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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, September 28, 2013

Duas Mulheres em Praga de Juán José Millás (Temas & Debates)



Tradução de Jorge Fallorca


Juán José Millás nasceu em Valência, 1946, embora actualmente passe a maior parte do seu tempo em Madrid. É escritor e jornalista, colaborador no jornal El País. Foi galardoado com o Prémio Mariano de Cavia em jornalismo. Em 1974, recebeu o Prémio Sésamo pelo livro Cerbero en las Sombras e em 1990, o Prémio Nadal por Assim era a solidão.

O livro Duas Mulheres em Praga explora o tema da pulsão da escrita e do processo criativo, alimentado pelas obsessões de quem se propõe escrever algo. As personagens principais, formam uma tríade construída por uma mulher nos seus quarenta anos, de nome Luz Acaso, que decide recorrer a um atelier literário para escrever um livro sobre o passado que a persegue. Alvaro Abril é um escritor que vive à sombra de um já antigo sucesso literário e a sofrer no presente uma crise de criatividade. Decide, então, abrir uma oficina de escrita para conhecer vidas alheias que lhe possam abrir caminho à inspiração. Estes dois seres vivem obcecados pela mesma ideia: Alvaro, com a possibilidade de ter sido adoptado à nascença, baseando as suas suspeitas em indícios mais do que vagos e, Luz, a sua discípula, a quem a “luz do acaso” faz encontrar o seu mestre (o nome da protagonista não é escolhido aleatoriamente). Luz está gravemente doente e enceta uma corrida contra a morte na tentativa de legar algo para a posteridade: a sua história. Ou seja, um livro que será o filho que nunca (?) teve ou se teve não pôde criá-lo. Mas a fronteira entre realidade e ficção vai-se diluindo para estas duas personagens, à medida que vamos avançando na trama. A solidão é uma constante na vida de Luz Acaso que procura, através da escrita, reconstituir a família “perdida” e acaba os seus dias rodeada de calor humano e cuidados, envolta num sucedâneo da célula familiar que adquire a mesma importância de uma família de sangue.

A ideia fixa das personagens de Duas Mulheres em Praga em encontrar uma família supostamente perdida acaba por contagiar, também. uma terceira personagem, também ela dominada pelo impulso da escrita: trata-se da jovem que partilha o apartamento com Luz mas que está determinada em escrever uma história com “o lado esquerdo do corpo” e da vida. Literalmente e não só. O esforço que a obriga-a a portar-se como se não fosse dextra é enorme, mas também a faz colocar-se na pele do lado mais débil, fraco, do corpo físico e da social, olhando a vida do avesso.

A ideia fixa de adopção, que se torna cada vez mais obsessiva para estas personagens, está relacionada com um facto real, e relativo à História recente de Espanha. Juán José Millás interessou-se particularmente pelo assunto, tendo investigado a respeito no âmbito da sua actividade como jornalista. Na blogosfera há, também, uma enorme proliferação de artigos sobre o tema, que reportam a factos ocorridos a partir da década de 1970, logo após a queda do franquismo, até ao final da década de 1990. Um período de cerca de vinte anos ao longo do qual a Igreja Espanhola servia, alegadamente, de intermediária a um número avultado de adopções ilegais. Segundo as fontes recolhidas pelo depoimento de várias entrevistas, o processo envolveria instituições religiosas que ficavam com crianças nascidas de mães solteiras ou de parcos recursos financeiros, convencendo as mães de que as crianças recém-nascidas haviam morrido durante o parto, após o que eram contactados casais sem filhos, provenientes de famílias abastadas, sendo-lhes então vendida a criança.


Juán José Millás aproveita o assunto polémico para construir uma paródia, ou melhor uma tragicomédia, colocando esta obsessão colectiva e autofágica no centro da trama que invade, que por sua vez alimenta o pensamento das personagens transformando-se numa quase mania. Assim não admira que:

No momento em que Luz Acaso e Alvaro Abril se conheceram, as suas vidas enlearam-se como dois cordéis dentro de um bolso.

O mesmo acontece em relação às suas vidas reais (?), isto é fora daquela ficção que,dentro do romance de Millás se propõem criar, de Alvaro. Tanto, que no final do romance, já se torna completamente impossível desembaraçá-las. Nessa altura, já os seus escritos lhes proporcionam uma “terceira vida”, um mundo paralelo em que passam a viver, contendo elementos da realidade e ficcionais. A partir daí, será só isso que importa para eles.

