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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, June 13, 2015

A Paixão de Constança H. de Maria Teresa Horta (Bertrand)




Maria Teresa Horta quase que dispensa apresentações. Já se falou dela aqui, neste mesmo blogue, a propósito de “Azul-cobalto”, o conto que faz parte da antologia Doze Histórias de Mulheres, primeiramente publicado em 1999, e agora reeditado na compilação de contos de MTH intitulada Meninas. “Azul-cobalto” é uma precuela do romance de que falamos hoje, publicado pela primeira vez cinco anos antes do referido conto ver a luz do dia.

Teresa Horta é sobretudo uma poetisa – este ano reedita-se uma das suas primeiras obras do género Minha Senhora de Mim, publicado pela primeira vez em 1971 – embora nas últimas décadas também se tenha destacado como romancista.

 Maria Teresa Horta tendo nascido em 1937, para além de se dedica ao jornalismo e à escrita literária, foi a primeira mulher em Portugal a ser directora de um cine-clube. E, talvez por isso mesmo, o cinema, sobretudo os clássicos das décadas de ouro em Hollywood (1940 até finais dos anos '60 do século XX) e o Cinema Francês da nouvelle vague influenciaram largamente a sua escrita em prosa.

Na contracapa desta edição de A Paixão de Constança H. de 2010, está escrito:

A obra literária de Maria Teresa Horta tem, frequentemente contribuído para alterar os modelos estéticos e comportamentais instituídos e tem, muitas vezes, sido ao longo das últimas décadas, um sinalizador de mudanças essenciais, quer no âmbito literário, quer inclusivamente de alcance social.

A Paixão segundo Constança H. traz consigo toda a violência e todo o sofrimento daquele a quem coube em sorte viver num mundo em transformação onde os valores tradicionais da família e os aspectos a que nos tínhamos habituado a considerar mais estáveis resvalam gradualmente para um terreno irrespirável”.

Estas afirmações só se tornam inteligíveis se, entretanto nos inserirmos no contexto da produção da sua obra e após a leitura do romance e do conto "Azul-cobalto", que lança uma nova luz na compreensão do romance: A Paixão de Constança H é lançado pela primeira vez na primeira metade dos anos '90 do século XX, altura em que ainda se operavam importantes transformações na sociedade relativamente à forma de encarar a sexualidade feminina. Trata-se de uma história que contém uma trama desenvolvida a partir de um continuum cujos extremos são a sanidade e a loucura. E, algures no meio desse continuum, está o limite, mais ou menos estreito e mais ou menos difuso, uma zona fronteiriça, cinzenta a separá-los. Toda a história é construída a partir do Eu de uma protagonista que tem todos os traços de uma personalidade de estado limite ou personalidade borderline, que vagueia ora de um ora de outro lado na fronteira. E que, na forma desconcertante como reage a um permanente estado de insegurança, que a vai arrastando progressivamente para o abismo, lembra algumas personagens femininas dos filmes ou o contos de Hitchcock, na maneira como é projectado o Eu desta personagem e na forma como é apresentada a emergência do estado de loucura e de lidar com a culpa. Freud é outra grande influência na forma como está construído o romance, vertido como se de um conjunto de sessões de psicanálise, abrangendo vários depoimentos e discursos para se obter um conhecimento mais profundo e complexo da personagem em questão se tratasse. A protagonista deste romance, Constança, é também a narradora de “Azul-cobalto”, que no conto relata em tom confessional a sua própria infância centrando-se na relação conturbada com a mãe e no processo doloroso de construção de uma identidade própria.

A ligação entre ambas as histórias é percebida devido à coincidência de episódios e cenas referentes à infância de Constança, envolvendo a mãe da protagonista, que ocorrem em “Azul-cobalto” num tempo cronológico anterior ao do romance de que hoje aqui tratamos. Outra característica comum a ambas as histórias, para além da referência à cor azul-cobalto dos olhos da mãe de Constança em ambas as histórias, é a presença do gérmen da loucura que ameaça constantemente a protagonista, emergindo de uma necessidade de amor exigente, permanente, raiando a obsessão na voz da protagonista. O páthos nasce da insegurança e de um omnipresente medo da indiferença e de um hipotético abandono. Abandono que depois se torna efectivo. Em ambas as histórias a trama é vertida exclusivamente pelo ponto de vista da protagonista.

O impacto do texto de A Paixão de Constança H. no leitor torna-se violento devido à centralidade da protagonista, sempre que o texto é narrado na primeira pessoa e à extrema passionalidade das emoções que são vertidas no discurso da personagem. Mas até mesmo quando o discurso passa a ser narrado na terceira pessoa e o narrador reproduz o pensamento da personagem como se habitasse o cérebro da mesma é notória essa violência de sentimentos. A técnica narrativa usada é o discurso em Quasi-PEC (Quasi Pris-En-Charge), que aproxima de tal forma o narrador da personagem que se torna por vezes difícil verificar a quem é imputado o discurso. O narrador utiliza o jogo dos tempos verbais como estratégia discursiva para ajudar o leitor a fazer um pouco essa distinção: no caso deste romance, é usado o pretérito perfeito e imperfeito, na forma de discurso indirecto, para ilustrar os comportamentos observados, e o presente do indicativo, com valor de presente histórico, para aproximar o narrador da personagem como que entrando no seu universo interior e diluindo a fronteira entre o tempo narrativo ou cronológico (constituído pelo desenrolar dos acontecimentos, com as suas interrupções, avanços e recuos) e o tempo de enunciação (o momento da produção do discurso pelo narrador). É precisamente nesta altura, em que a aproximação do ponto de vista do narrador e da personagem é tal, que o discurso do narrador adquire a sua forma híbrida de Quasi-PEC, em que quase se pode imputar a responsabilidade dos enunciados a qualquer um dos dois enunciadores, neste caso ou ao narrador-locutor ou à protagonista. Mas na maior parte dos casos o que acontece é que, apesar de ser o narrador a fazer a locução, isto é, ao proferir o discurso no momento de enunciação, nas frases surgem no presente do indicativo e no gerúndio, é ilustrado sobretudo o pensamento e as emoções de Constança H. Vejamos, então a diferença e o impacto das duas “vozes” presentes no mesmo discurso (itálicos meus):

