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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, May 30, 2009

“Um Pintor na Corte” de Sonia Overall (Civilização)


Após uma carreira consolidada como crítica e editora, Sonia Overall decide começar, ela própria, a produzir obra literária. Um pintor na Corte é o seu primeiro romance editado em Portugal.

A Autora dedicou grande parte do seu tempo consagrado à produção deste romance, à pesquisa sobre a pintura do período Tudor e, em particular, à vida e obra do mestre Hillyarde, o pintor-mor do período final do reinado de Elizabeth I.

O tema central de Um Pintor na Corte gira à volta da rede de intrigas que se gera dentro e à volta das oficinas de pintura, especializadas em retratos de figuras eminentes da corte. Tratando-se de um regime totalitário, uma vez que a monarquia absolutista da “rainha Virgem” como então lhe chamavam, dava margem para o triunfo dos bajuladores, isto é, daqueles que pintavam os seus clientes, favorecendo-os. Um facto que, logo à partida, coloca Rob em franca desvantagem, uma vez que o extremo realismo com que executa o seu trabalho, através de um estudo minucioso das feições, da cor e das proporções da estatura e do corpo humano, das articulações dos músculos e dos nervos da precisão com que executa cada ruga, cada movimento sugerido pelas sobrancelhas e pela veracidade com que imprime os esgares que conferem o colorido à personalidade de cada um, não agrada, de todo, a quem quer ser adulado.

Os quadros de Rob colocam-no num patamar muito superior em relação aos seus pares. Mas são, também, a sua própria ruína, uma vez que clientes vaidosos e hipócritas não gostam de ver expostos os seus pontos fracos.

Outro aspecto focado pela Autora é a forte concorrência enfrentada pela Guilda dos pintores britânicos face à escola flamenga dos Países-Baixos, que se traduz num acirrado sentimento xenófobo a todas as obras de arte ou artistas vindos “de fora”.

A principal falha na construção do romance é sobretudo ideológica, prendendo-se na persistência de alguns lugares comuns e estereótipos, como por exemplo, a forma como tanto o narrador como as personagens, se referem aos “católicos”, sempre pejorativamente tratados de “papistas” e retratados como pessoas “não confiáveis”. O principal anti-herói, Petty, amigo de Rob, surge no final como uma espécie de Judas do Renascimento agindo com astúcia e velhacaria, ao colocar as convicções políticas e religiosas – de pendor papista, claro – acima das relações de amizade e da ética, deixando-se levar por rancores mesquinhos.

Por outro lado, a questão emocional é desenvolvida a par da carreira de Rob através de uma estranha parceria com Kat, uma popular cortesã, cuja beleza consegue angariar ao pintor vários clientes importantes, colocando-o quase que numa posição de proxeneta.
Rob é um jovem belo e sensível, mas paradoxalmente frio e puritano, que se mantém, apesar de uma paixão platónica por Kat, fiel a um amor do passado – embora a muito custo –, fruto de uma promessa resultante da trágica morte da noiva, cujo acidente na carruagem, a caminho da Igreja, lhe expõe o interior do corpo: a carne dilacerada, as vísceras, o rosto exangue em contraste com o tom violáceo dos lábios. Uma imagem cujo impacto lhe fica gravado na memória de forma indelével e que acaba por servir de inspiração para o próprio trabalho, estimulando-o a representar os seus quadros com o maior realismo e fidelidade possíveis, tanto no que respeita às cores como às formas, passando a dedicar-se ao estudo anatómico dos corpos.
Por outro lado, a frustração de Kat impele-a a tentar encontrar um sucedâneo do acto sexual que não consegue consumar com Rob e, simultaneamente a procurar compensar o desejo com os inúmeros amantes que lhes proporcionam, também, o padrão de vida que ambos desejam…Mas Kat acabará por pagar um preço elevado por ser a musa de um pintor excêntrico como Dudley…

A maior qualidade na escrita de Sonia Overall reside nas fabulosas descrições onde o realismo impresso na escrita só se pode comparar à pintura executada pelo seu personagem.

Se não, veja-se as descrições que se seguem:

«Os olhos do homem, pequenos e de expressão porcina, expressavam malevolência e ossos fracturados» (pp. 51).