A ironia ácida de Millás está, como não podia deixar de ser, patente no discurso do narrador e das personagens, o qual deixa entrever uma dura crítica à literatura de massas, pelo recurso à sátira, usando a figura de um escritor que, para sobreviver, corrompe ou, até mesmo, prostitui o conceito que tem de escrita literária:

A literatura do século XXI será a literatura industrial ou nada. É curioso que , enquanto o resto da realidade se encontra na era pós-industrial, a literatura acaba de entrar no mercado. Estaremos com cem anos de atraso, mas nunca é tarde.

Luz e a escritora que e escreve com o “lado esquerdo”, Maria José, habitam um apartamento numa estreita e sombria viela em Madrid, impregnada de uma luz cinzenta, como a luz que banha a cidade de Praga, num bairro empobrecido e enclausurado por ruas secundárias, também elas estreitas e escuras.

Vivo numa rua muito triste, que se parece com as ruas de Praga.

(…)


- Que sorte, vives em Praga sem necessidade de saíres de Madrid.

À estranha e nada ortodoxa interacção deste trio, junta-se ainda um jornalista que parece ser uma espécie de alter-ego do Autor, também ele interessado em explorar este tema das crianças adoptadas. Assim, ao chegar quase à recta final do romance o trio inicial transforma-se em quarteto, aumentando ainda mais a complexa a teia de enganos, apimentada pelo corrosivo humor negro de Millás. O discurso abunda em trocadilhos, situações truculentas, com desdobramentos de personalidade, vidas duplas, triplas e quádruplas, num contínuo jogo de espelhos. Dali emerge uma prostituta (será?) com vários heterónimos, como se fosse uma versão feminina de Fernando Pessoa mas dos anúncios das páginas das sessões do relax dos jornais, um romance de escritores com múltiplas facetas, máscaras e bigamias editoriais...

Duas Mulheres em Praga, isto é, numa viela escura de Madrid que se parece com Praga, é um livro onde o autor executa uma série de artifícios literários e jogos semânticos, criando um quebra-cabeças impossível de decifrar. Um pouco como no nosso quotidiano, sempre povoado de zonas sombrias que o sol nunca chega a iluminar. Da mesma forma, nas efabulações de Luz Acaso, durante as sessões de treino de narrativa com Alvaro Abril, Millás diverte-se jogar com o leitor o jogo de luzes e sombras entre verdade e ficção, ao criar uma heroína que, tal como a Penélope de Homero, desfaz à noite a trama que tece durante o dia, numa eterna busca de si mesma.

Assim é a ficção. A transfiguração de múltiplas vidas que todos os dias se nos apresentam na realidade, mascaradas.



Cláudia de Sousa Dias
27-11.2012-21.8.2013


Thursday, September 19, 2013

“Somos o esquecimento que seremos” de Héctor Abad Faciolince (Quetzal)


Tradução de Margarida Amado da Costa


Biobibliografia:

Héctor Abad Faciolince nasceu em Medellín, Colômbia, tendo aí iniciado os cursos de Medicina, Filosofia e Jornalismo, sem no entanto concluir nenhum deles, sendo inclusive expulso da universidade Pontifícia Boliviana, por ter escrito um artigo polémico contra figura do Papa, na altura. Estávamos nos anos 1980. Paradoxalmente, decide emigrar para Itália, país onde encontra finalmente a sua vocação e se licencia em Línguas e Literaturas Modernas. Regressou depois à Colômbia, em 1987, ano em que as milícias paramilitares lhe assassinaram o pai em que ele próprio sofre ameaças de morte.

Refugiou-se então, novamente em Itália, onde exerceu o cargo de leitor da cadeira de Espanhol na Universidade de Verona, até 1992, ano em que regressou, desta vez definitivamente, ao país Natal. Exerceu, também, a actividade de tradutor das obras de Umberto Eco e G. Tommasi di Lampedusa para o castelhano.
Após o seu regresso, passou a dirigir a Universidade de Antioquia tendo dado, a partir de então, início à sua carreira de escritor, apesar de o interesse e a actividade da escrita lhe tenha despontado muito antes. Héctor Abad Faciolince começou por escrever contos e poemas com apenas doze anos e tinha já vinte e um quando ganhou o primeiro Prémio do Conto Nacional Colombiano, em 1980, com o título Piedras de Silêncio, sobre um mineiro soterrado numa derrocada. Ainda em Itália, escrevera já o seu primeiro livro ,a que dera o título de Malos Pensamientos (1991). Mas só após regressar definitivamente à terra dos seus pais é que daria livre curso a esta vocação.

