» dos democratas, tal como eu a senti e vivi a partir principalmente dos anos distantes de 1942 em que nela comecei a participar. Não se trata, pois, de um trabalho de história, nem de uma análise sociológica ou política aprofundada de uma situação que tão longamente persistiu em Portugal; trata-se antes, de um depoimento vivido, escrito a quente, no exílio, com a intenção de contribuir, embora modestamente, para a luta geral que então travavam contra a ditadura caetanista, todos os antifascistas anteriores ao 25 de Abril. O livro enferma assim de um certo condicionalismo temporal de que os eventuais leitores facilmente se darão conta. E, lido à luz da nossa visão de agora, poderá parecer, sob certos aspectos, insuficiente. Preferi, porém mantê-lo sem acrescentamentos nem actualizações, tal como o escrevi e vivi em 1971, quando a experiência do governo Caetano - recorde-se - ainda não era para alguns espíritos provadamente liberais uma experiência completamente falhada. Em certos pontos essenciais - como sobretudo nos capítulos «história de um crime» e «aventura colonial - surgiram, posteriormente, novos factos, importantes, que sem alterar a minha posição de base fundamental [,]a poderiam enriquecer e completar [,] se fossem desde já tomados em consideração. Trata-se, contudo, de um livro datado, que embora reduzido ao mais absoluto silêncio em Portugal teve aqui, como no estrangeiro, especialmente em França, uma relativa repercussão. Entendi, por isso, que o devia facultar ao conhecimento dos Portugueses - hoje que vivemos em liberdade - tal como o escrevi então e sem lhe introduzir correcções ou acrescentamento de última hora. O que se passou desde 1972 até à madrugada de Abril de 1974 em que as Forças Armadas restituíram Portugal aos portugueses - e que representa o lento apodrecimento de um regime condenado pela consciência nacional e internacional - a alvorada de esperança e de liberdade que estamos todos vivendo, desde então, constituem de certo novos e apaixonantes temas de reflexão política. Mas, por mais que pese ao meu editor, não representam novos capítulos possíveis do “Portugal Amordaçado”. Seriam antes objecto de um outro livro, bem diferente, que é cedo ainda para escrever, e a quem um dia (porque não?) meterei ombros, se as circunstâncias me proporcionarem o tempo para um tal trabalho. Mas não agora. Hoje, para todos nós, portugueses, o tempo não nos sobra para proceder a análises históricas, pois que todos temos que viver a história, alvoroçada e colectivamente. Lisboa, 10 de Junho de 1974» E, a seguir, o discurso apaixonado do posfácio de Alfredo Barroso a reforçar as palavras do autor: «Escrito durante a deportação a que o Governo de Salazar o condenara por tempo indeterminado, na Ilha de S. Tomé e durante os primeiros anos do exílio que lhe foi imposto pelo Governo de Marcello Caetano, este livro de Mário Soares, que só agora conhece a sua primeira edição em língua portuguesa, foi publicado pela primeira vez em França, em Abril de 1972. Testemunho lúcido e corajoso de uma experiência de luta constante e intransigente contra o regime fascista o livro de Mário Soares actuou como poderoso revelador junto de largos sectores da opinião pública estrangeira, profundamente alheada do drama português. Drama que bem pode consubstanciar-se nas admiráveis páginas do capítulo dedicado ao assassinato do General Humberto Delgado, cujas circunstâncias misteriosas Mário Soares conseguiu esclarecer quase por completo. Vigoroso libelo acusatório, antes do 25 de Abril, este livro de Mário Soares é agora, sobretudo, um documento histórico para compreender o passado e, por isso mesmo, um indispensável documento de reflexão contra os perigos que espreitam a liberdade e a democracia, que o mesmo é dizer contra todos aqueles que, encapotada ou abertamente, teimam ainda, desesperadamente, em impor o regresso a um passado que queremos definitivamente banido da terra portuguesa. Socialista de formação marxista, Mário Soares afirmou-se, ao longo de mais de trinta anos de luta