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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Sunday, January 31, 2010

“De Castelo em Castelo” de Louis Ferdinand Céline (Dom Quixote)




A partir de 1944, a II Guerra Mundial não foi apenas uma gloriosa ofensiva do exército Aliado contra as forças do Eixo, por toda a parte em retirada. Foi, também, a epopeia, porventura menos gloriosa mas nem por isso menos dramática de todos aqueles que compreenderam que o seu tempo tinha chegado ao fim e iniciaram uma fuga desordenada através da Europa em ruínas.

De Castelo em Castelo é o romance de um desses percursos: de Paris a Sigmaringen, na companhia de Pétain e seus ministros, da Alemanha para a Dinamarca e, enfim, de regresso a França, para Meudon, onde o Autor e protagonista deste romance auto biográfico viverá, amargurados, os seus últimos anos.

De Castelo em Castelo é considerado, juntamente com Viagem ao Fim da Noite e Morte a Crédito, um dos grandes livros de Céline.

Louis Ferdinand Destouches (Céline) nasceu em Courbevoie, nos arredores de Paris, em 1894, vindo a falecer em 1961. Detentor de uma personalidade geradora de polémica, ficou conhecido para a posteridade por professar um obsessivo anti-semitismo. Colaborou, durante o período da Ocupação, com as autoridades alemãs. Um facto que o obrigou a viver uma penosa existência no pós-guerra, até 1952, ano em que já de volta ao país Natal, se instala, definitivamente, em Meudon. Apesar da controversa biografia é, apesar de tudo, considerado um dos mais geniais escritores franceses do século XX. De Castelo em Castelo é o primeiro volume de uma trilogia que se completa com Nord e Rigodon.

O estilo de Céline é marcado por uma intensa verborreia que jorra a uma velocidade de cruzeiro, cujo impacto nos leitores se assemelha a uma explosão de gases e lava do Vesúvio à época da destruição de Pompeia, no século I, ou do maremoto que assolou a Indonésia em 2006.
O discurso deste médico-escritor, também protagonista do romance, é uma catarse que visa o esvaziar de um abismo profundo de esgotos emocionais provenientes de um ego doente, a vomitar, ao longo de quase 370 páginas, o ódio ao mundo e o desprezo pela quase totalidade da espécie humana. O veneno é expelido sob a forma de virulentas invectivas, disparadas àqueles que de facto, lucraram com a guerra e saíram com a imagem limpa, assumindo a postura de heróis, numa exibição quase patética do desespero de quem se encontra do lado dos vencidos, através de um interminável desfile de uma galeria de ódios de estimação, algumas invejas e muitos rancores.

No entanto, o facto de a sensibilidade do Autor perecer estar voltada, sobretudo, para o sofrimento animal em detrimento do humano faz dele uma personagem, no mínimo, intrigante. A compaixão parece jorrar muito mais facilmente quando direccionada ao reino animal, do qual parece excluir a humanidade: a única cena comovente no romance é aquela que descreve a morte de uma das suas cadelas, as quais habitam, com o narrador, o imenso castelo que lhe serve de refúgio. Este parece dedicar, também, um sincero sentimento de ternura, misturado com algum paternalismo, à jovem esposa, Lili, uma bailarina clássica, sem emprego após a guerra, fruto do rótulo de “esposa de um colaboracionista”.

A ausência de compaixão nota-se através da frieza e assepsia com que descreve a agonia dos doentes terminais na ala do hospital de Copenhaga reservada aos doentes oncológicos, lembrando a descrição de um aviário ou matadouro onde as vítimas aguardam, resignadas a hora derradeira. O tom é impessoal, revelando um descaso que, por vezes, é difícil perceber se realmente se está a referir a seres humanos, ou se se trata de um humano a falar de outros humanos. Do que não restam dúvidas é que a voz deste narrador pertence a um ser que está convencido da sua superioridade: um super-homem ou um semi-deus. Quase poderíamos dizer que o mesmo narrador descreve aquilo que poderia ser o cenário do “inferno” de Dante ou a transposição de um quadro de Hieronymous Bosch para a escrita.


A mesma indiferença crua não se manifesta, no entanto, no tocante à expropriação dos bens materiais a que é sujeito o recheio do castelo de que é proprietário, vendido em hasta pública.


É também notória a ausência de indiferença face ao sucesso de alguns colegas escritores, seus contemporâneos, a gozar de uma confortável situação financeira, causando-lhe uma ardente revolta nas entranhas, expressa em linguagem acerada: o despeito é mais do que evidente e passionalmente dirigido com especial eloquência a François Mauriac e Jean-Paul Sartre. Os editores são, também, como não podia deixar de ser, especialmente visados.


Mesmo os nazis, apesar de confessar ter-se-lhes vendido para garantir o fornecimento permanente da despensa, durante a ocupação, inclusive a alimentação da mulher e dos seus cães, não escapam ao chicote espinhoso da língua de Céline, que os apelida de “falsos”.


Os sentimentos do Autor, vertidos para a voz do narrador, que exprime em relação aos alemães são ambivalentes: consciente da contradição inerente à forma como tratam, com absoluta cortesia, aqueles a quem torturam ou condenam ao inferno, não consegue deixar de sentir por eles alguma admiração. Principalmente pela forma como se tentam rodear de tudo quanto assume a expressão máxima da beleza, cultura e refinamento, atribuindo-lhes um elitismo quase renascentista.

No entanto, o mesmo narrador nem tenta disfarçar a própria duplicidade nas atitudes associadas ao próprio comportamento: adula enquanto trai, elogia aqueles que despreza. Defende, as mesmas teorias raciais da história que sustentam a ideologia nacional socialista, acredita nas teses de Lombroso, acerca do “criminoso nato” e da constituição física, tida como “típica do criminoso” – teses que, na altura, já estavam a ser sido refutadas com bases científicas. Demonstra, pelo contrário uma evidente admiração pela robustez física das camponesas alemãs e da etnia germânica.


O discurso de Céline, incendiário como as bombas da Luftwaffe, prossegue ao longo do romance onde a palavra é usada como de agressão, sendo que as frases terminadas, na quase totalidade com reticências e pontos de exclamação, transmitem mais do que passionalidade, o clima de instabilidade vivido na época.
O Autor ressente-se do facto de os seus próprios livros já não se publicarem e praticamente não se venderem, porque associados ao colaboracionismo alemão, afirmando-se incapaz de vestir a máscara de “bom-rapaz”. Invectiva os políticos franceses do governo de Vichy, a maior parte dos quais lavaram descaradamente as mãos depois da vitória dos aliados, colocando-se ao lado dos vencedores, após anos de colaboracionismo com o eixo.
A denuncia do falso moralismo de todo um continente, inclusive figuras públicas moralmente inatacáveis, é feita através da escrita, usada como arma..
Também como profissional de saúde, à época em que escreveu este romance, Céline já tinha visto melhores dias, mas atribuía a falta de clientes ao seu próprio empobrecimento e à impossibilidade de comprar e sustentar um automóvel para se deslocar a casa dos seus clientes, granjeando-lhe o descrédito da opinião pública. Desvalorizava, no entanto, o peso de factores como a falta de actualização de conhecimentos e métodos clínicos e o papel desempenhado por um temperamento irascível, na exclusão sentida na vida profissional.


No entanto, a parcela de realismo de Céline está patente na forma como consegue transpor para o papel, a ferocidade humana, inerente à luta pela sobrevivência, numa época de crise aguda, a afectar todas as classes sociais. Esta faceta animal do ser humano encontra-se descrita nas cenas que ilustram a disputa pelos géneros alimentícios, em plena praça pública, onde o pão branco tem o mesmo valor do ouro. A fome faz, inclusive, com que alguns membros de arrogantes famílias aristocratas, desçam da torre de marfim que geralmente ocupam, para procurar comida, juntamente com as rudes classes populares. Uma humilhação a que quase chegam a submeter-se, duas das habitantes do castelo Hllenzollern de quem o Autor fala no romance. O orgulho acaba, no entanto, por falar mais alto, fazendo com que se refugiem na protecção dos muros da propriedade, os quais ocultam, de forma eficaz, a decadência económica da estirpe e, também, a fisionomia pouco atraente, uma vez que o retrato das características genéticas, descrito por Céline, lembra mais uma caricatura do que, propriamente, os príncipes e princesas típicos dos contos de fadas, o que transforma o episódio num dos momentos da mais refinada ironia, presentes no romance.

