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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, April 28, 2006

“Uma Mulher Nua” de Lola Beccaria (Teorema)


Martina Iranco é uma advogada de sucesso, detentora de um importante cargo político que, devido à sua posição, quer social quer no mundo do trabalho, é obrigada a vestir uma máscara que não corresponde à sua verdadeira personalidade.

Oriunda de uma família extremamente conservadora, de excelente nível sócio-económico, Martina tem, apesar de tudo, uma infância condicionada por uns pais extremamente exigentes quanto à aquisição de competências intelectuais, artísticas e regras de comportamento social. Estes gostam de exibir as capacidades da filha para as visitas mas esquecem-se da compensação afectiva necessária ao bem-estar, responsável pela segurança e autonomia de uma criança, durante a primeira infância. Ao mesmo tempo recusam-se a aceitar que esta tenha uma qualquer forma embrionária de sexualidade.

A vulnerabilidade de uma criança como Martina, em virtude desta situação, transforma-a na vítima perfeita para alguém que tem dificuldade em estabelecer o limite entre aquilo que deve ser uma relação afectiva saudável entre um adulto e uma criança.

É o que acontece quando entra em cena Damián, um charmoso e distinto médico, amigo da família, íntimo da casa. Uma pessoa acima de qualquer suspeita. E Martina é uma criança que está disposta a utilizar o último átomo da sua criatividade em troca de uma migalha de afecto.

Trata-se, no fundo, da versão actual do Lobo Mau e do Capuchinho Vermelho, com a particularidade de os limites entre o Bem e o Mal, entre o lícito, e o ilícito se apresentarem de uma forma mais diluída daquilo que é habitual.

O tema da pedofilia ou do abuso sexual de crianças é, por si só, um tema que provoca reacções “a quente” e despoleta reacções violentas. Um tema que incomoda. Tanto que, há cerca de década e meia atrás, no início dos anos noventa, a maior parte da população se recusava, sequer, a admitir a existência de tal fenómeno.

E Lola Beccaria, ao mostrar uma situação de proximidade sexual entre um adulto e uma criança em Uma Mulher Nua, é tudo menos politicamente correcta. Pode-se mesmo afirmar que é transgressora. Uma Mulher Nua é um livro cuja leitura causa algum desconforto, não só pela crueza da linguagem em alguns capítulos, mas sobretudo pela pormenorizada descrição dos breves contactos sexuais entre Martina e Damián.
E esse mesmo desconforto decorre do facto de tomarmos consciência de que um abusador pode justificar a sua conduta com a possibilidade de a criança sentir prazer com um contacto sexual que não chega às últimas consequências, isto é, em que não há penetração.

Aqui, a grande questão está em definir o que é a norma. E a personagem Damián ultrapassa largamente aquilo que no geral, é definido como sendo a norma. O perfeito e intocável gentleman soube ver na verdadeira Martina, uma criança carente e vendida de antemão, disposta a aceitar qualquer simulacro de amor. Sem saber, contudo, lidar nem com ela, nem com o próprio desejo.
Quando isto acontece, a criança está não só apta a ser abusada por outros adultos como por crianças da mesma idade ou pouco mais velhas, para além de poder vir a tornar-se num potencial abusador(a).

Por outro lado, dá-se uma divisão, uma cisão ao nível do foro psíquico: isto é, entre aquilo que é condenável pela sociedade e aquilo que é premiável pelo amante adulto. O resultado é a criação de uma mundo oculto, onde há uma busca desenfreada de sensações e a idealização do amante.

Na realidade este livro poderia ser intitulado de “A outra face de Lolita” – a mesma personagem de Nabokov – desta vez contada pelo ponto de vista de uma criança que é abusada e que cresce a pensar que o abuso de que foi vítima é a norma.

