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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, March 24, 2009

“Um Estranho em Goa” de José Eduardo Agualusa (Biblioteca Independente)


Esta é uma obra de carácter algo híbrido, entre o conto e o romance de viagens. Ao mesmo tempo, Um Estranho em Goa reporta a acontecimentos históricos que envolvem três continentes: a Índia, mais especificamente a cidade de Goa, o Brasil da selva amazónica, onde se refugia uma curiosa personagem que dá pelo nome de Afonso Plácido Domingo, e Angola, no período de turbulência que se segue ao processo de descolonização, onde a cultura e a língua portuguesa servem de fio condutor, ligando três civilizações aparentemente tão díspares.


Clara Ferreira Alves comentava no semanário “Expresso” que «Um estranho em Goa é uma pequena maravilha (…)
Mistura a literatura de viagens com uma aventura exótica, uma espécie de mistério que o Autor não deslinda mas que lhe serve de ponto de apoio para mover personagens que enlaçam a Índia e a África com Portugal e o Brasil (…) estabelecem uma pátria espiritual onde todos nós, portugueses na língua, nos reconhecemos.»

Da mesma forma, são exploradas, relativamente ao cenário de Goa, as consequências para a população local da presença portuguesa, onde se discute o processo de descolonização e a substituição da hegemonia lusa pela presença britânica na Índia, a imposição do inglês como uma das línguas oficiais; a imigração em massa dos hindus vindos de outras cidades do continente; a composição da população e respectivas características demográficas; os conflitos entre etnias com base religiosa. Tudo isto vem à baila em conversas de café, numa esplanada debaixo do canto das cigarras, e dos perfumes frutados de árvores exóticas ou dentro de um táxi com um divertido e pitoresco motorista, cuja leveza típica característica das conversas ocasionais, sem pedantismos académicos, mas que consegue dar ao leitor uma visão documental dos factos históricos dos últimos sessenta anos.

Sobre África e, particularmente, sobre a situação de Angola, a ligação intercontinental surge através da personagem Plácido Domingo (ex-militar e agente secreto) cujo percurso se espalha pelos três continentes anteriormente referidos. Após a independência de Angola e finda a guerra colonial a que se seguiu uma guerra civil, Afonso Plácido Domingo refugia-se no Brasil, no mais recôndito lugar da Amazónia, imiscuindo-se nas tribos locais, o que proporciona ao leitor um delicioso episódio com algumas reminiscências de O Velho que lia Romances de Amor de Luís Sepúlveda, devido à imersão nos luxuriantes sons da selva, à proximidade e relação amistosa, quase que de identificação, com as tribos locais completamente inseridas e integradas no ecossistema.

O reencontro do narrador com a personagem dá-se em Goa, alguns anos mais tarde, onde este volta a entrar em cena, mas completamente transfigurado. Plácido Domingo é o “isco” que serve de móbil à estória do narrador, que é também personagem. José, o alter-ego do Autor, é um repórter que interessado no percurso e no desvendar do passado nebuloso de Plácido Domingo, ao mesmo tempo que procura uma personagem para a estória que pretende escrever, acumulando as funções de jornalista e escritor.

O autor atribui-lhe o nome do tenor espanhol, mundialmente conhecido, embora seja na realidade a abreviatura de um nome tipicamente português.

Em Goa, sobressai a paisagem exótica e sedutora da cidade, onde o calor opressivo é exaltado pelo canto estridente das cigarras e a confusão urbana, a que se junta o áspero grasnar das gralhas nas copas das árvores cujos ramos se debruçam nas mesas das esplanadas, a humidade omnipresente e os cheiros da região, assim como a sujidade das ruas e uma profusão de idiomas que sugerem estarmos diante dum cenário de uma sedutora Babel, ressurgida das ruínas.
No Brasil, a paisagem amazónica, junto ao curso do Paraguaí, um dos muitos afluentes do Grande Rio, junto à fronteira com a Bolívia, confere à estória uma oscilação rítmica que lhe dá o dinamismo necessário à alternância entre momentos de pausa, como observamos em Goa, e momentos de acção.
A referência a Angola surge como pretexto para a explicar o passado de Domingo e as suas intrincadas movimentações políticas que envolvem os últimos anos do domínio português no território.

De volta a Goa, o narrador que acumula também, a função de jornalista/cronista encontra uma série de figuras pitorescas que se congregam à volta do protagonista que adicionam, cada qual, o seu condimento específico à narrativa. Por exemplo, Salazar, o motorista de táxi, que afirma que “o outro (o homónimo) foi um grande português”.

