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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, September 29, 2015

“A Última Criada de Salazar: a vida doméstica e os dias do fim” de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)



Já nos habituámos às reportagens e ao estilo narrativo no jornalismo de Miguel Carvalho, cujas peças sempre se assemelham ora a crónicas de viagens – quer pelo território nacional quer pelo mundo –, ora a um romance policial, juntando muitas vezes o talento para a construção de uma biografia. O discurso de Miguel Carvalho apresenta-se numa prosa ágil, escorreita, a lembrar um pouco o romantismo ou até mesmo os autores neo-realistas, tal como acontece com primeira parte da biografia de Lúcio Feteira, onde encontramos, por vezes, ecos de Raul Brandão.

Nesta última obra de Miguel Carvalho, publicada já há dois anos atrás, é notória a preocupação do autor em não deixar que as suas próprias convicções ideológicas ocultem o ponto de vista da protagonista, D. Rosália Araújo, criada no Palácio de S. Bento. Trata-se de uma obra que valor documental, apresentada como o testemunho de uma época.

A variedade das fontes consultadas pelo Autor permitiram-lhe operar uma reconstrução fiel da mentalidade e da época e da forma de viver o quotidiano do palácio durante o Estado Novo, assim como efectuar a adequada contextualização histórica , socorrendo-se de um vastíssimo leque de fontes (a bibliografia consultada aparece totalmente descrita no final da obra) as quais se estendem por todo o espectro político-ideológico. Apesar disso, o perfeccionismo de Miguel Carvalho, ao citar Franco Nogueira in Salazar, vol VI (1985) não deixa de frisar que: “muitas perguntas estão [ainda] sem resposta, muitas lacunas ficam por preencher...”. No entanto, Miguel Carvalho não deixa de responder a algumas questões de peso, que nunca antes foram colocadas, ou se o foram, nunca se focaram na perspectiva que é aqui enunciada por Miguel Carvalho, por exemplo: a personalidade de Salazar e a forma de se relacionar com as pessoas dentro do espaço doméstico gigantesco como era o Palácio de S. Bento; as estratégias e segredos a que recorriam as criadas para sobreviver à ditadura de Dona Maria, a Governanta; a forme como eram geridas as finanças, as despesas e a alimentação na residência oficial; que episódios foram ocultados nos últimos anos de vida do político; qual a versão foi contada ao pessoal doméstico sobre a tão falada “queda da cadeira; e, por último, como tentou o regime de então “matar” o ditador.

A protagonista do livro é uma figura feminina que contava apenas com dezanove anos aquando da morte do Ditador. Para verter o texto sob o olhar de uma jovem que passou a adolescência protegida pelos muros do Palácio de S. Bento, o tom do discurso usado por Miguel Carvalho neste livro aparentemente, um pouco mais ligeiro em relação a outras obras da autoria: o olhar de uma jovem que conviveu de perto com a faceta doméstica de António Oliveira Salazar, alheia à sua faceta política e ao ethos ou imagem de si que a figura polémica deste político carismático projectava quer para o país (figura de autoridade máxima cujas convicções políticas nunca se podiam pôr em causa) quer para o resto do mundo (uma figura de atitude ambígua, escorregadia, de postura dúplice, sobretudo durante a segunda guerra mundial, um animal político, embora profundamente provinciano na sua forma de conceber o mundo), mas que nos mostra a imagem de um pai de família, dotado de autoridade em relação aos restantes habitantes do Palácio, mas benevolente. É nesta relação estabelecida entre todos estes dois pontos de vista, estas imagens, estes ethe relativos ao estadista português, que assenta a o interesse do livro de que hoje aqui falamos: a jovem Rosália desconhecia, por exemplo, a existência de uma polícia política, da qual só tomaria consciência aquando do atropelamento de que fora vítima, ao sair em serviço para abastecer a despensa do palácio. Esta simples ocorrência desencadeou todo um esquizofrénico processo de investigação para verificar uma qualquer hipótese de atentado.




O posicionamento do autor assenta num delicado equilíbrio que se atinge sem subscrever na íntegra a visão de Dona Rosália Araújo acerca do Ditador, mas contudo sem a rejeitar, incorporando-a na imagem prévia que já possuía do antigo chefe de Estado, aglutinando a perspectiva transmitida por Dona Rosália ao conhecimento anteriormente adquirindo, fornecendo-nos assim um retrato mais completo, com uma faceta até então pouco conhecida daquele que esteve quase meio século à frente dos destinos do País.

