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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, July 29, 2011

“A Rainha da Canela” de Ayala Monteiro (Ideias e Rumos)



Ayala Monteiro nasceu em Angola, em 1957, foi jornalista, crítico literário, tradutor e editor. Frequentou o curso livre de Estudos Árabes na Universidade Nova de Lisboa. E, em 2005, publicou o primeiro romance A Rainha da Canela e, dois anos depois, Os mensageiros de Lúcifer, um segundo romance. Para A Rainha da Canela, Ayala Monteiro criou a figura fantasmal e diáfana da cadela Diana, à qual atribui o papel de consciência crítica da sociedade cortesã à época do reinado de Dom João II. A cadela, que se senta como uma espécie de guardiã aos pés do monarca, assemelha-se à figura inspiradora da gazela que acompanhava o general romano Quinto Sertório, no século I A.C. durante a campanha na Península Ibérica e nas escaramuças com Viriato. Tanto a corça branca de Sertório como a cadela esguia de Dom João II acabam por ter o mesmo fim trágico. No romance de que aqui tratamos, Diana é uma narradora que pensa como uma mulher vinda de um outro continente, de um mundo exterior ao das intrigas da Corte onde pulula a hipocrisia e a bajulação.

Diana, cobiçada pela beleza e postura atenta é, várias vezes oferecida, passando por vários donos, que é um recurso do Autor para justificar a mudança de cenário no romance, tornando ao mesmo tempo possível a observação directa, a tempo inteiro, de várias personagens que intervém na trama: desde a lendária rainha de origem mouro-granadina, descrita como uma figura retirada de um conto de fadas ou das lendas das Mil e uma Noites, a qual se refugia na Índia para escapar à perseguição dos Reis Católicos. Esta mulher fora do comum transforma-se numa figura de especial importância no comércio das especiarias, vindas do Oriente, e de outras substâncias, indispensáveis ao fabrico de perfumes. Esta figura feminina adquirindo adquirire não só uma invulgar posição de destaque para uma mulher na época como acumula uma vultuosa fortuna, semelhante à dos antigos sátrapas orientais, ao ficar dona de um entreposto comercial de especiarias e especializar-se na confecção de perfumes e iguarias à base de canela.

Na verdade, Diana começa por ser a cadela favorita de Dom João Segundo mas não se aguenta muito tempo na corte onde o comportamento individual daqueles que se destacam é sobretudo marcado pela maledicência e pela violência contra os seres mais frágeis. É, posto isto, cedida a Dom Julião César Lopo acompanhando, depois, Dom Afonso de Albuquerque, no seu vice-reinado à Índia onde, depois, conhece a “Rainha da canela” e em cuja corte é feliz usufruindo finalmente da merecida tranquilidade, como se estivesse no jardim das Hespérides.

O Estilo Cortês

A linguagem utilizada por Ayala Monteiro abunda em sonoridades arcaicas, resultando num misto de cerimonial cortesão, a que se junta a rudeza do calão dos marinheiros e dos homens de armas. Reproduz, no entanto, um ambiente social de extrema violência, exercida sobre os outros povos, sobre as mulheres e mesmo sobre os animais domésticos, tratados muitas vezes com requintes de crueldade. A posição de Diana é, por natureza, especialmente vulnerável já que o canídeo é, neste caso e à luz da cultura da época, visto como uma espécie de servo do dono, dependendo do humor ou da benevolência do mesmo. Mas, neste caso, Diana é sobretudo alvo da falta de respeito, ainda que dissimulada, das visitas ou dos rivais dos respectivos donos, algo a que o Autor dá especial ênfase, através da linguagem, que chega a ser chocante, pelo conteúdo agressivo que lhe está subjacente. Ayala Monteiro possui um sentido estético patente na sua escrita literária, algo elaborada, a descair para o erudito mas de fácil leitura, embora abusando um pouco dos adágios e provérbios. Para mais, o Autor recorre frequentemente a fórmulas cerimoniais e construções frásicas típicas do século XV e XVI e, por vezes, ao uso do castelhano para melhor retratar a época, acentuando o contraste entre o comportamento individual do cortesão quando dirigido ao Rei e o comportamento do mesmo inter pares, denunciando o grau de hipocrisia das atitudes de uma sociedade que centra a acção na guerra e no culto da aparência motivado por um cristianismo com objectivos mais materialistas do que altruístas.

A consciência crítica de Diana

O apurado sentido crítico de um ser mudo, com sérias limitações no que toca à própria defesa, já que se trata de um ser que é sempre propriedade de alguém, torna-a o ente ideal para olhar a sociedade de então de um ponto de vista crítico, porque alheia aos interesses materiais relacionados com o poder.

Diana, sendo um canídeo, tem além dos sentidos extremamente apurados, como é o caso do olfacto e do ouvido, uma capacidade muito superior à dos humanos e de identificar características individuais que os humanos nem sonham. A isto junta-se a capacidade de interpretar as informações sensoriais que recebe de forma muito semelhante à dos seres humanos, o que lhe amplia de forma exponencial a lucidez de julgamento. O único inconveniente é não ser muitas vezes, total ou parcialmente, compreendida pelos humanos, mesmo quando a amam… Pode-se mesmo dizer que possui qualidades típicas de um ente sobrenatural, de natureza angélica, uma marca inequívoca de realismo mágico, senão mesmo de surrealismo, na obra.

Diana é uma cadela culta, se não mesmo erudita, fazendo lembrar a voz da narradora de um conto de Luísa Monteiro em “As Novas Bruxas do Ave” ou mesmo de Virginia Woolf. Diana sabe ler (silenciosamente), interpreta textos, palavras, gestos e até pensamentos. Diana chega ao ponto de identificar que, também na Índia tal como na Europa, se cometem atrocidades em nome de Deus, denunciando a maturidade do próprio pensamento crítico, não deixando, inclusive, de sublinhar alguns aspectos positivos da colonização portuguesa, como a proibição do ritual sati e a criação de uma bolsa de apoio a crianças pobres, extinta logo após o falecimento de Dom Afonso de Albuquerque.

