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Monday, August 13, 2012

“Quo Vadis?” de Henryk Sienkiewicz (Civilização)



Enquadramento Histórico e Dados Biográficos do Autor

Henryk Sienkiewicz nasceu em Wola Okrzejska, em 1846, na Polónia colonizada pelo Império Russo. Assiste à Revolta dos Segadores, no século XIX, a qual desencadeia uma violenta vaga de repressão por parte das tropas imperiais russas, na altura em que Sienkiewicz conta apenas com dezassete anos. Foi jornalista e escritor,  publicou os seus primeiros romances em jornais, tal como Camilo Castelo Branco. Quando inicia a escrita de Quo Vadis?, o Autor procura inspiração no passado histórico longínquo da Europa para dar a voz e fundamentar a razão da indignação do povo polaco, ao projectar as razões de revolta dos camponeses do século XIX no seu país, nos cristãos do século I, perseguidos por Nero e usados como bode expiatório para o incêndio de 18 de Julho de 64. O romance pretende, de forma velada, representar a revolta do povo polaco, o qual assume, na trama, a identidade dos cristãos primitivos, ao usar a religião como baluarte contra a tirania e assim defender liberdade de culto e de expressão.

De todos os romances que Sienkiewicz escreveu, apenas Sem Dogma se enquadra na situação presente vivida pelo Autor. Já a trilogia “A Ferro e Fogo” (1884); “O Dilúvio” e “Pan Wolodyjowsky” passa-se no século XVII, enquanto o romance “Kryzacy” (Cruzados) passa-se na Idade Média e incide na luta contra a invasão dos Cavaleiros Teutónicos, a pretexto do combate ao “infiel”, como precursores da hegemonia do estado prussiano na Europa Central.

Henryk Sienkiewicz morre no exílio em Vevey. O reconhecimento internacional e o Prémio Nobel da Literatura chegam-lhe em 1905, em grande parte devido ao romance Quo Vadis?, o qual tem como protagonista o Imperador Nero na Roma do século I da era cristã.

Segundo Daniel Augusto Gonçalves, autor do prefácio para a Editora Civilização, existem várias interpretações da obra. Mas DAG crê, no entanto, tratar-se da transposição da situação vivida pelo autor no século XIX na Polónia para o mundo romano, normalmente olhado como opressor relativamente às províncias colonizadas. Muitos analistas e críticos identificam as nações sob o domínio romano com esta mesma Polónia colonizada, onde o Império dos Czares, tal como o Império Romano (aliás, o Império Russo dos czares - Czar ou Tzar é a transposição para a língua Russa da palavra César ou Caesar, assim como Kaiser em alemão - era também cognominado de A Terceira Roma) espezinhava, não só próprio povo mas também as nações ocupadas.

Ainda segundo DAG, relativamente à sociedade romana, os senadores romanos da época a que se refere o romance eram considerados bajuladores do Imperador. Tal como a nobreza feudal e a alta burguesia da Polónia do século XIX eram considerados pela burguesia emergente como estando em conluio com o Império do Czar.

No romance, os cristãos perseguidos podem ser identificados com o campesinato e a pequena burguesia polaca assim como a pequena nobreza empobrecida à qual pertencia o Autor. Estas seriam as camadas sociais que sentiam na pele o aguilhão dos colonizadores russos sob a forma de pesados impostos e trabalho incansável, na maior parte das vezes de sol-a-sol, sobretudo no tocante à agricultura.

Outra hipótese de análise proposta pelo historiador tem a ver com o facto de a obra poder ser lida como um estudo do binómio tirania versus resistência. Mais concretamente, a luta pelo poder exprime-se na revolta do apóstolo Pedro e da comunidade cristã face aos desmandos do Imperador. A conspiração contra o tirano desdobra-se em duas frentes: primeiramente, através das conspirações urdidas pelo Senado; depois, a nível popular, pela difusão do cristianismo em termos ideológicos, pondo em causa os fundamentos de uma sociedade esclavagista, embora sem colocar a escravatura em causa como instituição. A queda de Séneca e Petróneo são, aqui, introduzidas em contraposição à “salvação” das almas, dentro do cristianismo enquanto organização e crença.