Aos olhos de Dona Rosália Araújo a pessoa do Ditador, com a qual convivia todos os dias no Palácio, apresentava-se como um homem amável, cavalheiro, quase paternal. Por outro lado, cabia a uma figura feminina incarnar a faceta repressiva do regime dentro dos muros de S. Bento. Essa figura seria D. Maria, a governanta, retratada a partir de uma imagem projectada para o leitor que se aproxima muito da das bruxas maléficas dos contos da fadas tradicionais. É ela quem exibe a postura tirânica, despótica e quase que sádica na forma como exerce o poder face aos que estão sob a sua responsabilidade e também na gestão dos fluxos de informação dentro do palácio, correspondência incluída. Esta polarização entre as duas figuras de maior autoridade dentro do palácio,o ditador Benevolente e a Governanta perversa, assim percepcionadas por Dona Rosália, é outra característica de grande interesse na obra, por ter a ver com as relações de poder que se estabelecem dentro da residência oficial do chefe de estado e da forma como é percebido e exercido o poder dentro de uma estrutura hierárquica com um líder autoritário. A crueldade desta chefe do staff doméstico de António Oliveira Salazar ficou inscrita na memória daqueles que com ela conviviam diariamente, sobretudo as criadas que se encontravam sob sua chefia directa. D. Maria era conhecida por mandar executar tarefas especialmente difíceis sem se preocupar com as condições da sua exequibilidade.

Deixo-vos agora com a Introdução e com a “voz” de Miguel Carvalho para vos dar a conhecer a extensão e minúcia deste trabalho de reconstituição da vida doméstica do Palácio de S. Bento durante o “reinado” de António Oliveira Salazar:

Rosália Araújo foi a última criada de António Oliveira Salazar.: entrou em São Bento em 1965, com quase 14 anos, e de lá saiu, com um interregno, após a morte do ditador, em 1970. Tinha, então, 19 anos.

Conheci-a em Março de 2012, quando pela primeira vez me desloquei a Favaios, concelho de Alijó, em reportagem.
Queria contar a sua história nas páginas da Revista Visão, mas não estava certo de a ter convencido.

Nas nossas conversas prévias pelo telefone, esta afamada padeira da região várias vezes me disse que detestava protagonismos e não desejaria que as pessoas pensassem que se estava a pôr em bicos de pés.

Creio que a convenci a desfiar as suas recordações , não pelo mediatismo inevitável das suas memórias, mas à medida que fomos conversando, olhos nos olhos.


Sobre este livro, termino aqui com o testemunho de Manuel António Pina que afirmava, peremptório:

«Miguel Carvalho é a prova (se tal carecesse de prova) de que um bom jornalista há-de ser, necessariamente, um bom escritor».



Cláudia de Sousa Dias

13.09.2015

Tuesday, September 15, 2015

"Gustav Klimt: The World in Female Form" by Gilles Néret (Taschen)





A arte, o Eros a rebeldia são as dimensões mais focalizadas nesta publicação que tenta dar a conhecer o génio de um artista misantropo. A Taschen explica neste fascículo o percurso artístico do pintor austríaco Gustav Klimt, inserindo-o e ao seu trabalho no contexto sócio-histórico da Viena no final do Império Austro-húngaro afim de que se perceba o alcance do seu olhar crítico sobre as Artes, as Ciências e as coisas do quotidiano.


O pintor nasce em Viena, na segunda metade do século XIX (1862) vindo a falecer no ano em que termina a Primeira Guerra Mundial e se desagrega o Império Austro-húngaro.

As ideias-chave que surgem nesta síntese e contextualização da obra do pintor por Gilles Néret, historiador da arte, editor e escritor, assentam essencialmente no divórcio dos vienenses entre a realidade (o conflito latente no Império) e a ilusão (a falsa ideia de prosperidade contínua), na sua ligação ao movimento artístico caracterizado pelo secessionismo e simbolismo, no destaque dado ao arquétipo da mulher fatal na sua pintura, a ligação a Beethoven e à temática que perpassa na “ode à Alegria” na  nona sinfonia daquele compositor alemão, nas diversas técnicas usadas do seu trabalho, na profusão dos detalhes e no erotismo na Arte de Klimt. Sem descurar a forma como este artista rompeu com o cânone que dominava a Academia das Artes Plásticas vienense, a qual assentava maioritariamente nas correntes do realismo e do romantismo.

