HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, August 25, 2007

“Os Versículos Satânicos” de Salman Rushdie (Dom Quixote)



Satã, assim relegado para uma condição vagabunda, errante, instável, não tem paradeiro certo, pois embora possua, em consequência da sua natureza angélica, uma espécie de império sobre os desertos líquidos e os ares, faz parte do seu castigo que ele não disponha de qualquer lugar ou espaço fixo onde descanse a planta dos pés.

Daniel Defoe, The History of The Devil


E assim começa o romance mais polémico das últimas duas décadas, onde a citação da obra de Daniel Defoe serve de chave para decifrarmos a inspiração deste autor, de origem indiana, para a elaboração de uma obra que pretende ser a radiografia de duas civilizações actualmente (ou desde sempre) em choque expondo, de uma forma crua as virtudes e defeitos de duas culturas que têm tanto de fascinante como de terrível. O resultado é um romance que valeu ao Autor a condenação à Fatwah por parte de alguns líderes religiosos mais radicais, por heresia. Condenação felizmente revogada em 1998.

O título atribuído à versão portuguesa Os Versículos Satânicos é uma deturpação do título original – em inglês, The Satanic Verses (Os Versos Satânicos) – que traz associada uma carga religiosa muito mais pesada do que o original, desvirtuado um pouco a orientação do leitor para o tema central da obra – a génese do Mal – que ultrapassa largamente a vertente religiosa e estende-se, inclusive, ao código ético das sociedades laicas. Trata-se, sobretudo, da problemática da ética nas relações humanas, da componente emocional que sustenta as expectativas individuais de cada um e que se traduz na Ambição pessoal de cada um. E da forma como o Outro é afectado quando trilhamos o nosso caminho para realizarmos os nossos sonhos – a raiz do Mal que se desenvolve no útero que é a consciência do Homem.

O título em português pode, assim, ser visto como algo sensacionalista ao desviar a atenção dos leitores do tema chave da obra e a colocar-lhe um “rótulo” inadequado.

Isto porque os versos a que alude o mesmo título não são propriamente os versículos do Corão (algo a que o Autor também alude pela alteração ou interpretação considerada arbitrária dos sonhos de Mahound com o Anjo, num dos delírios da personagem Gibreel Farishta, que se julga o próprio Arcanjo Gabriel), mas antes ao lançamento premeditado, deliberado, intencional da Mentira com o objectivo de lançar a discórdia e servir os interesses particulares de quem quer que seja (pois se Farishta se assume como o Anjo Gibreel terá forçosamente de haver uma outra personagem que assuma o papel de Shaitan ou Satanás. É neste contexto que o invejoso Saladin Chamcha assume o papel do Adversário, rival de Farishta/Gibreel, cujos versinhos maldosos são lançados para efectuar uma vingança mesquinha e causarem a destruição daquilo que este mais preza: o estrondoso sucesso do actor Gibreel Farishta, cujo exotismo e autenticidade seduzem o público inglês e despertam a paixão absoluta daquela que poderia ser a mulher dos sonhos de Chamcha, a bela Rainha das Neves, a conquistadora dos Himalaias – Alleluia Cone).

Para alguém que imagina uma trama tão complexa, onde o Bem e o Mal se misturam como os ingredientes de um bolo na alma de cada homem (ou mulher), o mundo estará infestado de potenciais Shaitan e o propósito do Autor é descobrir, identificar a mola ou o impulso emocional que faz com que emoções e desejos negativos eclodam na mente de cada uma e levam ao desejo de destruir o Outro.

Numa perspectiva laica, de alguém que cresceu num Oriente fortemente impregnado da cultura Ocidental – mistura de culturas milenares como a civilização hindu e mesmo a muçulmana, às quais se junta a cultura Britânica da época colonial –, Rushdie consegue distanciar-se e proporcionar-nos uma análise social dos aspectos antropológicos mais relevantes quer do Oriente quer do Ocidente ao recorrer aos sonhos de Farishta ou às distorções e perturbações delirantes de Saladin Chamcha.