« E a dor continuava, tumefacta. A sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar, sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo e por isso mesmo com uma incidência única em todos os momentos da vida a partir em todos os momentos da vida a partir desse momento: quando Henrique falou: quando Henrique falou da sua traição.
“É o amor que me perde”, pensa Constança.
O ódio, pelo contrário, alimenta-a.
O amor queima-a. Desguarnece-a. O amor reduz a cinzas, é a porta do caos e do desassossego. Quebra-a.
Quebra-a.
O ódio, pelo contrário, fortalece-a. Pertinaz, forra-lhe as emoções, nunca a entrega. E a odiar, as mulheres são melhores do que os homens. Como diz Françoise Giroud, “elas podem ser duas e frias como pedras, com arame farpado no coração.
Constança sabe, sente-o crescer no seu peito, como se fosse uma planta, tomando conta de todo o seu imaginário, de todos os seus sentimentos, de todos os seus pensamentos: o arame farpado.» (p. 23).

Todos os enunciados com os verbos a itálico no presente do indicativo, apesar de serem proferidos pelo narrador, são na realidade expressão do pensamento e forma de sentir de Constança, citados pelo narrador. De notar que a frase com sujeito elidido (o amor) “Quebra-a” é enunciada duas vezes: a primeira dentro do parágrafo com uma série de enunciados que têm por sujeito “o amor”, mas a segunda vez em que é proferida surge separada do parágrafo anterior, como se fosse um eco.

Apesar de esta forma de escrever ter muito a ver com a escrita literária de Virginia Woolf, a escrita fragmentária de A Paixão de Constança H., tão profundamente passional, é sobretudo durasiana. Marguerite Duras é, inclusive, referenciada no discurso da narradora enquanto enumera os autores preferidos de Constança e que ajudam a construir a identidade desta (p. 56), a par de Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana Alcoforado. Inserido no corpo do texto, há trechos de narração em primeira pessoa, como bilhetes, cartas e poemas de Constança, atestando as sucessivas alterações da personalidade na protagonista e as diversas facetas do seu Eu, podendo-se traçar um paralelo entre a solidão e o desamor descritos e sentidos relativamente à infância de Constança em “Azul-cobalto” e as crianças filhas de Constança, no romance do qual falamos hoje e ajudando a dotar o discurso de A Paixão de Constança H. da dimensão polifónica que o caracteriza.

A Paixão de Constança H. é, mais do que tudo uma tragédia que se aproxima muito dos clássicos gregos, desenvolvendo-se em crescendum através da desestruturação do Eu assente no minar da autoconfiança, podendo por isso ser facilmente ser transformada num drama neo-clássico e levada à cena.

Maria Teresa Horta subverte ainda, neste livro, não apenas as convenções do comportamento ou da sexualidade, escrevendo sobre aquilo que causa incómodo ainda hoje numa sociedade durante muito anos submetida ao poder patriarcal, mas também as convenções da narrativa, onde a poesia se cruza com a prosa adquirindo, por vezes laivos de romance epistolar. A nível temático o toque de provocação surge com a oposição entre Eros e Tánatos (o Amor e a Morte) patentes nas descrições eróticas a par de cenas da morte como a cena na banheira (tão ao gosto de Hitchcock, quem não se lembra do filme Psycho?) que são sempre testemunhadas pelas crianças, e que é uma das características mais violentas da trama. A cena com o cão debaixo da árvore, resultando na morte de Adèle, remete para cenas relacionadas coma mitologia clássica (recordando Diana e Ácteon, por exemplo). A junção do elemento, surpresa, o inesperado, é outra das características dos filmes de Hitchcock, que está fortemente implicada neste romance. O mistério a ambiguidade do destino da personagem que aparenta estar prisioneira mas nunca se chega a saber a verdadeira natureza da sua clausura, se estará naquela situação por motivo de uma doença de cariz psiquiátrica ou por lhe ter sido imputada a autoria de um crime. Trata-se de uma estratégia discursiva escolhida pela autora, uma omissão intencional que só confere (ainda) maior valor literário ao texto. 

Por todas estas razões Maria Teresa Horta surge aos olhos do público leitor como uma figura incontornável para quem aprecia a escrita submetida ao Belo, mas sempre alienada de estereótipos e sempre disposta a ultrapassar limites.

Cláudia de Sousa Dias
07.03.2015


Tuesday, June 02, 2015

"A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos – Uma história sobre a arte de bater palmas em situações alegres ou tristes" de Marta Duque Vaz (Planeta)




com ilustrações de Alexandre Esgaio


Ruiva. Cabelos de pura chama, ígnea labareda. Os tons solares da capa do livro só são interrompidos pela frescura do verde-lima do fato da heroína do conto de Marta Duque Vaz na sua estreia em escrita ficcional, A Senhora Clap. A protagonista do conto, destinado não só ao público infanto-juvenil mas a todas as idades, é uma antropóloga que viaja pelo mundo a investigar e a dar conferências sobre a “arte” de bater palmas e sobre as razões pelas quais se manifestam as palmas nos humanos, enquanto escreve o seu interminável Tratado de Aplausologia. As cores da capa são as cores das palavras de Marta Duque Vaz que exalam a chama que inspira as ilustrações de Alexandre Esgaio e compõem o retrato visual de um coração simultaneamente flamejante e revestido da frescura numa alma eternamente jovem. Patrícia Reis, escritora também, e editora da Revista Egoísta, que apresentou o livro em Lisboa no passado dia 30 de Maio no Auditório da Feira do Livro diz que Marta é “uma fada”1 e eu confirmo. Marta Vaz, que escreve desde a adolescência, embora só agora tenha decidido dedicar-se à prosa ficcional, é na verdade uma fada feita de sol e, por isso mesmo, nunca envelhecerá. Este livro é uma homenagem, aos sobrinhos que lhe vão chegando a conta gotas aos seus braços e inspira-se no imenso amor ao Belo, à Harmonia e ao Amor como ideal em si mesmo que brota das palavras de Sophia:

As minhas mãos mantêm as estrelas
[…]
e o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.