A parte biográfica do trabalho de Néret refere de passagem os pais de Klimt: o pai, gravador e ourives, trabalhando os metais e a mãe dotada de talento musical, mas sem chegar nunca a profissionalizar-se, permanecendo o seu talento oculto, na obscuridade, reduzido à esfera doméstica e familiar. Néret dá a entender que o talento de Klimt foi, desde idade muito precoce, estimulado pela convivência quotidiana com as artes, o que cedo lhe despoletou o desenvolvimento da sua sensibilidade artística: apesar de os Klimt serem uma família de poucos recursos, o jovem Gustav manifava, na adolescência o desejo de se tornar professor de desenho.

Viria a casar com Helena Flöge, em 1891, seguindo-se a morte do pai, um ano depois. Este facto despoleta-lhe um estado de espírito depressivo, sombrio, que acabará por se reflectir durante algum tempo, na sua pintura projectando-se na atmosfera dos seus quadros, que surgiam então com tonalidades mais sombrias e lunares, aproximando-se do trabalho dos pintores simbolistas, seus contemporâneos.

Um pouco antes, em 1890, um seu tríptico, uma alegoria antropomórfica ou melhor ginomórfica, representando a Medicina, a Filosofia e a Jurisprudência, desencadeou reacções bastante negativas na crítica e na elite intelectual vienense que as considerava ofensivas e à sua obra, em geral, pornográfica. Tal não impediu porém que Klimt participasse na Exposition Universelle de Paris, para onde convergiram os pintores modernistas dos quatro cantos da Europa.


Néret ao colocar em destaque a “golden phase” do trabalho do pintor no capitulo dedicado às técnicas revolucionárias na pintura de Klimt, mostra que este é largamente influenciado pelo trabalho de gravador do pai, consagrando aos seus quadros a profusão decorativa dos trabalhos de ourivesaria e a preferência pelos tons de ouro nos seus quadros. Ao longo deste período, o seu trabalho é marcado pelo recurso à técnica da “folha de ouro”, que usa frequentemente para revestir os corpos das figuras femininas que protagonizam os seus quadros, mas Klimt recorre também à técnica do “mosaico”, inspirando-se frequentemente nas figuras icónicas da hagiografia bizantina. O texto de Néret é sobretudo descritivo, de carácter generalista e não propriamente o resultado de uma detalhada interpretação da composição de cada quadro do artista como faz, por exemplo, Yvette Centeno, com um pequeno mas brilhante artigo publicado na Revista Mealibra (de 2005, nº16, série 3), onde faz a análise comparativa do celebérrimo quadro de Klimt “O Beijo” com “O par” (Le Couple) de outro pintor modernista, Arpad Szénes, casado com a pintora portuguesa Maria Helena Vieira da Silva, consistindo este artigo numa reflexão sobre a forma como ambos representam o feminino andrógino na respectiva obra.

Néret põe também em evidência o apreço de Klimt por temáticas protagonizadas por mulheres relacionadas com a mitologia clássica (Dánae, 1907), com as mulheres fatais e sedutoras perversas da Bíblia (Judith, 1901), ou dando corpo a alegorias (O Beijo, 1908). O talento de Klimt torna-o procurado pelas famílias ricas da elite vienense, sobretudo de milionários judeus que lhe pedem que lhes retrate as esposas e filhas. Estas encomendas garantiam-lhe a independência económica de que necessitava para viver exclusivamente da sua arte, sem limites no que tocava à sua própria liberdade de expressão. A ênfase que é colocada neste fascículo por Néret na preferência de Klimt pela representação do corpo, da nudez e  da sensualidade femininos mostram uma mente cujo Eros transfigurava a mulher vulgar, a cortesã vienense ou simples prostituta de rua em deusa, figura bíblica, ou abstracção, imortalizando-a. Esta ideia é, de certa forma corroborada pela já mencionada interpretação que Yvette Centeno faz do quadro “O Beijo” no artigo intitulado “Androginia: de Klimt a Arád Szénes” (Mealibra, 2005:25-28), onde analisa detalhadamente a forma como é representada a Mulher em ambos os quadros., sublinhando o enquadramento mandálico de ambas as obras e o aspecto andrógino de ambas as figuras femininas para passarem os dois trabalhos a divergir, em primeiro lugar, nas tonalidades empregues – Szénes, recorrendo aos tons sombrios, apostando nos contrastes violentos entre tons claros e escuros onde predomina o negro que se destaca na sua composição estética, e Klimt, que opta pelo amarelo-ouro, a espalhar-se como poeira, envolvendo ambos os elementos humanos do quadro, a ponto de os contornos físicos de ambos os corpos se tornarem indistintos. Centeno compara-os, frisando que, enquanto o par representado no quadro de Szénes personifica a união de dois seres que se amam, no quadro de Klimt o que se dá é uma fusão onde os dois seres quase perdem a sua identidade. O Beijo é, portanto, o exemplo perfeito do lugar central que ocupa o Eros na obra de Klimt, ocupando o lugar de primazia que na obra e no imaginário do artista:

«O simbolismo andrógino de Klimt é mais directo e o de Arpad mais discreto. Com Arpad sublinha-se o atelier e a obra (ainda que sublimados); com Klimt evoca-se um paraíso luminoso e sensual. O Par é, a seu modo, um “colectivo”. O Beijo, uma fusão que leva à divisão do par e à unidade de uma única forma primordial. Um andrógino, à imagem do que Platão escreve no Banquete.

(…)

Klimt funde os amantes no beijo, Arpad une, não funde, deixando o par atrás da mesa, não deixando que a projecção total se manifeste: a mesa corta a unidade que o abraço sugere.

(…)

A androginia do quadro de Klimt é colorida, o chão do seu paraíso mandálico é um tapete florido, como o Cântico dos Cânticos, celebra a fusão extática.»

Yvette Centeno in Mealibra, 2005.

Sendo Klimt uma figura esquiva no tocante à vida pessoal, quase um misantropo, como artista é, no entanto, um homem bastante interventivo e sociável: abominava qualquer forma de protagonismo ou narcisismo, não revelando o mínimo interesse em representar-se a si próprio. Como ele próprio afirma (ver  1  ), não desdenhava contudo a participação em eventos associativos ou  de carácter intelectual, sobretudo no tocante à discussão e divulgação das artes em geral: em 1905, fazia parte do movimento secessionista que, depois, se dividiu em duas facções,  cabendo-lhe ocupar o lugar central numa delas. Cada vez mais esquivo e reservado em relação à vida privada, Klimt projectava a imagem pública de um artista de vanguarda do século XX.

Em 1918, o pintor sofre um avc e é hospitalizado. Durante o internamento, contrai uma pneumonia, morrendo pouco depois, sendo enterrado no cemitério de Hietzing em Viena.

Tal como indicia o subtítulo desta publicação da Taschen, The World in Female Form, (O Mundo em formato Feminino) mais do que a sugestão do protagonismo feminino na obra do artista é o facto de a Mulher ocupar o lugar de destaque e de poder no seu imaginário e no mundo que pretende retratar. Uma Mulher que se apresenta como uma construção híbrida entre o divino e o terreno, partindo das “Nini” (nome atribuído às cortesãs e prostitutas da Viena do início do século XX)  que surgem nos seus quadros deificadas e imortalizadas. Estas suas “deusas” despoletaram o embaraço e, por vezes, alguma indignação nos sectores mais conservadores das elites vienenses quer intelectuais quer nda aristocracia. Uma reacção que o pintor soube enfrentar com humor seco, mesclado com uma pontinha de desprezo, atirando-lhes com uma citação do poeta alemão Schiller:

“Kannst du nicht allen gefällen
düch deine Hat
und deine Künstwerkmach
es wenigen recht
vielen gefällen ist.”

[Se não conseguires agradar a todos
enfia o teu chapéu e a tua sabedoria
Haverá pelo menos alguém
que saberá apreciar. (Tradução minha)]


Por cima desta inscrição, no quadro, o retrato de uma Eva com ar de “Nini”, desafiante na sua nudez, ostentando um pequeno espelho na mão, exibindo uns arruivados pêlos púbicos, com a serpente (símbolo ambíguo: ora do conhecimento, ora da tentação ora da sedução erótica) estendendo-se insidiosamente a seus pés, junto à inscrição que dá título ao quadro: “Nuda veritas” (a Verdade nua).

Pela forma como Néret descreve o trabalho de Klimt e faz o seu enquadramento histórico, social e estético, pode-se facilmente deduzir que Gustav Klimt era um homem muito pouco convencional. Mais mais do que isso: dificilmente enquadrável em estereótipos, de pensamento crítico acutilante, um verdadeiro iconoclasta e um homem muito à frente do seu tempo.