Os aspectos negativos, apontados por Diana, são no entanto muito mais numerosos: desde os elevados encargos com que os Portugueses tributavam a população local, o atraso nos pagamentos, o problema crónico do défice nas contas públicas – cujo fantasma assombra o Estado já desde o reinado de Dom Pedro I - , Diana apercebe-se de uma multiplicidade de factores que contribuem para que Portugal se volte para outros continentes. A tudo isto junta-se, ainda, o incomensurável desvio de verbas e públicas para bolsos privados, deixando o Estado numa situação de penúria que o leva a procurar financiamento além-fronteiras.

Outro aspecto negativo da colonização portuguesa prende-se, nesta visão de Ayala Monteiro projectada em Diana, está relacionado com o choque de mentalidades, que se traduz numa forte repressão sexual. Mais ainda, quando se trata de homossexualidade, já que a educação lusa, sofreria ainda durante vários séculos, fortes constrangimentos culturais do que toca à orientação da sexualidade; à época, a homossexualidade era tão mal vista quanto um casamento baseado exclusivamente na atracção erótica, sobretudo entre etnias diferentes, os quais só poderiam ser justificados, depois, pela cristianização dos respectivos descendentes.

O final vai um pouco ao encontro do início do romance, fazendo da trama de A Rainha da Canela” uma narrativa de evolução circular, em consideração à questão da violência, dirigida quer às mulheres quer aos animais, expressa tanto na linguagem como nos actos perpetrados. No entanto, os últimos parágrafos deixam no ar uma certa beleza poética, quase a atingir o sublime, quando a heroína se volatiliza, da mesma forma que o perfume da canela, fazendo deste romance histórico um pouco o espelho da actualidade, mas sem mascarar a História com falsos altruísmos…

Cláudia de Sousa Dias

Saturday, July 23, 2011

“Escalas do Levante” de Amin Maalouf (Difel)




Tradução de António Pescada




De origem libanesa, Amin Maalouf reside actualmente em Paris, tendo-se tornado membro da Academia Francesa desde 2011. Escritor e jornalista foi, primeiramente, chefe de redacção e depois, editor, do Jeune Afrique. Foi, ainda, repórter durante doze anos, tendo realizado missões em mais de sessenta países, tornando-se um importante difusor da cultura árabe no Ocidente.



Filho de Ruchdi Maalouf, conhecido escritor, professor e jornalista no Líbano, Amin frequentou os colégios jesuítas de Beirute e, após a conclusão dos seus estudos em Economia e Sociologia, continuou a longa tradição familiar no Jornalismo.



Como escritor, obteve já o prémio Prix des Maison de la Press, com a com o ensaio As Cruzadas vistas pelos Árabes; o Prémio Goncurt, pelo romance O Rochedo de Tamnios em 1993; e o Prémio Príncipe de las Asturias, na categoria de letras em 2010.



Amin Maalouf é o resultado da fusão cultural entre Oriente e Ocidente, já que Paris é a sua cidade de eleição, quando não percorre as “escalas do levante”. A sua obra pretende ser uma lufada de ar fresco, um sopro de esperança na dissolução das fronteiras erguidas pelo ódio racial e pela intolerância entre os homens.



Escalas do Levante é desenvolvido em dois planos narrativos, num dos quais o narrador começa por relatar, na primeira pessoa, durante uma das suas deambulações pela Cidade Luz, na companhia de uma estranha personagem, um pouco perdida no bulício da cidade e suas encruzilhadas. O narrador, participante, descobre o tema para uma história empolgante ao constatar que o estranho sujeito que o acompanha é, ao que tudo indica, descendente da longa linhagem de imperadores otomanos. Trata-se de Ossyane, uma figura algo alienada, perdida no labirinto do Tempo e do espaço Urbano, em cuja memória está contida a trepidante e conturbada história da Turquia e do mundo mediterrânico do Próximo Oriente, nos dois séculos que precederam o actual.



Ossyane, o protagonista, assim como o narrador, cuja missão começa numa conversa casual e que termina numa entrevista, com o propósito de extrair uma história singular, são o eixo à volta do qual se desenvolve a trama de “Escalas do Levante”, ao longo da qual Ossyane vai desvendando os segredos de várias gerações da Família Real otomana, soterrados nas areias do Tempo. O entrevistador tem a particularidade de, ao assumir uma postura interactiva simultaneamente assertiva e empática, conseguir conquistar a confiança do interlocutor, dando vazão ao seu incomensurável desejo de se confiar a alguém. O entendimento rapidamente estabelecido entre ambos provém de um fundo cultural comum, que serve de base a que a narrativa se possa ampliar.



O segundo plano narrativo é vertido sob a forma de crónica pelo príncipe, englobando a infância em Istambul, a adolescência em Beirute, uma curta incursão nos primeiros anos de jovem adulto na Faculdade de Medicina em Paris, regressando ao Levante após a guerra, durante a qual actuou em colaboração com a Resistência Francesa, durante a ocupação nazi. Este regresso marca uma crise profunda no, até há pouco tempo, brilhante estudante de Medicina, precisamente na altura em que estala o conflito israelo-árabe e o protagonista sente a alma dividir-se em duas. Curiosamente, o tempo desta parte da história coincide com o período em que o próprior Autor se muda com a família para Paris, durante a Guerra Civil no Líbano, já no final dos anos 1970.