E, no entanto, a voz de Marta Vaz é única e com características próprias que não se encontram no discurso de mais ninguém.

O lançamento a nível nacional foi a 23 de Maio no Porto na FNAC da Rua de Sta. Catarina, enchendo o auditório do café-concerto daquele espaço numa festa que reuniu amigos, familiares e conhecidos. O lançamento no Porto esteve a cargo da escritora Dulce Maria Cardoso que dissertou sobre a História do Aplauso, desde a época em que os Romanos aclamavam os seus Imperatorii, tendo descoberto que somos a única espécie animal que bate palmas espontaneamente, em sinal de contentamento e como sentimento de pertença, identificação ou partilha de um sentimento comum face a um mesmo objecto. 
Na verdade, o que está subjacente a essa partilha é nada mais nada menos que a admiração, que é a forma sublimada do amor. A actriz Mirró Pereira glosa esta descoberta a partir do conto de Marta Vaz de uma forma bastante eficaz, com um texto que é ele todo uma ovação2 .  No entanto, n' A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos está presente todo um leque de emoções que derivam do Amor sendo estas exploradas uma a uma pela protagonista. 

Mas o que mais seduz na escrita deste conto de Marta Vaz é o discurso do narrador de terceira pessoa que se coloca na posição de Observador Participante. É o discurso e o posicionamento de um antropólogo anónimo que observa a uma distância profissional outra antropóloga que é personagem, a Sra. Clap, protagonista da história, e cuja principal actividade consiste em observar, registar os diversos contextos em que surgem os aplausos como manifestação de apreço, descrevendo as emoções que lhes estão subjacentes, as diversas formas de aplaudir e sempre em busca do tesouro supremo dos aplausos: o aplauso sincero das pessoas arrebatadas, cuja alma fique tão transparente como o lado esquerdo do corpo da Senhora Clap, sempre que se depara com algo de extraordinário.

Paixão, arrebatamento e admiração profunda extravasam, são sempre excesso e, por isso mesmo, a protagonista diz que “Amar é bater palmas”. Neste desdobramento do Eu, entre o narrador a funcionar como voz off e a personagem que vai deixando as suas anotações no respectivo Caderno de Campo (ferramenta de trabalho que sempre acompanha todo e qualquer Antropólogo que se preze), está precisamente na mestria com a qual é possível fundir o discurso da Autora, com o do narrador e o da personagem, mas separando devidamente as três instâncias narrativas. A personagem Sra. Clap, assume uma posição de forasteira, quase que de “extra-terrestre” ao deixar-se surpreender e inundar pelo espanto de quem vê tudo pela primeira vez, com a capacidade de se maravilhar perante o mundo, com a ingenuidade, a pureza de quem não se deixa formatar pelo espartilho das normas. Uma voz como esta nunca poderá deixar de estar impregnada do discurso literário. A magia que acontece com a Sra. Clap sempre que bate palmas no extravasar de admiração ou espanto, ficando transparente do lado esquerdo do corpo, assim o confirma. Estamos, portanto, no terreno do maravilhoso:

«Desta forma todos sabiam que quando a Sra. Clap batia palmas era porque sentia mesmo muito e lhe apetecia estar onde estava. Às vezes podia ser por causa de um detalhe, de um gesto, de qualquer coisa especial. Outras vezes, só ela sabia porque batia palmas. Mas todos sabiam que eram aplausos autênticos, mesmo desconhecendo o motivo

Um dos episódios mais belos de A Senhora Clap é aquele que se intitula de “A Ilha”, tratando-se de um lugar cuja população é composta exclusivamente por artistas e a partir do qual se fica a perceber que o aplauso também pode acontecer em situações tristes. Outro momento de grande beleza é aquele que dá pelo título de “O Cantor”, contendo a sublime descrição performativa de um tenor, a que se segue um aplauso de especial magnificência. O episódio foi inspirado na voz e capacidade performativa de Luciano Pavarotti (embora tal não venha mencionado no texto), tenor que chegou a executar dez dós de peito na ária do tenor na ópera Don Carlo de Verdi, feito até agora nunca conseguido por mais nenhum tenor no mundo.

Uma última nota relativa aos apontamentos da Sra. Clap no seu caderno de campo: tratam-se de conclusões que a personagem extrai pelo método dedutivo para chegar à conclusão de que, em situações de alegria, jubilosas, ou de profunda tristeza, dramáticas, amar é sempre sinónimo de bater palmas. A cientista Carla Solano, no blogue "5 sentidos ou +" refere-se ao "método etnográfico" aplicado pela antropóloga Marta Vaz à actividade de investigação efectuada pela sua personagem criada especialmente para deleite de crianças e adultos.