anti-fascista, pela sua coragem e pela sua perseverança, como um dos principais porta-vozes das forças democráticas portuguesas. No Portugal livre em que vivemos desde o 25 de Abril, a sua biografia é já sobejamente conhecida, e nas páginas deste livro se traça, justamente, o itinerário político, do homem que, finalmente, pode hoje ser recebido, em manifestações de indescritível entusiasmo popular, pelas centenas de milhares de portugueses que acorrem aos comícios em que a palavra serena, rigorosa e lúcida do Secretário Geral do Partido-Socialista é o eco da liberdade e a esperança da democracia. Ministro dos Negócios Estrangeiros desde a constituição do Primeiro Governo Provisório da II República, Mário Soares tem sido também o melhor embaixador de Portugal no Mundo, outro hostil, que gora nos abriu as portas de par em par. Hoje, apenas cinco meses que são passados desde a libertação, o nome de Mário Soares está já, também - e para sempre o estará - indissoluvelmente ligado à história da descolonização portuguesa, que o mesmo é dizer à história da libertação de outros povos outrora oprimidos pelo mesmo regime que nos amordaçava.» Ao fazer esta recensão, não tenho em mente objectivos insanos como o de convencer quem tem convicções profundas de direita, mas sim de mostrar, a perspectiva do outro lado, para quem ainda estiver indeciso ou não souber o que é viver sob ditadura e sem possibilidade de exprimir um pensamento divergente, ou de fazer ouvir uma voz que não pertence ao poder ou, simplesmente, fazer passar livremente o pensamento crítico e até científico, apenas por discordar da voz dominante. Outra razão para o fazer é porque me parece que esta perspectiva não é tão massivamente difundida nas TV’s como é a oposta nos dias de hoje. A terceira razão é porque se trata de uma autobiografia que, não sendo história, como já foi dito, constitui fonte para fazer história, depois de confrontada com factos devidamente documentados por historiadores creditados. Além disso, o autor do livro é alguém que esteve na linha de frente, a combater na sombra, para a mudança do regime. Mário Soares não será o detentor da verdade, até porque nem ele próprio conseguiu iluminar todas os recantos obscuros das tiranias do regime anterior, como se viu no caso de Humberto Delgado, por exemplo, mas muito do que ele diz é corroborado por investigadores e historiadores creditados. Por isso acho relevante trazer hoje aqui, Mário Soares, à baila. Outros seguir-se-ão. No Domingo e nos dias que se seguem, se ainda me for permitido escrever. Assim, após a leitura das mais de 700 páginas do livro, acabado de escrever em Paris no mês de Fevereiro de 1972, mais do que um “depoimento inacabado”, como o classifica o autor (pg.728) é o dar conta da espuma dos dias o ‘zeitgeist’ da passagem de momentos-chave na história, começando há quase 140 anos atrás, desde 1891, altura do levantamento Republicano no Porto, a 31 de Janeiro, com a primeira tentativa de implantação da República em Portugal, ao mesmo tempo que estala uma grande crise financeira e colonial. Mário Soares, talvez pelo facto de o pai, João Soares, e vários membros da sua família terem estado na linha da frente dos acontecimentos do lado Republicano, movimentando-se no palco das acções políticas que estiveram na base da transição de um regime para o outro, dá-nos um retrato bastante detalhado e completo dos anos mais recuados da República e do declínio da Monarquia, nos primeiros capítulos do livro. De facto, até 1926, mesmo ainda dentro do período Republicano, houve períodos, ainda que breves, de ditadura (João Franco, Pimenta de Castro, Sidónio Pais) durante as quais se verificaram repressões violentas contra os Republicanos e Democratas, dos quais Mário Soares dá contas com especial acuidade. Percebe-se ainda que houve uma espécie de guerra civil, que prosseguiu, endémica, mesmo após a Implantação da República, e se desenvolvia até, de forma concomitante, com a Primeira Guerra Mundial, que gerou um clima de grande instabilidade económica e social no