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Wednesday, October 17, 2012

“Silêncio Inquieto” de Manuela Monteiro (Ausência)






Manuela Monteiro é natural da Beira, Penedono mais precisamente, embora tenha crescido no Porto. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. A maior parte das suas publicações literárias destinam-se ao público infanto-juvenil, tais como a colectânea de contos Histórias da Avó Manela”- uma edição da responsabilidade da Câmara Municipal de Famalicão com ilustrações de Manuela Bacelar -, A Montanha da Lua ou A Casa da Romãzeira.



“Nasci no Porto, mas a minha primeira infância foi passada numa pequena aldeia da Beira Alta – terra de pais e avós. Fiz o Liceu no Porto. Aos dezassete anos, rumei a Coimbra e licenciei-me em Filologia Românica na Faculdade de Letras da sua Universidade. A par das aulas, devorei “todos” os livros de “todas” as estantes do Instituto de Francês. Aí, a Literatura Francesa e as pessoas que esse tempo pôs no meu caminho deram-me um sentido de vida que ainda hoje é o meu. Leccionei Português e Francês nas muitas e diversas Escolas por onde fui passando. Aos quarenta anos, vim parar a Famalicão, cidade a vinte quilómetros do Porto – meu porto de abrigo e meu cais. Com o meu neto João e com os meninos do Infantário, onde ia semanalmente fazer a hora do conto, redescobri a infância. E comecei a escrever pequenas histórias. Por imposição dos meus alunos - comecei a escrever para jovens. E, escrita atrás de escrita, os livros começaram a aparecer (...) Aposentada há cerca de uma dúzia de anos, tenho vindo a partilhar com os alunos o meu amor ao livro e à leitura - em todas as escolas onde me chamam. É a minha maneira de agradecer à Literatura tudo aquilo que ela me deu"  - revela a Autora em entrevista durante uma animação na Biblioteca do Freixo.

A obra Silêncio Inquieto revela-nos, no entanto, uma outra Manuela Monteiro – a Poetisa, mulher de inquietude permanente, passional, sensual,emocional e esteta. A estética das emoções é revelada, aqui, na sua plenitude, contida um volume que é um guia pelo qual entramos numa alma de um ser adulto e completo, cuja sensibilidade vai buscar inspiração à poesia ática e mediterrânica de Sophia de Melo Breyner, à sensualidade de Maria Teresa Horta e à rebeldia de Natália Correia. Tal como estas três musas que inspiram a Autora de que aqui tratamos, a veia poética de Manuela Monteiro não sofre a erosão do tempo por se tratar de uma mulher que está para além do seu tempo ao ultrapassar convenções sociais, apodrecidas pela obsolescência.
A poesia deste “silêncio”, que apenas se torna “inquieto”  porque a liberdade de expressão se encontra condicionada por um poderoso espartilho que são as convenções de uma sociedade a debater-se com uma grande dificuldade em encaixar duas facetas tão díspares como a da “avó”  - a quel, do alto da sua sabedoria escreve para todas as crianças do mundo -, e a da Mulher, que trata questões tão profundas e subterrâneas como a temática do Desejo ou os diferentes tipos de amor que podem caber no coração feminino.

A poesia de Manuela Monteiro é, assim, uma poesia feita de água, sol, marés e maresia – o mar para onde caminham todos os rios, o mar como símbolo do útero feminino, o ventre da terra, o mar como o lugar último onde desaguam todas as vidas, um símbolo ambivalente de nascimento e morte. A proficuidade na utilização do vocabulário marítimo ou portuário é disto exemplo, podendo significar uma partida, o encerramento de um ciclo ou, ainda, o renascimento, o início de uma nova etapa ou novas rotas a percorrer. Afinal estamos a falar de um livro de perdas e de um eterno recomeçar. Tudo isto como o resultado de uma inquietude interior que impele à ânsia de partida iminente, no incontrolável impulso de soltar amarras, romper grilhetas e partir à descoberta.