Por outro lado, a crueldade, humana, expressa com a crueza habitual que caracteriza o estilo do Autor, revela-se na sordidez com que políticos, médicos e militares negoceiam, por exemplo, uma droga essencial para tratamento de doentes terminais e feridos de guerra: a morfina.

Também o cianeto se torna um bem essencial, mais valioso que o ouro, dada a utilidade em casos extremos, como por exemplo, fugir a uma morte lenta e dolorosa em situação de tortura às mãos do inimigo.
No momento em que sai de Copenhaga, depois de um período de férias forçado e já de regresso a França, Céline decide, então, escrever as suas memórias e dar a conhecer a sua versão da fase final da guerra, a partir de 1944. É o momento em que o exército hitleriano começa a retirada dos territórios ocupados em consequência do novo peso da ofensiva dos Aliados, fruto da participação activa dos Estados Unidos na guerra. O Autor dá a entender existir uma zona fronteiriça entre a França e a Alemanha, secularmente reivindicada e disputada por ambas as nações, que acaba por ser tanto alemã como francesa. O que explica, em parte, o porquê de tantos Franceses encararem a ocupação alemã com relativa naturalidade.

No final da página 158 da presente edição, o autor faz referência aos víveres, vindos de Portugal, cortesia de Salazar, para serem distribuídos naquela região. O discurso de Céline não deixa de exibir, apesar da autenticidade dos factos que coincide com factos e testemunhos da época, uma faceta marcadamente anti-social que encontra, talvez, a sua máxima expressão na forma impávida como assiste a uma lobotomia, realizada a sangue frio nas salas cirúrgicas do III Reich, por médicos de credenciais duvidosas e pela maneira de se referir à imigração europeia, ao manifestar o receio de uma “invasão amarela”, dado o ritmo de crescimento demográfico no continente asiático. Apercebemo-nos, no entanto, já depois de entrar no “espírito do romance”, de um factor determinante e em grande parte responsável pelo estilo vulcânico de Céline: a malária. Grande parte do romance foi escrito durante intensos acessos de febre, de onde brota o estilo delirante que domina o discurso narrativo da obra.

Guerra, sobrevivência e relatividade de valores

O Autor observa, com invulgar perspicácia, a qual não está isenta de uma boa dose de cinismo, a forma como a anomia e a precariedade fomentam o crescimento dos fenómenos socialmente tidos como marginais e nos nossos dias, associados à exclusão social, como a prostituição, consequência de uma maior vulnerabilidade e falta de orientação dos jovens. É o caso de Hilde, a filha do capitão VonRaumnitz. O caso do comissário Papillon, enxovalhado e esbofeteado publicamente pelos nazis e humilhado pela turba enfurecida é também, disso exemplo, assim como a forma em este se transforma no alvo do desprezo ostensivo e violento da opinião pública que se estende, também, à jovem sua companheira. O Autor parece comover-se com a beleza e a fragilidade femininas, desde que não contaminadas por sangue judeu, negro ou asiático.
No entanto, o humor cínico é a nota dominante no romance, sobretudo na descrição da cena que envolve o bispo cátaro, o qual consegue passar à frente da extensa fila para a casa de banho pública, ao afirmar-se perseguido desde o século XIII.
A descrição do caso Nenneuil, o delator dos delatores, deixa entrever o desejo secreto do Autor de, também, saltitar de um lado para o outro, conforme as conveniências e as vantagens oferecidas. No entanto, a humilhação a que Neunneil é sujeito, cujo ponto culminante é o par de bofetadas desferido por um SS furibundo e cujos rumores se espalham pela povoação inteira, deleitando daqueles que se dedicam aos mexericos, faz com que tal ideia nem sequer chegue a vir a lume.
O deboche está presente nas hostes alemãs, o que desperta alguma reserva em Céline, o qual deseja proteger a jovem esposa do assédio sexual que sofre Lili a jovem esposa, por parte de ambos os sexos. No entanto, é a prestação de cuidados médicos de profissionalismo duvidoso, com particular incidência em intervenções cirúrgicas à próstata mal sucedidas, que causa horror entre as hostes das SS e o exército do Reich. Céline confessa, com displicência, ter-se servido de micro frascos de cianeto para obter favores, não só das SS mas também de políticos franceses, supostamente do lado dos Aliados, usados como salvo-conduto e factor de prestígio.

Em termos políticos, Céline equipara Nasser, Franco e Salazar, ao colocá-los no mesmo patamar enquanto estadistas, facto que é elucidativo para quem tiver dúvidas acerca do teor da política do Estado Novo.

Mas um dos principais factores que contribui para o declínio deste III Reich é a minimização das condições climáticas e geográficas por Hitler, também já tidas como pouco relevantes por Napoleão Bonaparte, na altura em que se preparava para invadir a Rússia: o frio das estepes, vindo dos Urais. Tal como o seu predecessor, Hitler decide ignorar ou simplesmente esquece-se da importância de equipar devidamente um exército contra o frio. Um facto que dá a Céline o pretexto para identificar, a partir daqui, as falhas estratégicas do Reich, motivadas por um pueril excesso de auto-confiança perdendo, desta forma, terreno face ao objectivo inicial: a submissão total da Europa.

O episódio que descreve as condições em que se processa a viagem de regresso de uma visita a um campo de concentração nazi, de volta a França, durante a qual o médico Céline tem de assistir a um parto de uma camponesa alemã, em condições impossíveis, fá-lo reforçar o sentimento de admiração pela capacidade de resistência daquelas etnia.

A personalidade escorregadia do Autor e a forma como entabula amizade quer com aliados quer com elementos das tropas do Eixo, a exactidão com que descreve o comportamento e atitudes colectivas dos franceses, durante a Ocupação, coincide de forma inquietante, se descontarmos os rancores e as frustrações pessoais, com a visão da escritora judia, morta em Auschwitz, Irène Némirovsky acerca do carácter do povo francês, naquela altura. Um comportamento pautado pela mesquinhez e pelo egoísmo, em parte fruto das circunstâncias e, em parte, por preconceitos culturais fortemente enraizados, assim como uma espécie de pusilanimidade que rouba toda e qualquer capacidade de enfrentamento de qualquer tipo de Besta.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, January 12, 2010

“Vinte e Zinco” de Mia Couto (Caminho)





Vinte e Zinco foi publicado pela primeira vez em Portugal, no ano de 1999, no âmbito das comemorações dos 25 anos do 25 de Abril, numa edição comemorativa levada a cabo pela Caminho.

Vinte e cinco é para vocês que vivem em bairros de cimento
para nós, negros pobres que vivemos
na madeira e zinco, o nosso dia
ainda está para vir
.

Jessumina, a adivinhadora

Assim inicia o romance, com a fala de Jessumina, cujo discurso assume a alinha orientadora do romance. O desenvolvimento da trama processa-se segundo a dicotomia que mostra duas formas de viver o 25 de Abril de 1974 e da forma como viveram as consequências daquele evento histórico. Os capítulos dividem-se por datas, pintam o quadro dos dias anteriores à Revolução e o rescaldo daqueles que se lhe seguiram. Para além de retratar o ambiente psicológico hipertenso de um período de fortes convulsões políticas, trata-se de um romance que aborda vários aspectos da condição feminina durante o Estado Novo, tanto entre as mulheres de origem portuguesa como africanas.

Para os “brancos” de Jessumina – os de África mas sobretudo os que habitam a metrópole – pode ter sido o início de uma nova etapa, sob a bússola de um ideal chamado liberdade. Mas as consequências da mesma revolução demoram muito mais tempo a fazer-se sentir no povo dos bairros de zinco das antigas colónias, que sofrerá um longo e moroso processo de implementação e consolidação.