Para enfatizar ainda mais a irracionalidade do conflito, Amin Maalouf introduz na trama a componente do amor entre as duas facções opostas durante a guerra israelo-árabe. Mas tudo começa em França, onde Ossyane conhece uma jovem judia por quem se apaixona arrebatadoramente. Ambos são extremamente inteligentes, cultos, e possuidores de abertura de espírito suficiente para encontrarem no outro afinidades que os aproximam. Mas os obstáculos ao relacionamento não são de pouca monta, já que, tanto a História como a Cultura, bem como algumas pessoas próximas ao casal se encarregam de, na maior parte das vezes de forma consciente e propositada, sabotar a relação. Sem esquecer que Ossyane descende de uma família problemática, com todo um historial de conspirações, assassínios, suicídios e episódios de insanidade mental, as quais marcam o fim trágico de algumas mulheres da família, tais como a mãe e a avó de Ossyane.



A forma que Maalouf utiliza para cativar o leitor é muito subtil: começa por nos apresentar uma personagem envolta numa espécie de neblina de mistério. Depois, opta por quebrar o gelo entre as duas personagens, ainda dentro do plano narrativo secundário, que engloba a acção principal. DeSó então passa à acção propriamente dita: as vicissitudes que culminam com a desagregação do Império Otomano, a partir da Primeira Guerra Mundial, e o destino dos descendentes da família real, exilada em Beirute, com alguns membros a dispersarem-se pelos diversos recantos do Globo, expulsos de Istambul pelo exército de Atatürk e pela fúria da populaça.



Segunda Fase


A segunda etapa de Escalas do Levante, é relativa ao período em que a família se estabelece em Beirute. À medida que avançamos no romance, percebemos que a estada de Ossyane durante a juventude, em Paris, é apenas um interregno na rota levantina e se trata apenas do ponto de converência que tornará possível o encontro entre Ossyane e Clara, cuja afeição é cimentada pela colaboração de ambos na resistência anti-nazi, o elo comum que os aproxima.



E é, mais tarde ,esse passado comum, a lembrança do risco partilhado, que irá impedir que um ódio tribal e secular destrua o elemento do sublime que é a fortaleza da relação de ambos, apesar de intrigas familiares a que se juntam falsos juízos baseados em estereótipos.



O lirismo optimista de Amin Maalouf dá-nos, nestas Escalas do levante, a visão das relações entre o Oriente e o Ocidente ao longo dos primeiro três quartos do século XX, e do caminho possível para a a solução da paz no Médio Oriente. A ideia não é tão linear quanto possa parecer: o Autor não faz uma mera apologia da mistura dos sangues e dos genes. Insiste, antes, na necessidade de cada sujeito, judeu ou muçulmano, fazer uma introspecção colocando, ao mesmo tempo, o Outro na posição de espelho de si Mesmo, antes de emitir um julgamento ou um juízo de valor.



Por outro lado, Amin Maalouf, ao abordar a problemática do conflito das gerações, não se limita a mostrar a necessidade de construção da identidade individual, com base nos pilares da autonomia e da independência,de um ser como Ossyane ou mesmo Clara. Mostra, também, a forma desigual em como Oriente e Ocidente encaram a velhice e mesmo a própria doença mental: o amor com que é tratada a avó de Ossyane, cujo estado de alienação atinge um ponto tal que não lhe permite interagir totalmente com os habitantes da casa ou as visitas. No entanto, todos fazem com que ela nunca seja, apesar das suas limitações, excluída do contacto com os seus, dando-lhe a oportunidade de desfrutar de uma vida tão normal quanto possível. Filhos e netos fazem questão de respeitar as suas crises, sem lhe retirar o direito à livre expressão da sua “loucura”. A Avó, é apenas vista como um ser “diferente”, mas a cuja diferença dão todo o direito de existir. Trata-se de uma loucura que não põe em perigo a vida de terceiros, sendo decorrente de um choque, o qual a transporta para um mundo onde lhe seja possível refugiar-se do horror. A mesma fragilidade parece ser, no entanto, transmitida ao neto Ossyane, que em dada altura da vida sucumbe ao mesmo estigma da avó. Esta forma de olhara a “loucura” contrasta vivamente com a forma como a Psiquiatria e a Psicologia modernas lidam com a doençamental ao provocar – a primeira, sobretudo - muitas vezes, uma espécie de lobotomia química nos doentes, ao passo que a segunda, quando exercida por maus profssionais, os exclui, muitas vezes, da vida social e profissional, quando baseada em premissas assentes em falsas correlações de causa e efeito.



No entanto, a relação entre o psiquiatra oriental do romance e a paciente pode levantar algumas questões éticas, já que este acaba por desposar a doente. Este decide, movido pelo amor pela jovem, treinar a família para a melhor forma de lidar com as crises desta e incluí-la, sempre que possível, nos hábitos de rotina familiares. Como contraponto, o aautor exibe a forma infame como são tratados os doentes mentais de algumas clínicas ou hospitais psiquiátricos privados em Beirute, nos anos 1970, sobretudo quando provenientes de famílias abastadas, depois de a família depositar o doente naqueles lugares, convertidos em autênticos armazéns de alienados, em troca de uma mensalidade exorbitante.

Amin Maalouf empenha-se, através da personagem de Ossyane, na exaustiva descrição da rotina dos doentes da clínica, perfeitamente ocidentalizada, em Beirute, e da forma em como muito dos casos diagnosticados como “doença mental” a situação clínica é, muitas vezes, artificialmente indefinida e indecorosamente prolongada à custa de pesadas doses de fármacos.
“A Residência do Caminho Novo” , o nome do hospital privado onde internam durante muito tempo Ossyane em Beirute, durante o período em que aquele país é administrado pelo Governo Francês, acaba por se assemelhar muito mais a um lugar como Theresienstadt. Isto é, a um falso refúgio, um campo de concentração que funciona como antecâmara da morte, neste caso, uma amputação cerebral por via química, tornando a reintegração social dos sujeitos que aí habitam numa quimera.