País. Uma guerra mundial (1914-1918) que foi sobretudo uma guerra de Impérios, ainda mais do que de ideologias e na qual Portugal não estava numa posição tão periférica quanto se possa pensar, já que os seus interesses coloniais em África interferiam tanto com os da Alemanha quanto com os da Inglaterra, aliando-se com esta mais por razões históricas e por tradição do que propriamente por motivos geopolíticos. Muitos destes episódios poderão ainda ser corroborados ou completados com a leitura de obras de historiadores como Rui Bebiano, Irene Pimentel, João Bernardo ou Fernando Rosas. Há depois o período passado na Faculdade de Letras (Filologia Românica) e a seguir a Faculdade de Direito onde se licenciou naquela que viria a ser a sua profissão nas décadas seguintes. Segue-se a história da formação das principais forças políticas, que constituem hoje os principais partidos políticos na AR, e que se começaram a consolidar a partir de meados do século XX (e algumas mesmo algumas décadas antes), sendo que destas houve também as que tiveram de optar por actuar na obscuridade, uma vez que toda e qualquer oposição política ao governo tinha limitações tão rígidas que toda e qualquer acção se revelava infrutífera e ineficaz, não havendo sequer forma de fazer chegar a mensagem à população, tão eficientes eram os mecanismos de censura. Isto é detalhadamente explicado já no capítulo IV, intitulado «Liberdade... “Suficiente”» (pp. 89-110). Depois, o posicionamento de Portugal relativo à segunda Guerra Mundial, que não foi tão neutro como se quer dar a entender, já que Salazar alinhou ideologicamente ao lado de Franco (apesar de algumas divergências e escaramuças que culminaram com a anexação do concelho de Olivença pelo Governo totalitário do Generalíssimo) Hitler e Mussollini, apesar da neutralidade aparente para evitar um eventual ataque Aliado. Os episódios que envolvem todos os acontecimentos protagonizados por Humberto Delgado são talvez aqueles que mais apaixonam Mário Soares enquanto narrador e autor do livro. Talvez pela proximidade temporal em relação ao tempo de escrita do depoimento, ou pela proximidade que o une à família de Delgado - Mário Soares foi advogado da família, levando a cabo as investigações das circunstâncias da morte do General, fazendo todos os esforços possíveis para recuperar o corpo (o que conseguiu) em Espanha e entregá-lo à família. O livro de Soares consegue ter o mérito de nos revelar (não tanto pela descrição directa e ‘contaminada’ pelas próprias preferências políticas e ideológicas e juízos de valor) características-chave destas duas personagens mutuamente antagónicas - Salazar e Delgado - mas, e aí reside o valor do livro, pela demonstração de atitudes indirectas, descrições de comportamentos e citações de discursos. Destes elementos que Soares deixa passar, quer no seu próprio discurso, quer nos discursos citados, ou mesmo atitudes demonstradas (externas ou observáveis) de Salazar e Delgado, percebemos ser este último um homem com muito boas intenções, mas impulsivo a ponto de, por vezes, as suas acções se tornarem imprevisíveis. Isto poderia causar desconforto, quer para o seu oponente no governo, Salazar, claro, quer para alguns dos seus aliados, ligados à URSS. Salazar aproveitou muito bem esta vulnerabilidade de Delgado, como Mário Soares demonstra, ao citar na íntegra a carta que o ditador fez difundir, tentando deitar as culpas para a morte do seu rival, nos próprios opositores. O Ditador é absolutamente convincente. A única coisa que o trai, ou melhor, que trai as suas palavras, são as suas acções, ao tentar bloquear, por todos os meios, toda e qualquer tentativa que leve ao prosseguimento de investigações que tornem possível a identificação, sem margem para dúvidas, do assassino ou dos assassinos de Delgados. Assim são as ditaduras. Neste tipo de regime, os opositores políticos não são descredibilizados. São mortos. De preferência, de forma a parecer um acidente, um suicídio, ou qualquer outra forma de desviar a culpa para a vítima ou os seus aliados. Os últimos capítulos são já o regime em acentuado declínio, após a morte de Salazar e a decepcionante transição para a democracia que, supostamente, seria operada pelo seu sucessor. O livro termina coma exortação à revolução e o apelo à mudança, à saída de um regime, ao qual muitos hoje, desejam que se reinstaure. O futuro ninguém sabe como será. O passado, fica registado em livros como este, que vale sempre a pena revisitar, como num filme. Ou num telescópio que nos mostra como eram as estrelas há biliões de anos atrás. Londres, 8 de Março de 2024 Cláudia de Sousa Dias
