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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, April 24, 2008

“Danúbio” de Claudio Magris (Dom Quixote)


Danúbio é um romance classificado na categoria de literatura de viagens, cujo tema principal serve de pretexto para explorar e dissertar sobre a cultura centro-europeia, ou seja, da Mitteleuropa.

Danúbio obteve o Prémio Príncipe das Astúrias das Artes em 2004. No entanto, o romance foi escrito durante o período do alargamento da União Europeia, no início dos anos oitenta do século XX.

Magris serve-se do Grande Rio que a travessa a Europa Central como se fosse o fio de Ariadne, isto é uma linha de orientação para atravessar o dédalo de culturas e etnias que se entrecruzam, sobrepõem mas raras vezes se misturam ou diluem umas nas outras insistindo, pelo contrário, num esforço titânico para preservar uma identidade cultural face à força ciclópica das super-estruturas de carácter federalista que convidam à sua dissolução através de um processo de standartização cultural e económica.

Danúbio é, por isso, um livro denso, que deve ser lido com calma, para digerir e processar cada frase. Porque cada pequeno texto, que compõe cada capítulo desta obra monumental descreve uma situação particular específica, a qual deve ser inserida num todo, numa estrutura. Isto é, cada lugar descrito, cada evento a ele associado, deve ser visto como um pequeno ponto da complexa tapeçaria de uma cultura transnacional. Na realidade, só é possível apreciarmos a paisagem física que o Autor descreve – numa prosa de rara beleza – mas sobretudo a paisagem cultural e histórica que se altera com o passar do tempo e o correr do rio, ao longo de todo um continente. Desde Donauschingen até ao Mar Negro, atravessando a Alemanha, a Áustria, a Hungria, a antiga – agora desmembrada (ou esquartejada?) – Jugoslávia e a Roménia até à Turquia.

O impulso criativo de Cláudio Magris provém da necessidade de passar à forma escrita a experiência de percorrer os meandros do Danúbio – o rio como realidade física e geográfica mas também histórica e traço cultural unificador de toda uma civilização. Magris parte, assim, da nascente do Danúbio – após tentar resolver a polémica do local da nascente do rio, reclamada quer pelos habitantes de Donauschingen quer pelos da pequena povoação de Fürtwgangen – e efectuar o levantamento geográfico e cultural da civilização danubiana ou centro europeia. Porque o Rio como veículo de cultura é testemunha do desenrolar da História: guerras, convulsões, violências, paixões. Magris atravessa a Europa à beira-rio reinterpreta a realidade geográfica, física e humana – através da expressão cultural das povoações por onde passa, à luz da cultura local e transforma a obra num verdadeiro tratado de antropologia.

Desta forma, artistas locais, escritores, pintores, músicos, filósofos, líderes políticos e personagens históricas proeminentes desfilam ao longo do Danúbio, onde – segundo o autor do posfácio do livro, Manuel Poppe – Cláudio Magris, como ensaísta “pensa o mundo que atravessa” e como poeta “dá vida ao que pensa no momento em que o pensamento acontece”.

Esta particularidade inerente à prosa de Magris coloca-o, segundo o Mesmo Manuel Poppe “lado a lado com filósofos como Platão ou Kierkgaard e escritores como Robert Musil ou Marcel Proust”. Magris é, sobretudo, e além de tudo o que foi dito, um esteta, isto é, “um pensador que exprime o próprio pensamento através da emoção estética colocando, através desta forma de expressão, as questões mais pertinentes acerca da marcha da História e do destino da Humanidade”.

Há quem diga que Danúbio não é um romance, mas “um quase romance, onde se multiplicam personagens, situações dramáticas, pequenos enredos” (sic). Na verdade, trata-se de uma obra onde o protagonista é o rio que adquire a missão de conduzir o destino da Humanidade e dos povos que cruzam o seu caminho. O rio assume um papel quase que semelhante ao das Parcas, na mitologia da Grécia Clássica, isto é, assiste ao encontro e ao confronto de culturas, etnias bem como à aculturação sucessiva por várias civilizações diferentes: Grega, Romana, Balcã, Otomana, Germânica… Num continente onde regiões fronteiriças como as povoações que se encontram no limiar do antigo Império Otomano constituíam, já nos anos 1980, tal como na década inicial do século XXI, um mosaico étnico-cultural, foco de instabilidade política em permanente ebulição que, após um período de aparente acalmia explode, ciclicamente, à semelhença do Etna, vomitando lava e cinzas incandescentes de ódios ancestrais, semeando a morte por onde passa.
O Autor intui, ao atravessar os Balcãs – particularmente a região da Valáquia, na fronteira da Roménia com a Jugoslávia –, a instabilidade latente, refreada por um regime de ditadura militar de cariz federalista. Cláudio Magris tem a lucidez de encarar todos os regimes políticos como transitórios, principalmente em regiões onde a paz é mantida pela força, fazendo pensar que aos sonhos de unificação da Europa estão subjacentes fragilidades dificilmente ultrapassáveis e que poderão apenas ser concretizáveis na utopia das lendas wagnerianas…