Faciolince é um Autor que está conotado com a fase posterior ao realismo mágico de cujo expoente máximo constam autores sul-americanos (e não só) como Gabriel García Márquez e Jorge Amado, indo mais ao encontro da escrita de Santiago Gamboa e Laura Restrepo. Faciolince é u escritor multifacetado que reparte a construção do seu discurso por vários géneros literários e de temática muito diversificada.

A obra Malos Pensamientos, (1991) é vista pelos conhecedores da obra de Joyce como um hipertexto de The Dubliners do Autor irlandês, com as decidas adaptações à realidade da sociedade colombiana. Trata-se de uma compilação de pequenas histórias sobre o quotidiano e do viver colombiano nos anos oitenta. Já Assuntos de un Hidalgo Dissoluto (1996) é inspirado em duas figuras-chave da literatura do século XVIII: Tristam Shandy de Lawrence Sterne e no Candide de Voltaire. O narrador e protagonista do romance é um ancião de 71 anos cuja voz ressuscita o tom picaresco da literatura espanhola daquele período, tratando-se de um milionário que faz uma retrospectiva de toda uma vida debochada, chamando a atenção para a diferença entre o que gostaria que na realidade tivesse acontecido e o rumo que tomou na verdade a sua vida, o que se traduziu num romance de época bastante aclamado pela crítica.

Héctor Abad Faciolince escreveu também Tratado de Culinaria para Mujeres Tristes (data), já comentado neste blogue, sendo a versão portuguesa brindada com o infeliz título de Receitas de Amor para Mulheres Tristes. Este é normalmente olhado pelos críticos como um livro de género “incerto”, por adicionar a um conjunto de falsas receitas que parece à primeira vista assumir a forma de um breviário de mezinhas e feitiços, retirados do património oral e imaterial colombiano, com receitas verdadeiras, quase todas com efeito mais placebo que medicinal, mas cuja leitura cura só por si a tristeza, dado o efeito hilariante do humor negro, às vezes burlesco, que salta das entrelinhas. Dizem-no de género “incerto” por não se enquadrar nos géneros de romance, contos, relatos ou narrativas e muito menos de um livro de receitas, antes num conjunto de hilariantes reflexões a infelicidade.

Fragmentos de Amor Furtivo (1998), outra obra do Autor, vai beber a inspiração nos contos das Mil e uma Noites já que todas as noites, ao deitar, uma mulher convence o amante a adiar a partida, contando-lhe episódios dos seus amores passados. Faciolince acaba por traçar, assim, de uma forma poética, os retrato da classe média colombiana dos anos 1990, em Medellín, uma cidade então controlada pela pestilência (biológica e social) e pelo desencanto em que a população se vê mergulhada, tiranizada pelos cartéis do narcotráfico na, então, mais violenta cidade do mundo,. Uma violência que acaba por enterrar vivos os seus habitantes. À semelhança do que acontece em Decameron de Bocaccio, o casal protagonista isola-se da “pestilência” (aqui com o sentido a que lhe dá Albert Camus, a desumanização) da sociedade, dedicando-se a contar um ao outro histórias que os possam resgatar da morte.

Basura (2000) foi publicado em português com o título Os Dias de Davanzatti é o livro mais experimentalista do Autor, onde o narrador alude constantemente a estereótipos ou então a escritores universalmente consagrados para falar de um escritor amador que é o protagonista do romance, Bernardo Davanzatti, o qual atira sistematicamente tudo o que escreve para o cesto dos papéis. O que o seu diligente vizinho, o locutor da narrativa se dispõe a, diligentemente e cuidadosamente, todos os dias, a ir buscar ao lixo, tornando-se o seu único leitor. Trata-se de um livro dedicado unicamente ao acto da escrita e ao papel do leitor na interpretação da obra escrita, ou seja, àquilo que é na verdade a única coisa que dá sentido ao acto de escrever, conferindo vida ao livro muito para além da “mão” que o escreve.