Aplaudo, por isso, Marta Duque Vaz e a sua Sra. Clap

Cláudia de Sousa Dias

31.05.2015



1 «Hoje, na feira do livro de Lisboa, tive a imensa alegria de apresentar a senhora Clap que é um livro maravilhoso da Marta Vaz, ilustrado pelo Alexandre Esgaio, com leituras da minha Filipa Leal. Eis o texto que fiz, comprem o livro e aplaudam a vida, as coisas pequenas, sff.
A Senhora Clap traz o mundo na palma das mãos.
Está contaminada de bondade, tal como a Marta. Mal a vi, foi no que que pensei: bondade.
A sua forma de ver o mundo é quase como a das crianças quando a inocência as leva a fazer as perguntas que os adultos já se esqueceram de formular.
Festejar o sucesso dos outros não é coisa pouca nos dias que correm.
Ficar contente pelo outro – sem ele quem for – é quase um gesto estranho, como se não fizesse sentido.
A senhora Clap, magistralmente materializada com as ilustrações de Alexandre Esgaio, ensina-nos que aplaudir não é apenas bater palmas, é um conjunto de palavras da mesma família e todas felizes. Ora vejam:
Elogiar
Aprovar
Aceitar
Louvar
Aclamar
Amar
Admirar
Mas não é só isso, a senhora Clap, nas suas aventuras, que não posso contar, mostra-nos que temos o poder de decidir o que nos traz coisas boas e coisas más, o que é luz e o que é escuridão.
Não podemos aplaudir por obrigação.
Só porque os outros aplaudem.
Não podemos aplaudir como quem está a fazer um favor, porque os aplausos precisam de um som, de um som forte
Às vezes não é fácil, há muitas tentações e há mesmo quem não queira, de forma alguma, que se possa festejar seja o que for.
Sabem aquelas pessoas de cara fechada? Carrancudas? Sérias?
Devem ser muito infelizes, ninguém os ensinou a aplaudir.
Através da Senhora Clap, que a Marta Vaz escreveu e que o Aexandre Esgaio tão brilhantemente trouxe à vida, podemos perceber que aplaudir é uma arte.
Em situações tristes ou alegres, ver a perspectiva das coisas de uma forma menos evidente pode ajudar-nos.
Escutar com atenção é importante.
Assim como é urgente ensinar a bondade.
E perguntam vocês: e isso ensina-se?

Ensina-se em pequenos gestos – este livro é um pequeno gesto que vai nesse sentido, querer o melhor para todos – e pode ser tão importante quanto saber as letras do alfabeto ou as capitais dos países do mundo.
Estar atento ao mundo, estar vivo, não é fácil. Mas também não é difícil. Depende de quem somos e quem vamos encontrando na nossa vida.
Há pessoas que nos carregam nas palmas das mãos: isso o livro da Marta também vos explicará e muito bem. A poesia da Filipa Leal faz exactamente o mesmo.
Há pessoas que nos mudam para sempre. Há pessoas cujas histórias têm sempre qualquer coisa que nos toca mais, que nos fica no coração.
A Marta mudou a minha vida, porque nos tocámos, não aplaudimos, mas o coração fez um sinal, tiniu como um sino que também é uma forma de aplauso. Com a Filipa o processo foi semelhante.
Eu acredito que a amizade é a melhor forma de amor, mesmo que não estejamos juntos todos os dias, que não falemos ao telemóvel ou não mandemos emails.
A amizade fica impressa na nossa pele e pode ser para sempre.
Às vezes não é. E isso é triste.
Sabem o que é fácil?
E igualmente triste?
Dizer mal.
Destruir.
Criticar pela negativa
Ser hipócrita.
Ser invejoso.
O que faz de nós pessoas especiais, pessoas como a senhora Clap, a Marta, a Filipa, o Alexandre, é a capacidade que temos, em cada um de nós, de acreditar, de ser sinceros, de ajudar, de ficar perto de alguém que precisa, de rir às gargalhadas e dançar até às tantas.
Lembram-se da história do Peter Pan?
Pois, então o que diz a lenda? Se acreditarmos em fadas temos de dizer em voz alta que acreditamos e bater palmas para as reconhecer, caso contrário a magia e as fadas vão desaparecendo.
E vocês imaginam um mundo sem magia?
Sem pessoas como a Marta, ela que é uma fada? Sem o poder da cor e do desenho do Alexandre? Sem a poesia e voz única da Filipa? Não imaginam, pois não?
Então, vamos lá aplaudir a senhora Clap e este livro maravilhoso de alguém que merece tudo, a Marta Vaz. E todos nós com ela. Bem hajas, Marta.»