Estas duas personagens são actores que, apesar de terem em comum a origem indiana, provêm de meios sociais completamente diferentes. Conhecem-se a bordo de um avião – o Bostan – que, durante um ataque terrorista, sofre um acidente…

… apesar disso, os dois protagonistas sobrevivem – provavelmente devido à sua natureza semi-angélica – a uma queda de mais de quinze mil pés de altitude…

…não sem algumas consequências do foro neurológico…


Personagens e Trama

A história começa da seguinte forma: Saladin e Gibreel, sendo originários de um país onde coexiste uma multiplicidade de etnias e religiões, sofrem um acidente, a bordo do avião Bostan – o nome de um dos jardins do Paraíso muçulmano, de onde são expulsos os dois protagonistas e precipitados para a Terra –, motivado por um ataque terrorista.

Gibreel Farishta é oriundo de uma família pobre, muçulmana, num bairro proletário de Bombaim que se transforma numa estrela de cinema. Gibreel é idolatrado no próprio país devendo-se a sua fama ao hábito de interpretar personagens de origem divina ou mitológica. Um facto que será de suma importância no desenrolar da trama e no comportamento posterior desta mesma personagem.

Saladin Chamcha provém de uma família abastada, é educado no reino Unido, numa das melhores universidades, apaixona-se pela cultura ocidental laicizante e rejeita a sua costela indiana escondendo, simultaneamente, os seus traços físicos orientais atrás dos microfones da rádio ou dos logótipos dos anúncios publicitários. Como resultado, consegue transformar-se num ilustre desconhecido, valendo-se do seu talento histriónico (consegue imitar mais de mil vozes diferentes) para aumentar substancialmente a sua conta bancária.

Mas este triunfo é apenas parcial.
Não obtém o reconhecimento por parte do grande público que desconhece o seu rosto.
Chamcha quer a gélida e inacessível Inglaterra a seus pés…

A sorte está lançada.

E o móbil para o desenvolvimento de algo tão venenoso e doentio como a inveja, o despeito e o ódio, também.

A partir do momento em que Gibreel consegue aquilo que Chamcha mais deseja, o seu destino estará traçado.

O seu e o de Allie.

A origem dos delírios e alucinações

Durante o acidente, a falta de oxigénio, motivada pela precipitação na estratosfera e pelo choque devido à hipotermia são factores que desencadeiam lesões cerebrais (no caso de Farishta) que vão desencadear a manifestação de uma esquizofrenia paranóide, doença que o leva a imaginar-se como o Anjo Grabiel durante as crises, e a sonhar uma muito pouca ortodoxa biografia da vida do profeta Maomé ou Mahound – um episódio que viria a incomodar muito as autoridades eclesiásticas da facções mais radicais do Islão.

Por outro lado, o choque leva a que Chamcha sofra de uma perturbação delirante que o impede de avaliar a situação com objectividade e a interpretar de maneira errónea algumas atitudes daquele a quem acaba por considerar como seu rival: Gibreel.

A partir de então Chamcha tornar-se-á o Adversário do Anjo (ou pseudo-anjo): Shaitan ou Satanás.

Chega, inclusive, a acreditar ter-se metamorfoseado na figura tradicionalmente associada ao Diabo: um ser caprino, com cascos, chifres e cauda. Um aspecto que, ao que tudo leva a crer, só ocorre na mente da personagem, durante o período de transtorno emocional que se segue ao acidente e que se prolonga durante o recontro com a polícia que, face ao seu aspecto, em tudo semelhante ao dos imigrantes clandestinos, o trata como se fosse um invasor extraterrestre. Excluindo essa situação, todos aqueles com quem interage tratam-no como um ser de aspecto perfeitamente normal.