O pensamento céptico-nihilista está patente na constatação da ilusão de perenidade de uma superestrutura federal, unificadora como fruto da árvore da utopia que é a vontade humana nem sempre universal…

Só o Rio sobrevive à passagem do tempo…

O rio sobrevive aos povos, aos impérios. As línguas alteram-se, as fronteiras mudam de lugar, mas o Danúbio, ou Istro como lhe chamam no Oriente, continua o seu percurso, inexorável, até se afogar nas águas do Mar Negro…este romance danubiano é constituído por capítulos que podem ser lidos quer separadamente quer encadeados uns nos outros, uma vez que cada qual constitui um episódio independente. São agrupados segundo um critério geográfico e histórico-cultural.

A primeira secção intitula-se Uma questão de Goteiras onde se discute as origens, a nascente, fonte primordial do Grande Rio, numa acesa disputa, que atinge o ponto culminante entre as povoações de Donauschingen e Fürtwangen.

O critério determinante acaba por ser de carácter geográfico e geológico, a partir da obra O Danúbio Universal do engenheiro Nevklowski. Mais adiante surge o Inn, afluente de águas azuis, que deve ter, erroneamente, inspirado Johann Strauss ao criar a opereta O Belo Danúbio Azul, um título assaz irreal em contraste com as águas barrentas e amareladas do verdadeiro Danúbio…

Entra-se na Áustria na secção Em Wachau e no império propriamente dito da Mitteleuropa que, até 1914 disputa com o Império Otomano uma espécie de guerra fria, sendo o império dos Habsburgos uma espécie de contra poder cuja função seria a de travar o avanço do domínio otomano na Europa.

Seguem-se as crónicas de Café Central, ex-libris da vida social e intelectual da capital austríaca na Belle Époque, e cuja atmosfera intemporal inspira o Autor a escrever sobre a cultura, a vida social, e o sistema politico vienense de então, divagando à maneira de um pensador diletante, sobre Wagner, sobre a Tragédia de Meyerling, sobre a visita à casa Museu de Sigmund Freud, das pastelarias e dos poetas e intelectuais que as frequentavam. Tudo faz parte da cultura do Danúbio e tudo é por ele disseminado ao longo da Europa, em direcção ao Oriente até às profundezas do Mar Negro…ou do Estige.

Depois entramos na Eslováquia, na secção Castelos e Drevenice, onde se fala de uma povo cuja cultura, língua e literatura como que se agrega, se deixa obscurecer em detrimento do fulgor da vizinha Checoslováquia…

Chegamos, então, à Panónia, uma região compósita da qual faz parte a Hungria em cuja paisagem se percebe ainda a presença dos antigos Tártaros e Citas, dos Hunos e Pechenegues, formando o recortadíssimo patchwork da população e cultura magiar. Trata-se de um recanto da Europa onde segundo as próprias palavras do Autor “Uma pausa numa pastelaria ou livraria em Budapeste desmente os que pensam que, a leste da Áustria começa uma espécie de misteriosa e semi-desconhecida região asiática. Entrando na grande planície húngara entramos sem dúvida numa Europa que é parcialmente outra, num crisol composto de elementos diferentes, dos que constituem a massa de argila ocidental (…). Muitas vezes, na história húngara, a escolha foi, na realidade, uma imposição da conquista turca ao bloco soviético, ou uma decisão coagida (…). No século passado, (XIX) o romancista Sigismond Kemény afirmava que a função da Hungria era a de defender a plurinacionalidade do Império Habsburgo compartilhando o germanismo e o eslavismo e impedindo a supremacia de um dos elementos sobre o outro”.
A paixão nacional magiar (…) nasce de uma terra na qual se sobrepuseram, misturaram e depositaram vagas de invasões de estirpes diferentes, hunos e avares, eslavos e magiares, tártaros e cumanes, janízaros e pechenegues, turcos e alemães. As migrações dos povos devastam mas também civilizam (…) e produzem promiscuidades e mestiçagens e, também, as matrizes secretas de todo o nacionalismo e das suas obsessões de pureza étnica (… ) " (sic).