Depois dá à luz as Palabras Sueltas (2002) onde mistura a escrita ensaística com uma colecção pessoal de pensamentos e aforismos.

Héctor Abad Faciolince escreveu também um livro de crónicas das suas viagens pelo Egipto, também no ano de 2002, onde o narrador oscila entre duas versões da realidade quotidiana numa mega cidade que se empenha em trazer para a luz do dia a memória de outras realidades, imagens e episódios passados no outro hemisfério, em Medellín. O livro intitula-se Oriente, desde el Cairo e pode ser lido em complemento com Tahrir, de Alexandra Lucas Coelho que fala da mesma cidade, dez anos mais tarde, em plena Primavera Árabe.

Noutro livro de viagens publicado dois anos mais tarde, intitulado Angola 2004, a voz do narrador traz-nos o eco do hiper-realismo, ultrapassando o Autor, definitivamente, a questão da influência do realismo mágico. Aqui, estamos mais uma vez, tal como em Fragmentos de amor furtivo perante uma alegoria por comparação com a sociedade colombiana. Nesta obra, Faciolince descreve uma cidade cuja população se divide em três castas, em tudo semelhante ao regime do apartheid, mas reproduzindo a violência que se faz sentir na Colômbia, nos anos de transição para o século XXI.

Todos estes livros serão, a seu tempo, comentados neste blogue.

Somos os esquecimento que seremos

E assim chegamos a 2006, altura em que Héctor Abad Faciolince publica o romance autobiográfico e de tom memorialista que dá o título a este post, El olvido que seremos, em português, Somos o esquecimento que seremos. O livro foi escrito em homenagem ao pai, assassinado vinte anos antes, pelas milícias paramilitares.

Nesta obra, o desenvolvimento da narrativa centra-se no olhar e na visão do mundo do narrador que é filho da personagem principal. Estamos, portanto, diante de um caso de autodiegese em que o narrador, sendo também ele uma personagem da trama, se coloca na posição de observador para proporcionar aos seus leitores/ouvintes uma perspectiva panorâmica e diacrónica dos acontecimentos. É, também, notória a construção discursiva, elaborada propositadamente de forma assegurar ao leitor não se ter o locutor sujeitado a nenhum constrangimento em termos de liberdade de expressão salvo num único caso, em que dá a entender não revelar o conteúdo de uma gaveta com o objectivo de preservar a memória do pai, fazendo-o apenas por estar certo de que os factos omissos não terem tido expressão na sua vida pública e assim salvaguardar a sua intimidade. Da mesma forma, o Autor propõe-se contar a história da família Abad Faciolince, enquadrada no contexto sócio-político da Colômbia, ao salientar as históricas e culturais práticas de abuso de poder por parte de uma classe dirigente despótica, mediante uma mentalidade modelada na têmpera do colonialismo. Trata-se de uma narrativa de género confessional, em cujas entrelinhas está contida uma profunda ironia a que se liga um forte sentido crítico e simultaneamente uma total honestidade em relação às próprias motivações e sentimentos ao longo da diegese, ao expor alguns aspectos das suas memórias que qualquer outro autor poderia ter camuflado. É aqui realçada logo a partir das primeiras linhas, a importância das mulheres na família de Faciolince, provavelmente uma das poucas características que o aproximam do também escritor colombiano Gabriel García Márquez: as cinco irmãs, a mãe, as empregadas da casa e demais parentes femininas, ao todo dez mulheres que faziam então parte do agregado, uma família alargada em cuja casa conviviam várias gerações, a par de um afecto pungente tal a intensidade, dirigido a pai.

Também é colocada em evidência como factor favorável no crescimento e desenvolvimento dos filhos do casal a complementaridade de feitios (apesar de diametralmente opostos) entre os pais, descrita com o humor de quem está habituado a ver as diferenças de personalidade como indispensáveis. A mãe de Faciolince, esposa do Doutor Abad, médico e professor, é uma senhora de espírito racional e pragmático, gestora de condomínios. O pai é mostrado como um profissional de brio extremo, consciente da sua missão como formador de uma geração de novos médicos e ciente do dever modificar culturalmente a forma de olhar para a medicina: a prevenção das doenças infecto-contagiosas, e sobretudo a chamada de atenção para a missão do Estado, em efectuar o tratamento das águas municipais. O Autor mostra o pai, o Doutor Abad como um homem superior, um sonhador que dedica a vida, à custa da própria vida, pela causa da saúde pública, fazendo do tratamento da água potável que abastece os lares colombianos o seu baluarte no tocante à medicina preventiva, a par da vacinação universal, as suas duas grandes cruzadas.