E sobre a Rainha, aos 50 anos:

«Ela era magnificente: aterradora, de faces magras e absurdamente pintadas. Maravilhosa, apesar de estar a aproximar-se da fase da Lua Nova da sua vida, tendo deixado a juventude para trás (…). A estrutura óssea da sua testa e nariz era saliente, de expressão fria, como mármore italiano desgastado pelo tempo e bem polido. Os seus olhos reflectiam argúcia e secura, eram escuros e perscrutantes (…). Conseguia ver as linhas com tanta clareza, cada aplicação da pintura que ela tinha na face, todas as partículas de pó branco, que tive a sensação de ser uma mosca que zunia e brilhava ao lado dela. Copiei todos os ângulos das suas bochechas onde, em tempos idos, tinham existido curvas suaves: passei a papel todas as concavidades que eram fruto do envelhecimento e rugas de preocupação. As linhas do nariz dela revelavam orgulho e vaidade, o queixo falava das suas obrigações e os olhos encovados davam-nos a saber das desilusões dos tempos em que era donzela. A fronte, que continuava macia, era régia (…) era aí que o peso das coroas fora sustentado. Desenhei tudo o que aí via: avareza e temor, azedume e contentamento, os desejos de uma mulher e os anseios pelos prazeres simples».

É óbvio que quem pinta assim fará mais inimigos do que aliados ao longo da careira, sobretudo num regime totalitário.
E quem escreve como Overall acabará por ser inevitavelmente um mestre após dedicar-se a tempo inteiro a uma actividade tão absorvente como a escrita.

Cláudia de Sousa Dias

Sunday, May 24, 2009

“De Amor e de Sombra” de Isabel Allende (Difel)


É um dos primeiros e, também, menos conhecidos romances de Isabel Allende no qual sobressai uma escrita ora sensual e telúrica, ora visceral e amarga. Esta última característica deve-se, sobretudo, ao humor negro da Autora, cujo sarcasmo se encontra bem explícito, logo nas primeiras páginas da obra, pela referência ao piedoso nome atribuído pela mãe da protagonista ao lar de idosos de que é proprietária, A vontade de Deus. A Mãe de Irene gere a instituição como se de um armazém de carcaças à espera da morte se tratasse, cuidando deles com a mesma consideração que poderia dispensar a um monte de fatos carunchosos ou móveis semi-apodrecidos.

A ironia está presente no contraste entre o nome do edifício, revelador de um fatalismo conformista, e a rispidez com que as enfermeiras tratam os hóspedes. Beatriz Beltrán conduz o “negócio” como uma mera casa comercial.

Beatriz é aquilo a que se chama de uma “alpinista social”, oriunda da classe media-baixa, de carácter frívolo, superficial e completamente inconsciente da realidade social fora dos muros de A Vontade de Deus. Uma mulher que se preocupa apenas com o seu aspecto e com a manutenção do status quo e padrão de vida que conseguiu, a duras penas. O pai de Irene (também ele desaparecido, mas não exactamente por razões políticas) é membro de uma das mais antigas famílias chilenas, de raízes aristocráticas. Trata-se, no entanto, de um homem irresponsável, sonhador e indomável, causador da angústia de Irene e Beatriz.

Por outro lado, o título da obra remete para um drama passional, onde o desenrolar do conflito demonstra como a cumplicidade em situações adversas fortalece uma união e ajuda a consolidar laços. A passionalidade é a imagem de marca da prosa de Allende cuja precisão evocativa deixa no leitor uma marca indelével. A mesma característica explica, em grande parte, a simbologia, do título De Amor e de Sombra. Porque se trata, realmente de uma história de amor desenvolvida na “sombra” isto é, na clandestinidade. E porque Francisco Leal, o herói romântico da história se dedica precisamente a actividades clandestinas como o exercício da Psicologia – cujo ensino foi proibido depois do golpe de estado militar, que culminou com a morte do Presidente Salvador Allende –, por ser considerada uma actividade “subversiva” e “perigosa”, e a facilitar a fuga de presos políticos para fora do Chile, no tempo de Pinochet. Leal, que obteve o doutoramento em Psicologia anos E.U.A. vê-se, de um momento para o outro sem emprego e obrigado a mudar de ramo, tornando-se fotógrafo de uma revista feminina de moda para sobreviver. Lá, conhece Irene, a filha da dona de A Vontade de Deus. Irene acompanha Francisco nas reportagens e vai-se apercebendo, gradualmente, das actividades clandestinas do colega quer no que toca ao exercício da psicologia quer em algo ainda mais “obscuro”. Francisco ocupa o tempo livre a conseguir documentos falsos para os prisioneiros políticos, ajudado pelo irmão, o sacerdote José Leal, que conta com a simpatia e cumplicidade do cardeal.