A alucinação de Chamcha em relação ao aspecto do próprio corpo pode ser explicada por um mecanismo de projecção daquilo que se passa na própria mente da personagem, isto é, uma alma cheia de rancores, mesquinhez e maldade que materializam num aspecto físico grotesco.

É através destas duas disfunções cerebrais, a esquizofrenia, no caso de Farishta, e a perturbação delirante, no caso de Chamcha, que entramos no elemento onírico do romance, composto por várias tramas secundárias, dentro da história principal, como acontece com as bonecas russas do planeamento familiar de uma das personagens secundárias.

E é a partir daqui que o Autor desenvolve o tema da perversão humana a partir de dois arquétipos antagónicos: o anjo e o demónio.

Ambos têm, na realidade, qualquer coisa de angélico, logo na primeira cena, enquanto “voam” por entre as nuvens, ao caírem do Bostan, em direcção à Terra. Mas é a partir do instante em que pisam o solo que os seus caracteres se começam a diferenciar, a partir do momento em que são recolhidos pela anciã, já senil, que lhes dá guarida em sua casa.

O desejo desmedido de reconhecimento e aceitação social por parte de Chamcha levam-no a ficcionar a realidade e a construir uma interpretação dos factos e das atitudes daqueles que o rodeiam sem ter em conta todas as suas componentes (só conhece parte da realidade e não a realidade total) levam-no a confundir um alienamento provocado pela doença com traição e desprezo.

A partir desta ideia distorcida interiorizada, nascem depois as filhas da Mentira ou da Visão Deturpada dos Factos: a Inveja, a Cobiça, a Ambição Desmedida, a Vaidade e a Soberba, o Desejo de Suplantar o Outro.

Avaliando a situação deste prisma, nem Mahound consegue escapar à análise fria e detalhada do Autor.

Salva-se a figura alegórica da Divindade, com a sua neutralidade fria de estátua de mármore, num equilíbrio perfeito de quem se sabe dono do Tempo.

Por outro lado, ao longo de toda a obra, está manifesto o repúdio por todo e qualquer tipo de extremismo – oriental e ocidental – que tente impor limites à liberdade de expressão e ao desenvolvimento do pensamento crítico, às tentativas despóticas de fazer calar a voz dos poetas. Tudo isto no sonhos ou delírio no qual Farishta sonha e intervém na vida de Mahound, ao representar o papel do Anjo. Nas entrelinhas, nota-se a defesa dos valores universais derivados do Humanismo como a Compaixão, o Amor a Arte.

Já o exemplo mais emblemático do fanatismo está, apesar de tudo, ligado a uma figura feminina, embora assexuada com algo também, de angélico ou sobrenatural: Ayesha.

Trata-se de uma jovem órfã, epiléptica, dona de uma estranha e algo fantasmagórica beleza. Ayesha (que por coincidência possui o mesmo nome da esposa favorita do Profeta), desperta uma paixão incontrolável no zamindar da aldeia o qual consegue contudo, aperceber-se do perigo que representa a jovem no que se refere a manipular as massas.

Na figura de aparência espectral de Ayesha está concentrado aquilo que de pior pode surgir na humanidade: uma vaidade desmedida de alguém que deseja atingir a perfeição espiritual. No sonho de Farishta, a jovem assume a personalidade oposta à de Allie, A alpinista, a conquistadora dos Himalaias, a Rainha do Gelo.

Mas enquanto que, em Allie, a frieza é apenas aparente, Ayesha é feita de gelo até ao fundo da alma. Na realidade, a jovem sofre de hybris, um orgulho desmedido que a leva a considerar-se superior ao resto da humanidade e julgar-se muito próxima ou mesmo igual a Deus.

É notório, desde a entrada em cena desta personagem, que esta é o resultado da imaginação doentia e paranóica de Farishta, que inventa uma criatura maléfica, desprovida quer de humildade quer de compaixão, mas pródiga em impiedade e frieza, atributos que depois, irá projectar na sua mulher, Allie.