Neste Silêncio Inquieto estão contidas nas entrelinhas, logo após os primeiros poemas que falam da partida da ânsia de partir, de impressões recolhidas de viagens, de caminhos traçados e calcorreados. A Autora, tal como Paul Gauguin ou Gabriel García Márquez parece encontrar em terras dos Mares do Sul a terapia para os chamados males da civilização ou da “civilidade” europeia, dos seus constrangimentos, contradições e hipocrisias, tal como as aves que migram para os trópicos quando se anuncia a chegada do Inverno, perseguindo o Sol, como fonte primordial da felicidade.

Silêncio Inquieto é o lugar onde moram emoções turbulentas, ocultas sob uma camada de aparente solidez, quietude e estabilidade, a qual mantém submerso, um eterno inconformismo, face a uma sociedade que cristalizou no tempo.

A introdução à obra é feita através do excerto de um poema de Sophia, cujas palavras marcam a tonalidade emocional e temática, orientando a poesia da Autora, assumindo a posição de paradigma dominante, sobretudo no primeiro conjunto de poemas, onde se exalta o espírito em ebulição de Manuela Monteiro:

Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago terror e trago claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen in Obra Poética I

De acordo com o professor Vasco Moreira, Autor do prefácio desta edição de Silêncio Inquieto

«O mar é lugar de afectos e sítio privilegiado para o amor, onde o tempo acontece e o ser se afirma».

Este “ser” que se afirma não é mais do que a pulsão interior e inquieta da infinita ânsia de liberdade, no tocante à expressão verbal e não verbal da Vontade em todas as suas dimensões: afectiva, sexual, estilística, sempre na contracorrente do “socialmente correcto” quando em conflito com as próprias convicções.

A linguagem de Manuela Monteiro compõe um quadro paradisíaco, em tudo semelhante às latitudes Caribe onde, tal como no romance de Gabriel García Márquez O Amor nos Tempos de Cólera se refugiam os amantes para viver a felicidade até ao fim dos tempos. Mais: toda a linguagem utilizada na poética de Silêncio Inquieto aponta para a ausência de restrições ou limites. O Verão é a estação que reina ao longo de toda a obra até ao início do Outono, ideia que é, também ela, confirmada por Vasco Moreira:

«O mar parece confundir-se, por vezes, com a própria natureza da mulher que o celebra. Lugar de silêncios inquietos, é também a morada dos afectos e da expressão de todo o amor genesíaco».

A ideia está patente em toda a sua força no poema seguinte escrito sob o sol de Mallorca:


II

Na deserta mediterrânea praia
de areia branca e fina
adivinhei a tua presença

Amei-te no líquido leito
salgado e marinho
e esqueci a tua ausência

No poema que se segue temos, mais uma vez, o sol de Palma de Mallorca a convidar à introspecção solitária da Poeta:

III

Havia
um rebrilhar de nácar
            sobre as águas
e um líquido e breve roçagar
                                   de sedas

tudo era nítido e real
Sobre um rochedo
esculpido pelo mar e pelo vento
um pescador cumpria o seu ritual
de paciência
e sal

Longe, uma ilha
e planando sua deserta lonjura
uma gaivota de asas quietas

E tu eras a gaivota
E eu era a ilha


E, no poema que se segue, está presente sobretudo o processo doloroso da cura do luto, onde a saudade é pungente, curtida pelo sol impiedoso, ardente de um verão sem tréguas:

V

Dói-me o céu
galgando em atlânticas
e azulinas vagas
as janelas subitamente
grandes demais

Dói-me o sol
cravando os seus mil punhais
em meus olhos secos
subitamente
cegos

Dói-me o voo dos pássaros
sobre a magnólia em flor
e dói-me o roxo magoado
da flor
da magnólia.