Enquanto que o primeiro romance de Isabel Allende, A Casa dos Espíritos, incide nos cem anos de história do Chile que antecederam a o golpe de estado militar, De Amor e de Sombra passa-se alguns anos depois desta ocorrer, quando o novo regime parece já estar consolidado. De Amor e de Sombra chama a atenção para o violento “drama dos desaparecidos”, um episódio vergonhoso da história do Chile que diz respeito ao desaparecimento de milhares de presos políticos, “aqueles a que a Polícia política leva e não devolve”.
O sentido da impunidade e a prepotência das forças da ordem, bem como o abuso de autoridade são explorados até à exaustão. Senão vejamos:

Neste contexto não é preciso pertencer-se a um partido político da oposição para se ser encarcerado ou proscrito: basta ser membro de um sindicato”.

Como exemplo, Isabel Allende mostra a situação da família Leal onde o pai de Francisco, professor de Literatura é saneado e Javier, o cientista, o outro irmão de Francisco, é segregado do mercado de trabalho pelo simples facto de ter sido filiado num sindicato. Uma violência para uma família que valoriza o trabalho acima de tudo como símbolo da dignidade humana.

Mas o cúmulo da prepotência sob a forma de exibicionismo é o que acontece em casa de Evangelina, uma jovem deficiente, doente com epilepsia, trocada à nascença e, por isso, pouco amada pela família, torna-se vítima da rigidez e pusilanimidade dos funcionários do hospital estatal e da brutalidade e intolerância da polícia política. A desordem mental da jovem é mal interpretada pela população local que a confunde com possessão demoníaca ou, se calhar, fruto de intervenção divina, causadora de prováveis “milagres”. Uma crença que é facilmente disseminada numa população onde grassa o analfabetismo. Por outro lado, a rigidez associada ao regime militar não tolera o comportamento de Evangelina por ser incontrolável e, como tal, subversivo, devendo por isso ser “metida na ordem” pelas autoridades. Evangelina acabará por ser levada e incluída no contingente daqueles que “não voltam”. A sua detenção é o ponto de viragem da história porque o seu desaparecimento vai obrigar Irene, que assistiu, junto com Francisco, ao acontecimento, a “agir na sombra” e a integrar o grupo daqueles que passam para o outro lado da fronteira, aqueles que estão, politicamente, em situação difícil.

O encantamento que surge logo nas primeiras páginas deste romance que agarra o leitor e o faz virar sofregamente página sobre página acentua-se a partir desta altura.

Também a existência de uma multiplicidade de personagens com origens sociais muito díspares que, a dado momento, se cruzam em prol de um objectivo comum constitui um encanto adicional, sobretudo porque confere ao carácter de Irene, uma jovem de ascendência aristocrática, uma personalidade modulada que se vai aprofundando ao longo da narrativa, à medida que se envolve emocionalmente com Francisco e com as causas a que está ligado.

O intenso erotismo contido na descrição de uma cena de amor, reveladora de uma sexualidade telúrica, entre Francisco e Irene é um dos mais belos trechos do romance, tendência que se torna um pouco menos acentuada nos romances posteriores da mesma autora.