O grande opositor a esta consolidação da liberdade é o status quo, representado pelo poder da polícia política -PIDE DGS – aqui representada por chefe da esquadra local, Lourenço de Castro.

A prepotência de Lourenço de Castro, chefe da Delegação da PIDE local, é fruto de uma educação ultra-conservadora, onde a sensibilidade é inibida, desde tenra idade, pelo autoritarismo e austeridade da figura paternal – representada por Joaquim de Castro.

Mia Couto pretende demonstrar, através de uma relação mãe-filho, onde os papéis, no que toca à autoridade se invertem, que o excesso de atenção parental de uma mãe que, por um lado, se escraviza servilmente para atender ao mínimo capricho de um filho prepotente mas que, ao mesmo tempo se anula ao assumir uma atitude passiva, submissa, abstendo-se de intervir activamente na educação do filho, a quel é assumida, na totalidade, pelo marido qu se empenha em deformar a personalidade da criança e transformá-la num potencial tirano, sobretudo na forma de (mal)tratar as mulheres. Lourenço, tal como a maior parte das crianças coloca-se ao lado do adulto que tem poder, adoptando aquele modelo de conduta.

Esta demissão da mãe, Dona Margarida, reflecte-se até mesmo no tom de voz, que aparece, logo na primeira página, e emergir da sombra, da penumbra do interior da casa, lamparinando no corredor, tremeluzindo. O neologismo introduzido por Mia, faz-nos perceber tratar-se de uma voz trémula, fraca. Mal o filho assoma à soleira da porta, Dona Margarida corre logo a agasalhá-lo, a buscar o pano para lhe colocar o pano debaixo do queixo para impedi-lo de se molhar, ao babar-se enquanto dorme.
Para o pai, Joaquim de Castro as mulheres não contam, isto é, estão longe de serem consideradas como seres susceptíveis de igualar os homens em termos de tomada de decisão ou iniciativa.

A chegada a casa dos Castro a casa é um ritual, onde a matriarca desempenha, diariamente, os mesmos gestos, exclusivamente dedicados aos homens da casa.

A crueldade masculina passa, nesta família, de geração em geração através de um curioso processo de modelagem da personalidade das crianças do sexo masculino. Joaquim Castro, pai de Lourenço, era um homem que torturava pessoalmente os presos políticos, que lhe vinham parar às mãos, por prazer. Lourenço ordena que o façam por ele. Salvo algumas excepções. Quando se trata, por exemplo, de executar uma vingança pessoal, em nada fica a dever ao pai no que toca a requintes de crueldade. Mas geralmente não gosta de manchar as mãos com o sangue dos outros. Trata-se, segundo o narrador, de um homem artimanhoso. Como quando decide castigar pessoalmente o namorado da tia. Em relação a esta, Lourenço exibe, também, um estranho sentimento de posse. A tia Irene é uma jovem viúva, rebelde e feminista, que envergonha a família ao adoptar comportamentos inspirados na figura de Simone Beauvoir, gerindo a vida e o próprio quotidiano segundo o princípio do prazer. Irene gosta de exprimir livremente os seus impulsos sexuais e sensuais através do exercício o direito de livre escolha dos seus amantes.

A principal afronta de Irene, no entender de Lourenço, consiste em usar o corpo como forma de manifestação contra a ordem estabelecida. A sua entrada em cena faz lembrar a figura de Carmen, na ópera homónima de Bizet, a transpirar sensualidade. Os seus ideais de coloração libertária e a frontalidade com que expressa as suas convicções de teor feminista fazem com que facilmente lhe seja atribuído o rótulo de “louca”.
Irene esbanja beleza, erotismo e expressividade no convívio com os habitantes nativos, ao comportar-se como uma simples turista e não como colonizadora, sendo a causa de grandes dores de cabeça a Lourenço.

Se misturava com os negros, dera licença a rumores e vergonhas. Procedimentos que despergaminhavam a honra familiar. Margarida, a irmã mais velha e mãe de Lourenço, invejava-a secretamente.

Irene enfrenta o sobrinho como um furacão: Pensas que tens o poder de matar? Pois esta gente, os pretos como lhes chamas, têm poderes que tu desconheces. Esses que mataste, estão ainda por aqui, deste lado da vida. Só matas os que eles deixam morrer.”

A morte como esquecimento



A morte, no sentido a que se refere Irene, é o esquecimento daqueles que não são amados: segundo a crença local, aqueles que se fazem amar não são esquecidos, logo não morrem. Um ponto de vista extraído da antropologia e da psicologia acerca do fenómeno da memória que encontra a sua raiz na necessidade sobrevivência que permite a aprendizagem com os erros e o conhecimento através da transmissão via oral de todo um legado cultural e afectivo.

É por esse motivo que julga acreditar que é a sombra desses mortos que assola o sono de Lourenço, e que se poderão reflectir num possível desejo de vingança dos vivos, impedindo-o de ter paz.

Os mortos surgem-lhe frequentemente, também, sob a forma de terrores imaginários e obsessões dementes. O Autor serve-se da citação de Malraux, retirada da obra Voodoo in Haiti de 1959, para ilustrar o estado de espírito de Lourenço quando fica a sós com os seus pensamentos à noite.

O Conflito

O motor de desenvolvimento da trama gira à volta do mistério da estranha cegueira de Andaré Tchuvisco, grande amigo de Irene e artista plástico, acerca da qual se fala cripticamente:

O cego não via para crer. Se os visuais enxergavam luzes, como não distinguiam penumbras que se sucedem? Cada ser tem duas margens, uma em cada lado do tempo.

O romance desenvolve-se através de um discurso fluido, quase musical, marcado por uma profusão de marcas da oralidade, típicas da região, enriquecida pelo sincretismo linguístico e cultural, que tornam a estória apetecível e envolvente, sobretudo se lida em voz alta.

O fio condutor desenrola-se através dos meandros de uma senda labiríntica, muitas vezes polvilhada de falsas pistas, que conduzem o leitor a um final surpreendente, através de um caminho de efabulações, distorções, frases sibilinas e enigmáticas, adágios, provérbios, oráculos e profecias.

Por outro lado, a evocação de obscuros episódios do passado possibilita a descoberta de que o pior castigo para um crime horrendo é a exposição, a submissão ao julgamento impiedoso da opinião pública do que se quer, a todo o custo, esconder. A vergonha e a humilhação, decorrem da exibição das fraquezas de quem se faz passar por um colosso, pressupõe a sua própria destruição. Logo, o passaporte para a libertação é a informação e o conhecimento daquilo que antes era secreto. O segredo será, portanto, o mais fiel aliado do crime e a omissão da informação, a mais eficaz forma de privação de liberdade. Por isso, a revelação, no sentido apocalíptico do termo, é a melhor forma de concretizar este “vinte e zinco” na aldeia de Pebane, o qual se concretiza algum tempo depois do vinte e cinco de Abril em Lisboa.

A Revolução tarda a chegar a Moçambique, mas chega. Como a maré e o vento. Principalmente quando soprado por pessoas como Irene e Jessumina. A mesma Revolução, nos bairros de zinco, começa por se manifestar com alterações subtis no quotidiano, na mudança nos procedimentos e na hierarquia, cuja consequência é a substituição das elites detentora de poder político.

A mudança começa a operar-se na aldeia de Pebane a partir do momento em que Dona Margarida sai de casa para visitar a adivinhadora Jessumina, em busca de ajuda. Começa, aqui, o processo de libertação da grande dama, num primeiro acto de autonomia que não lhe é ditado por nenhum homem da família.

Outro indicador é o desmantelamento da sede local da PIDE, com as suas alvas e imaculadas paredes, cuidadosamente branqueadas por Andaré Tchuvisco, de forma exibir uma imagem de limpeza em contraste com o chão vermelho, cuja tijoleira serve de camuflagem às manchas de sangue dos torturados.

Mesmo não vendo, ou vendo sombras O cego se permitia altivez que nenhum outro negro exibia. E os brancos aceitavam, enfraquecidos pela sua deficiência.