Dói-me a imperfeita beleza
deste amanhecer
dói-me tudo o que
a teu lado
me fazia ser
 - perfeita

Os poemas I a VII incidem no desejo incomensurável de liberdade, associada ao impulso da fuga e a uma ânsia premente de renovação; em contraponto, a tendência omnipresente para evocar, por via da memória, dominando a nostalgia. Este conflito entre o desejo de ter presente o passado e a necessidade de desconstruí-lo, ou melhor, reposicioná-lo, para edificar um novo futuro agudiza-se nos poemas seguintes onde a dor toma a dianteira. Dos poemas VIII até ao XII encontramos poemas  nos quais a dor pulsa, vivente e excruciante, resultando de um amor que já não tem lugar na Terra e no Tempo presente:

VIII

Havemos de nos encontrar na luz de Sírio
Em meus dedos hão-de florir lírios e nardos
ávidos um para o outro caminharemos
correremos para o encontro marcado
desde o princípio dos tempos
em Sírio

E quando os nossos olhos se puderem olhar
sem medo, em Sírio
Quando as nossas mãos se puderem tocar
sem medo, em Sírio
Quando as nossas bocas de puderem beijar
sem medo, em Sírio
a ave azul há-de partir
                                         para lá da madrugada

Mas nós permaneceremos
nós pertencer-nos-emos
até ao fim dos tempos
em Sírio.

Os poemas seguintes descrevem o paroxismo da dor, o esmagamento, face à inexorabilidade da perda, apesar de a “ave azul” (a vida, o impulso da busca da felicidade) continuar a sobrevoar a terra.
Há, aqui, duas forças opostas que puxam a alma da Poeta em duas direcções diferentes: o vivenciar da dor e o desejo intenso de fruição das coisas belas (ainda que temporariamente em segundo plano), num corpo e alma que pulsam de vida. A prostração face à implacabilidade da morte é temporária, aparecendo na sua máxima pungência no final dos poemas XI e XII:

XI

(…)

Gestos mais perfeitos porque à beira
do fim
Palavras mais belas porque derradeiras
Mãos que nas minhas se fizeram azuis
O último beijo

XII

O corpo dobrou-se
como um feto
na paz líquida
e quente
da placenta
O tempo parou
lento
e o pensamento

E eu quedei-me 
assim
como num limbo

A segunda parte de Silêncio Inquieto abrange os poemas de XIII a XVII. Trata-se de um conjunto totalmente diverso do anterior, como se de um segundo tomo da vida da Poeta de tratasse. São estes o âmago de Silêncio Inquieto que exploram as profundezas subterrâneas da mente numa alma onde se movimentam os sentimentos mais turbulentos, numa tectónica emocional à qual está subjacente a lava líquida de emoções vulcanizadas mas secretas e, no entanto, cobertas por uma crusta lisa de basalto, terra, vegetação, lagos e aparente serenidade. Em relação à primeira parte, permanecem ainda as sensações de nostalgia e solidão como estado de alma.

Uma palavra para os belíssimos desenhos da artista plástica Ana Ilhão, executados a tinta violeta, que ilustram o início de cada conjunto de poemas deste volume: a primeira parte está alegoricamente representada por um pássaro desenhado a notas musicais, que formam o corpo da ave em lugar das penas. Trata-se de um desenho que é metáfora-personificação e visa caracterizar a personalidade da voz poética cuja alma é ave e para a qual o mundo não tem limites nem fronteiras, sejam elas políticas, geográficas ou sociais. Trata-se de uma alma que pretende levar o cântico do amor pelo mundo fora, em todas as suas formas de expressão. Mesmo que seja a do sofrimento.

Na segunda parte, a voz poética convida-nos a entrar no quarto secreto da sua alma, seja ela do domínio do consciente ou não. A “voz” do "Eu" abre-nos a porta para o compartimento mais secreto do seu mundo interior. A alma que sofre a dor da perda na primeira parte desdobra-se noutra mulher – a Outra, a sua dupla, um outro lado do “Eu”, como o outro lado do espelho na Alice de Carroll.