Da mesma forma, a profunda emotividade e pungente nostalgia presentes nas entrelinhas do texto que descreve a cena de despedida dos pais de Francisco, no final, coincidindo com a partida para Espanha, adquire o formato de um relato onde só não está presente a palavra “saudade” por uma questão semiótica, causando um impacto profundo em quem lê, pela sensação de despojamento deixada pela necessidade de abandonar algumas das pessoas a quem mais se ama.
A partida para o exílio e a odisseia a que obriga a extenuante travessia da cordilheira dos Andes até ao outro lado da fronteira com a Argentina, é de uma capacidade de percepção sensorial e nitidez fora do comum, onde se sente a presença quase que palpável de uma dolorosa saudade antecipada e de uma avassaladora sensação de desolação e desenraizamento…

De Amor e de Sombra só não é um romance de excelência pelo facto de, por vezes, a Autora não conseguir evitar a tentação de emitir juízos de valor, mas é o livro onde Isabel Allende melhor desenvolve um discurso poético no qual as emoções fluem como um rio em todo o seu caudal, aproximando-se da foz e onde os acontecimentos parecem conspirar para o envolvimento de ambos os protagonistas.

A obra literária pode ser complementada com o filme de Elizabeth Kaplan no qual se destaca a interpretação de Antonio Banderas, num dos seus melhores papéis, assim como o que emana de magnetismo de Jennifer Connely a iluminar todas as sombras que possam subsistir no enredo deste sedutor e absorvente romance.

Cláudia de Sousa Dias

Monday, May 18, 2009

“A Fronteira de Vidro” de Carlos Fuentes (Dom Quixote)


Carlos Fuentes é um autor mexicano cuja obra incide nas transformações políticas e sociais ocorridas ao longo dos últimos dois séculos, num país onde as oportunidades escasseiam e o outro lado da fronteira seduz como o canto das sereias na Odisseia de Homero. Com A Fronteira de Vidro o Autor efectua uma análise multidimensional da realidade mexicana e norte-americana, observando as diferentes faces do mesmo prisma, sob o ponto de vista económico, político, social, cultural, psicológico.

Trata-se de um conjunto de estórias que podem ser lidas separadamente mas onde verificamos existir algumas personagens que se repetem. Uma delas em particular serve de fio condutor entre os diferentes
sketches, interligando-os, ao aparecer ora como protagonista ora como personagem secundária ou, ainda, como mero figurante: trata-se de Leonardo Barroso, o magnate que lidera um poderoso lobby económico e político, manipulando habilmente o principal partido no poder.

As pequenas estórias de A Fronteira de Vidro ilustram as transformações ocorridas em território mexicano nos últimos duzentos anos, inclusive os avanços e recuos da fronteira entre o México e os Estados Unidos onde se comprova a notória degradação económica, manifesta numa crise endémica, permanente, da qual parece impossível emergir uma solução viável e construtiva, mas onde grassa o Desemprego, o êxodo rural, a criminalidade, a emergência de uma economia paralela e a corrupção.

A primeira destas estórias, A Capitalina, fala de uma jovem de deslumbrante beleza morena, oriunda da capital, de origem aristocrática, que viaja para o interior em virtude de um acordo entre as famílias com objectivos matrimoniais (e materiais). Michelina Laborde descende de uma antiga família de elite na cidade do México que ascende aos primeiros colonizadores. Arruinados, apostam na jovem como o passaporte para a manutenção do status quo e o padrão de vida a que estão habituados. O noivo é o filho do padrinho de Michelina, Marianito, que não consegue interessar-se por mulheres a não ser platonicamente e através da literatura. Michelina revela uma extraordinária capacidade de premeditação e, simultaneamente, de vulnerabilidade ao permitir deixar-se seduzir pelo sogro. A jovem percebe que ao aliar-se a um homem que incarna uma figura paternal, ser-lhe-á possível juntar o útil ao agradável, até porque, normalmente, costuma sentir-se incomodada “com a tirania dos homens jovens e belos”.

Leonardo Barroso, parece ser um novo-rico que gosta de exibir ostensivamente sinais de poder económico, ao copiar, por exemplo, os modelos americanos de exibicionismo como a mansão “Tara” do filme “E tudo o Vento levou” ou carros caríssimos que amontoa como se de cabeças de gado se tratasse: Manadas de Porsches, Mercedes, BMW’s que repousavam como mastodontes nas garagens (…). A casa dos Barroso era Tudor-Normanda (…), só faltava o ribeiro do Rio Avon e a cabeça de Ana Bolena num cesto.
O autor não perdoa nem mesmo a vulgar frivolidade das mulheres que habitam ou frequentam a mansão dos Barroso, dentre as quais onde se destaca a extrema beleza e distinção de Michelina.