Com uma escrita de certa forma chocante, desprovida da beleza estética e poética com que a personagem Humbert Humbert de Nabokov tenta colorir as suas atitudes, recorrendo ao mecanismo de defesa do ego a que podemos chamar de sublimação, a personagem Martina Iranco consegue ser bastante incómoda, no seu papel de narradora, ao relatar os primeiros anos do desenvolvimento da própria sexualidade, o que faz de Uma Mulher Nua uma das obras mais polémicas que já surgiram no universo literário nas últimas duas décadas.

A capa do livro, inspirada num dos mais belos quadros da pintora Tamara de Lempicka – representa Andrómeda acorrentada – vai de encontro à forma como a Autora encara a Moral: “um cinto de castidade do prazer que faz com que a sociedade crucifique o próximo, praticando a censura como o sucedâneo da felicidade” (sic). Para Lola Beccaria quebrar as regras ou correntes do bom comportamento significa a exclusão numa sociedade em que, mais do que a virtude em si, importa a aparência da virtude.

Pela voz da personagem Martina Iranco, a Autora pretende contar a estória de uma mulher que procura ser a representação do objecto sexual perfeito, em troca de amor e aprovação. Um objectivo frustrado pelo desconhecimento da maneira autêntica de o conseguir.

A narrativa é, toda ela, o desnudar da alma a partir do inconsciente, “da exploração do poço dos desejos” (sic). Trata-se da exposição integral do universo que gere a líbido ao exibir o belo e o feio, isto é, os pontos fortes e débeis da alma nua da mulher. Sem defesas e sem máscaras.

Porque “uma mulher nua é fácil de ferir e de humilhar”.

Um livro chocante para alguns. Realista para quem não deseja viver de olhos vendados.

Um verdadeiro murro no estômago.


Cláudia de Sousa Dias

Sunday, April 23, 2006

“O Crime do Padre Amaro” de Eça de Queirós (Europa-América; Planeta DeAgostini)


A acção passa-se em Leiria, em finais do sec. XIX, numa cidadezinha provinciana onde a oferta cultural é escassa e o passatempo principal, a “arte” de saborear voyeuristicamente os escândalos sexuais dos habitantes da cidade, a par dos rituais religiosos, rigorosamente cumpridos.

O controlo social é apertadíssimo. E o desvio à norma, impecavelmente punido.

A trama constrói-se à volta do jovem Padre Amaro – que vem para Leiria a fim de substituir o falecido e velho pároco – e de Amélia, a bela filha da amante do cónego Dias, um clérigo bonacheirão, amante dos prazeres da cama e da mesa.

Amélia, crescida em casa de um padre, rodeada de imagens sacras, relicários e toda uma literatura beata, sonha, ao despontar os primeiros impulsos sexuais da sua austera adolescência, em desposar uma figura angélica, semelhante àquelas que está habituada a ver nos frescos, iluminuras ou vitrais dos lugares de culto, construindo, a partir delas, uma imagem de ideal masculino que acaba por projectar em Amaro.

Amaro, é dono de uma beleza delicada, traços finos, trigueiro, esguio, cabelo levemente ondulado, olhos negros, acentuados pelo sombreado de longas pestanas. Apesar do aspecto distinto, é um homem que conhece o significado da palavra privação – proveniente do tempo em que esteve a cargo dos tios, cuja avareza e secura o esmagavam – e, simultaneamente, o gosto pelo luxo – adquirido na infância enquanto viveu com a sua abastada madrinha e estimulado pela visita à filha desta, a bela e refinadíssima Condessa de Ribamar.

É pela intervenção dos Condes de Ribamar que Amaro consegue ser destacado para a paróquia de Leiria, onde irá desfrutar de uma situação económica bastante confortável.