E a sua debilidade física tornava-se o seu escudo a resguardá-lo da crueldade humana e da falta de respeito dos seus algozes:



Ser cego era a minha arma. Ninguém está autorizado a chatear um cego.”





Com esta imagem o Autor pretende mostrar que a “cegueira”, em termos políticos, é uma excelente protecção em regimes totalitários.

Cegueira Suspeita

Apesar da cegueira, ainda que parcial, e ainda que só em termos físicos, de Andaré, este consegue caminhar com elegância. E dignidade. Além de continuar a desenhar figuras femininas, de belas formas arredondadas. Até porque, em relação àqueles que partem e deixam saudades, permanecem resistentemente entre os entes queridos, Andaré afirma que: A vida é infinita. Mas nada é tão enorme quanto a morte.

Relativamente a Irene, Andaré tem a perspicácia de constatar que Irene chegou a Pebane sem modos de ocupadora. Se comportava como era: estrangeira, vivendo em território colonial. O jovem artista plástico recorda-a ainda no tempo dos os amores com Marcelino, o belo mulato, mecânico de automóveis:

A portuguesa era açucarosa, capaz de arredondar micaia.

Marcelino em contrapartida, era um homem simples, pragmático: O mecânico era bom de afiar a existência. Sem paciência para mornices nem fios para meios panos. O universo para ele era simples: o bicho era hiena ou coelho (…), achava que o mundo tinha de ser cambalhotado.

O ímpeto revolucionário era-lhe no entanto, refreado por pessoas mais temerosas como o Tio Custódio, em cuja garagem vivia:

A política é desses incêndios que se acendem na casa do outro e quem arde é a nossa casa.



Para quem gosta de jogar pelo seguro, como o Tio Custódio, à sensação de incerteza está subjacente o medo da mudança, que entende não trazer melhorias concretas e se limita a beneficiar os interesses de um grupo que não abrange as populações dos bairros de zinco. Estas pessoas possuem a firme convicção de que os benefícios que são dados aos mais humildes, são-no sempre pela metade: A felicidade é um instante, um relâmpago fora da tempestade. Quem dá a chávena não dá a colher. E quando nos dão a luz, lá vem junto o túnel.



A experiência de uma vida dura e a constatação de um padrão na evolução do ciclo da vida na existência humana contribuem para o desenvolvimento de uma atitude céptica face a uma mudança radical, em termos políticos, que represente uma substancial melhoria na qualidade de vida dos cidadãos. Um intuição que lhe advém do conhecimento dos aspectos menos nobres da natureza humana.

Seu medo era esse: que esses que sonhavam ser brancos segurassem os destinos do país. Proclamavam mundos novos (…) mas nada mudaria senão a cor da pele dos poderosos. A panela da miséria continuaria no mesmo lume. Só a tampa mudaria.

O tio Custódio recusa a aculturação, a assimilação à cultura portuguesa. Isto é, a ser despojado da sua cultura e forma de viver ancestrais. A afirmação da própria identidade cultural é a via que escolhe para vincar a sua forma, muito própria, de afirmar a sua independência face a qualquer potencial colonizador. Uma forma pacífica, mas inequívoca de assumir o seu lado revolucionário.

Dona Graça, a mãe de Marcelino, representa as angústias da típica mãe africana, é a mulher que nunca chora, a não ser quando chove ,para deixar que as gotas de água se confundam com as lágrimas, escorrendo-lhe pelo rosto como contas de um rosário, lhe rosariando as faces.
O desaparecimento de Dona Graça, mãe de Marcelino, sem nunca ser encontrado o corpo é mais uma representação do imaginário presente na cultura africana acerca do que é a morte: desintegração ou transformação que aproxima à forma de encarar o sagrado do Hinduísmo/Budismo.

Em relação a Dona Margarida, a necessidade de autonomia começa a fazer-se sentir e a germinar em si como uma gravidez, desde a visita a Jessumina, operando-se nela uma revolução interior a a partir do momento em que sabe o filho despojado do seu poder formal.

A sedução da Terra Africana


O cheiro carnal da terra africana chega a perturba-a assim como os murmúrios do Índico (…O Índico marmurava (…) ou seja, murmurava e murava a povoação). A dona Margarida angustiavam-na, também, o receio da seca, uma espécie de incêndio que emergia da guerra: …a seca castigava a savana em volta e o verde todo se exilara (…). A poeira subia como labaredas do chão morto. Aqui residem a suas motivações que desencadeiam o impulso de partir. Trata-se de uma metáfora acerca dop medo de uma guerra civil que parece estar eminente, fruto de muitos ódios acumulados.

Por outro lado, a comida escasseia na localidade e os "morcegos" dedicam-se ao canibalismo. Da mesma forma, os antigos apoiantes do regime anterior denunciam-se um aos outros para serem indultados, na tentativa de esconder um passado sanguinário. Uma metáfora de que se serve o autor para caracterizar a venalidade das relações humanas em tempo de guerra ou de crise. Onde as vítimas se transformam em algozes. E algumas pombas em morcegos carnívoros.

Na véspera de 25 de Abril, no presente romance de Mia Couto, a personagem Andaré recusa-se a fechar os olhos, sem permitir que lhe toquem na vista. O Autor recorre mais, uma vez a uma refinada metáfora de conotações políticas, referindo-se, desta vez, à distorção das percepções operada pelas classes detentoras do Poder. Andaré não permitirá que lhe toldem a “vista”, nem para o bem nem para o mal, persistindo na sua forma pessoal de ver as coisas. E de interpretá-las.

Os brancos falam na ideia como uma coisa solar, que ilumina a mente. Mas a ideia, todos sabemos, pertence ao mundo do escuro, dessas profundezas de onde as vísceras nos conduzem…. A cultura africana privilegia o mundo inconsciente dos impulsos, das emoções, um mundo lunar, que vem um pouco ao encontro da ideia explicativa do comportamento de Freud.

No colo de Jessumina – que faz com frequência as vezes de um divã de psicanalista –, Andaré é submetido a uma espécie de terapia de psicanálise, ao contar-lhe sonhos, visões, submetido como que a um transe hipnótico. Nestas “sessões”, o artista plástico visiona cataclismos, maremotos, cheias descomunais e uma alusão assustadora face à possibilidade de uma guerra civil eminente. Andaré sonha, no colo de Jessumina, com uma ave branca e vermelha, ameaçadora, como o mais terrível dos presságios de morte e guerra.



Na realidade, trata-se de uma figura mítica, Napolo, o monstro a cobra voadora, trazedora de tempestades e relâmpagos.



Para o capítulo que inicia com a data de 25 de Abril, o Autor escolhe a epígrafe contendo a previsão Shaka Zulu, o líder Zulu, sul-africano, popularizado na Guerra com os Boers e elemento fundamental na união tribal, para o fim do seu assassino:



Toda a terra ficará branca com a luz das estrelas e o céu será escondido pelas andorinhas.





É o presságio de guerras futuras, do fogo das bombas a iluminar a terra com luz branca das estrelas e os clarões dos obuses em contraste com um céu obscurecido pelo fumo negro que percorrer todo o céu como "andorinhas migradoras". Mas para Jessumina, Andaré terá de esperar por outro vinte e cinco para voltar a ver.


Os dias restantes

No dia 26 de Abril, o dia imediato após a revolução, constata-se que, para haver evolução e mudança efectiva, o povo precisa de se instruir e figurar na história com a sua versão a ter o mesmo peso que a dos seus adversários.



Até que o leão aprenda a escrever, o caçador será sempre o único herói.



No capítulo que inicia com a data de 28 de Abril, o Autor destaca a caracterização das atitudes e personalidade colectiva dos portugueses colonizadores através do olhar de Jessumina:

Os portugueses são pássaros de asas vigiadoras, mas que chocam contra luzes que eles mesmos inventam.