Era a única sem plásticas faciais (…) e sentou-se, muito sorridente e amável, entre a vintena de mulheres ricas, perfumadas, aperaltadas com roupas do outro lado da fronteira, cobertas de jóias, quase todas com os cabelos pintados de acaju, algumas com óculos de máscara veneziana, outras usando aquosamente as suas lentes de contacto.

O discurso da fêmeas da alta roda perece ser, também, condizente com a aparência:

vimos todas do convento, todas passamos por colégios de freiras (…), todas nos libertámos um dias…mas se já estamos de regresso ao convento…sozinhas, sem homens, mas só a pensar neles….
Mulheres que definham no meio da abundância, ignoradas pelos maridos que buscam compensação no luxo e no prazer de gastar o dinheiro daqueles que as ignoram.

A seguir, no outro lado da fronteira, chega-nos o conto O Estudante de Medicina – Juan Zamora – filho do advogado, honesto e incorruptível, de Leonardo Barroso – e pobre. Juan consegue estudar nos EUA unicamente por especial favor do patrão do pai, que actua como mecenas.
Mas para melhor ser aceite e impressionar as mentes simplórias dos puritanos e deslumbrados americanos, o jovem faz-se passar por filho de um grande latifundiário e aristocrata rural, um “Charro”, para conquistar prestígio social e sentir-se compensado pela mágoa que lhe causa a segregação social, fruto da sua homossexualidade.
Zamora sente-se “olhado de lado” pelos seus anfitriões de mentalidade calvinista, por causa das suas preferências sexuais. Estes, no entanto, invejam-lhe a ascendência “nobre”.
Esta estória apresenta uma curiosa descrição, física e psicológica, dos estudantes americanos efectuada, a partir da forma como se vestem:

Usam bonés de basebol que não tiram nem dentro de casa para cumprimentar as mulheres (um olhar antropológico para mostrar o desconhecimento do significado das palavras “cavalheirismo” e “cortesia”). Raras vezes se barbeiam por completo (…). Usam camisolas sem mangas, mostrando constantemente os pêlos das axilas (…). Quando querem ser realmente informais usam o boné de basebol ao contrário, com a pala a proteger-lhe a nuca.

Compreendeu que o ar descuidado ligava os estudantes, era uma forma de igualizar a origem social para que ninguém perguntasse acerca da origem familiar ou do status económico.

No entanto o mundo da faculdade é como que um lugar à parte no universo americano: em casa respeitavam-no pelas suas origens e só por elas engolem, a custo, a sua homossexualidade.
Jim, o amante de Zamora, acaba por se casar para fazer a vontade à família.

Uma estória que poderia ter inspirado a ideia para O Segredo de Brockeback Mountain ou ter nascido de uma transposição ,para os tempos actuais, de uma drama vindo de remotas épocas helénicas.

Em O Despojo, o Autor faz a apologia à gastronomia mexicana, incompreensível para o paladar americano, habituado à comida “de plástico”.

A difusão da culinária americana é feita por Dioniso Baco Rangel, o qual se atribui a missão de evangelizar o paladar americano fazendo-o converter-se aos prazeres pantagruélicos da comida da terra de Pancho Villa e aculturar, apenas e só neste aspecto, os habitantes a norte da fronteira cristalina de Rio Bravo, da mesma forma que os americanos fizeram – a todos os níveis – com os territórios que compreendem regiões tão extensas quanto o Texas ou o Novo México.
Na sua crítica ao irracionalismo que parece caminhar lado a lado com a vanguarda científica, a estranheza norte-americana solicitava a sua atenção: Agradava-lhe descobrir que sob os lugares comuns da sociedade uniforme (…), sem personalidade culinária, se agitava um mundo multiforme, corrosivo (…) que acreditava a pés juntos que a fé e não o bisturi bastavam para curar um tumor pulmonar (…) como num país cheio de gente receosa de cruzar olhares com outras pessoas na rua porque poderiam ser cientólogos com o direito de matar quem não comungasse das suas ideias, assassinos libertos do manicómio e pessoas superdotadas, homossexuais vingativos, armados com seringas com HIV, neonazis de cabeça rapada, dispostos a degolar toda a gente de tez escura. Rangel também concedia os gringos todo o bem do mundo, salvo o de uma cultura aristocrática.
Trata-se, aqui, de uma reflexão sociológica sobre o tecido social mexicano que é comparado com o dos Estados Unidos:

no México, até um bandido era cortês, até um analfabeto era culto, até uma criança sabe dizer os bons-dias, até um político sabe comportar-se como uma dama, até uma dama sabe comportar-se como um político, até os entrevados eram acrobatas no arame e até os revolucionários tinham o bom-gosto de acreditar na Virgem de Guadalupe.