O estilo do autor é sobretudo, jornalístico. Amin Maalouf utiliza a técnica do relato, servindo-se das intervenções do interlocutor e do narrador principal, onde o primeiro é provocado pelas perguntas exploratórias do segundo, o jornalista, tal como nas grandes reportagens elaboradas para revistas especializadas.



No epílogo, o leitor toma consciência, através da observação directa e, simultaneamente, distanciada, do espaço onde se encontra a personagem, e onde já não existe a interferência directa do narrador. O protagonista Ossyane, age agora por sua conta e risco, sem evitar ser indiscretamente observado pelo olho do destino, na figura do jornalista, vítima de uma viciante curiosidade profissional e da irresistível indiscrição de um paparazzo, que assiste, comovido a um acontecimento detonador de fortes emoções por indiciar ae esperança de um futuro possível para uma Humanidade que dissolveu as fronteiras do Ódio.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, July 18, 2011

"Salomé" de Oscar Wilde (Planeta Agostini)


Tradução de Isabel Barbudo


O Amor no limiar da Loucura, num vórtice passional onde se fundem as mais primitivas pulsões, recalcadas no inconsciente humano.

Oscar Wilde parte de uma história bíblica para a construção de uma belíssima peça de teatro, escrita originalmente em Francês. A estreia contou com a interpretação da mítica Sarah Bernhardt como protagonista.

A obra foi proibida em Inglaterra, tanto no tocante à publicação como à sua exibição em salas de espectáculos, por influência da ala protestante e conservadora no Parlamento que não permitia a representação de personagens da Bíblia.

A Salomé de Wilde obra é de de um dramatismo pungente, pela intensidade das emoções vertidas pelas personagens que intervém na trama, sendo pelo contrário, entusiasticamente aplaudida e aclamada na Cidade-Luz.

Olhando a obra do ponto de vista psicanalítico podemos, talvez, inferir que a construção do perfil psicológico das personagens nela contidas reflecte a controversa sexualidade do autor, isto é, uma homossexualidade camuflada, a par de uma misoginia mais do que evidente.

A corroborar o facto, podemos observar que todas as características do ideal de beleza física deWilde estão presentes na figura de João Baptista que é, para o autor, o (seu) verdadeiro objecto de desejo enquanto que este (Wilde) se projecta na figura de Salomé como a personagem que seduz, possuidora da aparência física que ele próprio idealiza como fazendo parte do eterno feminino e que ele próprio gostaria de poder ostentar (daí a malícia de Beardsley ao retratá-lo na imagem da perversa rainha Herodias, na célebre edição que foi destruída pelo Ãutor).

A faceta misógina do Oscar Wilde decide atribuir a Salomé a beleza de uma mulher fatal, mas diáfana, a qual ele identifica com a Lua - símbolo que personifica a ambiguidade e, simultaneamente, a fronteira entre a realidade e a loucura - facto ilustrado pelos presságios, evidentes em vários momentos deste drama intensíssimo, quando as personagens são advertidas do perigo de sucumbir à perda da razão pela excessiva contemplação da Lua (Salomé).

Porque a Lua, tal como a Princesa Real, possui uma face oculta (ao fim e ao cabo como o próprioWilde em relação à sua própria sexualidade, camuflada sob a capa de um casamento com e dois filhos). Esta ambiguidade apresenta-se em Salomé, na ausência total de limites quanto à satisfação dos seus desejos a que se opõe uma sua aparência angelical e inocente, a principal característica susceptível de enlouquecer quem por ela se deixa enfeitiçar.

Ao longo da peça vai sendo progressivamente desvendado o ambiente propício à tragédia, assinalada por presságios e pela ocorrência da morte daqueles que contemplam demasiado a figura lunar da Princesa Real. João Baptista é o único que salva a alma porque se abstém de a contemplar, agarrando-se firmemente à adoração do Filho do Homem para escapar à periculosidade da sedução feminina.

Mas não consegue salvar a vida. João Baptista cai no erro de humilhar alguém que sente a turbulência de um primeiro amor, que ele não compreende, e que se propõe a condenar sem piedade. Não esqueçamos que João Baptista é apenas humano. Não possui a perfeição espiritual de um filho directo de Deus. A Lua, que empresta a sua sedução à figura de Salomé e orgulho vingativo, na sua faceta de Hécate, reage violenta e passionalmente à rejeição, tirando a vida ao ser amado para concretizar aquilo o que não consegue realizar com ele vivo: o beijo que lhe foi negado.

Salomé, está impregnada do universo que povoa o inconsciente deste polémico autor britânico, com um complexo cocktail de pulsões, fobias, desejos ocultos, tabus sexuais e contradições que emanam do conflito entre o id, o ego e o superego do autor projectado nas personagens.

Salomé é a própria personificação do Desejo, das pulsões que são, normalmente, "castradas" pela religião, representada e defendida com uma paixão de verdadeiro fundamentalista, por João Baptista.

Uma história de amor, loucura e morte que Oscar Wilde legou para a posteridade e que obriga o leitor\espectador a reflectir acerca dos limites da paixão e da tolerância.