O autor desta mini-biografia dá-nos algumas pistas que permitem ao leitor entrever algumas das razões pelas quais se torna tão fascinante o estudo da sua obra, permitindo-se ao mesmo tempo lançar um pouco de luz sobre a personalidade do artista o qual, ao contrário do que afirmava, é alguém muito mais interessante do que aquilo que o próprio deixava transparecer. 

Fica aqui a sugestão de leitura e o desafio à investigação com vista à escrita de uma obra biográfica ou mesmo ficcional. A quem tiver fôlego para tal empreitada.


Cláudia de Sousa Dias
12.09.2025


1“Anyone who wants to find out about me – as an artist, which is all that is of interest – should look attentively at my picturtes.”

Saturday, September 05, 2015

“a pata da cabra” de Maria Quintans (Cama de Gato)



Maria Quintans não é uma poeta que possamos ver com frequência largos círculos de distribuição livreira do país. No entanto, tem já um vasto currículo de publicações em editoras independentes. e é presença assídua no encontro luso-hispânico de poesia, realizado anualmente em Vila Nova de Famalicão, as Raias Poéticas. Maria Quintans publicou em 2008 Apoplexia da Ideia, em 2011 publica Chama-me Constança e três anos depois, em Junho de 2013, lança O Silêncio sobre os seus leitores. a pata da cabra surge em 2014, com o lançamento no encontro internacional de escritores Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim. Tem ainda poemas publicados em várias antologias e textos dispersos pelas revistas Big Ode, Inútil e Golpe de Asa.

a pata da cabra é um livro consagrado à imaginação, emergindo a partir da inspiração de André Breton e estendendo-se debaixo da sombra abarcada pela mesma imaginação, denunciando também a influência do simbolismo de Paul Éluard.

Nas duas epígrafes, a servir de introdução ao livro, está patente a temática central que orienta o impulso criativo que se inscreve no discurso do sujeito poético:

«Chère imagination, ce que j'aime surtout en toi
c'est c'est que tu ne pardonnes pas.»

André Breton


«Je sors aux bas des ombres,
se suis aux bas des ombres»

Paul Éluard



Da primeira citação, de André Breton, podemos tirar duas ilacções: a primeira é que este é um livro que projecta a voz de alguém para quem o imaginário e o impulso criativo não se curvam perante quaisquer limites sejam eles de ordem ideológica ou estética; a segunda é a de que se trata de um livro cuja missão é incomodar, causar desconforto, rebelar, expor aquilo que a maioria dos seres humanos se recusa a ver.

Na segunda, a referência à “sombra” indicia que a leitura irá obrigar a um certo esforço de descodificação de onde o significado latente das frases exige ao leitor a capacidade para “ler nas entrelinhas”... Surrealismo e por vezes dadaísmo marcam a a forma de expressão de Maria Quintans: as imagens sucedem-se com as que nos vão surgindo nos sonhos, como quadros ou fotografias durante uma apresentação de diapositivos. Um caleidoscópio de imagens oníricas, cujas formas vão desfilando diante dos nossos olhos. Algumas sugerem a ligação com uma realidade duríssima do quotidiano. Essas imagens vão-se metamorfoseando diante dos nossos olhos sob a forma de palavras que deslizam no nosso imaginário como as sombras da caverna de Platão, pequenos estilhaços do real, para ilustrar fragmentos de vida (ou de não-vida) no quotidiano através do olhar do sujeito poético que enuncia o discurso:

«1. O sonho tem um caminho que se descreve em meia dúzia de palavras. A ideia encanta-me e encanta-nos a todos, porque é por aí que se encontram nas águas fechadas do tempo. Ainda há pouco, por ali, naquela rua que desce das amoreiras para o rato, encontrei um homem com um lago de lágrimas na boca. O homem gemia e aconchegava um cobertor sujo ao pescoço. Nunca o tinha visto mas sabia que pintava cordas à volta do pescoço das mentes que andavam no autocarro que parava nas amoreiras e descia para o marquês. O homem estava morto. E todas as paragens do autocarro se taparam com bandeiras negras entre o rato e as amoreiras, para todos se lembrarem do homem que pintava cordas presas ao pescoço dos mortos que andavam de autocarro. Ninguém mais andou de autocarro entre o rato, o marquês e as amoreiras.
A carris queixou-se. O Homem continuava a pintar.»


