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Tuesday, December 22, 2009

“Romeu e Julieta” de William Shakespeare (Dom Quixote)


Inserida na primeira fase da carreira literária de William Shakespeare, a peça de teatro Romeu e Julieta inclui-se na categoria de tragédia, seguindo os cânones dos antigos clássicos, embora partindo da reconstrução de uma lenda medieval de origem veronesa.

A primeira fase do percurso literário de William Shakespeare é, essencialmente, composta por tragédias e dramas históricos. No entanto, Romeu e Julieta anuncia já um período de transição, antes do Autor enveredar pela fase das tragédias que o consagraram, tais como Hamlet, Macbeth, ou Othello.

Romeu e Julieta é um drama que incarna o arquétipo do amor juvenil. A lenda dos jovens amantes tinha já sido alvo de várias readaptações, quer sob a forma de poesia/romance quer em prosa. A inovação introduzida por Shakespeare consiste na adição de um leque de personagens secundárias a incluir Mercuccio, Benvoglio, Tebaldo e Páris, com o intuito de expandir a trama e dotá-la de consistência.

Elementos Temáticos

A dualidade entre o Bem e o Mal, presente no íntimo de várias personagens – que inspirou alguns dos membros fundadores da escola psicanalítica na construção do respectivo modelo explicativo do comportamento –, é um dos principais elementos temáticos da obra e está presente nas atitudes de várias personagens. Esta visão de Shakespeare acerca da natureza humana é proveniente da crença de que nenhum ser humano é inteiramente bom ou mau, mas uma mistura de ambos, variando apenas a proporção de cada um destes elementos.

Outra questão que é evidenciada em Romeu e Julieta, são as consequências que advêm de uma acção irreflectida ou precipitada, no momento em que as emoções estão ao rubro sem dar tempo ou lugar a um planeamento resultante de uma ponderação adequada, o que abre, normalmente, a porta à fatalidade. Esta ideia está presente em vários momentos da acção, com particular incidência nos avisos de Frei Lourenço que, ou são simplesmente ignorados ou carecem de decifração adequada.

Um outro elemento inovador na obra é a importância dada ao papel do acaso ou imprevisto a contribuir, de forma decisiva, no desenrolar dos acontecimentos e no destino das personagens. Se, por exemplo, em Sófocles, a fatalidade se abate sobre os protagonistas devido a um erro ou uma falha – o caso de Laio ou Édipo, por exemplo –, em Shakespeare e, particularmente, no caso da personagem Romeu, este só comete um deslize em função das circunstâncias, uma vez que se trata, não de uma personalidade imoderada ou dada a excessos temperamentais, mas de alguém perfeitamente consciente do perigo da ira resultantes de provocações externas. Há, aqui, consciencilização de que em sociedade “comportamento gera comportamento”. É por este motivo que Romeu tenta, a todo o custo, evitar os desacatos de Tebaldo, e aguentar a incompreensão, o desdém, o escárnio e a revolta do melhor amigo, Mercuccio. Este último intervém, reage agressivamente em defesa de Romeu e morre na contenda. Romeu é obrigado a tomar uma atitude mais drástica. A partir daqui, o azar interfere e cruza-se várias vezes no seu caminho, interpondo-se entre si e Julieta.

1. Sexo, erotismo, amor e morte

As metáforas relacionadas com amor e sexo proliferam sobretudo nos actos I e II, sob a forma de convites dissimulados, dirigidos principalmente às personagens femininas. Sendo que, na época, o pudor era uma característica muito valorizada nas mulheres, estas poderiam salvaguardar a própria reputação, fingindo não entender o significado da metáfora, caso a proposta não interessasse. Ou então, responder no mesmo tom, em linguagem cifrada, para corresponder aos avanços do amante.

