HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, February 01, 2014

“O Japão: uma antologia de estudos sobre as gentes” de Lafcadio Hearn (Cotovia)




Tradução de Humberto de Brito




Lafcadio Hearn foi um jornalista de ascendência greco-irlandesa, que desembarcou no Japão em 1890, tendo servido de ponte cultural entre aquele país e os EUA, nos finais do século XIX, e cuja estadia naquele país serviu de base para a edificação da obra de que hoje aqui tratamos.

Lafcadio Hearn nasceu na Grécia a 27 de Junho de 1850, filho de pai anglo-irlandês e mãe grega. Foi criado por uma tia-avó, nos arredores de Dublin, e viu-se obrigado a abandonar os estudos, pouco depois dos dezasseis anos, para ajudar a sustentar a sua família. Aos dezanove anos, parte para os EUA, onde se torna repórter, especializando-se em criminologia. Passa por graves dificuldades económicas, partilha o quarto com pessoas de condição humilde, ex-escravos, negros e outros imigrantes, a viver em condições extremamente precárias, numa América ainda fortemente vergada sob o forte preconceito racial.

Motivos profissionais levam-no a viajar às Índias Ocidentais  depois ao Japão, por cuja cultura Hearn se apaixona. Casa com uma jovem japonesa, estabelece-se naquelas paragens, começa a trabalhar como professor e jornalista. Morre em 1904, aos cinquenta e quatro anos, vítima de um ataque cardíaco. Adoptou o nome japonês de Yakumo Koizumi.



Os contos presentes nesta antologia relatam situações paradigmáticas dos principais traços culturais que compõem a civilização japonesa, e resultantes do imenso património imaterial e tradição oral daquele país, que fez o Autor mergulhar no universo das lendas e superstições provenientes sobretudo das zonas rurais, num momento de viragem histórica do Japão onde se começava, nos finais do século XIX, a verificar o eclodir da primeira vaga da industrialização a par de um forte desenvolvimento urbano, incrementado por um êxodo significativo das zonas mais rurais para as cidades. O livro traz nas entrelinhas o estertor do período feudal, marcado pelo domínio dos samurais como chefes tribais nas aldeias e o desabrochar das cidades. Hearn mostra, com um extraordinário poder de observação e descrição detalhadamente subtil, os elementos que tecem a conjuntura propiciadora de grandes alterações na estrutura demográfica, migrações internas e mudanças profundas na estrutura social. Lafcadio Hearn vai traçando o esboço das alterações que lentamente se desenvolvem no seio das relações familiares e se traduzem num certo afrouxamento dos laços entre gerações, nomeadamente no tocante à autoridade do patriarca sobre as gerações mais jovens, que com a saída da aldeia e da proximidade do círculo familiar, passam a ter mais autonomia em relação à condução da própria vida, nomeadamente nas suas escolhas sentimentais.

Os contos japoneses de Lafcadio Hearn salientam, como já foi dito, os valores tradicionais da cultura nipónica, como o respeito pela natureza, a veneração pelos antepassados, o amor pelo sublime. Mas relativamente à forma de organização social o principal traço ilustrativo da mentalidade do povo japonês do fim do século XIX que se encontra exposto nas entrelinhas dos contos que compõem este livro, são as atitudes-tipo que realçam o valor da palavra dada e o amor à verdade, formando assim Eu colectivo, ou Superego, no dizer freudiano, que vemos vocacionado sobretudo para o trabalho, o sentido do dever, o cumprimentos de regras, edificando uma sociedade essencialmente normativa e sem grande margem para rasgos de individualismo.

O respeito pelas leis da natureza encontra-se patente no primeiro conto Pedaços de vida e de morte, onde o culto da água é sacralizado com o objectivo de manter “pura” a água dos poços, mostrando assim a consciência do povo japonês da relação entre a necessidade de manter limpa a água dos poços e a Saúde Pública. A água pode ser assim, consoante se cuida dela ou não, o portal da vida ou da morte. O seu bom estado de conservação torna-se assim garantido pela sacralização da água do poço de forma a evitar que os seres humanos a contaminem por negligência ou descuido, prevenindo a disseminação de infecções.
Em quase todas as estórias deste livro figuram deuses e espíritos de antepassados que surgem no imaginário e mitologia das gentes do Japão de forma a difundir o que para eles parece ser de suma importância: a história, a cultura, o respeito pela hierarquia, a coesão familiar e tribal. O conto Do cabelo das mulheres (of women's hair: a Glimpse of unfamiliar Japan) que trata disto mesmo, servindo-se para tal de um traço da cultura tradicional nipónica: de como as mulheres penteiam o cabelo. Trata-se da descrição do complicadíssimo ofício das cabeleireiras japonesas a incluir um detalhado conhecimento de toda a casta de pormenores diferenciadores da casta social, idade, ou estado civil de cada mulher.

