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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, October 31, 2011

“O Gato e o Escuro” de Mia Couto (Caminho)


O Gato e o Escuro é a estória do gatinho Pintalgato, contada por um narrador anónimo que se dirige a um grupo de crianças, reunidas à sua volta. Trata-se de um mini-conto, cuja temática gira à volta do medo do escuro ou do desconhecido: daquilo que está para lá da linha do horizonte ou do muro da nossa casa, da área circundante, até onde a vista dos nossos pais nos consegue alcançar ou até onde chega o braço protector da nossa infância…É uma pequena estória que fala também dos riscos de desobediência, factor que entra em conflito com a crescente necessidade de autonomia, a sede de descoberta e gosto pela aventura do pequeno Pintalgato. E, para incarnar este tipo de personagem, nada melhor do que a figura de um gatinho, traquinas e brincalhão, com aquele sentimento de irresistível curiosidade e intrepidez que normalmente se atribui aos gatos…

Mia Couto escreveu este delicioso conto, não exclusivamente para o público infanto-juvenil ou infantil, mas “para a criança que há em cada um de nós” (sic). Ou seja, para um público sem idade.

Ainda sobre esta obra, o Autor revelou em entrevista às Correntes d’Escritas – Encontro Internacional de Escritores de Expressão Ibérica – que teve lugar na Póvoa de Varzim, entre os dias 12 e 16 de Fevereiro de 2008, o seguinte:

- Aqui há tempos, dei um autógrafo a um menino que tinha lido esse livro. Conversámos um pouco, mas só quando lhe perguntei se ele tinha medo do escuro é que ele respondeu, é que ele falou realmente comigo: "Sim. E Tu?" e eu respondi "Também." Então aconteceu algo de extraordinário: Ele sentiu-se na obrigação de me consolar e, com isso, citou-me uma frase do livro como se fosse dele – Somos nós que enchemos o escuro com os nossos medos! - Para mim foi o melhor prémio literário que tive até hoje!

A pequena estória é contada num tom coloquial, como se fosse dirigida a crianças que estão a escutar atentamente uma narrativa, mas onde o encanto poético colocado nas frases e a cadência, o ritmo, a elas associado, tem o condão de seduzir, também, os adultos, enfeitiçando-os com a musicalidade das palavras e restituindo-lhes a infância e a voz dos avós, que antes nos contavam as estórias do “escuro”, ou melhor, dos nossos medos, à lareira…

Os neologismos de Mia Couto, sabiamente introduzidos em momentos-chave da narrativa, enriquecem o conto de forma substancial, através da aglutinação de, por exemplo, substantivos com verbos, como é o caso de pirilampiscavam, tiquetaqueavam ou despersianar os olhos – este último um substantivo transformado em verbo ao qual se juntou um prefixo, para dar a imagem de um abrir de olhos a custo, como se se puxasse uma persiana…ou então a transformação de adjectivos em verbos como, por exemplo, amarelar, ou um substantivo num advérbio, como noitidão.

Há, também, a construção frásica atípica em relação à norma existente em Portugal, fazendo lembrar a voz de um velho feiticeiro tribal a encantar os mais pequenos: Faz de conta o pôr-do-sol fosse um muro. Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.

A fuga à norma no que toca à construção gramatical é, aqui, utilizada como um recurso estilístico, de forma a “vestir” a personagem do narrador, que adquire verosimilhança pelo tom poético que as imagens transportam imediatamente para o imaginário visual do leitor, as quais poderiam perfeitamente ser transportadas para um filme de animação de altíssimo nível. Um gato a pisar a linha do horizonte, quando o sol desaparece é uma cena visual descrita numa frase que perderia muito do seu encanto se fosse enquadrada na frieza da norma.

As ilustrações estão a cargo de Danuta Wojciechowska que recebeu o Prémio Nacional de Ilustração de 2003, tendo sido também distinguida com Menções Especiais do Júri em 1999, 2000, 2001 e 2002. A Ilustradora foi a candidata portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen em 2004. Tendo nascido no Quebec, em 1960, é licenciada em Design de Comunicação em Zurique, obtendo uma pós-graduação em Educação em Inglaterra. Actualmente vive e trabalha em Lisboa desde 1984. Em 1992, fundou o atelier Lupa Design, onde se dedica ao design, ilustração e cenografia (fonte, Editorial Caminho).