Wednesday, September 13, 2023
OS ANJOS NÃO MORREM E TU MORRESTE DUAS VEZES de Marta Duque Vaz Kalandraka | Faktoria | Colecção Confluências
Wednesday, December 14, 2022
O Lado Esquerdo (monólogo) de Marta Duque Vaz (Editora Assarapanto)
Fotografia de Carla Sousa para a capa de O Lado Esquerdo
Este livro foi lançado em Maio deste ano de 2022, já na cauda da pandemia do século XXI, aquando da estreia da peça de teatro no Coliseu do Porto com o mesmo título, em adaptação do texto de Marta Duque Vaz ao palco. A estreia nacional da peça tinha sido já no dia 19 de Novembro de 2021, no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, em Algés. O guião e encenação estiveram a cargo de Daniel de Freitas, e a interpretação - belíssima - da actriz Sonja Valentina que nos presenteia com uma ‘Isabel’ com algumas variações subtis face à personagem com o mesmo nome de Marta Duque Vaz. Mas isso acaba por não ter importância nenhuma, uma vez que esta Isabel é una e múltipla, desdobrando-se em muitas outras mulheres. Mas já lá vamos.
Para começar, tracemos o retrato da escritora, da qual já falámos por duas vezes, nos tempos remotos deste blogue (2005 e 2015). Marta Duque Vaz é jornalista de profissão desde os dezoito anos e escritora desde os seus verdíssimos anos de adolescente. Publicou, no final do liceu, um livro de poesia, lançado na fundação Cupertino de Miranda em Vila Nova de Famalicão e, em 2015, o livro infanto-juvenil A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos o qual foi também adaptado ao teatro no Brasil com o título O Tratado da Senhora Clap e trazida depois a peça a Portugal pela Companhia em tournée.
Pelo meio, Marta Duque Vaz foi escrevendo inúmeros contos, ainda inéditos, narrativas, ensaios e crónicas, dispersos quer pela imprensa escrita, incluindo revistas literárias (p.e. Revista Egoísta, coordenada por Patrícia Reis) quer pela blogosfera, entre outras produções narrativas, ficcionais e não só, em preparação.
A peça O Lado Esquerdo nasce do cruzamento de duas vozes monologantes, Isabel e António, que são colegas de trabalho. Na peça de teatro, temos uma voz em off a representar António, que se encontra a escrever um e-mail a Isabel. Um e-mail...que não é de trabalho. A voz de António ouvida em palco é, pois, a de um autor que se encontra a ler silenciosamente o texto que escreve.
Isabel, por seu turno, responde-lhe, em alta voz, num momento diferente, muito posterior à escrita da carta de amor/e-mail de António. Isabel, com o texto impresso, lê em voz alta e vai respondendo, comentando, ao texto de António. O efeito é como se fosse uma conversa entre os dois em que cada qual fala para um microfone que esteja a gravar o pseudo-diálogo. António escreve uma confissão, Isabel responde-lhe como se este a ouvisse.
A peça tinha sido estreada em Lisboa quase no final de 2021, onde teve três récitas, para depois ser novamente levada a cena com o lançamento do livro em 21 de Maio do ano seguinte no Coliseu do Porto, mas desta vez acompanhada pelo lançamento do livro. Ao sair da sala de espectáculos, dei por mim emocionada com a interpretação sensual de Sonja Valentina e o solilóquio de uma mulher madura a qual, à medida que lê a declaração de amor-admiração que lhe é dirigida, vai reflectindo sobre as relações, os sonhos, a vida de uma mulher que já completou quatro décadas de vida e cujos sonhos e aspirações dariam para alimentar quarenta décadas - disse bem, décadas, não anos - mais.