Cláudia de Sousa Dias

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Monday, July 11, 2011

“Rei Édipo”de Sófocles (Edições 70)



Tradução de Maria do Céu Zambujo Fialho

O Editor, a partir do site da livraria Almedina, sintetiza os principais tópicos abordados no drama que se tornou um dos principais ícones da tragédia clássica:

Todo o pano de fundo em que decorre a peça é formado por dados que a tradição já registara e que, consequentemente, o público conhece: o nascimento de Édipo, votado a um futuro de parricida incestuoso, o seu abandono pelos pais, a sua adopção pelos reis de Corinto, a descoberta do oráculo sobre o seu destino, a morte acidental do pai, o episódio da esfinge, o casamento com Jocasta, a mãe, e a revelação trágica do duplo crime e da verdade dos oráculos...
Tragédia do conhecimento de si, Rei Édipo é, assim, uma tragédia da condição humana, tal como Sófocles a concebeu, com muito do sentimento do efémero patente na lírica arcaica, onde o homem, embalado pela canção da aparência, caminha, cego, para a sua ruína, pensando ter sido escolhido o rumo exacto, tornando assim todo o orgulho vão, e frágil toda a certeza de si próprio.

Esta atraente reedição de 2006, é feita a partir do original em grego e valorizada por um grafismo minimalista, a representar uma tamareira na capa. A maior parte do texto da obra de que aqui tratamos é constituída pelo brilhante prefácio da tradutora Maria do Céu Zambujo Fialho, no qual são exploradas as várias dimensões de análise do drama deste Autor do período clássico da civilização da Hélade e, ao longo do qual, a Tradutora/Autora sugere várias pistas para a descodificação das frases sibilinas contidas nos diálogos. Outro aspecto relevante na obra, a acrescentar-lhe uma importante mais-valia, são as notas de rodapé, que visam esclarecer alguns do elementos da cultura da época, menos conhecidos do grande público, assim como a extensa listagem da bibliografia utilizada que serviu de base a MCZ para a redacção do prefácio e notas de rodapé.

No mesmo prefácio, são cuidadosamente explorados o papel e a importância de cada personagem na trama e comentadas as atitudes e respectivas nuances de comportamento, à medida que se desenvolve a acção. É dada, aqui, uma ênfase especial ao papel e função dos oráculos e dos áugures, que vão lançando algumas pistas sobre a forma como se desenvolve o conflito entre as personagens. As atitudes de Laio e Jocasta são avaliadas, assim como as de Édipo e Creonte, em relação àquela classe social que tanta influência exercia na Grécia arcaica: os sacerdotes e profetas. A esta diferença de posições está subjacente uma mudança cultural, ocorrida já na época em que Sófocles escreve a peça, opondo dois pontos de vista claramente distintos: de um lado, a posição dogmática, a fé cega nos deuses e oráculos, característica do período arcaico; e, por outro lado, a dúvida, o espírito crítico, a interrogação típica do período clássico, onde as artes, a poesia, a música e a filosofia, o Conhecimento, se opõem ao poder dos sacerdotes, dado que o Autor do drama é contemporâneo dos intelectuais de vanguarda e espíritos mais brilhantes do glorioso século de Péricles.

São, também, analisadas as relações de atracção entre as personagens, de que é paradigma a de Édipo e Jocasta e as de repulsão como a de Édipo e Laio, ou a de Édipo e Creonte.

A Hybris e a Phtonos - Orgulho e Inveja

Ao lermos os versos de Sófocles, apercebemo-nos sobretudo dos medos dos antigos Gregos, transversais a todas as épocas da história da Hélade. Por exemplo, reparamos que a Hybris – presunção ou orgulho desmedido – é quase sempre o detonador de acontecimentos nefastos, assim como o desejo desmedido de ostentação, aquisição de poder e todas as formas de exibicionismo, sobretudo quando os humanos se querem igualar aos deuses. Todos estes comportamentos despertam nos mesmos deuses – ou nos homens humildes, sobretudo nos menos agraciados pela sorte - o sentimento de Phtonos: o ciúme ou a inveja, que trazem sempre consequências devastadoras para os que são alvo deste género de emoção destrutiva, por se tentarem destacar dos demais.

O Acaso

O papel do acaso é também tido em consideração na obra, tratando a submissão do homem aos caprichos da sorte e ao determinismo das profecias na tentativa de controlar a aleatoriedade inerente à lei do acaso. Percebe-se, no entanto, o pseudo-determinismo, anunciado pela voz dos sacerdotes-áugures, no intuito de conceder uma falsa segurança àqueles que os consultam face à imprevisibilidade do destino, o que se revela uma excelente ferramenta de manipulação a qual acabará por levar algumas duas das principais personagens – Laio e Jocasta – a cometer um dos piores crimes contra a humanidade (parricídio) e, mais tarde, a que a protagonista feminina quebre um dos principais tabus sociais, ao encetar uma relação incestuosa, por desconhecimento e, precisamente, por se deixar guiar pelos oráculos.

Outro aspecto que ressalta da leitura de Rei Édipo é a consciência do erro que desencadeia a necessidade de expiação. Um facto curioso é o de, à época em que decorrem os acontecimentos, o desconhecimento dos actos dolosos praticados poder ser usado como atenuante face à punição atribuída – o exílio e não a morte – sem contudo apagar o sentimento de culpa, ou impedir a expiação da mesma, caindo na patologia da automutilação.

As consequências

Édipo e Jocasta, a partir do momento em que tomam consciência da realidade – ou são confrontados com ela – querem de tal forma demarcar-se dos actos cometidos, que optam por cortar radicalmente com o passado na tentativa de o eliminar: Jocasta põe termo à vida e Édipo vaza os olhos, escolhendo o mundo das trevas para deixar de contemplar a mulher que ama e à qual não consegue olhar como mãe – porque nunca o foi – assim como a desonra perante as filhas que são, na realidade, suas irmãs.

Sófocles pretende colocar em evidência dois termos antagónicos que pressupõem duas formas diametralmente opostas de olhar a Vida: a arrogância da hybris, que se liga a uma espécie de cegueira mental - como é o caso de Laio e, por vezes, Édipo - face à moderação e à inteligência, o caminho que Édipo quer seguir a partir de então, optando pela cegueira física. O rei deposto, no momento em que provoca a própria cegueira, está a rejeitar o mundo das aparências e a tentar seguir o caminho do idealismo platónico do mundo da razão e das ideias, já que foi traído pelos sentidos.