A impiedade e o fanatismo de criaturas como Ayesha – sejam elas femininas ou masculinas – assim como a vulnerabilidade e ignorância do povo de uma aldeia isolada, a viver de no limiar da indigência e a depender dos elementos para sobreviver – e, por isso mesmo, submetido ao medo de um castigo divino, que se vê, por isso, compelido a honrar uma divindade que o proteja e que garanta a sua prosperidade, comandando esses mesmos elementos telúricos – são, provavelmente, os motivos pelos quais o Autor decide incluir este episódio na trama.

Porque quer a cegueira, quer a miséria, podem levar a que um povo se torne facilmente manipulável nas mãos de falsos profetas ou falsos anjos.

Já a fábula de Jahilia, a cidade corrupta pela ganância e pela luxúria, poderia ser uma possível explicação para a ascensão do Mahound da fábula sonhada do actor doente (clarividente?) com graves perturbações do foro psíquico. Este Mahound imaginado (adivinhado) com o seu pseudo-estoicismo, consegue manipular as massas através do medo do castigo divino, fazendo-o aderir à sua causa com a promessa de um paraíso que lhes permita resgatar todo um passado de miséria. Passando, então, a regular todos os aspectos do quotidiano da sua vida terrena – até a forma de “soltar os peidos, com a cara voltada para o vento”, segundo o humor cáustico de uma das personagens.
Gibreel imagina-se como o Anjo, a ditar os versículos do Corão àquele que seria o Profeta. E este a reinterpretá-los e a escrevê-los (com a ajuda do seu escriba pessoal, que vai alterando uma palavrinha aqui e outra ali) consoante as suas próprias conveniências…

Um episódio de consequências, no mínimo explosivas…

Perturbações da Personalidade – A raiz Mal: endógena ou exógena?

O desenvolvimento de perturbações psíquicas em ambos os protagonistas culmina com a confusão entre ficção (dos filmes que faz) e a realidade, entre sonho e vigília (à semelhança de um filme de David Lynch), no caso particular de Farishta, e com a desintegração progressiva do eu e desenvolvimento de uma personalidade anti-social em Chamcha. Mas enquanto que, no primeiro caso, a doença é incurável, no segundo, uma situação extrema poderá levá-lo a uma tomada de consciência para empreender o caminho de volta.

Sendo o Mal, em ambos os casos, desenvolvido através da visão parcial da realidade, que leva a construir uma imagem adulterada dos factos e a desenvolver emoções negativas/destrutivas, este pode também ser destilado a partir de uma fonte exógena. A semente da Maldade pode ser a Palavra Dita com Má Intenção: a de confundir ou enganar (a arte de Satan). Neste caso o efeito dos versinhos difamadores, ditos por uma maléfica voz anónima será amplamente agravado pelos “recadinhos” do amigo desconhecido – um Iago, do outro lado da linha telefónica...

O nascimento do sentimento de compaixão, numa das personagens proporciona um final semi-feliz na medida em que o adversário de Farishta, não alcança o Paraíso, mas dirige-se para lá numa rota onde não se prevêem grandes desvios...

Em contrapartida o outro, não consegue evitar mergulhar nas profundezas do Abismo...

A parte final do romance (curiosamente depois de empreender o, ao que tudo indica simbólico, caminho de volta à Índia, a bordo do avião Gulistan, o outro dos jardins gémeos do Paraíso) é uma recriação do drama do Othello de Shakespeare que conta com uma loiríssima Desdémona, um Mouro e um Iago contemporâneos.

A esta intertextualidade juntam-se várias outras tanto no campo do cinema, do teatro ou da literatura como também da música aludindo a Kurt Weill, Fellini ou Herman Hesse o que faz do Autor um depositário do acervo cultural de ambas as civilizações que se digladiam há já vários milénios (desde o clássico conflito entre Gregos e Persas) que se torna precioso para a compreensão da situação geopolítica com que se defronta o mundo actual.