O último enunciado muda toda a perspectiva do texto, contradizendo aparentemente aquele diz que o homem está “morto” e todo o discurso que se lhe segue até ser desmentido pela frase/enunciado em questão com que termina o texto. Na verdade, o homem em estado "morto" trata-se de uma imagem de conteúdo onírico, como um sonho ou uma visão, onde ao pintor se lhe extingue a esperança, tal como acontece às pessoas que pinta no autocarro, com a corda à volta do pescoço, enforcadas, asfixiadas e silenciadas, com os movimentos limitados, as palavras exíguas ou que nem chegam a ser pronunciadas devido ao garrote que lhes impõe o quotidiano ou a necessidade de sobrevivência. O autocarro é uma espécie de antecâmara da morte.

E se este primeiro texto chama a atenção para a ataraxia, para a imobilidade, para a tentação da inércia, que submete os passageiros do autocarro, os cidadãos à condição de robots como peças de uma engrenagem numa linha de produção, no texto 3., no qual o sujeito poético adopta um tom bastante mais contundente, marcadamente assertivo, sendo esta a tónica dominante no discurso poético deste livro:


«3. É preciso criar o corpo do poema como se fosse pedra onde a poeira se acumula de vícios e razões.

É preciso ter o prodígio da cama onde todos os poemas se confundem de moléculas e cabelos abertos ao pente da estrada.

É preciso ser poeta para ouvir música e decifrar as passagens da luz entre as frestas da janela onde dorme a cabra que se esqueceu de escrever os versos que o animal mia.

É preciso ter frio e comer da barriga das aranhas todas as moscas tecedeiras de solidão. É preciso ter osso e um par de mãos de pedra adornadas de mordeduras fundas e tão falsas como improváveis.
É preciso ter fome.»



Sendo o poeta um pintor de imagens mentais construídas a partir de palavras, este pode identificar-se com o ponto de vista do pintor que é o objecto da atenção do poeta no primeiro texto: o pintor revela a morte mascarada de vida que vagueia pela cidade, como um vírus que infecta os cidadãos. Até o amor se encontra revestido, contaminado pela morte, nestas circunstâncias, tornando-se pàthos surgindo associado a palavras como “agonia” e “humilhação” como no texto 13. :


«13. o que acontece entre nós é este nosso próprio conhecimento de dias longos e agonia. quando a humilhação se encontra com o outro há a gargalhada do absurdo que queima até a próxima palavra mesmo antes de ser dita.

Foi assim que tudo começou.»


Aqui, o amor não é o paraíso e não salva ninguém. Sobretudo quando sobrevive rodeado de “gelo” e luzes “apagadas”, podendo ser conotado com o Inverno, a decadência ou até a proximidade da morte (14. e 15.). Só o fogo consegue expulsar o frio associado ao lento estiolar da vida.

A ideia-chave do livro consiste na descodificação do jogo de palavras e da provocação subjacente à metonímia que surge em 18., onde quase se pode identificar uma intertextualidade com a lenda da Dama de pé-de-cabra contada por Alexandre Herculano, aludindo à perversidade da voz que vem desestabilizar, um ser aliado de Satã, tentador ao acenar à humanidade com a sensação de poder que dá a aquisição de conhecimento:

«18. A tua pele é uma pata
A tua pata de pele
A tua pele de pata
A tua cabra de pele
A tua pata de cabra.»


Todos os textos de “a pata da cabra”, apesar da multiplicidade de géneros que os caracteriza, são marcadamente polissémicos, qualidade que se reflecte quer nos textos vertidos em prosa poética, quer em poemas de desenfreado erotismo, dísticos ou aforismos de um único enunciado como em 29. Nalguns, o sujeito poético exprime-se através de uma corrosiva ironia ou mesmo nonsense cuja intenção é provocar o desconserto no alocutário (pessoa a quem é dirigido o discurso, neste caso o leitor) o que aproxima um pouco a poética de Maria Quintans do discurso poético de Adília Lopes.

Perante o desfile carnavalesco (e alegórico) da tragicidade da vida, nesta escrita fragmentária da poeta, sobressai o tom de melancolia de que é paradigmático o texto “46. a invisibilidade admirável dos poetas”. Estes últimos sentem como ninguém o peso da síndrome de Cassandra sobre os ombros, isto é, a maldição lançada por Apolo de serem vistos pela larga maioria dos humanos como loucos, alienados, sem lhes ser dado o crédito ou o reconhecimento merecido, apesar de o Tempo (quase) sempre lhes dar razão.

Maria Quintans é uma poeta que o mundo ainda terá de descobrir e aprender a ouvir. E a resgatar do silêncio.



Cláudia de Sousa Dias

 15.07.2015