O Autor prossegue com a meticulosa descrição do jogo de xadrez político lavada a acabo pela Intelligensia do governo nas últimas décadas do período de domínio Habsburgo. E, da política, Cláudio Magris passa para a Literatura, depois para a Gastronomia. E, daí, para as lendas dos povos antigos da região, contemporâneos dos Gregos da Antiguidade Clássica.

A viagem prossegue, ao longo da Panónia, abrangendo ainda parte da Transilvânia e da Sérvia.

No capítulo final desta secção, em Mohács, é evocada a sangrenta batalha com os Turcos face ao exército do Rei da Hungria, em 1526, descrita no século XX como uma extensão dourada, ocupada por uma vasta plantação de milho e girassóis. Amedeo, um dos companheiros de odisseia do narrador, que quase não intervêm na narrativa, por não fazerem parte do fio de pensamento do mesmo narrador, enfatiza a magia do momento ao tirar do estojo o violino deixando correr ao sabor da brisa a melodia de uma velha canção Yidische em homenagem aos mortos: O Rouxinol (solojev), enfatizando a melancolia, a tonalidade dramática do fulgor sangrento dos acontecimentos sociais, fruto do conflito de interesses de duas potências rivais.

Na Jugoslávia, prosseguimos a senda do rio de sangue da História, lavada pelo correr das águas turvas do Danúbio. A secção intitulada A Avó Anka – personagem que representa a anciã habituada a viver numa região onde a paz associada ao pluralismo étnico é mantida à custa de um apertado controle efectuado por um regime militar, como o de Tito e daqueles que se lhe seguiram, até ao desmembramento da Federação dos Eslavos do Sul, já no início da década de 1990.

E é ao examinar as regiões étnica e culturalmente compósitas como Timisoara, a Transilvânia ou a Valáquia, cujas fronteiras abrangem vários estados chefiados por governos diferentes, que nos apercebemos do alcance e da complexidade que a questão das fronteiras adquire na região dos Balcãs, como explicita o Autor no parágrafo que se segue:
A Jugoslávia é um estado realmente plurinacional (…) constituído por uma plurinacionalidade irredutível a uma dimensão unívoca ou predominante.; tal como o termo “Austríaco” talvez também o de “Jugoslavo” seja meramente imaginário, indica a força abstracta de uma ideia (…)” (sic).

Nas Portas de ferro, o Autor recorda o general romano Scribónio Curion, o qual sentia uma estranha aversão em adentrar-se pela misteriosa e densa floresta além-Danúbio como se experimentasse "uma repulsa obscura perante aquela múltipla sobreposição de povos e culturas misturadas e indistintas" (…), o mesmo se passando aquando da campanha contra o rei Decébalo contra os Dácios, vindos da actual Roménia.

Atravessamos de seguida a fronteira com a Bulgária, descrita pela pena de Magris na secção intitulada Uma Cartografia Incerta, onde o Autor se decide explorar a região, inserindo-se na cultura do país mais misterioso da Europa, cujo território, nos finais do século XIX não se encontrava, ainda, correctamente cartografado. Altura em que, apesar do período de acelerado desenvolvimento económico que atravessava então a Europa Ocidental, certas regiões do Danúbio “eram ainda mais desconhecidas do que o Nilo e do que as gentes do seu curso inferior (…) e sabia-se menos dele do que das ilhas dos Mares do Sul”.

Referindo-se ainda, à década de 1980,altura em que a Bulgária fazia ainda parte do pacto de Varsóvia, Magris comenta que “A cartografia realizou indubitavelmente progressos decisivos, mas a Bulgária, de todos os países do Leste, continua a ser o mais ignoto, um lugar onde raramente se vai e que surge na ribalta como palco de intrigas improváveis e inverificáveis (…) (sic).

Trata-se de “um povo simpático e hospitaleiro” (sic), mas que manifesta algumas reservas que se que se exprimem num desprezo desconfiado face aos Turcos, em consequência de um ódio ancestral onde o sentimento de união nacional surge directamente emanado da necessidade de libertação do jugo otomano.

Trata-se de uma terra para onde convergiram Tártaros e Circassianos de origens e temperamentos diametralmente opostos, sendo os últimos aliados dos Turcos e, por isso, pouco amados pelos Búlgaros que se fundiram com os primeiros…

As origens étnicas dos Búlgaros são muito antigas, resultantes do produto de uma fusão entre a cultura Balcânica e a do Cáucaso, a qual mergulha as suas raízes no confronto arcaico da civilização nómada do Sudeste e os invasores nómadas das Estepes.