Ao aperceber-se que a vida se desmorona, fruto da ira e de um erro de percepção, Édipo, no acto de substituição da cegueira mental pela cegueira física está, doravante, obrigado a apurar outro género de visão, mais acutilante, profunda e com um menor grau de falibilidade: a Razão.

Édipo não é, no entanto, o único personagem cujos actos se deixam conduzir pela cegueira dos sentidos: Laio e Jocasta sofrem, também, as consequências do mesmo erro, ao darem ouvidos àquilo que poderiam ser “vozes mal intencionadas” – isto é, vindas dos áugures, mediante supostas mensagens dos “deuses” – no momento em que encarregam o criado de assassinar ou eliminar o próprio filho.

Uma hipótese de leitura que se poderá levantar é o facto de os deuses, no Olimpo inacessível, poderem decretar a punição e expiação em casos análogos, mas as maquinações que desencadeiam actos criminosos terem somente origem na maldade humana ou no impulso negativo de destruição do Outro. Trata-se da versão antiga do axioma que infere que "todo o comportamento gera comportamento" ou de que "a uma determinada acção se segue e reacção correspondente".

Ao analisarmos mais detalhadamente a obra numa perspectiva crítica, não podemos deixar de achar no mínimo suspeita a estreita ligação entre Creonte e os sacerdotes-áugures do Templo de Apolo, os quais ditam os oráculos. E como, de oráculo em oráculo, todos aqueles que estão colocados na linha de sucessão do trono, à frente de Creonte, vão desaparecendo.

Também não deixa de ser igualmente suspeito que todas as personagens secundárias, parecerem surgir no momento oportuno e de forma a que a revelação do delito tenha o máximo efeito, em termos de impacto na opinião pública. As mesmas personagens acabam por desempenhar o papel de adjuvantes, não do protagonista, mas do anti-herói, o qual surge com a imagem impoluta, apesar de se adivinhar tão venal quanto os demais protagonistas. O homem que entrega o filho de Jocasta, recém-nascido, está também presente na encruzilhada, no momento em que Laio é morto. E é, precisamente, o único elemento da comitiva que escapa com vida, após o confronto entre pai e filho. O mesmo criado é mandado trazer por Édipo para a audiência mas, por detrás dos boatos e das dúvidas que surgem, está Creonte o qual, insidiosamente, incita Édipo a investigar o seu passado oculto. Posto isto, verificamos que a testemunha-chave está presente em todos os momentos cruciais, o que é muito pouco verosímil. A menos que se trate de uma farsa, montada por quem beneficia da eliminação dos descendentes em linha directa ao trono, se adjuvado por uma muito bem armada teia de cúmplices.

Édipo não resiste à curiosidade e morde o isco, ao tentar descobrir a verdade que se oculta por detrás das suas origens obscuras. Verdade que, neste caso, irá despoletar uma guerra civil e a destruição de pessoas que não erraram por malícia.

É, também, notório que, nos versos de Sófocles, as intenções nefastas de Creonte as quais afloram, também, à mente de Édipo: Mas a suspeita é rapidamente eclipsada pelo desenrolar dos acontecimentos e pelo choque violento, desencadeado pelas revelações. Parte da verdade acaba no entanto por ficar no segredo dos deuses, em virtude do desaparecimento ou afastamento das personagens interessadas.

Rei Édipo será sempre uma das mais fascinantes alegorias, envolvendo os meandros da política, que se torna, evidentemente transversal, a todas as épocas históricas, por ser o espelho da natureza humana o seu aspecto essencial, que se conserva intacta ao longo dos Tempos.



Cláudia de Sousa Dias

Friday, July 01, 2011

“A Confissão de Uma Jovem” de Marcel Proust (Teorema)




Filho de Adrien Proust, célebre patologista, e Jeanne Weil, uma jovem alsaciana de origem judia, Marcel Proust nasce numa família rica que lhe assegura uma vida desafogada, permitindo-lhe frequentar os salões da alta sociedade da época.

Estuda Ciência Política na Sorbonne, mas em 1900, efectua uma viagem a Veneza, durante a qual se dedica às questões de estética. Em 1904, publica várias traduções do crítico de arte John Ruskin (1819-1900).

Paralelamente à actividade de cronista social para o Le Figaro, ao desenvolver a carreira de escritor, escreve Jean Santeuil, romance deixado incompleto, publicou Os Prazeres e os Dias (Les Plaisirs et les Jours), onde reúne uma série de contos e poemas de onde foram retiradas as estórias contos presentes no volume de que aqui tratamos.

Após a morte dos pais, a saúde de Marcel Proust, já frágil, deteriora-se mais. A morte da mãe, em 1905, fez dele herdeiro de uma fortuna razoável. Com a saúde cada vez mais debilitada, Proust acaba por se isolar dos meios sociaisdedicamdo-se exclusivamente à criação de Em Busca do Tempo Perdido, publicado entre 1913 e 1927, em oito volumes: No Caminho de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes (1 e 2), Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Redescoberto.

Esta série de oito volumes é consideradas umas das maiores obras da Literatura, não apenas do século XX, tendo inclusive o volume
À Sombra das raparigas em Flor, recebido, em 1919, o Prémio Goncourt, mas de toda a História da Literatura.

A homossexualidade é tema recorrente em sua obra, principalmente em Sodoma e Gomorra e volumes subsequentes. O Autor arabalhou incansavelmente até falecer, em 1922, esgotado, vítima de uma bronquite mal curada, agravada pelos efeitos da asma crónica de que já sofria desde tenra infância.