O discurso do narrador adquire, neste ponto a tonalidade da voz de um turista deslumbrado, diante de um mundo estranho e maravilhoso, ou de um antropólogo que vai tirando notas no seu diário acerca dos usos e costumes da região, nele incluindo referências às gentes, aos hábitos, ao vestuário, fauna e flora locais, com o mesmo espanto e admiração dos antigos exploradores a bordo das caravelas da frota de Vasco da Gama. Sobressai o aspecto patético das mulheres ocidentais que, debalde, tentam imitar as beldades do Levante. Como Lili, cuja beleza ruiva parece algo deslocada, vestida com um sari, no meio de um grupo de mulheres executivas indianas, vestidas, por sua vez, com o clássico tailleur ocidental. Ou a estranheza da americana Lailah, com a língua fendida, a lembrar uma víbora, partidária de um estranho culto a Seth, cujos rituais adquirem contornos sinistros. Lili é fascinada por manuscritos antigos, o que acaba por facilitar a atracção que José acaba por sentir por ela. No entanto, este acaba por se afastar mediante a estranheza de algumas atitudes da jovem. Aliás, ambas Lili e Lailah têm nomes que derivam de Lilith, a mulher demónio, amante do Príncipe das Trevas…Outra intrigante personagem é Pedro Dionísio, proprietário do Grande Hotel do Oriente, o qual entabula amizade com José, e que parece ter ligações com uma estranho mercado paralelo de comércio de relíquias.

Enoque, o livreiro, torna-se um aliado importante do cronista ao proporcionar-lhe o acesso à internet, extremamente difícil naquelas paragens, num cybercafé improvisado, precariamente instalado num sótão poeirento do prédio da livraria. Tal como Elias, o angolano que vive em casa de Enoque e que acabamos por descobrir não ser outro senão o fugidio Plácido Domingo.
Os diálogos com este núcleo de personagens são particularmente aliciantes, sobretudo aqueles que respeitam ao binómio natureza x cultura onde se disserta a necessidade de entender a razão das tradições, dos saberes e cultura ancestrais que os governos centralizados e burocráticos, como é o caso da federação dos Estados Indianos, tendem a desprezar com graves prejuízos para o ecossistema. É salientado o papel da cultura ancestral indiana preservava a natureza como um santuário a venerar, impedindo o homem de violar, por exemplo, o território reservado à floresta e aos seus habitantes, por estar “consagrado aos deuses”.

Nestes diálogos, está claramente implícita a crítica à política implementada pelas potências colonizadoras do Ocidente, sobretudo a Inglaterra do período vitoriano cujos governadores olhavam arrogantemente as tradições locais como “superstições irracionais”. Curiosamente, através dos mesmos diálogos, ficamos a saber com o são também vistos os portugueses pela então potência rival, ou seja, o português era então visto pelos ingleses do século XIX como um país onde os homens gostam de espancar mulheres para se divertirem. De facto parece que alguns autores britânicos da época tendem a identificar a violência doméstica como traço cultural característico do homo lusitanus.

Muitos destes diálogos, travados à mesa do café, ao som do coro estridente das cigarras, são sobre livros, de preferência sobre livros antigos ou autores já centenários, a sugerir horas e horas de investigação para produzir uma obra com este nível de qualidade: crónicas, obras de historiografia, geografia e cartografia, o que permite ao leitor de Um estranho em Goa colocar-se por detrás do olhar do forasteiro ao longo dos séculos, isto é, a partir de uma perspectiva longitudinal ao longo do curso do Rio do Tempo, e avaliar a cultura milenar desta cidade fazendo, simultaneamente, o cruzamento da cultura hindú com a muçulmana, do extremo oriente e europeia, que acabam todas por convergir naquela cidade multicultural.