2 «Como água de chuva no telhado
Por Mirró Pereira
Quando chegou esteve sentada nas minhas escadas um bom par de horas. Viajou trezentos quilómetros e imagino que a primeira coisa que fez, já aqui em S. José, na porta número nove, foi tirar notas no seu caderninho. Porque àquela hora os netos dos meus vizinhos estavam em casa de visita aos avós. Gosto quando os sinto lá em baixo, no primeiro andar, a correr de um lado para o outro, em risadas e atropelos. E a bater palmas em sonoplastia de sopro em velas de aniversário, ou apenas quando acompanham as melodias de sempre naquela casa, trá lá lá, bate o pé, clap, clap. Mas do que gosto mesmo é das palmas dos avós quando os meninos marcam golo no quintal e mesmo quando partem um vaso com pontaria de Cristiano Ronaldo. Gosto desse som. Gosto tanto das palmas como do som do vaso a partir. Como gosto dos ralhetes de avô que nunca soam a ralhete, são mais carícias disfarçadas de grito“não faças isso” com pensamento de “que te magoas”. Eles são dois. Os meninos. Por isso as palmas no primeiro andar, as palmas mais pequeninas, são sempre a dobrar até ficarem transparentes. E somam-se aos dois pares de mãos com idade de sabedoria, e com mais vida que dias de vida, mas com tanta esperança ainda nos dias que estão por vir. Esperança vestida de meninos pequeninos. Ao domingo é assim, à janela: “- Ó vizinha, desculpe lá as correrias desta semana, são uns traquinas. - Ora, eu gosto. Faz-me companhia. Quando voltam a animar cá o prédio, os dois palmitos?”. Gosto desta minha vida de bairro cheia de palmas. Tenho-as todos os dias da semana. À sexta-feira à noite, por exemplo, tenho as palmas do fado, do restaurante aqui do lado, o do belo peixe na brasa, das sardinhas nos Santos, dos almoços como se fossem em casa. À sexta-feira, à noite, abro a janela do quarto e ouço umas gargantas com letras de música que não chegam definidas às minhas paredes. Mas as palmas no fim de cada fado, essas sim, chegam cá, clarinhas como água de chuva no telhado. E as palmas que substituem campainhas de porta, atiradas para as varandas e janelas a ver se quem lá mora atende. “Ó vizinha! Clap, clap!”. Também gosto dessas. É por isso que acredito que mal chegou à minha morada e ficou sentada nas minhas escadas deve ter tirado muitas notas. Veio pela mão do carteiro a quem pergunto sempre pelo pai que é tão simpático e conversador – deve saber bater palmas muito bem! Nesse dia não devo ter ouvido o carteiro a tocar e ela ficou à minha espera nas escadas. Quando me chegou às mãos estávamos as duas ansiosas. De nos conhecermos. Afinal de contas já me tinham falado dela, ela terá porventura ouvido qualquer coisa sobre para onde iria, mas conhecermo-nos, assim, frente a frente, olhos nos olhos, de “olá como estás, prazer em conhecer”, isso ainda não. Mas quando alguém traz amor em cada letra e quando alguém abre a porta como quem abre o coração, isso só pode levar a uma amizade para sempre, não é? Foi isto que aconteceu. Sem tirar nem pôr. Ela chegou, tirou notas nas minhas escadas porque os meninos estavam a bater palmas muito bem no primeiro andar, entrou, apresentou-se e ficámos a falar entre páginas o resto do dia. Eu a ler cada frase, a imaginar aquelas ilustrações a mexer. Eu a relembrar-me que amar é bater palmas. Quando me fui deitar, dei-lhe abrigo na minha mesinha de cabeceira. Lá tem bons companheiros, de outras letras, para me vigiarem o sono. Aposto que vai dar uma conferência e explicar ao Camilo, ao Eça, ao Shakespeare, ao Enda, e aquele autor canadiano que ando a ler e que nunca me lembro do nome e o outro cubano, a arte de bater palmas em situações alegres ou tristes. Se Pessoa lesse o seu tratado, diria o que penso: “A mim ensinou-me tudo”. A Senhora Clap, a mim, ensinou-me a ficar transparente do lado esquerdo. E eu vou à livraria buscar mais para oferecer. Porque é gente assim que quero na minha vida, a bater palmas como água de chuva no telhado, transparentes do lado esquerdo. Como ela.»



23.05.2015
Cláudia de Sousa Dias

Veja também o post de Carla Solano aqui:

http://5sentidos-cs.blogspot.pt/2015/06/a-senhora-clap-e-o-mundo-nas-palmas-das.html



«A SENHORA CLAP e o mundo na palma das mãos, poderia começar assim:


As populações costeiras das Ilhas dos Mares do Sul, com muito raras exceções, são, ou eram antes da sua extinção, peritas em navegação e comércio. Algumas delas desenvolveram excelentes tipos de canoas de navegação em alto mar, nas quais embarcavam para expedições comerciais distantes ou incursões de guerra e conquista. Os Papua-Melanésios, que habitam a costa e as ilhas longínquas da Nova Guiné, não são exceção a esta regra. Trata-se, de um modo geral, de marinheiros corajosos, artesãos habilidosos e negociantes argutos, (Malinowsky, 1922 ), ou assim, qualquer pessoa que tenha vivido com tribos primitivas, que tenha partilhado as suas alegrias e tristezas, as suas privações e abundâncias, que veja nelas não apenas objetos de estudo a serem examinados, como células a um microscópio, mas seres humanos pensantes e com sentimentos, concordará que não existe uma ‘mente primitiva’, um modo de pensar ‘mágico’ ou ‘pré-lógico’, mas cada indivíduo numa sociedade ‘primitiva’ é um homem, uma mulher, uma criança da mesma espécie com o mesmo modo de pensar, sentir e agir que qualquer homem, mulher ou criança da nossa sociedade (Boas, 1927).

A SENHORA CLAP é uma antropóloga, e é sem cerimónia que vai utilizando a ferramenta etnográfica com delicado à vontade. Com um tiquegeertziano de descrição densa, minuciosamente, explica, ao longo de 58 páginas o significado de cada aplauso, num processo de tradução, de retroalimentação, quase tocando a teoria ator rede, do também, antropólogo B.Latour ((1947 - 67 anos). Não se limita a uma mera escolha de vocábulos, mas recorre aos únicos vocábulos para exprimir o que observa, numa amostra/campo ponderado de artesãos habilidosos. Navega num limite delicioso de um universo linguístico entre valores e representações simbólicas dos/nos momentos dos aplausos, quando está lá, entre o observador e o participante. Apaixonada pela sua amostra, qual etnógrafa , qual fieldwork apaixonável, não vê nela apenas objetos de estudo a ser examinado, como células a um microscópio, mas seres humanos pensantes e com sentimentos (Boas, 1972), mesmo quando vê nela apenas objetos de estudo a ser examinado, vestindo a camisola do antropólogo escritor de uma narrativa, reflexiva e multivocal.

Vai realocando, neste exercício etnográfico, as verdades de cada um de nós, e suas, sobre os diferentes momentos de um aplauso, questionando-os, dando-lhes tipologias semânticas/geográficas, numa constante mediação.

Nada fica ao caso, nesta etnografia, tão bem ilustrada por Alexandre Esgaio, entre uma narrativa de traço intrepertativo e pinceladas do diário de campo, todas eximiamente colocadas.