Carlos Fuentes chama, ainda, a atenção para a caracterização morfológica incidindo, sobretudo, nas avantajadas massas de gordura que revestem os corpos das mulheres norte-americanas.
O autor não resiste a introduzir uma nota de realismo mágico, numa piscadela de olho a Laura Esquível, ao colocar Dioniso Rangel sentado num restaurante americano - mas de comida tradicional – para comer comida “verdadeira”, onde cada prato traz consigo uma miragem que se lhe materializa diante dos olhos, sob a forma de uma mulher com características, morfológicas ou de personalidade, do prato que representa. Há, no emprego desta alegoria por parte do Autor uma evidente analogia entre cada prato e os diferentes tipos sociais de mulheres norte-americanas que provavelmente os consomem.
Assim, o cocktail de camarão de camarão é uma “entrada “ que personifica a sofisticada mulher nova-iorquina que aparece nas capas das revistas. È culta, sofisticada, refinada e elaborada mas entediada com a vida, anoréctica, isto é, um prato muito bonito, mas que não alimenta.
O tipo de mulher que afirma Apenas suporto os homens que me mentem. A mentira é o único mistério no amor.

Já a mulher trazida pela visão deste Dioniso Baco pela sopa americana, encorpada e rica em gordura, é uma mulher em tudo excessiva, nas falas, nos adereços e nas carnes (gordas).
Mas típico “bom bife americano” é, para o protagonista, a visão da mulher bela e elegante, cuja imagem corresponde à executiva de sucesso. É, contudo, obcecada pelo trabalhado sendo, por isso, também, dificilmente digerível.
Depois, vem o gelado de limão corta-sabores. Este traz a visão da mulher perfeita, porque diferente, ideal, mas que deixa escapar por entre os dedos enquanto o gelado se derrete por perder demasiado tempo a observá-la em devaneio. É o tipo de mulher que, “sem ser bela, é radiosa” e que transmite tranquilidade e bem-estar.
Por último, a sobremesa, uma mulher de sobrecarga calórica, descomunal, fanática militante dos Direitos das Mulheres Gordas!

Face à decepcionante gastronomia americana e à tentativa frustrada de disseminar a culinária do México, este gourmet decide regressar às origens, mas nu como veio ao mundo, limpo de qualquer vestígio poluente do mais ínfimo traço cultural norte-americano. E é nesta figura que chega à fronteira. Despojado.

A fronteira entre o México e os estados Unidos é marcada por uma linha imaginária a que o Autor chama de A Raia do Esquecimento (O Risco, devido a um erro de tradução). La Raya (no original) é a linha, a fronteira, o limiar, uma metáfora que dá título a uma estória na qual o narrador, um idoso, vítima de um avc, está parado no meio do nada, na linha de fronteira entre a vida e a morte, entre o México e os estados Unidos. Um lugar ermo, longe de tudo e de todos onde tenta escapar ao controle das autoridades norte-americanas as quais nem sempre actuam de forma pacífica, estancar a hemorragia humana que corre do caótico país vizinho, para o lado norte do Rio Bravo, à procura de melhores oportunidades. O teor do texto está impregnado de uma amarga ironia, da denúncia da desumanidade a que são sujeitos os imigrantes clandestinos, sobretudo numa região de tal forma inóspita que tudo o que lá acontece é esquecido ou ignorado. Principalmente vestígios de crimes praticados ao abrigo da lei. Tal como na mente de um moribundo, onde tudo desaparece. No limiar da morte está a Raya ou a linha, a fronteira do esquecimento junto ao cristalino Rio Bravo, a fronteira de vidro (la frontera de cristal, no original).