Os povos antigos são absorvidos pelos Eslavos, por volta do século VII, aos quais se vêm juntar os invasores vindos da Trácia, do Cáspio, do Mar de Arzov. Os Búlgaros são o resultado da miscigenação destes três elementos.

Disserta-se sobre literatura búlgara, sobre a pertença dos territórios da Macedónia, o trabalho agrícola nas aldeias. Aborda-se a problemática da proliferação de antigas seitas heréticas no período medieval, desde os cátaros, os albigenses, bogomilos, paulicianos e simónidas a propósito da questão da busca das verdades absolutas.

A visita à Bulgária termina com a ida à casa onde viveu Elias Cannetti durante a qual se alude à sua obra-prima, Auto de Fé, a propósito do tema anteriormente dissertado.

Ao passar na fronteira com a Roménia, o Danúbio já não se chama Danúbio nem Istro mas Matoas, na região que, no tempo do Imperador Justiniano, se chamava de Cítia Menor. Discute-se a origem latina dos romenos até se chegar a Bucareste, na altura pomposamente chamada de “A Paris dos Balcãs”, em plena ditadura de Caucescu – O Nero dos Balcãs – que se divertia a mudar os edifícios históricos de lugar, alterando a configuração das cidades.

Na altura da sua curta estadia na Roménia de Ceaucescu, o Autor comenta um estranho congresso literário que reunia um pequeno grupo de convidados ilustres, um convénio sobre literatura ítalo-romena, onde participou inclusive, Umberto Eco. Magris destaca, contudo, um Autor romeno de vanguarda que se movimenta na sombra com a atitude, simultaneamente prudente e audaz, de Petroneo que se supõe ser o autor de O Satyricon e, simultâneamente, personagem de Siekenwicz em Quo Vadis

Segundo o Autor, neste evento cultural de impacto internacional pouco vulgar em Bucareste, “…mais do que os discursos e os relatórios, importam as tagarelices e conversas dos intervalos, com as suas cautelas e indiscrições alusivas”. Onde muitos intrigam ou usam de maledicência através de meias palavras; e outros criticam temerária e abertamente o Governo, o Estado e o Partido.

Como não poderia deixar de ser, o congresso teve de ser silenciado por se tornar inconveniente, tendo sido mudado, nos últimos dias, rapidamente e à última hora, o local de realização, sem aviso prévio. Entretando o público chega ao local agendado e encontra apenas cadeiras vazias…

...e nem sinal dos conferencistas.

Enquanto isso, os escritores convidados e residentes, cujo número não excedia uma dezena contando com os italianos, discursavam numa sala onde formavam um grupo mais numeroso do que os próprios ouvintes…

As crónicas de Magris prosseguem continuando a viagem física e cultural e encontrando, num subúrbio de Bucareste, a inspiração para a reconstrução do cenário da vida cultural romena no século XIX e início do século XX: e Poesia, a Literatura – mais uma vez – e a Arte. Sempre a Arte.

Com a chegada ao Mar negro, local de exílio de Ovídio, descrito por Vintila Horia, autor de Deus nasceu no Exílio numa localidade onde brotam as raízes do mito, das civilizações antigas, de confronto entre Gregos e Trácios. Chagamos a Ístria, cidade olantada no limira da Europa e da Ásia, onde a desolação da luz absoluta e ominipresente inunda todos os recantos e actua como um anestésico face à sensação de solidão e isolamento.

A chegada ao Delta, já depois da fronteira Turca, na antiga Cólquida, onde o Danúbio-Istro-Matoas se ramifica em inúmeras saídas para o Mar e onde, por fim, irá morrer, marca o términus de uma viagem transeuropeia que ultrapassa as barreiras do Tempo e de todos os muros erigidos pelo Homem…


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, April 10, 2008

"Pecados de Intención” de Janet Nuñez


Lançamento de "Pecados de Intención" no Correntes d'Escritas em 14 de Fevereiro de 2008

Janet Nuñez Marroquín é originária da Colômbia tendo nascido em Barranquilla em 1962.