Não consigo deixar, porém de reparar em algumas diferenças de interpretação ou divergências em relação ao texto de Marta Duque Vaz. Sonja Valentina, dirigida por Daniel de Freitas dotou a voz de Isabel, a protagonista, de uma tonalidade amarga, desiludida, que se exprime por vezes num riso levemente sarcástico, a denunciar uma certa desesperança, com o amor, com a vida e o seu percurso mais ou menos tortuoso.
Na verdade, ao assistir à peça, era frequente lembrar-me do contraste da expressão vocal da actriz e a da autora, a quem já ouvira ler o texto, em primeira mão, pelo menos em parte. A narradora de Marta Duque Vaz é uma mulher lúcida, de inteligência acutilante e humor desconcertante que, regra geral, desemboca em conclusões que deixam o leitor siderado de surpresa. Mas na Isabel de Sonja Valentina nota-se uma certa tonalidade mais escura, depressiva, nihilista que não faz parte do tom narrativo de Marta Duque Vaz. No entanto, a aparente distorção da personalidade na figura criada em palco em relação à do texto original, a personagem Isabel, acaba por não ser completamente descabida, uma vez que a Isabel de Marta Duque Vaz é alguém que se desdobra em múltiplas mulheres, podendo assumir facetas de humor que não estão contidas nos momentos descritos no texto. Isabel é pois uma mulher que representa as múltiplas faces da mulher universal. Como narradora e personagem principal, Isabel é alguém que tem consciência desse desdobramento, dessa ocupação do corpo pelo espírito das outras mulheres, mas o contrário - as outras terem acesso à consciência de Isabel - não acontece, o que faz dela um narradora omnisciente.
Ora, na peça, o espectador não consegue aperceber-se desse desdobramento, que resultaria numa polifonia que enriqueceria bastante mais a peça, mas seria de uma exigência extrema em termos performativos, obrigando à libertação dos múltiplos ‘eus’ femininos que habitam o corpo de Isabel e formam o todo de que é composta a mesma personagem. Em matéria de plurivocidade este texto de Marta Duque Vaz está ao nível de ‘Kew Gardens’ ou de ‘The Fascination of the Pool’, ambos de Virginia Woolf. E, por isso mesmo, estou convencida de que esta será talvez a maior mutilação, operada ao texto original, apesar de o efeito ser agradável ao espectador, cativado pelas palavras da autora na boca da actriz, mas em que são retiradas, em grande parte, a riqueza e a complexidade ao texto de Marta Duque Vaz.
Por outro lado, o texto que representa a voz de António, sendo ele baseado e adaptado de um conto ainda inédito da autora, mas que já lhe havia garantido um prémio numa das edições de ‘O Escritor Famoso’, em 2005, concurso patrocinado pela extinta livraria O Navio dos Espelhos, em Aveiro. A adaptação ao palco mostra um homem que se encanta pela figura do corpo da colega de trabalho da qual, sentado à sua secretária, só consegue observar o seu lado esquerdo. O olhar de António atravessa assim a janela do escritório para fora, em direcção à janela do prédio ou do bloco de escritórios em frente ao seu, e onde se encontra Isabel. E isso também não foi completamente perceptível na peça a que assistimos, na qual a protagonista já se encontra em casa, e se vai despindo, executando os gestos e rituais de uma mulher auto-suficiente, que vive sozinha, in a flat of her own, etc.
O final, na peça, é também completamente divergente do dos textos originais. Mas mesmo assim vale a pena assistir à mesma, que funde, de forma harmoniosa, os dois belos textos da autora.
Rosa Alice Branco, no prefácio para esta edição, a qual também apresentou no Coliseu, faz ver que:
«António explorou a fala do corpo de Isabel a partir da visibilidade possível que indicia no lado esquerdo da mulher e desencadeou uma reacção nuclear de todas as mulheres tatuadas em Isabel. O texto é infinito, na medida em que era possível continuar a escrever indefinidamente o que Isabel pensa de si - dessas outras de si - da sua vida, das suas crenças, dos seus delírios. O que outros julgam saber de si. Sobretudo o que se ignora e se multiplica pelas páginas em hipotéticas celebrações da vida e da ausência: da poesia, pela voz das suas poetas, que lhe tecem e destecem os seus caminhos que se abrem nas entranhas».