Quem me detesta? Quem me abandonou aqui, a meio da noite? (…) Ninguém me conhece? Ninguém me espera. Ninguém me abandonou. Foi o mundo. O mundo largou-me.

A ironia, presente neste conto, é que o idoso largado no meio do nada é parente pobre de Leonardo Barroso, o qual exporta mão-de-obra barata para os EUA e que gere, no México, uma fábrica de televisores americanos, com mão-de-obra quase escrava, ignorando a lei laboral.

Esta realidade é analisada à lupa no conto Malintzin das Fábricas, um trocadilho com o nome da amante índia do capitão Cortés. A Malintzin deste conto é uma bela operária da fábrica de televisores de Leonardo Barroso, na fronteira mexicana.

As trabalhadoras sustentam as famílias enquanto que os homens estão, normalmente, ociosos.
Marina, a Malintzin das fábricas, percorre o caminho de casa em duas horas de autocarro, em cima de saltos altíssimos, que substitui por calçado mais cómodo à entrada da fábrica. Namora Rolando, indolente e ocioso de profissão, dedicando-se a negócios duvidosos.

Este conto relata, também a tragédia de Dinorah, a qual não tem com quem deixar o filho durante o horário de trabalho. Ou de Rosa Lupe que tem de aguentar o assédio sexual da chefe para sustentar o seu marido “doméstico”.
Carlos Fuentes mostra a dureza do quotidiano das famílias rurais, empobrecidas pela divisão das respectivas propriedades pelos filhos o que faz com que as jovens tenham de trabalhar nas fábricas para sustentar as famílias. É, também, notória a capacidade de trabalho destas, muito superior à dos homens.
A única que não está ligada a um homem indolente ou irresponsável é Candelária , a Chefe da Comissão de Trabalhadores, casada com um líder sindical. Cande, como lhe chamam as colegas, enfrenta a prepotência dos chefes – prepotência sobretudo sexual – que confiam na submissão das jovens, fruto da extrema necessidade de emprego e escassez de oportunidades. Enquanto as operárias da fábrica de televisores enfrentam os abusos dos chefes uma criança morre e Michelina prostitui-se com o sogro, dono da Fábrica. E da nora.

O conto que se segue, As Amigas ilustra a relação que se estabelece entre uma patroa norte-americana de educação do tipo colonial e mentalidade esclavagista dos Estados do Sul, enraizada no tempo da Guerra de Secessão. Apesar de a acção decorrer no século vinte, a forma de pensar de Miss Amy Dunbar, não é muito diferente dos donos das antigas plantações de algodão da Virgínia ou da Carolina do Sul, na altura do conflito entes Confederados e Ianques.

Há-de haver alguém cuja necessidade de emprego seja mais forte que o orgulho.
No entanto, as coisas não parecem correr-lhe como espera. A “raça negra” pôs-se toda de acordo, aos olhos de Miss Amy, para lhe negar serviços, uma vez que o carácter intratável não lhe permite conservar as empregadas mais de um mês.

Miss Amy, chamada menina como todas as senhoras da cidade do delta (Memphis), com direito às duas formas de tratamento, a da maturidade matrimonial e a de uma dupla infância, meninas aos quinze e outra vez aos oitenta
Serve-se de estereótipos para rotular as pessoas, incluindo os mexicanos, segundo ela com fama de “folgazões” até travar conhecimento com a dócil Josefina, a última esperança do sobrinho, Archibald, em encontrar alguém que consiga cuidar da insuportável tia. Archibald arranja-lhe emprego, em troca, tentará libertar-lhe o marido, preso em consequência de um tiroteio ao passar a fronteira.
A velha senhora faz tudo para que Josefina cometa um deslize, para ter a oportunidade de a rebaixar, o que neste caso, parece ser extremamente difícil.
Archibald concorda em dar aulas de Direito ao marido de Josefina, na prisão, se esta trabalhar para a tia. Aulas pagas por Josefina.
Um dia a curiosidade insaciável de Miss Amy faz-lhe conceder permissão a Josefina para realizar uma festa tradicional com a família, mas o sadismo daquela faz com que não resista e humilhá-la diante de todos.
Até que… Josefina consegue descobrir o passado secreto da patroa e a origem do ódio que nutre em relação ao mundo…e dá-lhe a chave apara a cura.