O romance é outra das características que seduzem, na intriga de Um Estranho em Goa .
José sente-se, em primeiro lugar, atraído por Lili, a estudiosa de manuscritos antigos com a qual se estabelece, a partir deste veículo – os livros –, uma forte afinidade entre ambos. Para além do fogo que incendeia a deslumbrante cabeleira de Lili, a qual contrasta com uma pele quase transparente. E de aspecto quase transilvânico. Mas há algo de sinistro na aparência de Lili, associado a um conjunto de indícios que o autor vai deixando escapar, apesar de desviar a atenção do leitor menos atento para outros alvos mais óbvios. Como Lailah, por exemplo. Assim como, também, os sinais no peito da jovem, que reproduzem a Constelação de Draco – o dragão – outrora designada como a morada de Seth. Também a tez de Lili tem o mesmo “brilho incandescente à semelhança de um lampião nazi – imagem inspirada num verso de Sylvia Plath, My skyn brigth as a nazi lampshade. Esta constelação seria, para os antigos hindús, a porta para o inferno, guardada por uma serpente.
A figura da serpente tem sempre uma significação ambígua, à qual se associa tanto o veneno que causa a morte, como o ponto de partida para a cura, através do antídoto que permite conservar a vida. Mas a referência a Seth é inequívoca, uma vez que é o equivalente na mitologia dos antigos egípcios, a Satanás, na cultura judaico-cristã. Ao culto de Seth, aparecem também, ligados Lailah e o companheiro, um irlandês que entre o reduzidíssimo leque de palavras que conhece do idioma português se destaca o vocábulo “caralho”.
No meio de um diálogo onde afloram estes temas, surge a explicação do significado da suástica, cuja intencionalidade depende da orientação dos braços, deixando no ar a sugestão de que o símbolo do III Reich teria a orientação negativa, subordinada às forças da destruição. A toda esta conotação mística, estão ligados alguns detalhes subtilíssimos relacionados com a enigmática Lili…
Também Lailah, a outra Lilith, exerce um magnetismo sexual muito forte, centrado no corpo, perfeitamente delineado, como se faz no notar no encontro, aparentemente casual com José, na praia. Para o jornalista, Lailah é alguém sem referências positivas, o que faz dela “uma jovem americana de classe média, tão aterrorizada pela perspectiva de se encontrar sozinha no universo, que estava disposta a acreditar em qualquer coisa, no diabo, nas fadas, em extraterrestres”.
Para o narrador José, o amor chega, no entanto, pela mão de uma jovem de irresistível negritude no olhar, que lhe traz à lembrança os versos de Camões e o olhar manso de uma cativa…que cativa.

A estória começa e termina em Plácido Domingo, num irresistível jogo de palavras, na esplanada do café, ao som do coro polifónico das cigarras. O tema central nunca deixa de ser a presença da língua e da cultura portuguesa - comum a todas as mudanças físicas de cenário – que se desdobra na evolução política da situação de Angola, comparada com a do Zaire, na forma de colonização portuguesa e britânica, na grotesca acção da PIDE, na repressão dos movimentos pró-independentistas de Goa.

Um Estranho em Goa, é uma obra cujo sincretismo de elementos culturais, invulgar poder de síntese e simplicidade na linguagem a tornam extremamente apetecível, tanto para o público jovem como para o público mais erudito.

E onde a sedução, a atracção pela descoberta e o deslumbramento pelo desconhecido se tornam as grandes mais-valias deste autor angolano.

Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, March 11, 2009

“Melodia ao Anoitecer” de Siddhart Dhanvant Shangvi (Civilização)


Siddhart Shangvi é jornalista, vive entre Bombain e a Califórnia, tendo escrito na Elle, no San Francisco Chronicle e no Sunday Times of Índia. Melodia ao Anoitecer é o seu primeiro romance com o qual ganha o Prémio Betty Trask, atribuído em Londres pela Sociedade de Jovens Autores da Commonwealth.

Tratando-se de um romance que marca a estreia de um autor muito jovem - Siddhart Shangvi contava, na altura, com apenas 27 anos – é natural que lhe encontremos algumas falhas, que se encontram patentes, sobretudo, nos primeiros capítulos. Lacunas que se vão esbatendo com o avançar da trama, à medida que o autor vai adquirindo segurança no que respeita à libertação das emoções e dos desejos das personagens que se tornam cada vez mais complexas à medida que o romance se aproxima da sua conclusão.