Os senadores são descritos por como vulgares cortesãos sedentos de poder, artífices de conspirações, especialistas na arte de adular. O Autor não deixa, apesar de tudo, de pintá-los com nuances: Séneca e Petróneo não podem ser colocados no mesmo patamar que Tigelino.
O contra-poder é representado pela organização clandestina cristã em Roma, a qual desenvolve as suas actividades, através de uma doutrinação metódica e intensiva, da adequação à vida quotidiana dos preceitos da doutrina; e, sobretudo pela convicção da posse da verdade absoluta, da qual falaremos mais adiante, e que abrirá caminho à proliferação de mártires bem como uma disposição mais ou menos generalizada dos membros da comunidade em sofrer a perseguição, tortura e morte.

Fé e História

Relativamente à relação ente estes dois elementos - a crença ou fé religiosa e os factos históricos, DAG faz notar que Sienkiewicz não se pronuncia em termos de fé: na verdade, ao longo da trama, nunca assistimos directamente a nenhum milagre. Estes fenómenos são relatados por Pedro. Mais: o Autor não avaliza as palavras do fundador da ICAR mas, faz Vinícius propagar, de boca em boca, os acontecimentos narrados peloApóstolo. Da mesma forma, não se pode classificar de milagre o salvamento de Lígia: o Autor prepara antecipadamente os leitores para uma explicação natural, já que Urso havia repetido várias vezes a mesma proeza no passado.

Trama e Personagens

A trama entretece-se com ligações entre personagens fictícias (Lígia, Vinícius, Ursus) e personagens históricas, cuja existência está oficialmente documentada (Nero, Petróneo, Tigelinus, Pedro...).
Petróneo é o símbolo de todas as virtudes, elegância e bom-gosto romano, por possuir um apurado sentido estético, que lhe dá não só a elegância refinada no vestir, sem demasiada ostentação, mas também um requintado gosto e sentido de equilíbrio que se espelha na decoração da casa, cheia de objectos de arte, fazendo questão de que cada coisa ocupe o seu lugar de forma a preservar a harmonia. Mas o sentido estético de Petróneo acaba por influenciar, também, as relações humanas, sobretudo com os seres mais frágeis. Por exemplo, este conselheiro de Nero acha de extremo mau gosto maltratar um escravo apenas para dar largas ao apetite por crueldade. Assim, de certa forma, o ideal estético em Petróneo acaba por ser projectado nas suas relações éticas: um humanismo disfarçado de uma certa frieza displicente com as classes mais vulneráveis (embora deplore a rudeza, a ignorância e a brutalidade do povo miúdo), camuflado pela exibição de uma certa ironia com a prepotência, a jactância e a soberba da tirania neroniana. Com o poder, Petróneo tem a habilidade de emoldurar as mais duras críticas no pão macio dos elogios mais adocicados. Daqui lhe advém a alcunha de “árbitro das elegâncias”. Exigente até ao extremo no cuidado físico da sua pessoa, a erudição e o requinte estão presentes em todas as áreas da sua vida e servem-lhe também de protecção, disfarçando-lhe o verdadeiro carácter o qual se revela na relação que desenvolve com a escrava Eunice. Sob uma aparente frivolidade, Petróneo disfarça as emoções, com o véu de um falso cinismo. As amáveis críticas ao imperador escondem um desejo incomensurável de Liberdade: de acção e, sobretudo, de expressão e criação artística, inclusive uma irresistível vontade de caricaturar o Imperador e outras figuras da corte. Petróneo é, sem dúvida a personagem mais importante do romance – está presente na primeira e na última cena –, a mais lúcida. O seu maior receio é, tal como o dos antigos Gregos, a Phtonos dos deuses e dos homens, isto é a Inveja, de que são alvo todos aqueles que se destacam do rebanho da mediocracia.

Nero, por seu lado, é a personagem que incarna o oposto de tudo quanto aqui foi dito acerca de Petróneo. Nero é o anti-Petróneo e Petróneo é o anti-Nero. Na verdade, Vinícius e Lígia, o par romântico da obra, são personagens que gravitam à volta deste dueto de antagonistas. E é a este par romântico a quem a figura trágica de Petróneo lega a missão de luta por uma nova ordem mundial, com o objectivo de expulsar a tirania e garantir aos cidadãos o usufruto da Liberdade. Apesar de tudo, Petróneo tem dúvidas de que a Igreja consiga manter-se ao lado dos mais frágeis como até então, a partir do momento que que atinja o poder. Daí a sua insistência em não aderir ao novo culto e em manter-se como livre pensador até ao fim. Mesmo à custa da própria vida.