As narrativas das estória de “A Confissão de uma Jovem” contém episódios que, à luz da época, constituíam um verdadeiro escândalo social, deitando por terra todo um conjunto de tabus sociais relativos à sexualidade das jovens casadoiras da alta e média burguesia e denunciando a hipocrisia da moral preconizada pela alta burguesia da Europa do início do século XX.

A “confissão” tem a ver com o fim da vida da jovem Françoise que no primeiro dos contos deste volume conta a sua iniciação sexual na adolescência. O último dos contos “Ao anoitecer” é uma viagem pelo íntimo da mesma Françoise, depois de enviuvar. Ambos são construídos sobre o impulso de narrar da mesma pessoa que, após a tentativa de suicídio mal calculada – uma vez que a morte não é imediata, mas se prolonga numa lenta agonia que dura vários dias – decide confiar a um amigo o conflito vivido entre o impulso da procura do prazer e as restrições impostas por uma moralidade judaico-cristã, que reprime a sensualidade e a sexualidade, sobretudo feminina, fora do casamento e a homossexualidade.

O discurso é melancólico e predominantemente depressivo. A melancolia prolonga-se no tempo, ora fazendo arrastar toda uma existência agarrada à memória de um passado, marcado pela vertigem de uma paixão reprimida pelas convenções, ora pela procura obsessiva do prazer que permita esquecer a felicidade perdida, buscando refúgio nas “falsas alegrias” de uma vida social – e sexualmente – trepidante.

A descoberta do prazer sexual na adolescência deve-se à atitude audaz e transgressora de um jovem mais velho “mundano” – um dândi – que a rejeita em seguida. A jovem sente-se obrigada a esconder da mãe os encontros secretos com o amante, devido à valorização que, na época, se atribuía à virgindade, até à data do casamento. Mas a rejeição do primeiro amante impele-a a procurar o prazer de forma compulsiva, de forma a encontrar um sucedâneo de uma paixão da qual se torna dependente como de uma droga. A protagonista precipita-se, então, num torvelinho de festas e reuniões sociais onde sempre se torna o centro das atenções:

Sempre dominada pelo desejo de ser admirada dentro de uma jaula elegante, nunca senti menos profundamente a música.

Com a morte da mãe, vê-se a braços com a necessidade de efectuar um casamento motivado mais pela necessidade de sobrevivência que pela paixão. No relacionamento conjugal predominam, sobretudo, sentimentos como o dever e a gratidão. No entanto, o desejo pelo proibido continua a ensombrar-lhe o pensamento.

No conto Um Jantar na Cidade o convidado de honra é Honoré, tido como um solitário árbitro das elegâncias. Durante a reunião, fala-se de frivolidades e relações paralelas ou clandestinas entre alguns convivas, que se tornam notórias em alguns comportamentos não verbais:

A dona da casa lançava-lhe a todo o momento olhares flamejantes que explicavam muito bem porque o concedia e como dentro em breve faria parte da sua sociedade.

O alvo dessas mesmas atenções é o elegante convidado sentado ao lado de Honoré.

Nos diálogos á mesa da casa de jantar sobressai, nas entrelinhas dos diálogos, alguma malevolência e muito elitismo desdenhoso, típico de classes privilegiadas, com particular incidência na alta burguesia que pretende equiparar-se à classe aristocrática.

O snobismo de Madame Trennes impunha-se às suas amigas e o das suas amigas era uma espécie de garantia contra o emburguesamento.

Já a verdadeira aristocrata, Madame Lenoir, era “uma prostituta da nobreza”, a quem os demais tratavam com deferência, por causa da idade avançada - e pela sua ligação à família real -, pela sua grande fortuna e constante esterilidade dos seus três casamentos…

O narrador faz ainda um minucioso trabalho de tipificação dos diferentes níveis de snobismo.

Só Madame Lenoir parece constituir um caso à parte: tratada como uma rainha-mãe, sente-se, paradoxalmente, exilada da sociedade mais jovem, falando sempre com ternura e nostalgia dos “velhos fidalgos de outrora”. De acordo com o ponto de vista pessoal do narrador, este tipo de snobismo trata-se de exibicionismo puro e simples, denotando uma imaginação vívida e fértil.

Os olhos cintilavam de desejo. O seu aspecto sorridente era nobre, mas tinha uma expressão excessiva e insignificante.

(…)

Algumas rosas, já velhas, cingiam a sua fronte estreita.

A este tipo simples de snobismo opõe-se o snobismo de teor humanista, a conter uma boa dose de hipocrisia. A este género de snobes o narrador considera-os igualmente superficiais em relação aos da outra espécie, embora lutem contra o que chamam de “embrutecimento profundo”, a verdadeira causa da emergência deste sentimento (o snobismo), mas sem se empenharem a fundo na luta contra a pobreza propriamente dita. No entender do mesmo narrador, estes snobes literatos discutem literatura e falam de desigualdades sociais, apesar dos elevados rendimentos de que desfrutam. A pobreza é abordada como um assunto trivial, preocupante, sem dúvida, mas que não lhes diz respeito.

Com a descrição deste jantar, a intenção do Autor é a de denunciar a hipocrisia que se esconde atrás de uma falsa caridade a mascarar apenas um forte desejo de projecção social e reconhecimento. Trata-se de pessoas cujos actos altruístas são apenas motivados pela própria vaidade pessoal.

A ironia fina e o sarcasmo presentes nos comentários dos convivas durante o jantar e todo o serão despoletam cínicas gargalhadas, para embaraço do convidado elegante que se senta ao lado de Honoré, ao qual a mesma autora dos comentários desdenhosos parece devorar com o olhar.

O tema da pobreza vem, mais uma vez, à baila com diplomática indiferença, denunciando a verdadeira posição das classes privilegiadas face ao abismo social criados pelo liberalismo económico, causador do incomensurável abismo entre ricos e pobres.