As ilustrações de Danuta traduzem com extraordinária precisão a expressividade do texto de Mia Couto, dotando as cenas desta pequena estória de grande beleza, as quais são exibidas numa paleta de cores ocre, índigo, azul noite, ajudando muito à visualização do próprio texto pelos leitores…e fazendo de um livro como O Gato e O Escuro uma obra de arte, com ilustrações ao nível de pintores como Marc Chagall ou Paul Gauguin

Cláudia de Sousa Dias

Revisão: Gonçalo Mira


Monday, October 24, 2011

“Noa Noa” de Paul Gauguin (Ulmeiro)


Foto: Gauguin, Paul; Auto-retrato com paleta

Tradução: Carlos de Miranda


noa noa (em maori): a bem cheirosa ou que cheira muito bem, a fragrante, a perfumada.


Este é o mais literário dos escritos de Paul Gauguin, célebre por retratar a beleza exótica das mulheres do Tahiti, no seu habitat tradicional e o mais longe possível das marcas deixadas pela civilização ocidental.

Gauguin fez questão de retratar as nativas do Tahiti-las inseridas na sua cultura ancestral, ainda não ocidentalizada. Normalmente, o pintor não tentava dar qualquer tipo de forma literária aos seus raciocínios, limitando-se a escrever ao sabor das suas impressões. Nesta publicação é, contudo, possível seguir o fio caótico do seu pensamento.

Para Henry Perruchet A sua linguagem é áspera, cortante, incisiva, às vezes demasiado sintética, ena publicação La Vie de Gauguin.

A primeira edição de noa noa sofreu uma adaptação por outro escritor, na tentativa de lhe dar um ar “mais literário” mas a tradução de Carlos de Miranda é feita a partir do original de Gauguin. A narrativa da experiência insular do pintor é precedida da dedicatória à filha, Aline, falecida prococemente, vítima de pneumonia, quando Gauguin se encontrava no Pacífico, já separado da mulher. A dedicatória, intitulada Caderno para Aline, é escrita num caderno escolar cuja capa é decorada com belíssimas aguarelas e as páginas, preenchidas com textos da sua Autoria para a única filha que herdara o seu espírito indómito, quase selvagem.

O Autor criticava acerrimamente , talvez até de uma forma algo extremista, aquilo a que chamava de “falso calculismo”, que seria o acto de sacrificar todos os sonhos em proveito dos filhos o que, na sua opinião, daria origem à criação de uma geração composta por uma multidão de seres frustrados.

Ao adoptar uma posição anti-chauvinista, o pintor defendia que a Mulher tem o direito de lutar pela sua liberdade mas só o conseguiria “no dia em que a sua honra não se situar apenas abaixo do umbigo”. Foi, também, defensor de que a liberdade na Arte obrigava o artista a agir com nobreza, por perseguir o ideal do Belo, do Íntgro, na pureza das formas e das cores. Atacava, em contrapartida, a classe daqueles a quem apelidava de pseudo-democratas: banqueiros, ministros, críticos de arte, os quais acreditava não protegerem a Arte, limitando-se somente a mercadejá-la. Gauguin sustentava, ainda, que “o artista não consegue viver (ou sobreviver sozinho), portanto a sociedade é criminosa e está mal organizada”, defendendo ainda a livre expressão de pensamentos e emoções: “Um jovem incapaz de uma loucura, não é jovem, é velho”.

O pintor, nos textos de Noa noa, disserta sobre as artes e os costumes civilizacionais, o sexo ao constatar que este último só é aceite na Europa “como consequência do amor”, mas na Oceânia é, ele próprio, desencadeador do amor.

A partir de 1893, começa a redigir um texto com as memórias da sua temporada na Oceânia. É então que lhe aflora a mente a ideia de pedir ao porta simbolista Charles Morice para lhe rever o texto. Este, no entanto, adultera-o de tal forma que o pintor acaba por lhe solicitar que não sobrecarregue o texto com alterações de forma a não se distanciar demasiado do original.

Só em 1966, o editor Jean Loire decide publicar o original de Gauguin.

Noa noa descreve a beleza e o colorido da região do Tahiti e das suas gentes, aquando da chegada do pintor ao Arquipélago, contornando a ilha de Moorea. A capital apresenta-se-lhe com uma população aculturada pelos Franceses que, então, administravam aquele território. O Governador La Cascade é especialmente visado nas suas críticas: corrupto, distribuidor de favores em troca das mais belas mulheres.