O distanciamento de Petróneo contrasta também com o temperamento fogoso, passional do sobrinho, Vinícius. Esta impulsividade está patente na forma como o mesmo Vinícius planeia o rapto de Lígia, assim como no momento em que assume a clandestinidade, desafiando a vontade do Imperador, para salvá-la, primeiro do cativeiro e, depois, da arena, com a ajuda do escorregadio e venal Chilon e do fiel Ursus.

Pompónia e Aulo, o casal que adoptou Lígia, são dois aristocratas romanos recentemente convertidos ao cristianismo. Representam as ancestrais virtudes romanas, as quais para os elementos da corte, se encontram caídas em desuso.

O Fogo

O único elemento que retira alguma autenticidade ao romance tem a ver com o facto de o Autor optar por atribuir, de forma categórica, a autoria do incêndio em Roma de 18 de Julho de 64 a Nero, classicamente apontado como o principal suspeito. Na verdade, a questão é controversa. É inegável que este incêndio desencadeia na comunidade cristã de então, uma forte onda de repressão, sendo-lhe oficialmente imputada a autoria do sinistro. Mas muitos historiadores clássicos não hesitam em apontar o dedo a Nero como o principal suspeito, dado que na altura o Imperador acumulava já um forte sentimento de desconfiança e hostilidade por parte do Senado e da população, tendo em conta um vasto historial de crimes que lhe eram associados. Entre os quais, o assassinato da mãe, Agrippina, da esposa, Octavia e do irmão adoptivo, Britannicus. Sem falar na utilização despótica dos recursos, incluindo as reservas do erário público e do património material. As acusações à sua pessoa e os apupos durante cerimónia públicas eram frequentes (Suetónio) inclusive com particular incidência nos epítetos de “matricida”, “fraticida”, “assassino”, “sodomita”...
Há, no entanto, uma facção de historiadores para os quais a hipótese de ter sido Nero o autor do incêndio é pouco consistente por não considerarem exequível a tarefa como tendo sido arquitectada pelo Imperador. Isto porque a execução do plano implicava a utilização de uma logística da qual o filho de Agripina não dispunha, sem dar nas vistas. Era absolutamente necessária a disposição de um elevado contingente de recursos humanos para avançar com uma execução concertada, o que tornaria impossível que, tanto a acção como a sua autoria, conservassem um carácter hermeticamente secreto: quanto maior o número de executores materiais, maior o risco de se descobrir o plano e em se provar a culpa do Imperador, o que poderia desencadear violentas revoltas populares. Por outro lado, dificilmente o Senado (conservador), e até mesmo o Exército, poderiam ser coniventes com este tipo de acção. Este tipo de medida daria aos opositores de Nero a oportunidade ideal para derrubá-lo. Além do mais, até àquela data, o Império era religiosamente tolerante. Actualmente, a hipótese mais consensual é a de que o incêndio tenha sido acidental, resultante de uma combinação de factores ambientais: a existência de um velho e extenso aglomerado de insulae (ilhas), prédios de vários andares construídos em madeira, carunchosa e tornada ressequida, num Verão particularmente seco e numa semana em que, logo após o inferno da canícula, sopravam fortes ventos vindos do mar.

Desenvolvimento e Estrutura da Trama

Há três momentos críticos no desenvolvimento do romance: o primeiro o banquete, no Palácio de Nero; o segundo, o Incêndio, na parte velha e degradada da cidade; e o terceiro, o espectáculo das execuções massivas no Circo Máximo.
Estes três momentos da narrativa conferem ao romance, características épicas susceptíveis de o converter numa mega-produção cinematográfica. Estas características cénicas foram amplamente aproveitadas pela MGM e pelo realizador William Wilder, no período após a Segunda Guerra Mundial, no início de década de 1950, aproveitando a analogia que se poderia estabelecer entre Nero e Hitler, assim como o acontecido com os Cristãos no século I, com o Holocausto, ocorrido nos campos de concentração nazi durante a Segunda Guerra Mundial, visando os judeus. Com o filme de Wilder que tão evidente torna esta analogia, os Estados Unidos justificam, assim, uma vez mais, aos olhos do mundo, aos olhos do mundo a vitória do Aliados.