Na segunda parte da narrativa - Depois do jantar – ainda em casa de Madame Trennes, Honoré sai em busca de prazer para os Campos Elísios. Enquanto passeia da rua, descreve com requinte a oferta de sexo disponível, de todos os géneros.

Marcel Proust recorre, no entanto, ao uso do eufemismo, para não ser alvo de atitudes censóreas quer por uma questão de requinte estilístico.

Entregava-se, assim, à admiração de quem passava, com essa ternura de travar com as outras pessoas um voluptuoso comércio.

A passagem à estória seguinte – O Fim do Ciúme – sublinha a principal do uso frequente do possessivo entre os amantes, a que se soma o desejo de protecção e domínio, a que se alia um certo paternalismo no emprego do diminutivo entre o protagonista e a amante, o que dá uma certa puerilidade aos diálogos. Como este é perfeitamente capaz de ser infiel convence-se de que a mulher também o trai, manietando-a de forma a tentar obter a confissão da própria infidelidade, marcando o fim do relacionamento, que se torna impossível, devido ao complexo de Otello, por ele desenvolvido. Devido a este transtorno de ordem afectiva, este otello proustiano acaba por sofrer um acidente que o torna incapacitado e objecto da piedade feminina. Piedade não é amor e muito menos desejo. Um deficiente físico que não tem, no entanto, ciúme do amor que possam dedicar ao objecto que amado, mas sim do prazer que lhe possam proporcionar. A vida torna-se, para ele, uma verdadeira agonia.

Outra situação paradigmática, descrita no conto seguinte, é aquela narrada no capítulo O Indiferente tem como protagonista o talentoso maestro Lepré, um homem extremamente reservado em sociedade, indiferente à atenção que lhe dedicam as beldades, por ter consciência da sua condição económica não muito desafogada e físico um tanto apagado. O maestro Lepré detém, a par de um indiscutível talento, uma aparentemente inexplicável baixa auto-estima. Mesmo o “encontro primitivo” com Madame Lawrence, conhecida pelo hábito peculiar de se enfeitar somente com flores no lugar de jóias, uma das mais bonitas mulheres de Paris, deixa-o na defensiva. Lepré, apesar de sensível e inteligente, nunca tem sucesso com as mulheres. Até ao momento em que é do conhecimento público que está de partida…sendo então tratado com toda a amabilidade e deferência. É somente nessa altura que se permite baixar as próprias defesas, apaixonando-se quando se sabe na eminência de perder o objecto do próprio desejo. Lepré personifica o tipo de homem que não deseja efectivamente apaixonar-se por temer a vida em comum. Trata-se de um solitário convicto. Por outro lado, tem uma faceta oculta e ultra-secreta: as mulheres da dita “boa sociedade” não lhe interessam porque aprecia a imoderação das chamadas “mulheres da vida”. É por isso que se esforça por convencer a cobiçada beldade que o admira a resignar-se a uma intimidade puramente amigável. Esta acaba por casar com alguém que lhe dá a atenção de que necessita, compensando o desprezo do maestro.

O finalAo anoitecer

Voltamos a Françoise, a amante suicida.

A descrição do ambiente e a própria caracterização física da protagonista apelam simultaneamente ao romantismo e ao simbolismo: a presença envolvente da noite e a melancolia, são sublinhadas pelo predomínio de tons lunares e azulados como o azul-violeta dos olhos e os miosótis contemplados por Leslie, o amigo confessor e confidente. O pôr-do-sol e o cair da noite estão em sintonia com a despedida da vida de Françoise, num cenário onde a volúpia decadente se mistura à nostalgia.

Leslie escuta a jovem, algo desolado, face à admiração platónica que lhe dedica. Françoise está viúva há mais de vinte anos. Há uma curiosa referência à homossexualidade feminina, em determinada altura da viuvez, num extraordinário golpe da ousadia dado por Proust na literatura daquela época.

Este último conto publicado na Revue Blanche vem confirmar um facto já presente no conto inicial onde já se deixava entrever a homossexualidade do Autor projectado na adolescente que o protagoniza, ainda solteira, a adoptar atitudes que indiciam a prática da sodomia.

Neste estágio, em conversa com Leslie, vinte anos depois, Proust debita, pela voz de Françoise, a defesa do direito individual à escolha da orientação sexual e da possibilidade de esta mudar conforme a fase da vida e devir do próprio Desejo.

Leslie é um ouvinte empático. Françoise admite terem existido ao longo da própria vida demasiadas “sombras”ou situações que sempre preferiu guardar para si mesma para não se expor à críticas da sociedade:

Se o amor fecundo, destinado a perpetuar a raça, nobre coo um dever familiar, social e humano, é superior ao amor puramente voluptuoso, em contrapartida não há contrapartida entre os amores estéreis e não é menos moral, ou pelo menos não é, antes, mais imoral que uma mulher tenha prazer com outras mulheres do que com outras pessoas do esmo sexo. A causa desse amor está numa alteração nervosa que se revela muito exclusiva, para ter um sentido moral.

Após esgotar os argumentos para a dissertação sobre as diferentes manifestações do desejo, da livre expressão dos sentimentos e das diversas formas que assumem as relações pessoais, assim como o acondicionar destes impulsos com os constrangimentos impostos pela sociedade patriarcal, a vida de Françoise parece esvair-se, evaporar-se, esgotar-se à medida que o dia fenece…

Apesar de não ser a obra mais importante de Proust esta é uma obra que realça a reacção ao conservadorismo materialista do início do XX. Uma obra de refinado estilo literário, sublinhada pelas emoções complexas e subtileza de sentimentos nela descritos.

Cláudia de Sousa Dias