O seu
curriculum é vasto e extremamente diversificado – é desenhadora de interiores, tendo leccionado nesta área na Universidad Autonoma del Caribe. Estudou, também, Direito durante cinco anos e trabalhou como produtora e assistente de direcção em documentários e magazines culturais, em cinema e televisão. Exerceu, ainda, a docência na área de Produção de Televisão e Criação Cinematográfica na Escuela Distrital de Artes de Barranquilla e foi produtora de eventos no Instituto Distrital de Cultura da mesma cidade. Em 2006, publicou a sua primeira colectânea de poemas intitulada Equipaje para Desahuciados. Pecados de Intención é o seu segundo poemário, editado na vizinha Espanha. São, ao todo, vinte e cinco textos de grande intensidade passional, numa escrita vulcânica a denunciar uma inquietude interior, uma ânsia quase que desesperada de liberdade quer no que toca à expressão do Erotismo e do Desejo quer na superação dos obstáculos sociais que impedem o vivenciar de experiências: a hipocrisia, o sentido de conveniência e o comodismo.
A escrita de Janet Nuñez é sobretudo, sensorial, emocional mas também intelectual, quase que um manifesto de luta contra a injustiça e desigualdade sociais. É, sobretudo, a expressão do pensamento de uma mulher inconformista face ao papel secundário atribuído à população feminina nas sociedades chauvinistas. A linguagem utilizada apela à insubmissão que se revela ao leitor num grito de independência ou mesmo numa declaração de guerra aos condicionalismos impostos às mulheres sobretudo no que respeita ao direito de vivenciarem livremente a sua sexualidade, sem constrangimentos ditados por imperativos de ordem social ou à manipulação do outro membro da relação.

Segundo o autor do prefácio, Jaime Cabrera González, os poemas de Janet Nuñez Marroquín são “… poemas que insinúan, que dicen sin decir, traslucen en su construcción elementos populares, expresiones coloquiales, frases tomadas de las lecturas, locuciones en otras lenguas y un sentido sutil del humor de tal manera armados que denotan que el poeta sólo sirve de médium, de receptor que transcribe como un amanuense lo que le dictan sus fantasmas y así poder quitárselos de encima del hombro desde donde observan todo lo que escribe”.
O que só vem confirmar a ideia de que toda a manifestação literária nada mais é do que uma forma de projecção das pulsões mais íntimas e que a escrita acaba por ser uma forma de terapia de superação de barreiras internas, de exorcizar velhos demónios, afugentando-os ao neutralizá-los pela sua exposição à luz da consciência.

Ainda de acordo com Jaime Cabrera González os Pecados de Intención de Janet Nuñez são a manifestação “…de la trasgresión de una ley que ha sido prolongada en la imaginación, allí donde todo es posible. Es un deseo deliberado (…) en donde se asume el riesgo hasta las últimas consecuencias, de una forma casi pecaminosa (…). Pecaminosa, trasgresora, violadora de preceptos y pensamientos establecidos (…). Pecados de Intención procura liberar al ser humano de las tonterías que lo aherrojan”.
Porque en algún lugar debe haber alguien
Tirándole conchitas de naranjas a las estrellas

J.C.G.

A sede de liberdade encontra-se expressa logo no primeiro poema dedicado à Mãe, a figura arquetípica universal, identificada com a terra, que dá o fruto e que alimenta os filhos – os homens – em qualquer parte do mundo. Trata-se de um poema fortemente afirmativo, cujo objectivo é o de mostrar a perenidade e a intemporalidade do eu feminino como o ventre do mundo – a origem primordial da humanidade.

O humor negro, cheio de ironia e sarcasmo, marcado por vezes com a irreverência de Boris Vian, está patente em poemas como Hay que vacunar a los perros – Há que vacinar os cães – um canto de protesto, mediante a indiferença e a hipocrisia de uma sociedade superficial.

Também os amigos e o valor da Amizade são cantados e colocados em lugar de destaque na poesia de Nuñez, em vários momentos deste poemário, assim como a beleza e o valor das pequenas coisas, o prazer raro dos escassos ou fugazes momentos perfeitos como em Advierto a lo efímero ou a insubmissão em Tenía ganas de mar que me soñaba en su espuma e em Porque todavía me queda, a importância de perseguir os sonhos em Reinvento el sueño. Também são destacados a mansa luta pela preservação da identidade em Frente a tu ira, ou o medo e a inevitabilidade da morte em poemas como Inesperado e Y entonces el Otoño.

Finalizo com o penúltimo, a ilustrar a força telúrica desta escrita poética vinda da Colômbia…

Inesperado

Declive sin linderas
O impulso sin razones
Acariciar al acecho
Celda triangular
Estricto movimiento
Acometida lenta
Sinuoso vaivén
Paciente travesía
Por lagos de sal
Aljibe misterioso
Pozo en las entrañas
Resbaladiza
Trampa de muerte
.


Intensíssima.


Cláudia de Sousa Dias