Em 29 de Abril, através de um fragmento das memórias do Tio Custódio, fala-se da possibilidade de se morrer sem se esperar a visita da morte. Da morte que não era para ser ou que poderia ter sido evitada e só acontece quando se está no lugar errado à hora errada, fruto de uma descomunal arrogância e falta de visão.



o que é triste é morrermos da morte de um outro (…) às vezes, uma outra morte por engano, cruza connosco. Assim é que é triste morrer (memórias do Tio Custódio).

E de um total desprezo pela forma africana de ver as coisas: A Lourenço irritava esse sim e não de África, esse poder ser e não ser, essa líquida fronteira que separa o possível do impossível; como se a verdade nos trópicos se tornasse uma coisa fluida, escorregadia. O que agastava o português era o ser enganado sem nunca lhe chegarem a mentir.

30 de Abril, é dia da libertação dos prisioneiros políticos data em que se constata um acinzentado e algo amargo sabor a vitória: Nossa tristeza é a seguinte: ganhamos sem chegarmos a ser vencedores.




A cena final mostra uma Irene a lembrar um pouco Virgínia Woolf ou uma Iemanjá a desaparecer nas águas.


E, no epílogo, Andaré assume o papel de guardião do Tempo, o escultor/pintor de memórias e cujo cinzel/pincel, o Vento, se encarrega de apagar as manchas de sangue nas paredes e cobrir com areia a lembrança dolorosa da guerra.


Cláudia de Sousa Dias

Saturday, January 02, 2010

“Deus nasceu no Exílio” de Vintila Horia (Âmbar)




Vintila Horia nasceu na Roménia. Filho de um engenheiro agrónomo esteve, desde tenra idade, sob os cuidados de uma preceptora de origem francesa que o levou a gostar da poesia de Baudelaire e Rimbaud ou a apreciar escritores como Anatole France e Gourmond, ao ensiná-lo a exprimir-se num francês de estilo literário.


Foi nomeado adido de imprensa em Roma (1940) e, posteriormente, colocado em Viena. Em 1942, foi preso pelos alemães e condenado ao exílio. Viveu-o, durante muitos anos, em Buenos Aires, onde ganhava a vida como escriturário, num banco. Mais tarde e ainda durante o exílio, mas já em Espanha, trabalhou duramente e durante largos anos, como empregado de hotel, repórter e correspondente literário. Em 1958, no âmbito das comemorações do segundo milénio de Ovidio, também ele exilado – e que acaba por falecer na antiga Dácia, território pertencente à actual Roménia, pátria do Autor – Vintila Horia reconhece-se nos “Tristia” do poeta que se tornou a persona non grata do Imperador Augusto e que, isolado na longínqua Dácia, se deixava dominar – e definhar – por pensamentos sombrios. Decidiu, então, escrever um romance que seria o diário do expatriado Ovidio em Tomos, cidade que, segundo a lenda, teria sido fundada pela figura sinistra da terrível princesa feiticeira, Medeia.


Alguns dos acontecimentos históricos que marcaram aquele período do início do milénio I D.C., são projectados no quotidiano das personagens, à semelhança do que faz Pasternak, Tolstoi ou Irène Némirovsky. Mas no caso de “Deus nasceu no exílio” o enquadramento histórico dá-se nos últimos anos do governo do Imperador Augusto e com a presença do exército romano na Dácia, a colidir com as invasões de outros povos, vindos do Norte e do Leste, pressionados pela fome, com a tomada da cidade de Tomos pelos Dácios e o assédio de Getas e Sármatas.


Um dos aspectos mais fascinantes desta narrativa é, no entanto, a evolução do narrador, a pintar o quadro do devir emocional de um escritor no exílio a acompanhar a transformação do rio de emoções como um processo que se desenvolve lenta e gradualmente e se traduz na alteração, de forma quase imperceptível, da forma de olhar as gentes, a paisagem a cultura, os objectos e a própria cidade. Os laços afectivos vão sendo consolidados através do convívio assíduo no quotidiano. O factor tempo, aqui, adquire um papel decisivo.


Em Roma, o Poeta havia levado uma vida superficial, rodeada de luxo e amigos, atraídos pela fama e riqueza de que usufruía. O exílio trouxe-lhe a percepção de que “podemos morrer sem estar mortos”. Ou seja, quando se é privado da expressão, sob a ameaça de expropriação de tudo aquilo que liga alguém à sociedade – casa, trabalho, amigos, família. Para o Ovidio de Vintila, a ideia de morte solitária e fora de Roma afigura-se-lhe, inicialmente, insuportável. Depois, apercebe-se que em Roma esteve sempre muito mais solitário do que no exílio.


Chega então à conclusão de que “O Tempo da loucura e da esperança é o tempo da espera de Deus”. Que pode nunca chegar. Ou chegar apenas no momento derradeiro. Assim “Deus” nasce no exílio. Ou melhor, do exílio. Este deus será Zalmoxis para os Getas, o Messias para os judeo-cristãos, para Ovidio não se chega a saber se realmente se converte ou se encontra um Deus renovador da esperança. Na realidade, o Ovidio deste romance não chega propriamente a converter-se, apesar de admirar a crença no deus Único partilhada pelos Getas, Cristãos e Judeu. Percebe sim, a necessidade urgente do estabelecimento de uma nova ordem, fundamentada por uma ética humanista a ser implantada no território do império, a substituir a máquina de morte estado Romano. Uma nova ordem, assente no diálogo entre as várias etnias que se cruzam no império de forma e desfazer medos irracionais, uma vez que o terror xenófobo está na ordem do dia e é o catalisador de violentos massacres. O que implica uma redefinição de valores onde o primado seja o respeito pelo Outro. O protagonista e narrador está convencido de que o apelo pela dignidade humana se perdeu com a morte da República, com Júlio César, isto é, no momento em que os homens deixaram de poder criticar um chefe de estado que se assume como um deus omnipotente, esquecido da sua condição humana.


As primeiras frases de Vintila que empresta a voz ao amargurado Poeta romano exercem no leitor uma espécie de sortilégio, prendendo-o a um poderoso vórtice emocional, como as garras de uma harpia. As páginas viram-se as palavras sugam o leitor hipnotizando-o como o olhar de uma serpente. Ou da Medusa.


“Fecho os olhos para viver. Para matar, também. E nisso sou o mais forte, pois ele só os fecha para dormir e o próprio sono não lhe traz nenhum alívio. As suas trevas são habitadas por mortes, assombradas por crueldades. Eu sei que ele não gosta do repouso, tal como todos os grandes da terra. O repouso deixa-os a sós com a consciência e os remorsos, com o arrependimento de ter agido sempre como um poderoso, ou seja, como um homem aterrorizado pelo seu poder.”


A prosa de Horia pulula de sentimentos dolorosos, violentos. Um caldeirão onde se cozinham, em fogo lento, o ódio, a amargura, a desolação e o desespero a espelhar a paisagem física de uma cidade à beira-mar, no pico do Inverno, num dos lugares mais inóspitos da Europa: a foz do Danúbio, junto ao Mar Negro.


As descrições de Vintila Horia em Deus nasceu no exílio abundam em elementos sensoriais, com predomínio de elementos visuais e auditivos. A junção do bramido do mar com os gritos lancinantes das gaivotas e o uivo dos lobos, ajudam a pintar um quadro sinistro quase fantasmagórico, a servir de cenário ao crepitar do fogo negro do ódio do Poeta, fazem o narrador aproximar-se muito do tom das Irmãs Brontë, sobretudo de Emily, autora de O Monte dos Vendavais:


Adoram-no como a um deus, mas ninguém o ama. Porque ele é o autor da Paz (…) e criou o maior império de todos os tempos, mas é também o Autor do Medo, em particular o medo dos outros e o seu próprio medo.
A tempestade de neve faz vibrar o tecto. O mar geme ao longe, as vagas na noite transformam-se em longos fantasmas de gelo (…). Nunca tinha ouvido um bramido semelhante, acompanhado pelo crepitar da neve gelada, nas paredes exteriores.
E, Além deste grito agudo que se abate sobre mim como uma onda, o gemido do mar soa como a própria voz da noite, como se o Tempo tivesse uma voz e ela se fizesse ouvir num único ponto da terra: aqui.
A minha casa fica quase encostada às muralhas da cidade (…) precipitando-se sobre o primeiro ser vivo que encontrara, uma velhota que regressava do mercado, esfacelando-a num abrir e fechar de olhos. Acorri aos gritos das pessoas e tive tempo de ver o lobo, trespassado por uma lança, jazendo sobre a própria vítima, no meio da neve ensanguentada. Pensei nela nesse mesmo instante. Não consegui impedir-me de lhe desejar uma sorte semelhante, o que infelizmente é impossível, uma vez que os lobos nunca entram em Roma. Mas um leão ode escapar-se dos bestiários, de noite, penetrar nos jardins do Palácio Imperial e fazer o que nenhum homem teve, até agora, coragem de fazer…
Fecho os olhos e mato (…). Fecho os olhos e vejo. Eu sou o Poeta, ele não é senão o Imperador.”