No entanto, pelo retrato que é dele tecido ao longo do romance, a dedicação a causas públicas ocupa a quase totalidade do seu tempo, tendo de delegar na esposa as questões práticas do quotidiano, já que se trata de um homem que, por vezes, se esquece de si para ajudar os seus alunos, até mesmo financeiramente.

O Doutor Abad, apesar de nunca ter estado ligado a nenhum partido político, teve um posicionamento ideológico que o tornava num alvo particularmente apetecível para a ala mais reaccionária da elite na Colômbia dos anos oitenta, moldada por séculos de mentalidade colonialista da classe dirigente, a qual pretende fazer da medicina um negócio lucrativo e ao mesmo tempo, tornar o seu exercício uma forma de exercer o Poder e um privilégio a ser usufruído por aqueles que o podem pagar a peso de ouro. Segundo o Autor é desta classe dirigente que emanou nos anos oitenta do século vinte o financiamento das milícias paramilitares.
Assim, o que temos neste livro, por detrás do tom memorialista e autobiográfico é um livro que trata do fenómeno da circulação das elites num país sul-americano no último quartel do século vinte, à semelhança do que acontece com O Leopardo de Giuseppe Tommasi di Lampedusa em Itália.

Somos o esquecimento que seremos é um livro que demorou mais de vinte anos a amadurecer para criar o distanciamento de acontecimentos cuja excessiva emotividade poderia prejudicar a escrita e a transmissão da mensagem. O livro foi, assim, cuidadosa e pacientemente depurado na sua simplicidade estilística, expurgado de todo e qualquer sentimentalismo fácil. O tom é evocativo, trazendo ao presente episódios da vida famíliar que vão surgindo uns encadeados nos outros, como as cerejas.

Faciolince traça ainda o retrato de uma Colômbia essencialmente agrícola durante os três primeiros quartos de século, um pouco como Portugal até 1974. Um país essencialmente rural, mas que ao contrário sucedido em terras lusas, emerge da pobreza após uma sangrenta luta de classes (em Portugal isto acontece com o fim da colonização e da Ditadura do Estado Novo), luta essa que assenta em ideologias antagónicas, representadas por dois tipos de elites: as que acreditam que para existir progresso, tem de se garantir condições de vida digna à população e aquelas que são um misto de inspiração colonialista, deslumbradas pela pujança da locomotiva económico-financeira norte-americana, assentes na doutrina calvinista de que o usufruto dos bens são para aqueles que os podem pagar, usando as assimetrias socio-económicas para melhor controlar as massas e exercer poder. A oposição entre estas duas formas de ver o mundo degenera, numa primeira fase, e descontentamento e, mais tarde em sangue e morte, sendo o Doutor Abad, Defensor do Direitos Humanos e membros de várias ONG's apenas uma das milhares de vítimas que caem perante o triunfo do ódio.

O título do romance é apenas o primeiro verso de um soneto de Jorge Luís Borges o poeta cego argentino, cujo poema adquire uma dimensão épica com este romance, o qual expõe as fragilidades e ataques a que está constantemente sujeito um regime democrático (ver aqui http://itinerariopoetico.escribirte.com.ar/10215/el-olvido-que-seremos.htm).

No tocante à construção da identidade sexual e posicionamento socio-político da voz do narrador é também nítida a influência do pai e da ideologia do racionalismo iluminista e do Humanismo dos filósofos do século das Luzes. Por outro lado, o Auto empenha-se em esmiuçar papel do controlo da Igreja que entra no lar através da figura materna e se reflecte na forma como algumas das irmãs conduzem a própria vida, desde o grau de autonomia e autoconfiança, até à forma de se vestir ou exprimir-se em público. Este aspecto está particularmente vincado em alguns textos de Tratado de culinária para mujeres tristes ou Receitas de amor para mulheres tristes (ver aqui http://hasempreumlivro.blogspot.pt/2013/01/receitas-de-amor-para-mulheres-tristes.html) que, segundo o Autor se está directamente relacionado com o grau de conformismo da população local.