Ana Ilhão representa esta faceta dupla do Ego da Poeta , mulher-fêmea, incorporando o seu lado carnal, uma mulher com o corpo físico, ligado à terra, ao impulso telúrico do Desejo, mas cujas asas de pássaro canoro, cujas penas são notas musicais e cantam por si, insistindo na necessidade da manutenção de um espírito livre e andarilho e sem restrições à Palavra. Uma alma cigana, errante, nas distâncias geográficas, na liberdade de expressão, verbal e corporal, no amor. Como a Carmen de Bizet, a Poeta é um pássaro livre, rebelde, que não se pode capturar. Os poemas associados a esta figura têm como dominante a temática que trata, ainda, da situação de conflito originada pela dualidade da alma que se fragmenta em dois desejos opostos mas de igual intensidade: o desejo de pertença, de entrega total a uma emoção, que é como o caudal de um rio, mas de correntes perigosas cheias de rápidos, onde o mínimo movimento e falso pode ser fatal, e o desejo de liberdade absoluta e paz. Aqui está-se perante uma outra forma de viver o amor. O amor-eros, a paixão encarada como o sal da vida. No poema XVIII, somos convidados a entrar na corrente subterrânea, tão profunda e misteriosa quanto imprevisível, deste rio de emoções violentas:

XIII

Há no por dentro de mim
uma porta cerrada
selada
e tão secreta
que a mim mesma
recusa
a entrada.

Os poemas seguintes são aqueles que melhor representam o desejo que é ferido pelo desamor. O desejo puro, sem tabus, onde não cabe qualquer tipo de condicionalismos de carácter social ou cultural, amoral. Avesso, portanto, à mores, ao costume, ditado pela sociedade. O desejo ilimitado de liberdade a isso obriga. Libérté oblige à vivência da paixão no fio da navalha – um amor que se afirma e confirma maldito, porque colado, decalcado e tatuado na carne. Sucedem-se o prazer, o júbilo e a ausência, após o que se verifica a alternância da paixão e da distância física e emocional. À paixão que surge como hybris a desafiar os deuses – a sua inveja - segue-se o páthos, a vingança decretada pelos Imortais. A felicidade convive com o sofrimento ou, por vezes, estes elementos caminham lado a lado, passando a dada altura a ser impossível destrinçá-los. À felicidade mais perfeita sucede, sem qualquer espécie de pré-aviso, o caos: a plenitude traz em si o gérmen da destruição:

XX

Queria ser
a que desperta a teu lado em cada dia
te beija os olhos e segreda a coragem
que em cada madrugada principia
a que põe na tua mesa o pão e o vinho

Queria ser
a que está sempre contigo sem que o saibas
te afaga o rosto e poisa as mãos nos teus joelhos
te refresca no calor e te aquece no frio
a que põe na tua mesa o pão e o vinho

Queria ser
a que te abre a porta quando regressas a casa
e apaga as tuas rugas de fraqueza e cansaço
a que põe na tua mesa o pão e o vinho
e a última rosa colhida no jardim.

O páthos, está implícito na expressão anafórica “Queria ser”(o que, na realidade não é possível ser), num cântico de louvor ao amor conjugal. A Poeta quer ser o arquétipo de Eva, nesta fase, a companheira perfeita de todas as horas, mas neste momento é Lillith a mulher-demónio, feita de ar e fogo, mulher-chama. Há neste “queria ser” uma lucidez inequívoca da realidade que irrompe o sonho , a consciência do desfasamento entre a situação ideal e o quotidiano, isto é, entre o paraíso imaginado cujo limiar estão prestes a atravessar os amantes e a crueza da aridez de um deserto depois de tudo acabar, ideia que é desenvolvida no poema seguinte:

XXI

Aceitaremos
o último raio do sol
no dobrar do verão
o ultimo turbilhão do vento
na despedida do inverno
o último voo do pássaro
à beira da noite
a derradeira pétala
caída
da rosa da madrugada

E beberemos em doirada taça
 - amantes do poente – gota 
                                      a gota
o licor da vida que nos sobra.