No primeiro momento épico da narrativa, o banquete, existem dois focos de interesses: num extremo do triclinium, no canto mais discreto da sala, estão Vinícius e Lígia, ocupados com as suas questões pessoais; no centro da sala, ou melhor, no segmento central do triclinium, estão Nero, Poppaea e os principais cortesãos, Tigelino e Petróneo inclusive. O Amor e o Poder são, aqui, os dois extremos do mesmo continuum. A orgia que se desencadeia após muitos litros de vinho sem água, acaba por diminuir a distância física entre Nero e os restantes convivas. O Imperador repara em Lígia, protegida por Vinícius. Esta é a primeira cena do romance no qual assistimos à movimentação de uma relativamente considerável massa humana, constituída pelas classes mais favorecidas da sociedade romana, assistidas por um exército massivo de escravos. Lígia e Vinícius fogem durante a confusão, refugiando-se num local que tem como pano de fundo um cenário diametralmente oposto ao do Palácio Imperial, onde a opulência e o excesso são substituídos por uma atmosfera de silêncio, penumbra e austeridade: o local de reunião da comunidade cristã, presidido pelo apóstolo Pedro.

Outro momento de grande movimentação de massas é, sem dúvida, a tentativa de fuga da turba dominada pelo pânico, encurralada durante o incêndio, o qual rapidamente se propaga a quatro quintos daquela cidade, que contava já com mais de um milhão de habitantes. Henrik Sienkiewicz e, posteriormente, o realizador Billy Wilder, exploraram até à exaustão o caos gerado pela fuga desordenada dos cidadãos em escaparem às chamas descontroladas, o desespero dos habitantes perante as casas em derrocada, os movimentos erráticos da população em histeria, as ruas congestionadas, a água em falta, o vento a atiçar as labaredas, as ruas cobertas pelo terror incandescente e o cheiro a carne queimada a pintar um cenário apocalíptico.

O terceiro momento de movimentação de massas acontece na plateia da arena do Circo Máximo, com a multidão a gritar enlouquecida, sedenta de sangue e a incentivar a brutalidade nas execuções, procurando desesperadamente um bode expiatório para a tragédia por ela vivida: é o momento da vingança das Erínias que pairam sobre os escombros de Roma. Segue-se uma orgia, desta vez de sangue, que jorra pela acção das armas dos gladiadores e pela acção das presas e garras da feras. Ou dos pregos das inúmeras crucificações. Neste ponto da narrativa, o leitor sente que uma sociedade que oprime desta forma os seus opositores está destinada a desaparecer, já que cresce à custa de sangue. É, sobretudo a partir daqui que surgem bolsas populares de resistência as quais buscam a sua força na crença numa vida para além da morte. Os mártires multiplicam-se, o medo da morte torna-se relativo, perante os fins a que se destina a sua própria acção, dotando a luta daqueles grupos de uma tenacidade sem precedentes. A explicação para este tipo de atitude reside num forte sentimento de pertença a uma entidade colectiva, um todo homogéneo que lhes garante perspectivas de continuidade: a consciência de que o grupo irá persistir para além do indivíduo na prossecução dos fins que justificam a sua existência.

Conclusão:

DAG é defensor da teoria de que o indivíduo isolado, o homem kantiano, como um fim em si mesmo, se torna presa fácil, mesmo que dotado de coragem e resistência, numa sociedade que não acredita em nada para além dos limites do próprio indivíduo. Dí o fim trágico de Séneca e Petróneo. O historiador pretende, assim, demonstrar que o objectivo de Sienkiewicz consistia em fazer ver que o homem, para fazer valer os seus direitos na luta contra qualquer espécie de tirania, teria forçosamente de se integrar numa colectividade que agisse como um todo, e assim equilibrar os pratos da balança do Poder. Quo Vadis? é, deste ponto de vista, a prova viva que as grandes obras de literatura universal não morrem, mantendo a voz dos seus autores viva ao longo dos séculos.

21.10.2011 – 24.07.2012
Cláudia de Sousa Dias