Sobressai ainda o paroxismo da dor em dois momentos narrativos, desencadeados pala fatalidade. É, também, por essa razão, um livro catártico, que fala de amor e morte, das diversas formas de amar, independentemente dos condicionamentos impostos pela cultura. Um livro cuja escrita implica um longo processo de cura, face a feridas que ainda assim permanecem em carne viva, embora já não sangrem.

Somos o esquecimento que seremos é uma história que expõe o choque da perda da inocência, em detrimento da dolorosa aquisição da lucidez.



Cláudia de Sousa Dias

21.11.2012-14.08.2013

Monday, September 09, 2013

“O Mar em Casablanca” de Francisco José Viegas (Porto Editora)


Francisco José Viegas nasceu na aldeia do Pocinho, Vila Nova de Foz Côa, onde viveu até aos oito anos. Os pais mudaram-se então para Chaves, onde fez o Ensino Secundário. Licenciou-se em Estudos Portugueses, na Universidade nova de Lisboa. Leccionou Linguística na Universidade de Évora, sendo actualmente, director da Revista “Ler” e editor da Quetzal, onde regressou após um curto período de exercício de funções como Secretário de Estado da Cultura.

A trama de O Mar em Casablanca é construída com base num cenário inicial de desolação onde se destaca a atitude depressiva de um vulto debruçado numa ponte debaixo de uma chuva torrencial.

Um começo invulgar num romance de Francisco José Viegas até pelas características da personagem principal que aparece numa atitude pouco habitual e em cuja personalidade se notam alguns cambiantes, ligeiras modificações na forma de olhar os acontecimentos e na forma de estar perante a vida.

O recurso à analepse, com um preâmbulo situado num tempo já avançado na trama e, depois, uma regressão coloca-nos perante a técnica da modalização temporal no romance, que dota a trama do dinamismo necessário para agarrar um leitor, sobretudo neste género de policial tão pouco ortodoxo, permitindo que, só a meio do romance, o leitor possa identificar o homem debruçado na ponte, presente na cena inicial. A narrativa emerge, assim, pelo poder evocativo da memória, estando patente na voz do eu empírico do inspector Jaime Ramos o desgaste causado pelos acontecimentos e pelo peso incomensurável de um passado que teima sempre em regressar.

Este romance de FJV, publicado já no final da última década (2010), revela um domínio da técnica da narrativa que muito o distancia dos primeiros romances, tornando-se, ao mesmo tempo, bastante mais verosímil a própria construção do eu e da voz do Inspector Jaime Ramos. Também a relação deste com Rosa, a eterna namorada e presença constante nos romances anteriores mas de importância marginal tanto na trama como na vida do protagonista, começa também a ocupar um espaço maior no quotidiano deste, embora por enquanto só no domínio privado e, consequentemente, a ter um peso maior na trama. Rosa não interfere na vida profissional de Jaime Ramos, nunca se assume como colaboradora oficial, como a assexuada Miss Moneypenny das histórias de James Bond, mas revela-se antes uma peça fundamental para o equilíbrio emocional do Inspector da PJ numa esquadra algures no Porto, ajudando-o por vezes nos seus raciocínios e desencadeando alguns dos seus insights, mas sempre (ainda) no domínio do espaço doméstico.

É também notório o desaparecimento de Filipe Castanheira o seu companheiro de investigação dos primeiros romances que eram co-protagonizados por ambos. Filipe Castanheira era quase um duplo ou o alter-ego, mais jovem, emotivo e passional, de Jaime Ramos mas aqui este surge sozinho, mas com traços da personalidade de ambos.

O Jaime Ramos de O Mar em Casablanca tem agora dois ajudantes na esquadra da PJ onde trabalha: Isaltino e José. A própria construção do ethos desta personagem tem vindo a sofrer uma certa evolução ao longo dos últimos romances. O amadurecimento da personagem está patente no vínculo entre o detective e a companheira que lhe serve de ponte entre a actividade de investigação e a escrita dos seus relatórios que parecem cada vez mais influenciados pela personalidade literária de Rosa, enquanto professora de Literatura, a qual o põe em contacto com os clássicos.