A linguagem onírica utilizada visa reproduzir um discurso entrecortado e aparentemente desconexo do pensamento, patente nas hesitações e nas pausas típicas da oralidade.

O profundo sentido crítico do Autor, aliado ao conhecimento detalhado das culturas Hindú, Muçulmana e Ocidental permitem-lhe detectar o excessivo materialismo do Homem – um ser voltado para a satisfação do seu egoísmo – como o factor potenciador do Mal e dissipador de valores como o Amor, a compaixão e o Perdão...

Seis páginas é muito pouco para esgotar todas as dimensões da realidade social e psicológica, observadas ao microscópio por Rushdie em Os Versículos Satânicos, desde o fenómeno da imigração e do êxodo para Ocidente, à crítica do sistema social, político e religioso da Índia actual, nomeadamente das profundas clivagens sociais, e do interesse do Poder em manter o sistema e o status quo para prolongar os privilégios das classes dominantes, em ambas as civilizações.

Em Londres, em pleno coração da civilização ocidental, o autor dá-nos a conhecer o submundo dos guetos, num país de imigração onde pulula o negro fantasma do racismo e da ideologia neo-nazi, a par dos conflitos inter-étnicos e da discriminação por parte da população autóctone. Fenómenos que se manifestam em medidas de coacção abusivas por parte das autoridades face a alguns e na total impunidade face a outros.
O Autor chama ainda a atenção para a falsificação da realidade, por parte dos media, ao mostrar aquilo que as câmaras não conseguem captar durante uma rusga a um bar/discoteca num guetho onde vivem, sobretudo, indianos e paquistaneses assim como a frivolidade, ganância e rapacidade que está por detrás da indústria cinematográfica, publicitária e da moda.

Por tudo isto, Os Versículos Satânicos torna-se uma obra de leitura quase que obrigatória nos dias que correm, por ser uma das poucas que nos dá a conhecer com todos os detalhes os dois lados da moeda na questão Oriente/Ocidente.

Onde integração, diálogo e compreensão são palavras-chave, vindas de uma alma que, vítima da intolerância, foi durante anos “condenada a vaguear pelo mundo sem ter um lugar onde possa descansar as planta dos pés...”

Como Satã...


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, August 07, 2007

“Relato de um Náufrago” de Gabriel Garcia Marquez (ASA)


Este é o “relato de um náufrago que esteve dez dias à deriva numa balsa, sem comer nem beber, que foi proclamado herói da pátria, beijado pelas rainhas de beleza e ficou rico com a publicidade e depois foi malquisto pelo governo e esquecido para sempre”.

Gabriel García Márquez

Relato de um Náufrago é, apesar de escrito só em 1970, a transformação romanesca do relato de uma notícia respeitante a um facto ocorrido em 28 de Fevereiro de 1955, altura em que, a bordo de um contratorpedeiro da Marinha de Guerra da Colômbia, caíram ao mar oito tripulantes devido à intensidade da ondulação. A dificuldade em manobrar o barco causada pelo peso excessivo de uma carga de electrodomésticos de contrabando impediu que fossem tomadas as providências necessárias para salvar os marinheiros.


Somente dez dias depois da tragédia é que o único sobrevivente, de nome Luís Alejandro Velasco, dá à costa, a bordo de uma balsa, faminto e quase sem pele, devido às queimaduras solares.

A transformação da aventura em relato pela narração dos factos tal e qual aconteceram (ou tal e qual se lembra o protagonista) caiu no desagrado do governo colombiano – então sob a ditadura do General Gustavo Rojas Pinilla – transformando o até então herói em persona non grata que fica, a partir daí, relegado para o esquecimento sendo-lhe, ao mesmo tempo, vedado o acesso a qualquer tipo de carreira na Marinha.