A justificação de Augusto para decretar o exílio de Ovidio prendeu-se, oficialmente, com razões de ordem moral. Augusto quer mostrar-se empenhado em zelar pela moral dos cidadãos Romanos e o acto dissidente do autor de A Arte de Amar, a colectânea de versos eróticos que adquiriam a forma de um manual de instrução para amantes inexperientes ou pouco refinados na “arte", constituía uma provocação deliberada ao líder do Império. Preocupação que espicaça a revolte do protagonista sobretudo depois de o Imperador ter obrigado Lívia, com quem veio a casar, a divorciar-se do anterior marido, estando esta ainda grávida. O poeta abomina um homem que, para esquecer o próprio passado, tem de afastar aqueles que, a todo o instante, lho recordam.


Ovidio acaba, ainda, por ser o bode expiatório do comportamento dissoluto da filha Júlia, viúva do General Marco Agripa. Após enviuvar a jovem coleccionava amantes causando escândalos com o objectivo de desafiar a autoridade do pater-familias. A impudicícia de Júlia é, assim, imputada a Ovidio cujos versos são acusados de corromperem a filha do imperador.


O início do exílio desta personagem é marcado pelo desespero e pela desolação, fruto do isolamento a que se vê forçado mediante a expulsão da cidade que ama, dos amigos, da família ou, simplesmente dos conhecidos que o admiram, para habitar uma cidade estranha e ouvir, diariamente, uma língua que se revela impenetrável aos ouvidos romanos se mistura, por vezes, com o grego dos comerciantes de onde resulta um dialecto híbrido.


A cidade de Tomos apresenta-se-lhe tenebrosa. O clima rigoroso, gélido no Inverno, os ventos uivantes da costa, a paisagem sombria fazem-no pensar em Medeia e inspiram-no a escrever uma peça de teatro. Tomos é a cidade onde se auto-exila esta lendária e terrível mulher para expiar os crimes cometidos. O nome da cidade significa “corte” ou “amputação” em grego. Por isso, será para o poeta a cidade da ruptura onde o desespero dos condenados encontra eco nos gritos lancinantes das gaivotas. O narrador vomita literalmente uma tempestade de ódios acumulados, a qual rebenta periodicamente, roubando toda e qualquer esperança de felicidade.


Mas na obra de Vintila, a mesma cidade adquire também um significado literário impregnado de fatalismo.


Há, na vida do poeta, a partir do momento em que vem viver para aquela região do Império, um corte em relação a um passado, marcado por um estilo de vida mundano, para passar a adoptar uma forma de vida mais discreta, voltada para a introspecção e para o aprofundamento da temática e da forma da própria escrita, precisamente na cidade que Medeia escolheu para se refugiar dos seus crimes, após ter assassinado os filhos e o irmão, desmembrando-o e espalhando as partes do corpo deste último pela costa mediterrânica, com o objectivo de atrasar a perseguição do pai, em busca de vingança. Mais uma demonstração do quanto Augusto consegue ser requintado na forma de se vingar.


O poeta receia, no entanto, a todo o momento uma carta a ordenar a sua execução. Sente-se como um condenado, na arena, a defrontar um grupo de felinos de grande porte, onde a esperança absurda de escapar à morte é o acto de atirar areia para os olhos do destino, metamorfoseado numa pantera ou de um leopardo.


Um exilado por motivos políticos nunca se sente em segurança”. Apercebe-se, então, de que “os casos de deserção são cada vez mais frequentes, os homens estão cansados de matar, querem viver em paz, constituir uma família e cuidar de um lar ao invés de sobreviver indefinidamente de saques e pilhagens”.


O Tempo e a Narrativa


Pode-se identificar, uma analogia que se traduz na aproximação de duas épocas históricas: aquela de que trata o romance e o período em que Horia escreveu a obra, no pós guerra de 1945. A acção, apesar de se desenrolar no século I DC, alude frequentemente ao tempo presente, no auge da Guerra Fria, sobretudo quando o velho Drizzace assume por um breve período o comando da narrativa, um narrador secundário que o narrador principal, Ovidio, decide incluir nas suas memórias:


Podíamos viver em paz, se não tivéssemos medo uns dos outros. O medo faz-nos falar linguagens diferentes. E a vida torna-se numa guerra sem fim, a vida é a guerra, cada vez mais, a cada dia que passa. E fabricam-se armas em vez de se inventarem palavras de paz.”


A Acção do Tempo e a adaptação à nova realidade


Nos primeiros capítulos, a solidão do protagonista prende-se com o facto de lhe ser impossível partilhar as coisas de que mais gosta: os pequenos prazeres da vida, como os livros, a leitura o acto de declamar para os outros, o teatro, os banquetes. Ou, simplesmente, os detalhes do quotidiano doméstico, relacionados com o conforto da própria casa.

Mas à medida que o tempo passa, esbatem-se os contornos das paisagens e cenas do passado e é em Tomos e nas cidades circunvizinhas que o Poeta começa a construir uma nova teia de afectos, que o acompanha até ao fim da vida. Afeiçoa-se a Dokia, a governanta de origem Geta, a qual contrata para o serviço doméstico. A jovem é o oposto da racional Fábia, a esposa romana. Também não se parece nada com a voluptuosa Corina, a amante, que deixou na cidade de Rómulo e Remo. Dokia é antes uma guardiã do lar, a incarnação de Vesta. O poeta solitário sente-se mimado, apesar da reserva da jovem, envolta numa aura de mistério, que não fala da vida privada. A dignidade com que atravessa o dia-a-dia e o brio demonstrado na execução dos seus afazeres, fazem o velho patrício romano sentir uma crescente admiração por uma criatura vinda de uma tribo considerada bárbara.


Como não apreciar este mutismo amuado? Como não gostar dela? Mas os ensinamentos d’ A Arte de Amar’ são inúteis, perante este pedaço de mármore que nunca foi polido por uma carícia”.


Se não fosse Dokia, gritaria de raiva e de tédio. Nos dias de neve, de tempestades de gelo, fica junto de mim, ao canto do lume e conto-lhe a minha vida. Amamo-nos sem nunca nos tomarmos, sem nunca o dizermos. Sinto que a minha presença lhe é indispensável (…) . Amamo-nos de uma forma que faz pensar em duas flores crescendo em árvores diferentes (…) mas só se podem tocar através da mudez distante das suas cores e dos seus perfumes, no meio da estupidez e da indiferença das coisas.”


Ao compará-la com Corina, o amor da juventude, recorda:


Só a amava a ela e nunca amei ninguém senão a ela. Corina foi a praeceptorix do praeceptor amoris. Éramos da mesma idade e entendíamo-nos desde o primeiro instante. Júlia não é mais casta do que Artémis (a cortesã que conheceu em Tomos) e sem dúvida é-o menos do que Corina”.


“…procurava por toda a parte uma imagem em Roma e da minha vida passada; encontrei duas: o focale de Corina e o ódio por Augusto”.


O desvanecer da paixão por Corina, ao longo das décadas, deixou espaço a um vazio emocional, dando à alma uma solidão quase tão pungente quanto o exílio decretado pelo imperador.