Pedro Trindade teve a ingrata tarefa de comentar a sequência fotográfica de Carla Sousa antes de ver a peça e sem ter tido acesso ao texto de Marta Duque Vaz, mas conseguiu capturar a essência das fotos: a expressividade dos gestos de Sonja Valentina que Carla de Sousa consegui congelar no tempo e a complementaridade dos adereços que fazem parte do cenário. De facto cada objecto tinha a sua simbologia e o seu lugar na peça. Este é o lado brilhante de Daniel de Freitas enquanto encenador, onde nada foi deixado ao acaso.
O livro é um belo objecto de colecção, com capa de Francisco Carvalho Diniz, que já havia feito também a capa do primeiro livro de Marta Duque Vaz, Aclive (poesia). O texto de O Lado Esquerdo é ilustrado com fotografias que representam alguns dos momentos mais expressivos da peça, com Sonja Valentina a dar corpo à voz de Isabel, captada pela objectiva da fotógrafa Carla de Sousa, natural de Luanda, Angola. Pode mesmo dizer-se que Carla de Sousa captou os melhores momentos da performance de Sonja com uma extraordinária beleza plástica.
O texto encontra-se estruturalmente dividido em nove secções, cada uma delas um desdobramento da personalidade de Isabel. No entanto, é impossível fazer corresponder a cada secção ou capítulo, o nome de cada uma das mulheres que aparecem no texto. A alguns destes podem mesmo corresponder duas ou três ocupantes do corpo de Isabel, a representar diferentes arquétipos corporizados. Num único corpo físico lutam assim estereótipos femininos diversos, por vezes até antagónicos, a representar relações, memórias, toda a casta de emoções e afectos. À medida que avançamos no texto percebemos que são os momentos de solidão que permitem a Isabel alimentar estas mulheres: a mesma solidão que facilita a construção do próprio discurso, resultando numa profusão de vozes que se cruzam e dialogam à vez, com o seu público real - os ouvintes - , e fictício - António, autor do e-mail que desencadeou, no momento em que Isabel vê o texto, já em casa, o coro de vozes que, dentro de si, se manifesta.
Um texto monologal, desconcertante e belo, que fala essencialmente de amor e solidão, por uma protagonista que surge sempre pronta a reiniciar a vida. sem dar nunca lugar à descrença na felicidade.
Vila Nova de Famalicão 14 de Dezembro de 2022,
Cláudia de Sousa Dias
Friday, August 26, 2022
"Histórias do Diabo" (Contos) de Orlando de Albuquerque (Capricórnio)
O autor deste livro, hoje esgotado e só encontrado em alfarrabistas ou em espólios de bibliotecas, foi um médico angolano, nascido em Moçambique, casado com a poetisa Alda Lara. Viveu grande parte da sua vida profissional no Minho, na cidade de Braga onde exerceu clínica. A sua outra faceta, a de escritor acompanhou-o, no entanto, como uma vida paralela. Começou a publicar em 1947, altura em que viu o seu primeiro livro de poesia, Batuque Negro, censurado e proibido de circular pela PIDE.
A produção literária de Orlando de Albuquerque estende-se no entanto por vários géneros, desde a poesia ao romance, passando pela crónica e o ensaio. Sem esquecer, também, a actividade como dramaturgo e contista. Estas duas encontram-se estreitamente ligadas a julgar pelo minúsculo volume de contos de que hoje aqui tratamos e cuja coloquialidade, posta na voz do narrador, sugere uma riqueza de modalização que torna a obra facilmente adaptável ao teatro, na forma de monólogo.