A descrição do falecimento e da cerimónia das exéquias do último rei daquelas paragens – o Rei Pomaré – que só o é simbolicamente, não deixando sucessor, marca o encerramento definitivo de um período da História do Tahiti de forma inexorável, que se traduz no desaparecimento de traços de uma cultura ancestral bem como da soberania local.

É somente nas aldeias mais recônditas que o pintor toma contacto com a verdadeira cultura maori no Tahiti. Trata-se de um povo muito ligado à natureza, cujos deuses "obrigam" os locais a respeitar o ambiente e a extrair os frutos da terra sem a danificar.

Noa noa é um texto de grande valor antropológico, uma vez que o Autor consegue distanciar-se da própria cultura onde foi educado e com a qual cresceu para adoptar o estilo de vida dos habitantes locais, chegando quase a ser confundido com um deles.

As localidades, as aldeias, as pessoas e respectiva estrutura familiar e social, os rituais religiosos, as forma de tomar as refeições, a gastronomia, os cuidados com a higiene, a forma meticulosa e como foi mimado pelas atenciosas beldades tahitianas que são, na sua maior parte, extremamente noa noa, com os seus cabelos perfumados com flores de tiaré e cuidados com a beleza são detalhada e vividamente descritos, num estilo onde predominam sobretudo 0s estímulos e sensações visuais.

As jovens daquelas localidades apresentam-se-nos de contornos e~visuais nítidos embora retratadas pelo de forma arquetípica relativamente às formas e ao desenho das feições. No entanto, pintor capta-lhes a alma, ao imortalizar-lhes a beleza nos seus quadros. O pequeno caderno, contendo o relato desta temporada no Pacífico Sul, acaba por ser uma espectacular projecção para o mundo das letras dos seus quadros. As flores de tiaré que ornamentam os cabelos das vahiné (mulheres), a expressiva linguagem gestual que utilizam para comunicar, assim como as diversas formas de linguagem não verbal expressam uma doçura que só tem paralelo nas expressões e olhares patentes nos quadros de Paul Gauguin. A profusão de detalhes nas descrições do Autor, o qual teve de se readaptar rapidamente a uma nova forma de estar na sociedade e novas regras de comportamento, fazem de Noa Noa a versão ocidental de Papalagui.

Noa Noa tornou-se numa das mais deliciosas e idílicas viagens transcritas às ilhas do Pacífico Sul, um dos mais belos lugares da Terra, que nos chega às mãos pela capacidade de Paul Gauguin em reproduzir não apenas com pincéis e tintas mas com palavras uma impressionante paleta de cores e os traços indiscutivelmente harmoniosos das belíssimas vahiné, através de indiscutível acuidade visual daquele que foi um dos maiores pintores modernistas de que há memória, ao ousar desafiar as convenções sociais da sua época, retratando a “harmonia rafaelita” daqueles deslumbrantes rostos morenos.


Uma obra para fazer sonhar e fazer voar (ou navegar) a imaginação.



Cláudia de Sousa Dias

31.07.2011



Sunday, October 16, 2011

"Carta a el-Rei D. Manuel" de Pêro Vaz de Caminha (Colecção Grandes Autores Portugueses Edição Comemorativa dos 120 anos do JN



Cronista, navegador da Armada Portuguesa e Autor da Carta do descobrimento do Brasil, Pêro Vaz de Caminha integrou a expedição de Pedro Álvares Cabral à Índia, como escrivão da Armada no ano em que o Capitão chega pela primeira vez ao Brasil, em 1500.


Após seguir viagem para a Índia, já depois do desvio imprevisto face à rota inicial, o Autor da missiva acabará por falecer, após um violento combate em conflito com os locais. Pêro Vaz de Caminha é, hoje em dia, lembrado principalmente pela carta que, a 1 de Maio de 1500, escreveu a el-Rei D. Manuel I, onde discorre sobre o então recente “achamento” do Brasil. Trata-se de um precioso documento histórico e, simultaneamente, uma obra indispensável aos amantes da literatura de viagens.


A carta está escrita em linguagem formal, respeitando o protocolo da Corte, norteado pelo tratamento cerimonioso entre a figura do Monarca e os seus cortesãos.