E quem amei desde então? O amor não era senão uma palavra vazia de todo o sentido. Ninguém amava ninguém nesta cidade imensa, prestes a iluminar-se com os fogos da morte e do prazer”.


O exílio põe fim a um ciclo de vida marcado por uma existência dedicada quase exclusivamente ao hedonismo e marca o início de uma época a partir do qual é compelido a olhar o mundo com outros olhos:


E foi nas margens do Ponto Euxino, junto a essas águas que parecem negras como se fossem o berço da noite, que aconteceu começar a ser um homem.”


Tomos era para mim o nome da morte. E agora penso com prazer na minha cidade , na minha casa nos meus amigos, nos que deixei em Ístria (parte inferior do Danúbio, próximo da foz), Amigos, mulheres que amo ou julgo amar, esperam-me nesta margem que deixei de considerar hostil. O que é a vida senão a amizade, o amor?”.


Entretanto, recebe notícias de Roma, família, amigos e conhecidos enviam-lhe presentes, mas receiam comprometer-se diante do todo-poderoso imperador, ao interceder por ele.


Quem recebe uma carta minha tem o cuidado de não a ler em público!”.


Manifesto Contra a submissão aos tiranos


A presente obra constitui um autêntico libelo face a governos totalitários, pela veemência com que invectiva a prepotência da intervenção do Estado, representado pela vontade de um único homem, na vida particular dos cidadãos e na liberdade de expressão. Não só quando se trata da publicação de uma obra literária, este tipo de arbitrariedade torna-se igualmente castrador quando se manifesta no simples acto de amordaçar do cidadão comum impedindo-o de dizer mal de quem governa. Nesta categoria, podem enquadrar-se tanto Augusto como Hitler ou Ceaucescu.
Ovidio critica, amarga e tristemente, a crescente pobreza de espírito de um povo referindo-se sobretudo aos Gregos mas também aos Romanos:


Como os Gregos ficam insignificantes quando louvam um chefe político. Perderam tudo: a liberdade, a riqueza e, tal como eu, até o direito de maldizer. De todos os dons passados, conservaram o do comércio, mas isso não chega para manter um povo na primeira linha em relação aos outros. Têm, ainda, filósofos e poetas, mas a sombra obscureceu as suas obras e irá fazer-lhes secar, pouco a pouco, a fonte do génio.”


Ovidio faz amigos, embora com algum receio: o soldado Honório, o taberneiro Hérimon, Flávio, o capitão desertor e pacifista, Teodoro o médico grego, que percorreu o Oriente Próximo e trouxe novidades acerca de um novo profeta na Palestina e fundador de um culto revolucionário.


A distinção do Poeta compensa a falta de juventude, num homem que já ultrapassou os cinquenta anos, e dá-lhe a possibilidade de acrescentar mais algumas conquistas femininas ao já vasto curriculum. O Autor de “A Arte de amar” já não tem, no entanto, paciência para artifícios nesse domínio. A ligação com a cortesã Artémis, a quem aprecia mas cujas máscaras e fantasias sexuais e representações de figuras mitológicas durante o acto sexual o entediam de morte e fazem a relação entrar em entropia. Nem Artémis, Ovidio vê apenas, “um fragmento da impureza do Olimpo”. Também o interesse de Lídia, a taberneira de Hérimon, cuja paixão ou admiração que nutre pelo poeta, visa em grande parte unir o útil ao agradável, ao tentar encontrar no amor a porta para a sobrevivência, deixa de ter valor para um homem cada vez mais exigente com os afectos, cuidadosamente filtrados.


Sem se aperceber, o discurso amargo e inconformista dos primeiros anos de exílio vai cedendo lugar a uma voz mais resignada adoptando, simultaneamente, um tom mais doce: a ligação ao local, aos seus habitantes, à cultura a aquisição gradual dos elementos básicos da língua nativa, ajudam a solidificar novos afectos e a vencer o sentimento de urgência em voltar. Por outro lado, um regresso implicaria novo desenraizamento, uma vez que as pessoas que agora habitam Roma já não são as mesmas. Os hábitos mudam e as cidades alteram, ainda que subtilmente, a própria configuração: os edifícios são demolidos e outros construídos no seu lugar e o exilado deixou, entretanto, de crescer, juntamente com a terra que o condenou ao exílio.


Roma está como o passado, perdida para sempre, já vivida, ou seja, afastada de mim, como um objecto estranho, que pode ser reconstituído com o pensamento e a imaginação, mas que não está ao alcance da mão”.


Exílio, depressão e necessidade de conforto espiritual


A diminuição da vontade de regressar é, no entanto, directamente proporcional à perda da fé:


Choro. Tenho medo, tenho frio e os deuses já não existem. A crueldade deles é a marca da sua inexistência não é mais do que o reflexo dos novos medos e de tudo o que não ousamos fazer sem remorsos”.


Na cultura romana, e na religiosidade que lhe está associada, há toda uma ética que transcende a moral, na qual os deuses são, muitas vezes, levados a expiar as próprias faltas. Esta ética perde um pouco da sua eficácia e validade com o esplendor e autoridade de um imperador como Augusto, o qual tratou, ele próprio, de se consagrar como um deus ao tornar-se num intocável.

A partir daqui, estão criadas as condições psicológicas e sociais para a invasão de um novo credo que expulse a adoração de um tirano.

Apesar de a crueldade estar também inerente ao deus dos judeus, esta é suavizada no pela dissidência do fundador do Cristianismo. Porque o medo sempre condicionou as atitudes dos cidadãos e o Homem “continuará a mentir para obter o perdão” (pág 17).


Ovidio não deixa de notar o facto de, por exemplo, o deus dos Getas, Zalmoxis, ser fruto de uma escolha e não uma imposição de um chefe de estado.


No tempo em que Horia escreve o romance existe, já, a convicção de que é a sociedade quem detém este papel e não os deuses. No tempo de Augusto, havia o hábito de transformar um acto de justiça ou a aplicação da lei num caso do direito penal, em espectáculo de multidões de forma a assegurar a submissão pelo medo, uma vez que, para este Ovídio Horiano,“os deuses foram substituídos por um homem e o Império tornou-se a imagem desta terrível metamorfose. A lei é-nos imposta por um homem e os deuses estão mortos.”


É daqui que nasce a necessidade da procura de uma outra verdade: um deus a quem se possa admirar.


Entretanto, à mente chega-lhe sempre a imagem recorrente de Medeia como uma maldição. Ela é a figura que incarna o “símbolo dos meus primeiros sucessos em Roma e fundadora de Tomos”. Logo, a imagem de marca para cidade no imaginário trágico do Poeta, para quem a literatura é a projecção da vida e das emoções humanas.
A análise dos clássicos por este Ovidio de Horia revela, quer por parte do autor quer da personagem um conhecimento, erudição e sensibilidade estética de profundidade notável:


“O que fazem as obras-primas do passado senão cantar estes amores proibidos que enchem as leis de Augusto de parágrafos, impondo penas e prisões?” e conclui: “Não será ele, de facto, o herói de um adultério e toda a sua vida sentimental não será um longo cortejo de farsas e crimes punidos pela Lex Júlia de adulteriis et pudititia”? E aponta do dedo acusador: “Fez leis para punir os outros, porque se considera acima de todas as leis. O que o contraria e lhe recorda aquilo que na realidade é,são os meus versos”.

Medeia é a personagem que fascina o narrador em proporção directa ao horror que lhe inspira: durante o sono, Ovidio é atormentado por pesadelos que envolvem feitiços, lendas e superstições inspirados sobretudo, por cenas da “Odisseia”. Acorda com o canto do cuco que o obriga a regressar à realidade e o arranca de uma espécie de transe hipnótico. Trata-se de mais um recurso de estilo do Autor, que recorre à metáfora da ave que é, desde o nascimento, exilada em ninho alheio.