A eminência do fim está nas entrelinhas do poema. Há no entanto aqui, duas leituras possíveis. A mais optimista, a da aceitação da velhice por parte dos amantes. A outra, já mencionada, a da eminência do fim de um amor que já aflora ao horizonte e é, já, pressentido.

O poema seguinte marca o fim da fase idílica de um amor cuja forma predominante é o Eros, de mão dada com a Volúpia. É a morte mais uma vez que aflora o sentir da Poeta. Desta vez, uma morte virtual. A influência de Natália, a segunda das três musas de MM espreita nas entrelinhas:

XXII

Olhei meus olhos renascidos
no espelho intocado da manhã
Céus nocturnos e líquidos
derramando-se
no finito infinito do olhar
Tímido desabrochar de lírios
Desflorar trémulo de nardos
ocultando-se
na lua fendida das pálpebras
na inquieta sombra dos cílios

E a ave azul debruçada
no terceiro vértice 
de Sírio
voou                        para lá da madrugada.


Nos poemas seguintes nota-se um crescendum do desejo de libertação que se vai sobrepondo, de forma gradual, ao passado recente, habitado pela ave azul – a ave do paraíso-azul – onde tudo parecia perfeito. Comecemos com o poema da rebelião:

XXIII

Recuso o beijo o abraço o sexo
Recuso as carícias sábias de mais
Recuso as mentiras em que fingi 
                                           acreditar
para te não perder
Recuso ver violada a clara claridade
e a verdade
que ainda resta em mim
Recuso permanecer no cais à espera
de um navio que não virá jamais
Recuso os dias e as noites
em que, por teus silêncios, morri
Recuso-te.

De salientar a poderosa energia que emana deste poema quando declamado pela aliteração em R. Cada frase começada com esta letra é uma afirmação veemente, a qual contém o R de Revolta, de Rebelião, ou na telúrica onomatopeia (Rrrrr...) que se assemelha ao ribombar do trovão. Também a aliteração em V acentua a mesma veemência, associada à tempestade emocional presente no poema: a do vento disposto a varrer tudo o que encontra no caminho, antes de estalar a tempestade.

Após a tempestade, a mulher de asas de pássaro que encontrávamos no conjunto anterior de poemas é transformada novamente em ave, colocando de lado, temporariamente, o eu-fêmea. Põe de lado a mulher fêmea, mas é livre. É mulher-pássaro. O desejo de assumir totalmente esta faceta está patente no dístico:

Na clara imensidão da maré vaza
me farei sopro brisa vento asa

O retrato do inferno emocional, as sequelas do amor que devastam o Eu é ilustrado no poema XXVI, com as marcas metafórica de destruição da alma, projectadas num corpo destruído. Trata-se do mais violento poema de toda a colectânea, cujas metáforas são verdadeiras feridas de guerra:

XXVI

O gume
a faca
o fel
o látego
a lâmina,
o ácido das palavras
queimaram em meus olhos
as lágrimas
silenciaram em meus lábios
o grito
rebentaram em meus ouvidos
granadas
deceparam meu corpo                            caule quebrado
mutilaram meus dedos                           pétalas caídas
apunhalaram meus seios                       pérolas e sedas
violaram meu ventre                              concha adormecida
rasgaram meu sexo                                magnólia roxa
O gume
a faca
o fel
o látego
a lâmina
o ácido
as balas das palavras
viraram-se contra ti                   certeiras
E eu ressurgi inteira
lavada
Da fonte primordial
ressuscitei                                    perfeita.



O poema seguinte lembra um pouco o o final do conto A Pequena Sereia de Hans Christian Andersen, Ariel morrendo à beira-mar e cuja alma se volatiliza, ganhando “asas”passando a fazer parte das “filhas do ar” ou do céu. É mais um poema a tratar do problema do isolamento.

XXVII

Meu corpo morrendo na areia doirada
o vento mordendo o basalto negro
no mar uma ilha desnudando na 
                                                          bruma
sua plenitude redonda de mulher

O pulsar do meu sangue no pulsar das vagas

E pássaros poisaram na febre dos meus ombros
e cintilaram estrelas no crepitar dos meus dedos

              - alada e luminosa foi a paz.