O relato de Pêro Vaz de Caminha deixa-nos perceber a dimensão do risco que implicava, então, o acto de navegar em águas desconhecidas: a elevada capacidade de os tripulantes das naus lidarem com o imprevisto e a mudança súbita de cenário. Da mesma forma, está também presente no conteúdo da carta o espanto ante a beleza primitiva e virginal das terras do Novo Continente. A descrição da paisagem de então cria um forte contraste com a visão actual que temos da mesma região, caracterizada pelo superpovoamento, a poluição e a transformação do relevo original pelo Homem ao longo dos últimos quinhentos anos, sobretudo pelo ritmo aceleradíssimo do crescimento urbano de que nos apercebemos ter sofrido a região nos últimos cem anos.



Ao lermos os escritos de Pêro Vaz de Caminha, damo-nos conta da dimensão do impacto que a visão daquela terra desconhecida e das gentes para eles estranhas e dos ainda mais estranhos costumes que aí habitavam, tal como a fauna e a flora locais, tiveram nos navegantes que pretendiam naquela viagem chegar à Índia, conseguindo modificar nos Europeus o conceito que então tinham do mundo.


A obra reúne ainda alguns documentos escritos que vêm completar os relato de Pêro Vaz de Caminha.


O primeiro, A relação do Piloto Anónimo, o timoneiro daquela nau que conduziu a expedição ao Brasil pela primeira vez, num autêntico e empolgante fragmento de diário de bordo.


Os acontecimentos, narrados por ambos os tripulantes da nau, são coincidentes nos factos o que ajuda a conferir-lhes veracidade histórica, apesar de o relato deste piloto desconhecido, em cinco capítulos, diferir nos estilo: mais “seco” e objectivo, o seu autor utiliza a terminologia típica dos geógrafos. Afinal, trata-se de um diário de bordo, cuja exactidão e impessoalidade vem apenas sublinhar o impacto emocional do Autor precedente. O correr do tempo, a lenta passagem dos dias e das horas, durante o período de calmaria, as alterações climáticas, por vezes bruscas ou extremas, as escalas, tudo descrito de forma precisa e tão impessoal quanto possível, vem aumentar e muito, o interesse histórico e geográfico desta viagem que já se tornou quase mítica, meio milénio depois.
Nesta compilação segue-se o relato de Mestre João Faias, bacharel em Medicina, dirigido a Dom Manuel I. Como tal, regressamos, novamente, ao estilo cortês e cerimonioso de alguém que se dirige ao seu suserano, pretendendo deleitá-lo com os pormenores da navegação. Este narrador utiliza os seus conhecimentos de astronomia, ao descrever a forma como usa o astrolábio, discorrendo sobre a arte de navegar, em estilo fluente e dinâmico, e quanto à melhor forma de prosseguir viagem durante a noite, orientando-se pelas estrelas.



Este conjunto de escritos sobre a primeira viagem ao Brasil, cruzando o Oceano Atlântico, completa-se com o Tratado da Terra do Brasil, da autoria de Pêro Magalhães Godinho, dirigida ao Cardeal Infante Dom Henrique, o qual descreve exaustivamente o respectivo relevo, fauna e flora daquelas terras, então desconhecidas.



Da mesma forma, são também, descritas as gentes das terras recém-descobertas (pelos Europeus), os respectivos usos e costumes, formas de vida religiosa, estrutura social e económica do tipo recolector. Os recursos naturais da região e a possibilidade de os explorar segundo as regras do mercantilismo que, então começava a florescer, indiciam o começo de um período de expansão, à escala global, a partir da Península Ibérica. Também os diversos tipos de alimentos desconhecidos no Novo Continente, geram grande interesse por parte dos exploradores antecipando uma autêntica revolução na dieta dos habitantes do Velho Mundo: uma imensa variedade de frutos suculentos e nutritivos, animais desconhecidos alguns deles fornecedores de carne bastante apetecível, para além de outros produtos extraídos da terra.



O autor deste Tratado não deixa, contudo, de mencionar alguns conflitos violentos com algumas tribos locais – as mais resistentes no que respeita à aculturação, traduzida num conjunto de medidas expressamente ordenadas por sua Majestade e pela Santa Madre Igreja Católica e Romana. O objectivo seria o de construir e controlar um empório comercial, assente na produção de açúcar e no comércio de madeiras exóticas, além de uma potencial exploração mineira relativa ao ouro e pedras preciosas.