A SENHORA CLAP, como muitos antropólogos, ainda por cima escreve bem. A sua tradução não é uma mera busca dos vocábulos que possam exprimir aquilo que observa, mas o caminho doloroso para lá chegar.

A SENHORA CLAP e o mundo na palma das mãos, é um exercício académico sustentado numa descrição densa, inteligentemente apresentada, com diferentes graus de interpretação. A descrição por etapas, por camadas ( a conferência, a Ilha, o cinema), deixando abrir a porta para diferentes interpretações, densas ou superficiais, numa hierarquia estratificada de estruturas significantes nos termos dos quais determinadas ações são produzidas, percebidas e interpretadas e sem os quais não existiriam as mesmas ações, não interessando o que cada um fizesse.

Um olhar essencialmente, semiótico, numa colagem a Max Weber e a C. Geertz, quando defendem que, (...) o homem é um animal amarrado a uma teia de significados que ele próprio teceu, a SENHORA CLAP, assume a cultura do aplauso como essa teia e a sua analise, oferecendo-nos uma etnografia como uma ciência de sinal interpretativo, um sistema de símbolos entrelaçados que vai interpretando , colocando-os, singularmente, no seu contexto – algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível; sob a forma de uma descrição densa.

Os aplausos são, por isto, o contexto onde se podem ler os acontecimentos, à moda de Geertz, à moda da SENHORA CLAP.» 



Referências usadas por Carla Solano:



Geertz, C. 1973. Thick Description: Toward an Interpretive Theory of Culture. En C. Geertz, & B. Books (Ed.), The Interpretation of CulturesNY(págs. 3-30).

Sluka, J. R. (2007). Fiedwork in Cultural Anthropology: An Introdution. En J. R. Sluka, Ethnographic fieldwork. An Antrophological Reader (págs. 1-28). Oxford, UK: Blackwell Publishing.




Também poderão ver o blogue de Carla Maia de Almeida "O jardim Assombrado" sobre a Senhora Clap:

http://ojardimassombrado.blogspot.pt/2015/06/amar-e-bater-palmas.html



«Amar é bater Palmas


A senhora Clap é excelente a bater palmas. Bate palmas mesmo muito bem.» Começa assim a história da Senhora Clap, um livro que não é bem uma história - no sentido estritamente narrativo do termo - mas que guarda uma integridade e coesão estranhamente invulgares. Podemos chamar-lhe um «livro de personagem», na medida em que a força da sua argumentação se concentra à volta de uma só figura, à semelhança do conto «Retrato de Mónica», de Sophia de Mello Breyner Andresen, ou O Senhor Valéry, de Gonçalo M. Tavares, entre tantos outros.

Mas as comparações acabam aqui, porque a Senhora Clap, que conhece «quase todos os segredos sobre cada salva de palmas e sabe ler os sentimentos e as emoções de cada pessoa que as dá», é demasiado original para ser comparada com outra personagem qualquer. Muito ocupada a escrever o Tratado Universal sobre a Arte de Bater Palmas em Situações Alegres ou Tristes, aplica grande parte do seu tempo em conferências sobre o assunto, explicando ao público algumas noções retiradas do seu diário de campo. Por exemplo:

38 - «Só devemos bater palmas quando nos apetece.»
41 - «Não devemos ter receio de bater palmas mesmo quando somos os únicos a fazê-lo.»
74 - «As pessoas que batem palmas a olhar para o lado, não sentem muito.»
75 - «As palmas que não se sentem perdem o som.»
94 - «Não é preciso ganhar para que as pessoas mereçam palmas.»
108 - «As pessoas apaixonadas batem palmas com mais intensidade.»
387 - «Amar é bater palmas.»

Na caracterização da Senhora Clap, que aqui não se pretende exaustiva, há que referir ainda um pormenor da ordem da fenomenologia: é que a Senhora Clap fica transparente do lado esquerdo quando bate palmas, e isso contribui para o seu interesse científico e antropológico, acham os especialistas. A única condição é que as palmas têm de ser sinceras (confirmar acima, nota 38), sob pena de nela se produzir o efeito adverso. Quem acha que bater palmas é um acto banal e desprovido de interesse, «são só as mãos a fazerem uma espécie de barulho», deve pelo menos ter a delicadeza de guardar esse julgamento para si. Caso contrário, pode acontecer isto:

«Uma vez, enquanto aplaudia, a Senhora Clap ouviu um comentário deste género e - zás - perdeu a transparência num ápice! Começou a ficar opaca, muito opaca, tão opaca que não se conseguia ver nada, nem a cor dos seus olhos, principalmente do esquerdo. E nessa altura disse:
- Peço desculpa, mas hoje não consigo bater mais palmas!»

Seria uma pena que isso acontecesse muitas vezes, pois a matéria do Tratado Universal sobre a Arte de Bater Palmas em Situações Alegres ou Tristes é vastíssima, mesmo inesgotável. Se «amar é bater palmas» (confirmar acima, nota 387), é impossível ficarmos quietos e calados por muito tempo, está bem de ver. Comecemos por aplaudir a Senhora Clap e de certeza que sentiremos o eco da atenção dela em nós. Experimentem.»

A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos
Marta Duque Vaz (texto)
Alexandre Esgaio (ilustração)
Planeta Manuscrito, 2015




e do blogue "Deus me livro", também, por Pedro Miguel Silva:

http://deusmelivro.com/critica/a-senhora-clap-e-o-mundo-na-palma-das-maos-marta-duque-vaz-e-alexandre-esgaio-25-8-2015/



A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos”| Marta Duque Vaz e Alexandre Esgaio
Por Pedro Miguel Silva Em 25/08/2015


« “Há muitos séculos que existem pessoas que lêem mãos como se fossem livros e, tal como os livros, as mãos são únicas e contam histórias diferentes.”