Os contos deste volume são na verdade pequenos monólogos, relatos narrados por uma voz popular (ou populista?), altamente persuasiva, mas revestida de uma pungente ingenuidade, susceptível a superstições, crente (?) e, pelo menos na forma do discurso, reverente ao sobrenatural. O discurso é fluido e ininterrupto, errático, algo caótico, como é típico das narrativas de tradição oral, marcada por inúmeros meandros e desvios face à trama principal, com com narrativas secundárias encaixadas. Trata-se por isso de um discurso polifónico, multi-vocal, embora vertido pela fala de um único locutor. Este é alguém altamente persuasivo, convencido da posse daquilo que apresenta como sendo uma única e absoluta verdade. Os factos que vai apresentando, contudo, desmentem-no, tornando-o numa personagem cómica, como é o caso da primeira história: “A verdadeira história do padre que agarrou o diabo pelos cornos quando este lhe andava a roubar as couves”.
As histórias têm sempre como protagonista o mesmo sacerdote: o padre Apolinário, sacerdote da velha guarda, que mantém a sua ascendência sobre os fiéis através da inculcação do medo do demónio, praticando e predicando uma fervorosa fé - e cobrando, claro está, dinheiro pelo serviço e arrecadando prestígio e poder através da submissão - à conta de exorcismos, rezas e bênçãos de que o seu público, profundamente crente e sugestionável, é súbdito e devedor.
Este trabalho de Orlando de Albuquerque torna-se, ao mesmo tempo, uma sátira e um retrato das crenças, dos medos mais profundos no seio de um país onde há nem meio século a esta parte grassava o analfabetismo e o medo ou desconfiança de tudo o que fosse conhecimento científico ou intelectual, principalmente nas camadas mais humildes e menos letradas do Portugal do fim da ditadura. O livro foi publicado primeiramente em 1979 e as histórias escritas alguns anos antes. Todos os contos incluídos neste volume apresentam, por isso, um padre Apolinário como líder espiritual sem rival na povoação da freguesia de Alívio (nome fictício), mas estas histórias mas são contadas por uma mesma voz que cita uma multiplicidade de outras vozes (de forma directa, indirecta e através de discurso indirecto livre), quase todas com o mesmo grau de credulidade.
A nota inicial do autor confirma estas Histórias do Diabo tratarem-se de uma recolha de narrativas de tradição oral, recompilada e articulada sob a forma de histórias interligadas - o Padre Apolinário surge como principal divulgador da crença no sobrenatural e na existência do diabo pela boca de um narrador, que lhe é próximo - relatando fenómenos supostamente (ou nem tanto) paranormais, recheados de condimentos discursivos, arranjados de forma a captarem facilmente a atenção do ouvinte. Na nota de agradecimentos, o autor dá a entender serem todas essas histórias provenientes da mesma fonte: um narrador que lhas haveria contado, em primeira mão, ou não, estas lendas com algo de gótico ou fantástico - o Ti Joaquim das Fontaínhas.
“São devidos pelo Autor ao Ti Joaquim das Fontainhas, verdadeiro narrador destas histórias, exemplo de paciência para a minha muito ignorante curiosidade que a sua tradicional sabedoria, bebida na cepa dos melhores valores avoengos esclareceu e informou”.
E por fim, ainda em nota do Autor, em forma de dedicatória ao Padre Gonzalez, surgindo como introdução à obra onde dá a entender a sua real forma de pensar, demarcando-se do narrador das suas histórias, apresentando uma postura bastante mais céptica embora não frontalmente iconoclasta:
“Posto isto, estou como aquele seu patrício, que dizia «yo no creo en brujas, pero que las hay las hay...». Que o diga o Padre Apolinário , que um dia até agarrou o pé-de-cabra pelos cornos. (...) Coisas do diabo, não haja dúvidas...”.
Na explicação da obra, à laia de provocação ou simplesmente travessuras do Autor explicadas jocosamente na dedicatória ao padre Gonzalez Quevedo, o Autor esclarece, num discurso híbrido, onde deixa a dúvida se o pensamento reproduzido é o dele próprio ou do narrador, deixando entrever o real teor e intenção da obra:
“Este livro trata das Histórias do Diabo, que ora aqui se contam e que por verdadeiras se devem ter e delas deve o leitor, atento e consciencioso, bom exemplo e proveito tirar, para que nelas encontre sólida armadura e defesa, que o livrem das solicitações do demónio e demais tentações que existem neste mundo para desgraçar as almas e conduzi-las pelos ínvios caminhos da perdição”. Este pois é o teor das histórias que foram inspiradas pelo Ti Joaquim das Fontaínhas, mas a que o autor se apressa a esclarecer acerca do seu próprio posicionamento, colocado num limiar da descrença, em dedicatória a um pragmático Padre Quevedo.