È notório que, no início, o narrador não consegue evitar tecer juízos de valor em relação às restantes personagens – uma vez que se trata, quase sempre de um narrador participante – e às suas características, quer físicas quer psicológicas, sobretudo no que toca ao par romântico, protagonista da história: duas figuras que correspondem ao estereótipo de ideal de beleza quer feminina quer masculina na Índia. As origens sócio económicas e o estilo de vida das mesmas personagens obedecem, também, aos mesmos clichés transmitidos pelos ícones cinematográficos de Bollywood, aproximando-os muito mais das histórias das lendas de princesas e rajás do que de um casal da classe média alta.
Um dos aspectos positivos da obra que a crítica colocou, algo exageradamente, muito da próxima da prosa de García Márquez (vide Pier Mario Fasanoli in Panorama) é a inspiração vinda da mitologia indiana e dos contos de fadas de que é exemplo a cena em que os pavões se reúnem orquestrando um coro de despedida aquando da partida de Anuradha para a cidade. Ou a personificação da casa da praia a qual reage à presença humana como se de uma pessoa se tratasse, ou melhor de um eremita anti-social cujo maior prazer é fazer da vida dos outros um verdadeiro inferno. Trata-se de uma imponente habitação colonial cuja beleza se assemelha de forma sinistra à das plantas carnívoras, isto é, parece devorar as perspectivas de felicidade dos que nela habitam, como que imbuída numa personalidade malévola, exalando uma atmosfera impregnada de veneno.
A beleza de Anuradha perece ser, inicialmente apaziguadora das contrariedades, sobretudo ao entoar as melodias à hora do crepúsculo, que parecem dissolver as dores na alma dos que com ela convivem. Não são, no entanto, suficientes para contrariar o curso da vida – ideia de Kharma, fortemente implantada no hinduísmo.

Anuradha tem um papel unificador e apaziguador das dificuldades, no entanto, as restantes personagens parecem, apesar dos seus esforços, afundar-se num poço de melancolia, pelo menos enquanto permanecem na casa, que parece arruinar a vida daqueles que são dotados para o amor, ou melhor para despertar o amor e o desejo nos outros: Vardmahan, o marido de Anuradha refugia-se, cada vez mais, no seu próprio mundo; Nandini, a prima órfã, vê os seus planos sabotados, num momento crucial, naquela mesma casa; a própria Anuradha sofre um acidente que a deixa quase inválida. E a atmosfera maligna exalada pela alma que habita a mansão, outrora palco de uma tragédia como resultado de uma paixão socialmente mal-vista, acaba por destruir a paz de espírito da protagonista que se vê na obrigação de enviar o filho para longe daquele lugar aziago e incentivá-lo a voos mais amplos.

De facto, a casa sobretudo quando está deserta, ri sozinha, de si para si, suspira, respira, pensa, ama, odeia, completamente entregue à felicidade da sua solidão, por não suportar a felicidade alheia que a distraia de si própria.

Uma das personagens humanas mais fascinantes é a pintora e visionária Nandini, admiradora de Yeats, uma jovem de corpo e personalidade felinos, de quem se diz, inclusive, descender da cópula de uma das suas avós com um leopardo. Nandini é uma jovem que carrega feridas profundas na alma, fruto de uma infância dolorosa. Sofre de epilepsia, que tende a manifestar-se nos momentos menos oportunos, uma doença causadora de situações de privação de sentidos o que causa o desconcerto daqueles com quem convive e que têm dificuldade em compreender a origem da doença. No entanto, a pintura de Nandini manifesta uma extraordinária acuidade relativamente ao captar das características da personalidade daqueles que retrata e que os demais não chegam a aperceber-se. Uma sensibilidade que lhe permite, inclusive, antecipar-se ao próprio ser retratado na compreensão das próprias atitudes e na previsão do próprio comportamento. Graças ao talento, Nandini acaba por conseguir infiltrar-se no meio artístico, conforme os seus desejos. Mas para tal tem de sacrificar um grande amor.
Mais um aspecto em comum com as lendas indianas.

Outra das características que se salientam na obra é o destaque dado ao erotismo em todas as suas vertentes, sendo a personagem que melhor encarna o amor sensual a felina Nandini. O que está especialmente patente no episódio relativo à estadia desta nas montanhas Matheran, por onde passeia a sombra do leopardo pantera negra. Nandini possui um aspecto andrógino, algo híbrido. Tudo em si é ambivalente, inclusive a expressão dos seus desejos sexuais, o que lhe facilita a integração no ambiente onde reina a loucura na casa e onde vive um consagrado pintor afegão e a excêntrica mecenas de origem britânica…
Já Anuradha representa o amor sublime das heroínas imortais das lendas mitológicas. O amor proibido e maldito é representado pelos dois jovens que habitaram a casa da praia, antes de irem para lá viver os dois protagonistas.

O principal elemento de beleza estética no texto reside nas descrições da floresta e do crepúsculo, em tons de diospiro, numa prosa que se vai tornando, progressivamente, mais doce e depurada à medida que o final se aproxima.

Aguardamos o segundo romance.


Cláudia de Sousa Dias