A frase que serve de tecto a esta crítica foi retirada de “A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos” (Planeta, 2015), livro escrito por Marta Duque Vaz e que conta com ilustrações de Alexandre Esgaio.


Porém, ao contrário dos muitos professores mambos e carambas deste mundo, que deixam com uma frequência irritante papéis nos pára-brisas dos carros, a Senhora Clap tem um dom que está ao nível de um estranho X-File: quando bate palmas, abre muito os olhos. Tanto, tanto, que se vê tudo dentro dela, ficando totalmente transparente do lado esquerdo.


Este não é, contudo, um dom nascido do acaso, mas algo que tem sido passado de geração em geração pela família da Senhora Clap. Fascinada – e sobretudo intrigada – com os efeitos que o bater de palmas pode ter do outro lado do mundo, um pouco à semelhança do bater de asas das borboletas, Clap decide tornar-se investigadora de uma nova área do saber: a Aplausologia.


Do seu diário começam a constar observações como “todos são capazes de bater palmas, até mesmo os mais preguiçosos”, conselhos como “nunca obedecer a tabuletas que dizem aplaudir” – muita atenção programas da tarde! -, ou, ainda, máximas tão certas como esta: “É preciso que se aplauda com espanto e privilégio”.


Aos poucos, a Senhora Clap começa a ganhar uma fama planetária, sendo capa de jornais e revistas e recebendo convites para dar conferências um pouco por todo o mundo, tentando desvendar por que razão as pessoas batem palmas entre situações tão díspares quanto o são a alegria e a tristeza.


Com muita imaginação e melancolia, Marta Duque Vaz escreveu um livro que é um elogio à celebração da vida, e que nos ensina que a alegria e a tristeza são as duas caras de uma moeda com um tempo demasiado curto para circular no mercado das emoções, que merecem ser celebradas com alma pelas palmas das mãos.


Da próxima vez que visitar uma Biblioteca, tente encontrar o Tratado Universal sobre a Arte de Bater Palmas em Situações Alegres ou Tristes, esse livro raro deixado ao mundo, como um legado, pela Senhora Clap. E, se por acaso o encontrar, aplauda bem alto, mesmo que os cartazes não peçam mais do que apenas silêncio.»






E, por fim, o texto de apresentação da Senhora Clap por Luísa Monteiro, em Faro:




«A Senhora Clap: a responsabilidade em si mesma e toda nua


Categorizo a literatura em três universos, por esta ordem: o da superficialidade, o da profundidade e o da amplitude. A produção é elevada no primeiro, reduzida no segundo e escassa no terceiro – como um triângulo invertido; esta produção geralmente acompanha a procura e vice-versa.

No primeiro, encontra-se aquela literatura calva, eco de realidades lineares e com enredos casuísticos, de forte pendor emocional e que geralmente se lê muito facilmente; é a literatura do entretenimento, vincadamente ortónima e produz-se muito rapidamente. No segundo, estão aquelas obras que precisam de algum tempo para serem “escavadas”, repensadas e que à medida que se aprofundam, mais brilham à superfície, trazendo à tona questões eminentemente éticas e brilhando no fulgor da sua imanência; são geralmente propensos à heteronímia e precisam de tempo para serem escritas e aparecem por altura da “náusea” existencial; exige uma leitura preguiçosa. O terceiro diz respeito ao labor estético, à palavra tomada como a máxima expressão artística; é uma literatura que alastra muito lentamente no que toca à sua recepção e geralmente não encontra muitos leitores no tempo da sua produção; é uma literatura da dimensão do “antes” (reconhecida só no “depois”), de transcendência tardia, derivando para a heteradenimia; ocupa uma vida inteira, todos os livros são “o” livro e o escritor morre na bastardia da incompletude e no anonimato superado pela obra (tomemos o caso de D. Quixote, o cavaleiro existe, todos o conhecem; o Cervantes é que nem sempre vem à memória).


Agora, o livro de Marta Duque Vaz, A Senhora Clap e o mundo na palma das mãos. Não cabe no terceiro universo e só a ignorância o poderá arrastar para o universo da superficialidade. Não se trata de um livro infantil (para o ser teria que ser escrito por uma criança e as crianças não devem escrever livros), mas destina-se a um público que pelos seus dedos das mãos conta os anos desde que aprendeu a bater “palminhas”, para delírio dos adultos. Se a eles se destina, então diz-nos respeito, já que a esperança e a utopia tiveram por estrume o lamento e o repúdio pelo mundo tal como se apresenta. Sonha-se melhor quando o que está à nossa volta já não nos arranca um sorriso; mas porque precisamos dele, escrevemos, tal como o fez Saramago com A maior flor do mundo, o Garcia Márquez com A tarde de Domingo, o Exupéry com O Principezinho, o… a Marta com a Senhora Clap.


Hoje fala-se muito da ausência de valores e até da degenerescência humana quando olhamos determinados comportamentos; Deus converteu-se num a-Deus, ausentando-se do quotidiano como resultado da instalação de uma razão pura… mas nem por isso o valor humano ganhou potência com esta orfandade – como aliás já o suspeitou Kant nos seus últimos dias em Königsberg; muito pelo contrário, a nossa razão tem-nos conduzido a crenças mal paridas, a nojos miudinhos pelo outro, a atitudes ignorantes que sucumbem sobre as ruas em poças de sangue. A racionalidade reduziu o Outro a um objecto e o mundo ensebou-se de tirania. Tirano é todo aquele que não sabe aprovar o outro, que não sabe ver no rosto concreto de cada qual a expressão da humanidade. Cada um de nós aqui presentes é a voz da universalidade e não aquilo que a pessoa ao lado possa entender de nós.