Os títulos das histórias, por si só, fazem as delícias dos mais exigentes satiristas:
- A verdadeira história do padre que agarrou o diabo pelos cornos, quando este lhe andava na horta a roubar as couves.
- De como a Rita do Regedor esteve endemoninhada e Padre Apolinário a exorcizou e depois de casada nunca mais foi presa do malvado demónio.
- De como o avô do narrador foi dar com uma feiticeira a cavalo num tonel de vinho e a chupá-lo por uma cana e acabou por lhe perdoar.
- De como o Diabo se disfarçou numa donzela vestida de branco para perder a alma de um pecador e depois se esqueceu das cuecas, que afinal aram vermelhas.
- Em que se narra ao leitor o mistério das vozes na noite e de como este mistério foi finalmente esclarecido para socego (sic) e descanso das boas almas, que estiveram em grande risco e à beira da perdição.
- Do desaparecimento de algumas celouras (sic) [ceroulas] e outras tropelias que o diabo praticou em casa do Padre Apolinário e como depois se veio a pôr tudo em pratos limpos, com grande escândula de toda a gente.
- Em que se conta a incrível história que aconteceu ao Padre Apolinário em que este obrigou o diabo a ajudá-lo à missa.
- Onde se conta como a Lucinda reconquistou o amor do Joaquim Piloto e como ela afinal era um coração de oiro e tudo terminou em bem.
- Aqui se descobre a origem da estranha guerra de Padre Apolinário com o demónio e a safadeza que o Cornudo lhe fez, tentando arrastá-lo para a perdição, na figura de uma rapariga, que por acaso até era a sua governanta...
(Alerta de spoiler):
A esmagadora maioria dos contos aqui reunidos apresenta a descrição do fenómeno sobrenatural pela voz de alguém que é ou que se diz crente e que tenta persuadir a audiência - leitores ou ouvintes - da veracidade das mesmas e da existência do Diabo e das suas perversas artimanhas. No entanto, a própria narração dos factos coloca essa “verdade” em causa, como é o caso do desaparecimento dos produtos hortícolas do do quintal do Padre, como sendo obra de um bovino e que o narrador insiste ser a incarnação do próprio Satã - o tal misterioso “vulto de chifres”. Ou o autor da voz misteriosa, que se ouvia à noite em casa do Padre, e cujas ordens e directivas beneficiavam sempre o mesmo muito terreno destinatário. Ou o assalto à casa do sacerdote por outro diabo muito carnal, que acaba a ajudá-lo à missa, à laia de penitência. Uma suposta bruxa que rouba vinho, interfere com os seres do outro mundo para que aquele que a pode denunciar nunca tenha “azares” na vida. A gravidade da condição feminina é entrevista na situação da jovem atormentada por um demónio, silenciada pelo padre e pelo medo e que depois “sossega” [será?] ao casar e sair da alçada de um parente próximo que a violava. Um silenciamento operado pelo poder patriarcal, operado logo no segundo conto, o mais dramático de toda a colectânea.
Mas o mais interessante da obra é ainda um ponto de vista feminino que é mediado pelo narrador traduzido numa situação cómica desmascarada por uma mulher, que aponta a contradição entre os aspecto da roupa exterior visível e da roupa interior para denunciar a carnalidade do ser supostamente do outro mundo.
A obra de Albuquerque poderá apenas ser igualada pela de Gil Vicente na sátira e denúncia de falsos milagres, pelo que é uma pena que se encontre fora de circulação, soterrada em armários bolorentos ou armazéns inundados pela humidade e teias de aranha.
Vila Nova de Famalicão, Maio de 2022
Cláudia de Sousa Dias
Wednesday, July 27, 2022
Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos de Alves Redol (Europa-América, Col. Livros de Bolso)
1. Dados Biográficos e Contextualização da Obra