A atracção entre o ultra-romântico par (Amélia é, apesar de tudo, o oposto das heroínas tipicamente clássicas de modelo arcadiano de Eça e também não é, de forma alguma, o tipo de mulher que o escritor mais admirava, mas exactamente a típica portuguesinha por quem, mercê da educação e da cultura em que cresce, cultiva um sentimento de pena…) estabelece-se de uma forma quase que instantânea. Os dois perseguem-se mutuamente com o olhar durante os serões em casa da S. Joaneira, a mãe de Amélia, onde inicialmente Amaro está hospedado.

Mais tarde, o inevitável acaba por acontecer no casebre onde habita o velho sineiro, o Tio Esguelhas, o cúmplice dos amantes. A sua filha, deficiente, é um excelente pretexto para Amélia justificar as suas idas a casa do sineiro. Antónia ou Totó, apesar de física e intelectualmente limitada, não deixa de se aperceber dos verdadeiros motivos das visitas do casal. Segue-os com o olhar, adivinha os seus movimentos, sem se coibir de manifestar um ódio visceral a Amélia por esta servir-se da sua doença como álibi para os encontros amorosos com o padre, a quem também deseja. O ciúme acaba por corroê-la, sabendo-se atirada pelas contingências da vida para o Inferno dos mal-amados.

Mas o ciúme obsessivo com laivos de paranóia, faz também parte do leque de emoções conflituosas que compõem o carácter do Padre Amaro. Este ama Amélia, mas não o suficiente para desistir dos privilégios que a posição de padre lhe confere e que tanto lhe custou a conseguir.

A paixão de Amaro por Amélia é egoísta, possessiva. Amaro sabe até que ponto a sua posição é frágil. Sabe, também, o quanto a manutenção desta situação pode prejudicar a jovem. O que não o impede de tentar afastá-la de tudo e de todos aqueles que possam desviá-la da sua influência. Até mesmo dos livros e do acesso à literatura, fora do âmbito litúrgico, afirmando que “não a quer para doutora”.

Amaro não hesita, inclusive, em utilizar as suas ligações ao mundo eclesiástico para destruir o rival – o intelectual João Eduardo, autor de um libelo publicado anonimamente num jornal local direccionado ao clero de Leiria, onde denuncia os aspectos mais venais da classe, colocando em risco a reputação de Amélia que, na altura, vivia em casa da mãe, amante do Cónego Dias e tendo como hóspede o Padre Amaro.
Os aliados de Amaro reduzem João Eduardo a nada, à laia de retaliação. Sem emprego e de noivado desfeito, nada mais resta ao jovem e passional Eduardo fazer uma retirada estratégica para Lisboa, onde passa um período de sérias dificuldades, uma vez que todas as portas se lhe fecharam.

Perseguem-no os estigmas de anarquista e ateu como a insígnia dos leprosos.

Apenas muito mais tarde, com a ajuda de alguém económica e socialmente intocável, Eduardo terá a possibilidade de se reerguer, exibindo a sua nova situação económica como uma bofetada com luva de pelica aos rancorosos clérigos de Leiria que anseiam por vê-lo a comer o pó da estrada.

O carácter de Amaro é assaz violento, tortuoso, obscuro. Além do mais, a cobardia e a pusilanimidade, outros dos seus traços de personalidade, vêm ao de cima nos momentos de tomada de decisão. É devido a esta mesma pusilanimidade e fraqueza de carácter que Amaro sucumbe à tentação de um crime, com o objectivo de salvar a sua reputação e conservar os privilégios inerentes ao seu estatuto de padre, ao entregar o filho recém-nascido a uma “tecedeira de anjos” – um eufemismo que designa alguém que se encarrega de se desembaraçar das crianças indesejadas, para depois alegar uma qualquer fatalidade (im)prevista. A cobardia de Amaro só é excedida pelo seu egoísmo. Por outro lado, a ambição desmedida leva-o a não distinguir o Bem do Mal, quando assume uma posição maniqueísta em vários momentos do romance.