Fomos acostumados a pensar e a decidir moral e religiosamente a partir de interesses próprios. Porém, numa linha notoriamente anti kantiana de pensamento, A Senhora Clap e o mundo na palma das mãos propõe-nos o contrário: que o sujeito da acção seja o Outro. A senhora Clap, é uma espécie de “falsa” personagem principal e mais do que uma especialista em bater palmas, é um ser que luta contra o egoísmo que se converteu numa espécie de lei universal da natureza. Fora do seu próprio retraimento, ela encaixa-se no conceito de “infinito ético” defendido por Lévinas, na medida em que torna públicas as suas responsabilidades e estas vão-se multiplicando, através do aplauso. Note-se que as orientações comportamentais desta personagem procedem do Outro e não derivam de um mergulhar em si própria nem de uma consulta à sua tábua de princípios.

Este abandono da lei moral do sujeito para acolhimento do outro, não é mais que o princípio fundador da heteronomia. A Senhora Clap (heterónimo ainda em contrução de Marta Duque Vaz) fica transparente do lado esquerdo sempre que aplaude com entusiasmo, ou seja, é o outro que lhe impõe um comportamento, o aplauso, e ela é responsável pelo mesmo, obtendo daí a sua liberdade e, consequentemente, a sua transcendência.


Deus tornou-se numa tabela de economia e rege-se pelo cálculo dos egoístas, mas aqui, a senhora Clap, não é remunerada para aplaudir. O aplauso é a resposta face ao Outro (não esquecer que Marta licenciou-se em Antropologia) e surge antes e contra a lucidez da consciência – assim sendo, como teorizar sobre a acção? O que é bater palmas?


Embora muitos digam que o acto de bater palmas nasceu com o teatro grego, como forma de gratidão aos deuses, não conheço fonte fidedigna de tal. O que encontro é nas fontes ligadas às ciências da comunicação: o pedido romano de que os gladiadores, em caso de empate, se eliminassem através do embate das cabeças, dado o esgotamento dos corpos. Pedia-se a morte à cabeçada chocando uma palma da mão contra a outra e sem o recurso à voz (não confundir aplauso com ovação: na ovação emite-se sons, “vivas”, como exigia, por exemplo, Nero, que para onde ia levava um claque de milhares de “ovacionistas”). Este bater de palmas mais ou menos sincronizado perdia o ritmo e ampliava-se quando se consumava o que se pretendia, passando então, num só acto a significar pedido e congratulação. Hoje, usamos o aplauso para congratular e aprovar o outro, daí as anotações da Senhora Clap:


“Só devemos bater palmas quando nos apetece/bater palmas é um sinal de satisfação/não devemos ter receio de bater palmas mesmo quando somos os únicos a fazê-lo/ nunca obedecer a tabuletas que dizem ‘aplaudir’ / Abrir uma escola de aplausos.” (p.22).


É neste imperativo, “Abrir uma escola de aplausos”, que a obra se abre para o seu lado pedagógico, na medida em que, tratando-se de literatura, o que a autora releva é a necessidade de se iniciar nas escolas a cultura do aplauso e aprovação do Outro (daí o “mundo na palma das mãos”, como refere o título). “Geralmente os avós batem palmas muito bem” (p.34), mas chegadas à escola, as crianças sabem bater palmas por altura do bolo de aniversário ou às criaturas acrobatas do circo tradicional, mas não a olhar o outro como justificativo de si mesmo, a outra criança é somente o amiguinho que tanto pode ser mau como um porco do Angrybirds, como um herói de crista dos Pokémon’s. Encontram-se na fase onde a palavra “futuro” não lhes faz qualquer falta ou sentido e o que mais lhe importa é a companhia para as aventuras no seu reino de possibilidades. Este é sem dúvida, o momento ideal para lhes dizer, à semelhança da Senhora Clap: “Amar é bater palmas” (p. 54), pois quer o acto de bater palmas quer o amor, antecedem a lucidez e o pensamento, pertencem ao mesmo estádio, logo, é na infância que uma possível educação para o Outro deve ser enraizada, ou seja, no tempo onde o ser não conhece ainda a potencialidade das calculadoras: é o momento exacto da abertura à alteridade.


A Senhora Clap e o mundo na palma das mãos, cujo título logo nos remete para a universalidade e para o acolhimento exige mais que uma superficial leitura. Exige que adultos e crianças comecem o seu treino de louvor ao Outro pelos teatros, pelas conferências, circos e demais acontecimentos e que depois reflictam sobre esta extraordinária responsabilidade que temos sobre tudo quanto nos rodeia, vivo ou não: e não é por isso à toa que Marta Duque Vaz escreve também um capítulo sobre uma tarde passada com uma mulher onde aplaudem uma caixa de música, ou se quisermos, os objectos-memória que falam do testemunho humano e afectivo. Como se sabe, foi a par do trabalho de criação de relógios na Floresta Negra de uma Alemanha longínqua que a literatura nasceu para o mundo; logo depois, aos relógios sucederam-se as caixas de música, de mecanismos idênticos e igualmente feitos em família em redor da lareira, única luz do lar. Mas a música suavizou a arte de contar do artesão e assim a literatura foi perdendo sangue e crueldade e as flores ocuparam uma parte do covil enquanto pássaros miúdos e chilreantes foram pousando nos caldeirões das bruxas…


Neste livro tão bondoso, a caixa de música especial da velha mulher é a própria literatura, possivelmente o meio mais privilegiado para se aprender a bater palmas. É pela literatura que se adquire uma liberdade a mais sobre a responsabilidade dos outros: e nada melhor do que isto para nos distinguirmos uns dos outros, com a vénia devida a toda a humanidade.»




Luísa Monteiro


Bertrand, Faro, 16h30 de 12 de Dezembro de 2015