A escrita de Francisco José Viegas é, como já sabemos de outros romances, profundamente sensorial, telúrica, na qual se sente o cheiro da terra, o rumor da folhagem das árvores e dos seres que as habitam, dos odores dos ambientes. Por vezes a própria paisagem duriense torna-se, ela própria, personagem: um mundo de beleza deslumbrante, anestesiante, mas por vezes agreste, hostil ao homem, sobretudo se forasteiro, como já notaram outros autores provenientes do interior norte de Portugal, como Jorge Fallorca.

Uma paisagem edénica e luxuriante, cuja faceta solar torna ainda mais notório o contraste do cenário de aspecto idílico mediante a crescente debilidade do protagonista, que se vai ao mesmo tempo tornando mais sensível e menos don juan à medida que se torna cada vez mais consciente das fragilidades alheias. Este cenário não é, no entanto estático. Pelo contrário, transforma e adquire, por vezes, uma tonalidade sombria como é cada vez mais sombrio também o humor do protagonista. Continua no entanto presente a figura da mulher de beleza fatal, tal como em romances anteriores onde a beleza, a juventude ou por vezes o sucesso profissional feminino continua a figurar na construção do triunfo social das mulheres jovens e oriundas de famílias de poucos recursos a uma certa perversão. Talvez porque em Portugal a igualdade de oportunidades seja ainda, em muitos aspectos, uma miragem...

A trama de O Mar em Casablanca reflecte, também, ecos da história recente, ao esboçar uma certa decadência que se adivinha na corrupção camuflada sob uma fachada de prosperidade, sobretudo no âmbito das relações diplomáticas, políticas e financeiras. Negócios pouco transparentes entre figuras de elevado poder económico e integridade duvidosa, vão lentamente estendendo os seus tentáculos de forma a apoderarem-se das estruturas produtivas como uma planta daninha.

Um livro actual, resultante da evolução e aprimoramento literário de um escritor já consagrado e reconhecido pelo romance Longe de Manaus.


Cláudia de Sousa Dias

23.10.2012-27.07.2013

Sunday, September 01, 2013

“Hotel Memória” de João Tordo (Quidnovi)



João Tordo nasceu em Lisboa, em 1975. Filho do cantor Fernando Tordo, formou-se em Filosofia mas estudou Jornalismo em Londres e Nova Iorque. Além de jornalista e escritor, João Tordo faz também tradução, tendo-se aventurado também no guionismo.

Na sua faceta de jornalista, escreveu para o Independente, para a Sábado, para o Jornal das Letras, para a Elle. Escreveu também, por vezes contos para a extinta revista Egoísta.

Hotel Memória é o seu segundo romance. O autor especializou-se na escrita de romances policiais, género literário com que se estreou na publicação de O Livro dos Homens sem luz. O seu estilo faz lembrar um pouco o autor norte-americano Paul Auster, pelo ambiente urbano e pelas temáticas abordadas relativamente ao submundo das grandes cidades, alternando o glamour com uma inexorável decadência ou degradação do estilo de vida dos seus habitantes. Aliás, Auster serve, conforme se vê pela epígrafe do romance de que hoje tratamos, de inspiração à escrita de João Tordo, que o homenageia assim como a vários nomes da literatura anglo-saxónica, do fado e do jazz.

O cenário da acção principal de Hotel Memória é Nova Iorque, onde um jovem estudante de literatura aspirante a escritor acaba por viver uma estranha e inquietante aventura, despoletada pela morte inesperada da sua companheira, Kim, também ela estudante e simultaneamente detective privado, vítima de um fatal acidente. O protagonista é também o narrador, o que serve de pretexto para se manter anónimo ao longo do relato das peripécias que compõem a trama.

A obsessão do protagonista em desvendar o passado da namorada, mergulha o jovem estudante numa vaga de melancolia e depressão que o conduz a uma espiral de auto-destruição, fruto de uma intrincada teia de ligações perigosas à máfia nova iorquina e ao submundo do fluxo da imigração ilegal para os EUA. A trama, apesar das semelhanças estilísticas e de cenário com os romances del Auster, lembra um pouco os romances de Mario Puzo pela profusão de cenas de sangue associadas à implacável vendetta dos capi do crime organizado.