A narrativa está cheia de presságios – como já é habitual em Eça de Queirós – desde o piar da coruja, associado aos dois amantes em várias por altura de um dos seus encontros, ao olhar de maldição que lhes lança a Tótó e, sobretudo, ao apelo de Amélia a Nossa Senhora das Dores para fazer com que o padre goste dela, um claro indício de sofrimentos futuros, quer físicos quer psicológicos. Mas a principal pista àcerca do destino de Amélia, provém de uma forte intuição depois de vestir o manto da Virgem e Amaro declarar ser ela “mais linda que Nossa Senhora” – a hybris, isto é, o orgulho arrogante de Amaro que aterroriza Amélia, certa de ter ofendido a divindade. O sentimento de heresia oprime-a até à paranóia. Por outro lado, a mãe de Amélia chega a afirmar preferir ver a filha “morta a casada com um pedreiro-livre”, como Eduardo, mais uma pista para o futuro reservado a Amélia.
O abade Ferrão e o Dr. Gouveia são os únicos aliados de Amélia que, para além de estarem do seu lado nos momentos mais difíceis, tentam libertá-la da influência nefasta do padre. Enquanto isso, o sonho erótico de Amaro onde mistura o sagrado e o profano ao possuir Amélia no purgatório debaixo do olhar divino, sofrendo, também ele, o aguilhão do remorso ou, mais propriamente, do medo da punição divina.


O Crime do Padre Amaro é, sobretudo, um manifesto contra o clero, cujo principal objectivo se traduz na manutenção do status quo isto é, da ordem pré-estabelecida e das velhas élites no poder. Trata-se de uma farpa explicitamente dirigida especialmente à classe eclesiástica que está patente quando o abade Natário afirma que “A Pobreza agrada a Nosso Senhor”, ao expor a forma como o clero arranja justificações divinas para a manutenção das desigualdades sociais.
Amaro chega, inclusive, a lamentar não estarem no tempo de Torquemada para poder mandar para a fogueira quem se lhe atravessasse no caminho e, deste modo, dispor de Amélia como lhe aprouvesse.
O Autor mostrar, simultaneamente, a forma como sistema de confissão constituía um excelente canal de espionagem, ao fomentar a delação e manipulação política, servindo os interesses do partido conservador, o qual incumbia ao clero o cargo de “orientar” os fiéis a votarem nos partidos que satisfaziam os seus interesses.

O carácter de Amaro assemelha-se, de certa forma, ao de Basílio de O Primo Basílio.

No final, o padre confirma, cinicamente, sem ponta de remorso e com toda a jovialidade, “só confessar mulheres casadas”. Porque as consequências de uma eventual ligação ilícita ficam escondidas pela máscara do casamento cobrindo-se, desta forma, o escândalo com a capa do socialmente correcto. E, tal como Basílio em relação à morte de Luísa, Amaro não muda com a morte de Amélia. Continua a usufruir do luxo da sua posição social, exibindo uma hipócrita virtude.

A hipocrisia da sociedade está, também, personificada na figura do viscoso, untuoso, falsamente subserviente Libaninho, o homossexual não assumido, que desvia a atenção da sua verdadeira orientação sexual, usando da maledicência e apontando os “pecados” alheios.

No final, assiste-se ao encontro de Amaro, do Cónego Dias e do Conde de Ribamar debaixo da estátua de Camões, símbolo da identidade nacional. O imponente trio disserta sobre a política europeia e a situação económica do País debaixo do frio e sobranceiro olhar da estátua do Grande Autor Épico, cuja expressão quase que de desprezo, como que sublinha o acentuado declínio social e ético da nação...

Uma livro que foi vítima, para usar uma expressão de Gabriel García Márquez, “do lápis vermelho de Torquemada” ou, como quem diz, “da Censura” (in Memória das minhas Putas tristes), durante o Período do Estado-Novo e a que agora podemos ter acesso.

Uma prosa de um veneno irresistível.