A Fronteira de Vidro, conto que dá o nome ao livro, relata uma viagem de avião, a caminho dos EUA, em primeira e em segunda classe.
Na primeira classe estão Leonardo e Michelina. Curiosamente, apenas e só neste episódio conseguimos desvendar um pouco do interior de Michelina, onde se quebra um pouco a imagem da deusa perfeita ou imagem de capa de revista. A jovem invejada por muitas mulheres da mesma idade, abstém-se de ter vida própria, suprimindo a capacidade de amar, apenas para evitar a ruína da família e manter longe a ameaça da pobreza.
A descrença no amor, no trabalho, provenientes quer da cultura quer da educação familiar, num meio onde os jovens casam com dotes, sendo este o factor decisivo para se seleccionar uma esposa. Uma escolha onde interferem as famílias e que acaba por inlfuenciar a orientação da paixão dos filhos varões e criar para estes uma escala de eligibilidade que pesa nas decisões por maior que seja a paixão.
Lisandro Chavez, um jovem oriundo da classe média também se encontra no avião mas tem de se encaminhar para a classe turística. Ao fazê-lo, passa por Michelina. Reconhece-a como a jovem a quem as famílias dos colegas aconselhavam a não casar, pela escassez do dote. Lisandro vai para os Estados Unidos à procura de emprego conseguindo um lugar de lavador de janelas, num dos muitos arranha-céus de uma grande metrópole.
No Estados Unidos, acredita-se no trabalho, não se escolhe trabalho e é-se remunerado pelo trabalho. Ou, pelo menos, os trabalhadores legalizados são-no.

Enquanto lava a parte de fora das janelas, Lisandro apaixona-se por uma executiva de ar doce, debruçada sobre uma secretária. E Audrey deixa-se prender, por um instante, pela expressão amável do lavador de janelas…um instante, um fragmento, onde dois seres românticos e desiludidos pela vida, se deixam levar pelo sonho. Mas basta uma distracção…para que o desencontro aconteça.

A Aposta é a estória de Leandro Reyes e do retrato da eterna monotonia da vida de um taxista no México, a quem o acaso faz colidir com um amor nascido do improvável por uma guia turística espanhola de passagem pelo país dos Maias e dos Incas, de visita às ruínas das civilizações antigas. Uma mudança de emprego vem facilitar o romance de ambos. Mas o azar espreita, vindo de uma brincadeira de um gang de jovens delinquentes em Alcalá, que desempenha a função da tesoura das Parcas.

Por último, Rio Grande, Rio Bravo, o último dos contos deste volume, vem reunir todas as personagens das estórias anteriores como um epílogo, para cada uma delas. A beleza deste conto é acrescida pela ligação do fio condutor da História, que mergulha as suas raízes na situação desencadeada a partir da colonização, da chegada das caravelas de Colombo ao Novo Continente. A visão global de quatro séculos de história traz-nos a clarividência, ao permitir a tomada de consciência das clivagens entre os dois lados da fronteira, através de todas as faces do mesmo sólido – social, política, económica, cultural.

Neste conto é-nos dado o desenvolvimento da situação da maior parte das personagens secundárias das estórias anteriores, desde o cozinheiro Benito Ayala, Dan Polenski, o polícia racista, a Serafín Romero, chefe de um bando de delinquentes mexicano especialista em assaltos a comboios e no transporte de imigrantes ilegais na fronteira. Do outro lado, estão Eloíno e Mário, os fiscais no meio do fogo cruzado. Juan Zamora o médico sensível e altruísta encontra a oportunidade de quitar a dívida ao antigo patrão do pai. A única personagem inédita é o poeta José Francisco, sentado na Harley Davidson, enquanto atira ao vento os poemas revolucionários, esperança de mudar o mundo…

Enquanto isso, o mesmo mundo ameaça vingar-se contra quem criou a situação insustentável gerada à volta da “fronteira de vidro” enquanto o vento rebelde espalha a poesia que infiltra na mole humana o desejo da mudança e a esperança apoiada num sonho aparentemente impossível…

Será?


Cláudia de Sousa Dias