Relativamente à conciliação das relações amorosas e deveres familiares a estória Uma cantadeira de Rua vem compor o retrato sublime e trágico de um drama amoroso, numa sociedade onde o casamento é, por norma, arranjado pela família, pelo que, uniões baseadas unicamente no afecto ou na atracção sexual são vistas como imaturas ou irresponsáveis, acabando geralmente por se dissolverem fruto da pressão social que se verga ao peso do interesse do clã.

Em Kimiko assistimos à viagem pelo quotidiano de uma gueixa, mas sem o romantismo açucarado dos filmes da indústria cinematográfica de Hollywood, na altura ainda inexistente.

Em Numa ponte o narrador relata um episódio que lhe é contado por um companheiro transitório de viagem: um condutor de riquexó, o qual o põe ao corrente de um episódio insólito, surreal. Uma parábola sobre códigos de honra em situação de guerra.

N' O caso de O-Dai é abordada a problemática da aculturação, resultante de um choque civilizacional sofrido por um povo que sofre a tentativa de colonização por estrangeiros com os quais tem relações comerciais. A população encara inicialmente com bonomia as trocas culturais e a aquisição de novos usos, mas não tolera a falta de respeito para com aquilo que considera como seus valores fundamentais, nem o esmagamento das próprias tradições, cuja espinha dorsal é o respeito pelos antepassados e o culto dos mortos. O conto pretende ser um alerta ou chamada de atenção para a inflexibilidade da doutrina do calvinismo que, baseando-se na Teoria da Predestinação, parece desconhece ou desprezar valor da solidariedade.

O texto À Deriva é uma crónica de uma noite de tempestade, contada com os mesmos mecanismos estilísticos de uma lenda, e cujos protagonistas são os marinheiros que desafiam a morte, a qual é esconjurada pela demonstração, o temor e respeito pelos deuses que preservam a Fortuna na esperança de escaparem a um fim trágico...

Diplomacia, ou as armadilhas da linguagem, é uma estória de humor macabro que poderia também chamar-se de “As virtudes da astúcia num senhor feudal” numa estrutura social onde o crime é punido de forma implacável e impiedosa.

um karma passional é uma arrepiante estória de fantasmas de cariz com ecos das histórias do folclore irlandês que se funde com as estórias tradicionais da cultura nipónica que envolvem o elemento do sobrenatural, onde a crença numa vida para além da morte se cruza com a inclinação dos protagonistas para amores fatais, que parecem conduzir as almas de forma inexorável em direcção à ruína.

O último conto, intitulado Sobrevivências deixa já entrever ao leitor uma sociedade em transformação, onde o controlo social no meio urbano surge já esbatido, face ao meio rural onde era exercido pelo patriarca do respectivo clã familiar. Ali vigora a força do costume que, naquelas paragens é a lei dominante, mas na cidade, o controlo social é processado de uma forma mais institucional e formalizado. Verificam-se também significativas mudanças no seio da estrutura social e nos hábitos diários em todos os segmentos da sociedade: a classe média encontra-se numa posição particularmente delicada, numa espécie de enclave, sofrendo pressões de vários tipos: a da autoridade dos chefes, vertical portanto; a competição dos pares, isto é, horizontal; e o ódio dos mais pobres, isto é vertical ascendente. A combinação destas três formas de pressão, torna a classe média num grupo particularmente frágil, submetido a uma tensão social constante.

Estes contos japoneses de Hearn são narrados com a técnica discursiva de quem escreve um diário, dando aos leitores uma visão que poderíamos classificar de antropológica. O narrador descreve a paisagem, o indivíduo ou grupo social, as formas de solidariedade, a estrutura familiar, os ritos, as crenças, o património imaterial, em suma, a Cultura do povo japonês, que para os Europeus ou Americanos na transição do século XIX para o século XX se apresentava como a mais distante, longínqua, estranha e, por isso, exótica.

O locutor vai descrevendo o que observa, recorrendo muitas vezes a informadores especializados, uma cabeleireira, um pescador, uma aguadeiro, um soldado, um condutor de riquexó, etc, para registar através do discurso oral, a forma de viver e do sistema de crenças das gentes locais, que vai transcrevendo para os seus apontamentos. O narrador principal, que organiza e compila os depoimentos dos seus informadores, desdobra assim a sua narrativa em múltiplas vozes, sem contudo fazer juízos de valor, mantendo a neutralidade face ao discurso ou opinativo dos seus interlocutores.

O Japão é uma delicada filigrana literária, artesanal mas contudo sublime, na simplicidade das suas narrativas sem floreios pomposos, a formar um conjunto de textos transgenéricos, situando-se, algures, entre a crónica de viagens, a lenda, o mito e o conto gótico, numa espécie de simbiose entre a cultura irlandesa (com as suas histórias de fantasmas) e nipónica, as quais que farão as delícias de todos aqueles que sintam o poder irresistível da atracção de outras paragens e outras épocas.


03.06.2013-14.01.2014
Cláudia de Sousa Dias