Um Eça simplesmente demolidor.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, April 18, 2006

“O Aroma da Goiaba” de Plinio Apuleyo Mendoza e Gabriel García Márquez (Dom Quixote)


Um conjunto de entrevistas, realizado no início dos anos oitenta, pouco antes de o escritor colombiano ganhar o Prémio Nobel da Literatura em 1982. Uma obra que só em 2005 é publicada em Portugal.

No prefácio, o jornalista Plínio Apuleyo Mendoza fala um pouco dos motivos que o levaram a elaborar um livro como este. Para além de uma inclinação natural pela obra de Gabo, Mendoza foi irresistivelmente desafiado a entrevistar o escritor e, a posteriori, a publicar o livro, por uma aristocrata parisiense que lhe tinha sido apresentada pelo artista plástico, também de nacionalidade colombiana, Fernando Botero.

É somente depois de conseguir entrevistar o arredio autor de Cem anos de Solidão, avesso a qualquer tipo de invasão da sua vida privada, que nasce um livro escrito a quatro mãos, no qual Plinio Apuleyo Mendoza reconstrói as conversas com Gabo, abordando a vida e obra do Autor até à data.

Cerca de vinte e cinco anos depois da sua publicação, O Aroma da Goiaba é editado em Portugal, deixando de fora os bastidores da criação de obras como: O Amor nos Tempos de Cólera, De amor e de outros Demónios e Memória das minhas Putas tristes.

Apesar disso, O Aroma da Goiaba contém a essência da alma de Gabriel García Márquez: os seus valores, gostos ou preferências, a forma de se relacionar com os outros, a sua posição política bem como a relação do escritor com várias figuras políticas mediáticas, as suas raízes culturais e sociais, as referências literárias que mais o marcaram e influenciaram a sua obra.

Gabo é uma personagem fascinante, à volta da qual seria perfeitamente possível escrever um romance.

Senhor de uma profunda sensibilidade, idealista, GGM viveu duramente o período das vacas magras, anos a fio, uma vida de grandes dificuldades económicas, sobretudo durante o período em que residiu em Paris, enquanto não lhe foi possível encontrar um editor que lhe projectasse as suas obras para a ribalta.

García Márquez possui o optimismo e o calor das gentes do Caribe sendo, no seu entender, aquilo que melhor descreve e identifica o povo daquela região, o aroma exalado pela fermentação das goiabas. Gabo afirma que o perfume agridoce da goiaba a apodrecer é aquilo que melhor identifica a forma de ser e estar caribeña. Por que apesar do carácter doce dos costeños – habitantes da costa do Caribe – trata-se de pessoas que, em regra, confundem o ser e o ter. O que implica a corrupção endémica de todo um sistema económico e político. Compara ainda a pobreza sentida na América do Sul e na Europa, expressas de maneiras diferentes, quer por motivos culturais quer porque condicionadas pelo clima.

Origens e Influências

A influência da avó Tranquilina impregnou o seu imaginário das lendas índias dotando-o, ao mesmo tempo, de uma intuição fora do vulgar, que não cabe nos estreitos limites do racionalismo cartesiano.

Do avô, partidário dos ideais socialistas de Garibaldi, herdou as suas convicções políticas, a sua noção de solidariedade, à qual juntou, depois, a sua pena de escritor e jornalista como alavanca para mudar o mundo.

As suas personagens multifacetadas são construções ou montagens, que partem de traços de personalidade pertencentes a várias pessoas diferentes. Na altura, era a mãe quem melhor conseguia decifrar ou desmontar os quebra-cabeças e identificar a quem pertencia o quê em determinada personagem.

A mãe de Gabo está personificada em Santiaga de Crónica de uma Morte anunciada enquanto que a avó Tranquilina é a Úrsula de Cem anos de Solidão, segundo o próprio Autor.

García Márquez, antes de ser um escritor, é um leitor assaz eclético.