Neste conjunto de poemas em que a voz da Poeta é representada por uma ave-do-paraíso, a alma é novamente livre, mas está imersa em solidão. As asas expandem-se, a alma voa errante por terras longínquas, cruzando a imensidão líquida da massa azul, a Sul, aquecida pelo sol no final do Estio.  É, contudo, rodeada pela solidão que a cobre como o manto de penas, uma solidão omnipresente como nas personagens de García Márquez. Esta solidão projectada-se na paisagem. As impressões são colhidas nos poemas que se seguem, respectivamente na marina de Vilamoura e em Palma de Maiorca:

XXVIII

Não há nada mais vão
e mais só
que os mastros despidos
dos barcos perdidos
em portos desertos
chorando a ausência do mar
                            e das brumas
sonhando o sol o sal e o vento
quilhas cantando a imanência
                                   das águas
cavalgando potros em asas de espuma

E no fino frio de um dia cinzento
voa sobre o cais o grito das gaivotas

XXX

Há neste mar do sul
a ausência do ressoar das vagas
dos búzios das conchas e das algas
sobre a areia branca e fina
a ausência do cardo e da chorina
no coração das dunas

E a permanência
do mesmo impossível beijo              azul

A alma recupera das feridas pelo ampliar continuo do conhecimento – o fruto proibido de Eva – e pelo contacto humano com outras gentes que se torna revigorante e reconstrói o tecido das memórias em permanente transformação. As impressões que inspiraram os dois poemas que se seguem foram retiradas de lugares de Famalicão, terra onde vive a Autora:

XXXI

Subitamente
uma alada brancura
sobre os telhados ocres
e as árvores nuas
da cidade                  a sul

Urgente
é erguer o olhar
e adivinhar
a verdade escondida
das gentes dos bichos das ruas
a beleza cativa
neste inverno              azul

Os termos “azul” e “a sul”, quase homófonos, são permutáveis, aumentando ainda a significação polissémica do poema.

O poema XXXII é inspirado numa árvore de especial beleza e significado para a Autora, uma pereira, situada na cidade onde vive, junto de um supermercado. Uma árvore que, pela magnificência e doçura dos seus frutos se assemelha a uma mulher na sua plenitude. Aqui a Poeta aproxima-se da sua musa, Maria Teresa Horta, pelo erotismo implícito nas suas metáforas:

XXXII

Não há nada mais belo
e mais inteiro
que uma árvore                  madura de fruto
Há no ofertar                    aberto
dos seus ramos
um ar materno e grave

E o seu tronco torna-se
subitamente
humano

Os três poemas seguintes são de especial beleza, transmissores de um sentimento geral de temperança e cura, do resgate da identidade da alma, finalmente liberta e assumidamente mulher.

XXXIII

Pétalas líquidas
desfolham-se em mil pérolas
sobre o lago quieto
Um arco-íris
sobe as paredes da matriz
o silencio dos sinos
o catavento inquieto
ao vento sul

E uma ave-do-paraíso
alonga o seu voo
azul roxo púrpura oiro
sobre o cimento cinzento
que mutila
a harmonia da cidade

O cinzentismo de que fala o poema são as convenções, o super-ego freudiano, os comentários que obrigam ao comportamento “socialmente correcto, discreto” e inibem a livre expressão doo pensamento, do sentir e sobretudo, do eros, da sensualidade. A ave-do-paraíso é o amor, rebelde, irreverente, cujo colorido ofusca e incomoda as almas cinzentas, que se ofendem com as cores do esplendor e da vida. A beleza e exuberância da ave cria um violento contraste com a esterilidade do betão, das cores mortiças, das mulheres que morrem para o erotismo. Uma sociedade cinzenta, com almas cimentadas, mata o Amor, amputa o seu voo, agarra-se a convenções obsoletas, que já perderam o sentido, às aparências, a uma máscara pegajosa e gelada de hipocrisia. A ave azul, roxa púrpura e oiro ou a árvore da magnólia, carregada de fores esplendorosas são a alma da Poeta Manuela Monteiro a pairar desafiadoramente sobre uma mentalidade fechada, afecta a amores clandestinos, numa sociedade hipocritamente assexuada. A ave incendeia a cidade como quem toca uma trombeta do Apocalipse, ao espelhar os seus falsos pudores.