Após o primeiro impacto com as tribos locais, desencadeador do espanto, estupefacção e deslumbramento dos navegantes pelas formas das belas mulheres daquelas paragens e, mais do que tudo, da naturalidade com que exibiam a sua nudez, chegaram os conflitos, mais ou menos graves e sempre relacionados muito mais com os interesses comerciais dos europeus e a luta pelos recursos naturais e posse de terras, do que pelo choque cultural ou religioso com as tribos locais.



Depreende-se, ainda, pela leitura dos quatro testemunhos de tão atribulada viagem, que o ponto principal causador do conflito é a colisão dos interesses económicos de um lado (do europeu) e o assegurar a detenção dos recurso ou fontes de sobrevivência, independência e liberdade de acção pelo outro (pelos autóctones).



Os recontros entre os navegantes e exploradores portugueses e os habitantes das terras de Vera Cruz é um dos capítulos mais sedutores da obra, sobretudo quando o autor descreve a suculência dos produtos locais comestíveis e a extrema beleza das vegetação local seguindo-se, só depois, os detalhes e as circunstâncias do choque cultural entre ambas as civilizações, a europeia e a ameríndia, que radicam em valores quase que diametralmente opostos.



Para terminar, o narrador dá a entender ao destinatário da carta dever-se estender a exploração daquelas terras através do uso da força e do trabalho escravo, legitimado inclusive pelo parecer da Santa Madre Igreja Católica e Romana, a qual acabou por desempenhar um papel preponderante na disseminação do cristianismo naquelas paragens...



Começa, a partir de então, uma nova epopeia: a saga de mais um império emergente.







Cláudia de Sousa Dias
31.07.2011

Sunday, October 09, 2011

"Mundo do fim do mundo” de Luís Sepúlveda (ASA)



Traduzido do Espanhol (Chile) por Pedro Tamen

Esta é uma obra algo ambígua quanto à classificação do género literário, já que se trata de uma fusão entre o romance e o relato ou narrativa, podendo ser também incluída na categoria de “literatura de viagens". A trama é empolgante e cheia de peripécias, descrevendo uma verdadeira odisseia que atravessa a Terra do Fogo de comboio e o extremo sul da costa da Patagónia até ao Cabo Horn, a bordo de um velho baleeiro: uma história que denuncia uma inesgotável sede de aventuras, despertada pela leitura do clássico de Hermann Melville, Moby Dick, no jovem protagonista, ainda adolescente, ainda na primeira perte do romance.

Anos mais tarde, o mesmo jovem, agora adulto e membro do Greenpeace, está de volta à Patagónia, após um prolongado exílio em Hamburgo. Regressa ao Chile em missão especial daquela organização, com objectivo de investigar os movimentos suspeitos de uma embarcação nipónica que se julga persistir, ainda, na caça à baleia naquelas águas, apesar de proibida internacionalmente.

O narrador é alguém que, desde cedo, se apaixona pelos cetáceos e pelo romance de Melville e que, tendo desenvolvido competências de investigação policial, consegue - como resultado das suas indagações, após ter passado pela prova de fogo, ao assistir na juventude a um episódio de caça à baleia num navio baleeiro artesanal -, conquistar a confiança e o respeito dos velhos lobos-do-mar.
Já na parte do desenvolvimento da trama propriamente dita descobre, durante as suas investigações, um verdadeiro barril de pólvora, envolvendo negócios paralelos, lucros vultuosos e acordos secretos e ilegais entre o Governo Chileno e os grandes armadores da indústria pesqueira japonesa. Armadores esses que vivem do comércio de subprodutos originários daqueles animais, capturados em águas austrais.