Medeia chega-lhe sempre à mente como uma maldição, cuja voz se projecta nos gritos das gaivotas:


“…um piar que me dilacera a alma, como se fosse o prenúncio de uma desgraça, como se tentasse ressuscitar a memória de uma outra vida consagrada aos mais terríveis crimes? Pairam sobre as águas e lançam o seu grito agudo no meio da tempestade, como se quisessem lembrar-se do peso do passado (…) o mundo está cheio de dor e a vida passa através dos homens como este vento, fazendo tremer o corpo e a alma: o Inverno aproxima-se e o Verão foi só esse curto espaço de deslumbramento em que a morte se torna possível (…). Esta mulher causa-me horror e, ao mesmo tempo, inspira-me piedade. Foi joguete dos deuses que impelem os homens para a prática de coisas odiosas, para melhor os punir de seguida.”


O Inverno continua, a ser o seu principal inimigo, dos ossos e da mente, a estimular o desenvolvimento do reumático e do pensamento depressivo. Aprende, no entanto, a encará-lo como pausa e reflexão. Tempo de escrever.


Imperialismo, Paternalismo e Romanização


O paternalismo Romano nos territórios conquistados preocupa cada vez mais o Poeta: “Um dia, Augusto deverá submeter à lei de Roma esta terra, até para lá do Danúbio, para lhe dar a paz e a prosperidade”- frase recheada de ironia e cepticismo.


A Tomos chegam, a dada altura, os invasores bárbaros, pressionados pela fome. Ao observar o contacto dos comerciantes gregos com a população local, Ovidio verifica que “os gregos já não são os guerreiros de outrora” . Estão “embrutecidos pela falta de inteligência e pelo comércio” enquanto que os Getas estão, por sua vez, “embrutecidos pela miséria e pela ignorância”.


Para o narrador, os Gregos, por mais defeitos que tenham, nunca caíram tão baixo como os romanos, por nunca terem adoptado a crueldade, mostrada sobretudo nos jogos de circo. Estes jamais foram populares na Grécia: “Os Gregos nunca fizeram do sangue e da morte um espectáculo de multidões”.


Há na obra uma interessante dicotomia que envolve a oposição de duas formas de vida tão díspares que implicam dois sistemas de valores que não poderão deixar de entrar em conflito: uma economia de guerra, que sobrevive da conquista de territórios e a vida tranquila do dia a dia subordinada à divisão do trabalho, à produção e à partilha.


Este conflito ideológico dá-se entre o centurião Valério, que representa a força bruta e o primado da prepotência e da ignorância – o chamado “homem-máquina”. Neste caso, uma máquina de morte (pág 241), movida pela ambição e revestindo-se de uma total a ausência de compaixão manifesta na frieza implacável com que tente extrair informações a Ovidio acerca do desertor Honório, pressionando o poeta, o qual se encontra em franca desvantagem, caído em desgraça perante a família imperial: “O império precisa de soldados, não de poetas”. A sós Ovidio desabafa: “Uma denúncia é suficiente para te atirar para a prisão ou para o exílio. A amizade e o amor morreram”.

Como contraponto, temos a figura de Flávio capitão, o soldado que deseja a vida e não a morte como companheira:


Nunca soube o que era o amor. Só o imaginei através dos livros. (…) Em Itália, via a Natureza através de Virgílio e de Horácio e o amor através da tua “Arte de Amar”.


As sementes deixadas pela literatura no quotidiano dos homens são, para o poeta, a esperança que poderá desencadear, a longo prazo, a mudança, devido à marcas impressas na vida dos cidadãos, através da canalização de emoções transmitidas e da forma como se estabelecem as relações entre os homens, fazendo a esperança sobreviver,nem que seja por um curtíssimo espaço de tempo, tal como a areia atirada para os olhos da pantera, na arena de Augusto...até que a humanidade seja surpreendida pelo salto final do leopardo, num cataclismo final.


Entretanto o tempo em que vive parece ser a era onde dominam as trevas: “O amor, neste momento da nossa história, está proibido aos Romanos. Só é possível numa sociedade protegida da mentira, do medo e do conformismo”.


Já o soldado Mucaporus que explica a sua deserção em nome de um ideal mais elevado como a paz e uma melhor qualidade de vida e pela saturação do modo de viver preconizado pelos Romanos:


Porque sou dono dos meus dias e das minhas noites. E porque ninguém me obriga a matar. Sou livre".
Apesar de se sentir fascinado pela narrativa de Teodoro acerca dos acontecimentos da Palestina que envolvem o nascimento de um Homem que dizem ser filho de deus, Ovidio mostra-se algo céptico:


Não ter de matar, ser livre, ter a certeza da vida eterna, não acredito que religião alguma, nem mesmo a de Zalmoxis, assegure aos seus crentes tais direitos, que nenhuma lei, nenhum culto consegue definir com precisão”.


O contacto com os Getas da montanha com o culto e os rituais de adoração a Zalmoxis e os diálogos com o sumo sacerdote dá-lhe uma explicação possível para a situação e para a ausência da ajuda, esperada durante longos anos por parte dos amigos e que lhe dá algum conforto espiritual. Vintila Horia cria, aqui, uma intertextualidade com o génesis e a parábola da expulsão do Paraíso:


Amaste muito e os amores foram a causa dos teus sofrimentos de agora. Não penses nunca que a tua poesia te traiu; nem que é o amor que expias em Tomos. O julgamento de Augusto não tem valor no que respeita à alma. Augusto, também ele, agiu sob a pressão do Deus que te trouxe até aqui. Pecaste por amor. O amor é conhecimento. O verdadeiro pecado é aquele que não podemos ou não ousamos exprimir”.


A ideia, vinda do cristianismo, de que o mal está no âmago da natureza humana, que o ser humano é impotente face ao despotismo do destino, do azar e da fortuna, implica que o homem seja desresponsabilizado pelos seus actos (vide pág, 229). Trata-se de uma fé, a que culpa o Destino ou as Parcas, muito mais cómoda do que aquela que vem do Oriente, com raízes judaicas a implicar uma punição para os actos dolosos, temida tanto por Augusto quanto por Hitler.


Recursos de estilo


O ritmo da acção acelera com a morte do Imperador e a sucessão de Tibério que, inicialmente, governa sob o concelho da Imperatriz-Mãe: Lívia.


O Autor sinaliza esta morte fazendo a personagem narrador notar uma série de indícios que se manifestam sobre a forma de presságios, tendo como base o complexo sistema de crenças e superstições romano.


Assim se explica a presença do pio da coruja, na pág 153, a anunciar o nascimento da lua cuja luz, “é prateada como as flechas”. Também a referência a “uma água ardente e negra que corre para o mar” , mostra a ligação com a morte, pois o mar é o lugar onde morrem todos os rios. Da mesma forma, o vislumbrar de um corvo que sobrevoa a região, voando baixo e a gritar de surpresa e terror. Para Ovidio, “As águas do rio, tinham a cor deste grito”.


O pessimismo recusa-se a abandoná-lo:


Tenho alguns anos de vida pela frente e duvido que o tempo em que viva seja um tempo privilegiado”.


Estas palavras criam, mais uma vez, uma aproximação entre o tempo histórico da narrativa e o tempo presente, vivido pelo autor durante a escrita do romance. O cepticismo no caso do Autor, é dirigido à onda de euforia e desenvolvimento económico do pós segunda guerra mundial, ao dirigir um olhar especialmente preocupado à corrida ao armamento nuclear e à crescente tensão entre as duas maiores superpotências do globo.


Deus nasceu no exílio é, para além de uma bela monografia da vida de um exilado político, um verdadeiro tratado de sociologia no que toca às mudanças sofridas por uma Europa em transformação, em duas épocas tão distantes no tempo como o século I na nossa era e o século XX.


O final do romance é marcado por uma aparente resignação face ao fim que se aproxima.


Ovidio acabará por falecer no meio da solidão, apesar dos muitos que o amam. É um novo exílio que começa, numa metáfora inspirada na Fénix, a ave que nunca morre, apenas se transforma numa coisa diferente, depois de destruída pelo fogo. Da mesma forma, um homem novo se prepara para renascer da cinzas, num mundo em guerra. Sob a égide de uma nova ética. Em todas as épocas histórias, em infinito devir.


Cláudia de Sousa Dias