XXXIV

Sobre os farrapos brancos
de um céu de março
a beleza opulenta
da magnólia em flor
incendeia o jardim
Trepadora
uma hera enleia
seu tronco seu corpo seus braços
chão caule raiz abraço
e no ar de março
súbita uma explosão
fúcsia violento
pálido cetim

Por fim a ave paira nas searas loiras no final do Verão da vida, inspirada nos violinos de Verlaine. Há algo de báquico, de opulento neste esplendor do ocaso estival:

XXXV

Asas planando quietas
as searas loiras
Dedos do vento ondulando
searas inquietas
Ceres trazendo nas mãos
promessas de trigo
Baco coroado de parras
e bebendo o vinho
Flautas e faunos despertando
as fontes e os pomos
Cigarras cantando claras
cantigas do estio

Silêncio...
que dentro de mim já choram
os violinos do Outono


O regresso aos rituais de todos os dias, aos objectos de sempre leva também ao encontro com os referenciais de toda uma vida: Tolstoi e Natasha, a heroína romântica de Guerra e Paz, a musa dos poemas marinhos, Sophia, o ícone da liberdade do 25 de Abril nas cantigas de José Afonso. Na casa surge o cofre que guarda o lugar dos afectos físicos, fraternais, filiais, amorosos e literários. Os poemas da última parte são os que revelam a mulher total, com as notas musicais no lugar das penas que cobrem os braços abertos em atitude de voo e de quem deseja abraçar o mundo. A mulher da última parte de Silêncio Inquieto é alma de pássaro com a forma de mulher na sua plenitude. A poesia, aqui, é a apologia do amor universal e da utopia, também. Canta-se o amor que é corpo, mas também pleno de espiritualidade, por brotar de um entendimento perfeito, despojado de possessividade mas sem, contudo, excluir o desejo físico.


XL

Dentro de nós corria o  mesmo rio
tu eras a nascente e eu era a foz

São poemas em que a Poesia se faz gazela como na célebre metáfora do Cântico dos cânticos poema bíblico, onde a Vontade e o Desejo são a voz da Liberdade. Aqui invocam-se também os poetas de Abril, Sophia , mais uma vez, e também José Afonso, uma voz que se fez cravo/e se fez poema ao denunciar a prepotência de povos arrogantes e regimes totalitários que esmagam (ainda hoje) os mais fracos, numa homenagem a uma Grândola voz morena (poema LXII).

XLIII
Contigo trouxeste a estrela do sul
e uma rosa roubada do jardim
Não falámos de Treblinka e Hiroshima
da infâmia do horror da ignomínia
do terror escondido na neblina
do amigo algemado em cada esquina
pois quisemos impoluto o silêncio
impoluta a madrugada
impoluto o mar
onde os nossos corpos
                                         mergulharam

O último poema é dedicado à musa suprema, Sophia de Mello Breyner, em homenagem ao amor mítico, ideal e que, à semelhança do mito e da esperança sebastiânica, está ainda para vir, emergindo do mar e dentre as brumas, ressuscitado como o V império pessoano. Desta vez o império da deusa do Afrodite, em todo o seu esplendor...


XLIV

Do meio da multidão ele surgiu
belo e grave como um deus antigo

(…)

e nele todo o mar se fez presente

Uma poeta de Abril, do século passado e de todos os Abris que hão-de vir...aguardamos a reedição da obra com a mesma ansiedade com que esperamos o Prémio Nobel de 2012 de volta às prateleiras das livrarias.

23.12.2011
Cláudia de Sousa Dias