Em Romeu e Julieta a fase da corte propriamente dita é suprimida em virtude de Romeu ter, acidentalmente, escutado o monólogo da jovem na varanda. A partir daí, dá-se a quebra de ambiguidade, exigida pelo protocolo e os jovens amantes passam a falar da relação propriamente dita, o que faz com que os diálogos entre ambos fluam com maior espontaneidade e intimidade, características normalmente associadas ao amor da juventude e da adolescência.
A este respeito, Shakespeare aproxima o acto erótico do estertor da morte. A seguir à morte de Tebaldo, dão-se uma série de equívocos que levam à precipitação das atitudes comandadas por “paixões incontroláveis” – sobre as quais Frei Lourenço lança várias vezes o alerta – que levam os jovens amantes à morte. Da mesma forma, na cena final, podemos identificar uma forte conotação sexual entre o punhal e o pénis, numa analogia estabelecida pelo facto de ambos terem a possibilidade de repousar “na bainha do corpo de Julieta”. O pai da jovem chega a afirmar que a filha foi “desflorada pela morte”

2. A Luz e a Escuridão

Estes dois elementos estão presentes na acção como uma forma de bipolaridade, em analogia com o Bem e o Mal, presentes ao longo de toda a peça. Ambos os protagonistas aparecem associados a elementos luminosos como o sol, a lua, as estrelas, o fogo, os raios, elementos positivos, quase sempre associados aos ideais de beleza, amor e coragem.
Como contraponto, aparecem a escuridão, as sombras, a noite, as nuvens, a neblina, o fumo…elementos que se ligam à ideia de tristeza e ódio.
Trata-se de um recurso estilístico de que se socorre o autor para descrever experiências sensoriais e estados de alma.
Ambos os protagonistas vêem um no outro a luz – o amor – a emergir do meio da escuridão – o ódio – que envolve ambos os clãs.
À medida que o drama se desenrola, verifica-se esta mesma correspondência entre claro/escuro, amor/ódio, juventude e maturidade ou velhice a denunciar um clima de conflito não só entre famílias mas também geracional. A geração mais jovem e progressista, representada por Romeu e Julieta, defende o direito à livre escolha dos afectos, em oposição ao interesse da geração mais velha. O amor entre ambos brilha, parecendo arder como uma chama no meio do abismo “negro” do ódio.
Shakespeare recorre à técnica da ironia dramática e ao paradoxo ao permitir que a ira entre os parentes mais próximos, que são as personagens secundárias, escureça a luz do amor espontâneo que pudessem vir a sentir.

3. O tempo

O elemento tempo vem, também, reforçar a mesma dicotomia. As referências de curto prazo são sempre dirigidas aos jovens amantes, enquanto as de longo prazo referem-se, quase sempre, à geração mais velha.
Romeu e Julieta tentam manter, preservar o seu próprio mundo imaginário no quarto de Julieta e prolongar o momento o mais possível. Pela mesma razão, a jovem insiste em ouvir o rouxinol, que canta à noite, e não a cotovia, que canta à alvorada. É a tentativa de parar o tempo, sabendo que este está prestes a esgotar-se e como que adivinhando que não se irá repetir.

Estrutura Dramática

A peça está dividida em cinco actos onde a mestria do autor revela-se na construção da acção pela alternância de momentos de reflexão e acção com a passagem rápida e intermitente de situações que envolvem o género cómico, lírico e dramático. Esta mesma alternância confere um dinamismo trepidante ao texto e à visualização da acção, sobretudo quando levada a cena e que se torna particularmente notória em algumas produções cinematográficas como a de Buzz Luhrmann, protagonizada por Leonardo DiCaprio e Claire Danes. O objectivo é manter a atenção do espectador e, simultaneamente, aliviar a tensão quando esta ameaça tornar-se insuportável.


O primeiro acto inicia-se com o diálogo entre os criados de ambas as famílias, marcando as hostilidades que são o reflexo da rivalidade existente entre os patrões.
Numa primeira fase, Romeu declara-se apaixonado pela pudica Rosalina, a qual pretende entrar para um convento. O acaso faz com que intercepte a mensagem que dois criados iletrados do patriarca Capuletto não conseguem decifrar. Romeu fica assim a saber que os Capuletto darão um baile onde poderá estar Rosalina. Decide, por isso, infiltrar-se na festa para ter uma oportunidade de cortejar o seu ídolo amoroso.
Durante o baile, conhece Julieta e o curso dos acontecimentos sofre o primeiro ponto de inflexão, quando o jovem é assaltado por um fulminante amor à primeira vista. Este momento da acção é marcado pela presença da lírica tipicamente shakespeariana a substituir a lírica tradicional, inspirada em Petrarca, que Romeu utilizava quando se referia a Rosalina (hipérboles, figuras mitológicas…).

No acto II, dá-se o encontro dos dois amantes na varanda do quarto de Julieta, onde trocam juras de amor. O acto termina com o casamento secreto de ambos, coadjuvados pela Ama e pelo Frei Lourenço.