O relato da aventura de “Mundos do fim do mundo” é uma autêntica bomba-relógio, funcionando como um precursor do fenómeno, relativamente recente, denominado “Wickieleaks”, mas relativo a acontecimentos passados no início dos anos 1980 que o livro, publicado pela primeira vez em1989, denuncia com detalhes de intenso sabor a escândalo internacional. O objectivo da obra, foi o de desmascarar a hipocrisia dos países mais desenvolvidos face ao cumprimento das convenções internacionais que visam, supostamente, limitar acções despóticas de interesses privados, cuja megalomania costuma funcionar como uma espécie de eclipse, impedindo-os de ver as consequências a longo prazo para o futuro do planeta.
Esta obra de Sepúlveda, tem o poder de conseguir sensibilizar a opinião pública para as consequências da caça descontrolada a estes animais, colocando não só a espécie em risco, mas pondo, também, em perigo todo o ecossistema da vida nos mares.
O livro torna-se fascinante, também, pelo estilo literário muito próprio e pelo uso do léxico ou da gíria típica dos marinheiros: trata-se de um verdadeiro diário de navegação por cabotagem, ao longo de grande parte da costa do extremo sul do continente americano, em direcção ao Estreito de Magalhães e Cabo Horn, para onde confluem o oceano Pacífico e Atlântico, chegando mesmo a entrar no Oceano Glacial Antárctico.
A minúcia dos detalhes no tocante à descrição da viagem e a rota percorrida são de uma riqueza por demais verosímil. O discurso adquire uma tonalidade demasiado vívida para ser ficcional, a ponto de, em alguns parágrafos, sentirmos a necessidade de acompanhar a leitura com um mapa ou, então, uma carta de marear.
Outro dos aspectos mais cativantes da obra é o de ficarmos a conhecer a calorosa hospitalidade dos habitantes da Terra do Fogo, sobretudo na recepção do hotel-pensão onde, na primeira parte do romance, o jovem viajante pára para almoçar, após a longa viagem de comboio em direcção ao Sul do Chile.
O leitor sente-se imediatamente seduzido pela aparente rudeza, cheia de bonomia e levemente condescendente, dos velhos marinheiros que aí param para beber cerveja e contar as suas histórias cheias de perigos, uma vida no fio da navalha, sem deixar, contudo, de demonstrar uma verdadeira admiração e respeito pelos cetáceos.
Luís Sepúlveda, ao utilizar a técnica do contraponto de forma a criar maior contraste entre a atitude de veneração dos velhos mestres da pesca artesanal pelas baleias e a selvajaria dos tripulantes dos navios piratas japoneses - dotados de um equipamento tecnológico cuja utilização se traduz no extermínio descontrolado da espécie e um verdadeiro atentado ao ecossistema local -, dá-nos a conhecer a refinada inteligência e sentido de solidariedade dos cetáceos, cuja emotividade parece ser perfeitamente proporcional ao seu tamanho físico, opondo-se aos incomensuráveis actos de desumanidade da espécie humana que, não raro, se canibaliza, num imenso oceano de egoísmo.
Estilo e Linguagem
A beleza da narrativa é sublinhada pela nostalgia, patente no discurso dos velhos marinheiros, cujas histórias fascinam, sobretudo, quem vive com ambos os pés em terra firme e a mente andarilha, a viajar pelo mundo dos sonhos e pelos sete mares.
Somos, também, submergidos pelo cenário arrebatador e agreste e pela extraordinária beleza selvagem de uma das regiões mais remotas do planeta, com a paisagem a variar desde a pampa, às montanhas, glaciares, fiordes, pintada numa linguagem fortemente evocativa de sensações cinestésicas, auditivas, térmicas e visuais:
Ao amanhecer, a ventaneira declinou um pouco mas a sua orientação não variou: continuou a soprar do Sul. O Canal de Messier disparava-a, como um jorro de ódio por cima de nós.
O gosto pelas histórias de aventuras marítimas nas gentes locais parece radicar em todo um património imaterial que se transmite por via da tradição oral: as antigas lendas e tradições índias e os seus deuses do mar, que fazem os habitantes daquelas aldeias de pescadores venerar estes animais, denunciando uma estreita ligação com os gigantes marítimos, patente na cultura local e nos vestígios deixados pela antiga religião das civilizações pré-cristãs. É, talvez, por esta razão que, ainda no hotel foguino, na primeira parte do romance, os convivas que partilham da refeição de borrego se sentem como que hipnotizados quando o jovem protagonista os enfeitiça com a leitura de um capítulo de “Moby Dick”, junto ao calor do lume.
Um história irresistível, para levar na bagagem durante às férias e deixar a mente e o corpo viajar pelos mundos das terras do Fim do Mundo...
Cláudia de Sousa Dias
31.07.2011


PS: o acordo secreto entre os EUA e o Japão, elaborado com a conivência do Governo Chileno, que permitiria aos navios industriais caçar baleias nas águas territoriais do Oceano Glacial Antárctico foi anulado em 2010.
Ver:
também pode ler um pouco mais sobre a obra aqui.