A ideia principal que se retira da leitura deste livro é, sobretudo, a da extrema fragilidade com que se depara alguém que emigra sem qualquer tipo de apoio familiar ou rede de contactos sociais que o ajudem a defender-se das armadilhas que se apresentam às pessoas nestas condições. A selva urbana da Big Apple não é lugar para seres vulneráveis, como já deram a entender, além dos dois autores supracitados, escritores como Tom Wolfe (A Fogueira das Vaidades) e Sándor Márai (A Mulher Certa, última parte).

Personagens

O romance é autodiegético, isto é, o narrador é, tal como já foi dito, também a personagem da trama e protagonista da sua própria história. Quando começa a narrativa, fá-lo no tempo presente, ou seja, é o eu do tempo presente quem é o sujeito da enunciação, que recorre à regressão e modalização temporal para contar, depois, cronologicamente os acontecimentos do passado: a vinda de Lisboa para Nova Iorque, o passado de Kim, as circunstâncias da sua morte, a estranha estória da figura misteriosa para quem trabalhava e, por fim a sua própria vivência, recheada de peripécias na tentativa de completar o quadro dos acontecimentos.

Há, também, outro um jovem estudante, de origem hispânica, Manuel, que vive com a família e que, além de ser um importante ponto de apoio ao protagonista em momentos complicados é, também, o elo de ligação entre ele e Kim.

João Tordo introduz, também, um cómica dupla policial, Stan e Bill, a parodiar as séries de detectives, colando-se perigosamente à dupla Laurel e Hardy. São dois polícias, um tanto boçais, cumpridores de regras, mas mais flexíveis do que seria de esperar, pelo que não se pode dizer que sejam incompetentes. A personalidade de ambos lembra a de Bartleby de Melville. São o lado satírico do romance, o que faz com que, deste ponto de vista, o facto pouco verosímil de aparecerem no instante mais oportuno para salvar a personagem principal seja atenuado, apesar de a caricatura da polícia nova-iorquina pudesse, talvez, ter sido um pouco mais estilizada. Stan e Bill são homens comuns, de inteligência mediana, pouco eficazes, servindo a sua presença na história apenas para afastar delinquentes. Estão, contudo, longe de serem capazes de resolver os casos com a capacidade intuitiva de um “Mentalista”, mas ao mesmo tempo revelam-se muito mais credíveis nas actividades do dia-a-dia. Por exemplo, após o acidente de Kim, o jovem estudante de literatura é colocado numa situação muito delicada, correndo o risco de se tornar o principal suspeito de um possível assassinato. Contudo, após um cuidadoso interrogatório, conduzido pelos dois polícias, consegue ficar ilibado.

O ponto forte deste romance consiste na capacidade do Autor em mostrar até que ponto uma depressão profunda pode fazer alguém com um futuro promissor entrar num vórtice de auto-destruição que o conduz a uma situação quase que irreversível de precariedade.

A assumpção do lugar de Kim, por parte do aspirante a romancista, como detective privado proporciona ao jovem uma viragem de 180º no seu estilo de vida, que passa a ser um jovem preocupado, secreto, cauteloso.

Hotel Memória é um livro bem escrito, rico em peripécias (talvez até um tudo nada exagerado neste aspecto), onde a atmosfera de marginalidade classicamente associada ao fado e à fatalidade, vai contaminando, no bom e no mau sentido, as ruas de Nova Iorque – aliás, este parece ser o único elemento cultural português que consegue atravessar as fronteiras do Atlântico, viajando através do tempo e do espaço, recuando décadas até à Lisboa de Salazar, passando por Nova Iorque e a soalheira são Francisco, já no nosso século. Esta última cidade é o vértice do triângulo que completa a localização espacial da história e também o local onde o último véu do mistérios de dissipa. É o cenário onde ficamos a saber o rumo que tomaram as personagens após o intenso clímax da acção ocorrido no misterioso Hotel Memória, com cheiro a saudade, nostalgia e tragédia de faca e alguidar.

Hotel Memória é também um romance onde a sensualidade marca uma forte presença, em vários momentos da história e onde um forte erotismo transpira de uma escrita sensorial e sobretudo cinestésica.

O final transmite a impressão aos leitores de que o jovem que foi o grande amor de Kim sobreviveu a um grande terramoto e que, daí em diante nada será como antes...


20.10.2012-20.07.2013

Cláudia de Sousa Dias