O relato das desventuras e dificuldades de um náufrago, numa embarcação diminuta, rodeado de tubarões que aparecem pontualmente às cinco da tarde para jantar, tem tanto de romance de aventuras de Emílio Salgari como de uma epopeia de Homero.

Desprovido de qualquer traço de pieguice melodramática e dotado do sentido de aventura e capacidade de encarar as situações mais complicadas com uma pontinha de humor negro, a odisseia de Velasco torna-se, assim, irresistível depois de trabalhada pela pena de García Márquez.

A típica inverosimilhança a que já nos habituámos nos romances de Gabo também está presente neste relato, manifesta na inacreditável capacidade de resistência à adversidade por parte deste Odisseu da Caraíbas, nomeadamente, ao aguilhão da fome e da sede, ao chicote do sol sobre a pele durante do dia, à mordedura do sal na pele ferida, ao sentimento de desolação no meio da imensa solidão gelada, fortemente ampliada pelo uivar dos ventos marítimos, durante a noite. Um verdadeiro Superhomem, dotado de uma resistência física e psíquica praticamente impossíveis de conceber.

A sinistra pontualidade dos tubarões, que rondam a balsa como abutres vindos das profundezas a partir das cinco da tarde, ombreia com um sentimento de resignação mesclado de esperança que inspiram o náufrago a poupar ao máximo as energias, até chegar a altura da libertação.

O desespero em procurar comida e em mitigar a sensação omnipresente de fome leva-o a situações extremas, traduzidas em episódios caricatos como a tentativa de devorar as solas dos sapatos, uma gaivota viva (e crua) ou, até, a disputar um peixe com o cardume dos seus “amigos” tubarões, transforma este relato na narração de uma luta monstruosa pela sobrevivência com inimigos tão, implacáveis como os ciclopes, sereias, feiticeiras e monstros marinhos de Homero.

Sobretudo quando chega a altura de lutar pela vida no derradeiro momento, quando as forças já estão no limite e só a fé em si mesmo e um tenaz apego à vida o impelem a prosseguir...

...com a dificuldade acrescida em acreditar na própria capacidade de percepção e consequente ameaça de perda de lucidez desencadeada pela falta de “combustível” para as células cerebrais e pela extrema agressividade dos elementos.

Também a ausência de um médico na povoação isolada e hospitaleira que o recolhe do naufrágio, aliada à falta de acesso à informação contribuem para o prolongamento de uma agonia de dez dias de fome, à qual se junta um impulso irresistível de desfiar o rosário dos episódios da sua aventura marítima.

O resultado final deste trabalho de Gabo é uma belíssima epopeia em prosa com a linguagem e o discurso típico do mais célebre escritor colombiano de todos os tempos, a servir de veículo ao desejo irreprimível de um marinheiro de contar uma história pessoal sem ser lapidada pelos media, ao serviço do marketing político ou económico.

Esta é outra vertente deste Relato mostrada sobretudo no epílogo: o aproveitamento de uma tragédia por parte de algumas entidades públicas e privadas para aumentarem as suas receitas ou prestígio.

Em momento algum do romance é mencionada (propositadamente, é claro) qualquer forma de indemnização por parte do estado colombiano às famílias dos marinheiros desaparecidos. E em momento algum é mencionado o apuramento de responsabilidades face à inexistência de qualquer tentativa de salvamento dos náufragos. Para já não falar de punição por incumprimento das normas relativamente ao volume máximo de carga no navio.


Estas são, talvez, algumas das razões que explicam o abismo temporal relativamente à ocorrência do facto e à publicação do relato.

Resta-nos uma obra literária cuja beleza nos faz lembrar obras como Robinson Crusoé ou O Corsário Negro.

Uma leitura mais do que adequada em período de férias.

Imprescindível para levar na mala de viagem num Verão invulgarmente quente...


Cláudia de Sousa Dias