As suas obras favoritas, aquelas que mais prenderam a sua atenção e o influenciaram, vão desde os clássicos dos autores gregos, como Sófocles e Homero, até Kafka, passando por Virgínia Woolf, Faulkner, Joyce e Hemingway, este último mais nos aspectos técnicos do que no aspecto estilístico ou ideológico.

O Aroma da Goiaba termina com um pequeno inventário relativo aos gostos e preferências do Autor, uma breve referência às mulheres mais importantes da sua vida – com destaque para a avó, a mãe e a esposa, Mercedes – e a sua relação com a fama.

Um homem que, para além dos reveses da fortuna, se mantém, invariavelmente, igual a si mesmo.

Um livro-radiografia de uma das mais complexas e surpreendentes estrelas do universo literário das últimas cinco décadas.

Com o peculiar aroma dos trópicos...



Cláudia de Sousa Dias

Saturday, April 01, 2006

“A Amêndoa” de Nedjma (ASA)


Um romance erótico, de carácter autobiográfico, escrito por uma mulher árabe, originária de Marrocos, que reside, actualmente, num país do Magrebe. Com um título que, em francês (no texto original), soa a algo muito parecido com A Amante (L’Amante), A Amêndoa (L’Amande), simboliza também o órgão do prazer feminino. Um livro polémico, cujo título é, só por si, uma provocação.

A Amêndoa pretende ser um manifesto do direito das mulheres árabes à sexualidade e ao prazer, numa sociedade que nega a autonomia e a liberdade de expressão femininas, com o objectivo de controlar essa mesma sexualidade. A intenção da Autora é a de tecer uma homenagem à antiga civilização árabe, onde o desejo era livre da noção de pecado e “onde dar e receber prazer era um dever do crente”.
Por detrás do véu da repressão, a Autora mostra-nos o mundo da sensualidade perdida do Oriente ao propor-se narrar “uma estória de espírito e de carne”. E porque se trata, precisamente de uma estória de sexo e paixão, a Autora utiliza a literatura como catapulta para bombardear preconceitos e derrubar as barreiras que separam o corpo e a alma, o sagrado e o profano reconciliando, ao mesmo tempo, o erotismo, Deus e a Mulher.

A Amêndoa é desenvolvido como um diário, ao explorar as emoções e sensações da jovem Badra, induzida, em plena adolescência, a abandonar a escola e a casar com um homem muito mais velho e a quem não ama. O marido é considerado pela família um bom partido e, sendo notário, usufrui de elevado prestígio social. É, por isso, cobiçado por muitas famílias que pretendem oferecer-lhe as filhas. Isto apesar de Hmed ter já rejeitado várias esposas alegando esterilidade.

Saturada da brutalidade nas relações íntimas, levadas a cabo unicamente com o fim de proporcionar um herdeiro ao marido, a jovem decide abandonar a aldeia e refugia-se em Tânger, na casa da exuberantíssima e rebelde Tia Selma.

É em Tânger que Badra irá descobrir o caminho da sua própria sensualidade e do efeito que esta provoca no sexo oposto. Lá conhece Driss, aquele que será o seu segundo marido, depois do suicídio do seu primeiro pretendente.

Driss é médico, cardiologista, um cidadão do mundo que divide a sua existência entre Paris e Tânger.

A linguagem é ousada, provocadora, com o objectivo de destruir pudores, fazendo por vezes lembrar o discurso de Henry Miller ou de Charles Bukovski. Apesar disso, as frases estão fortemente condimentadas com a paixão, a nostalgia e a saudade, o desprezo, a mágoa, o ciúme…

É por este motivo que A Amêndoa não pode ser confundido com um manual de instruções sexuais, sendo antes a exploração de todo o espectro de emoções susceptíveis de afectar o ser humano.

Mesmo as mais recalcadas.

Mesmo as mais inconfessáveis.

Um livro que põe a nu a hipocrisia que não conhece fronteiras civilizacionais.

A não perder.

Cláudia de Sousa Dias