No acto III, Romeu é desafiado por Tebaldo, à saída da igreja, para um duelo. Mercuccio intercede pelo amigo e morre. Romeu aceita o desafio e mata Tebaldo. A partir de então, instala-se o clima de guerra aberta entre as duas famílias. Romeu foge e é condenado pelo Príncipe ao exílio. À noite, esgueira-se para o quarto de Julieta, onde é consumado o casamento. É no entanto, a última vez que se vêem com vida. A alcova torna-se a antecâmara da morte.

No acto IV, os Capuletti não medem esforços para apressar o casamento de Julieta e Páris. Trata-se de uma união que visa satisfazer os interesses de ambas as famílias. Julieta recusa obedecer e enfrenta as ameaças do pai. Finge, no entanto, capitular para ganhar tempo. Conta com a ajuda da Ama e frei Lourenço. Este último traça um complicado plano com o objectivo de preparar a fuga do jovem casal. O plano tem, no entanto, várias falhas. Sobretudo peca pelo excesso de intermediários. E, também, por não contar com o imprevisto ao deixar Julieta sozinha num momento crucial, o que desencadeia a tragédia.


No acto V, a mensagem escrita de Frei Lourenço, dirigida a Romeu, não chega ao destinatário, mas as más notícias sim. A seguir ocorrem uma série de equívocos que levam à precipitação e a atitudes desesperadas e extremistas levadas pelas ditas “paixões incontroláveis”.
A última cena, à laia de epílogo, mostra Capuletos e Montéquios a estabelecer uma trégua em memória dos filhos. Ao longo de toda a acção, a autoridade do Príncipe revela-se ineficaz face ao clima de ódio, inveja, avidez e desejo de poder, acumulados de ambos os lados dos contendores.

Técnicas Dramáticas: Comedia X Tragédia

Antes da morte de Mercuccio, no acto III, a tónica da acção incide, maioritariamente na comédia, nos diálogos entre os criados com os apartes da ama e as provocações dos amigos e jovens, parentes de Romeu. A acção só adquire as nuances dramáticas a partir do momento em que a gravidade das atitudes das personagens atinge o ponto culminante, com as mortes de Mercuccio e Tebaldo. Este é o segundo ponto de inflexão, presente na acção dramática, a partir da qual a probabilidade de ocorrer a fatalidade cresce a uma velocidade galopante, apertando o cerco à volta dos jovens amantes.


Numa fase inicial, Romeu é exilado e não morto, após ter ferido mortalmente Tebaldo no duelo – o Príncipe tem em conta os atenuantes – o que permite subsistir alguma esperança nos espectadores/leitores de que o jovem casal se junte no fim. Esta esperança é sustentada pela acção dos coadjuvantes. A mesma esperança é o elemento que abre as portas à imprevisibilidade. Enquanto dura, todas as possibilidades estão em aberto.

As mudanças de estado emocional, desencadeadas nos espectadores, conferem o dinamismo necessário à acção, alternando o estado de esperança e desespero, indulgência e novamente esperança, antes da desilusão final.


A existência de enredos secundários tem o intuito de clarificar as acções das personagens principais. Por exemplo: a paixão inicial de Romeu por Rosalina – amor formal – permite ao leitor/espectador estabelecer o contraponto entre o amor de Romeu por aquele e, depois, por Julieta. Por outro lado, o desamor desta por Paris é expresso pela formalidade com que esta se lhe dirige, em oposição ao ardente discurso que utiliza nos diálogos com Romeu.

O Autor utilizou diferentes formas do discurso poético, de acordo com o estatuto e o papel das diferentes personagens. O prólogo, por exemplo, consiste numa introdução de 14 linhas sob a forma de soneto shakespeariano, onde um coro ou corifeu, à semelhança do que acontece nas peças clássicas, descreve o cenário ou clima social em que se desenvolve a acção e as atitudes das personagens. Já o diálogo entre Romeu e Julieta expressa-se sob a forma de versos brancos, pentâmetros jâmbicos e, portanto, com ritmo marcado e métrica precisa.
Nas falas de Frei Lourenço, William Shakespeare utiliza o sermão, de acordo com o perfil da personagem. Para a Ama, escolhe novamente os versos brancos e, também, a fala coloquial brejeira, recorrendo aos trocadilhos, sobretudo de carácter sexual, ao referir-se à noite de núpcias de Romeu e Julieta, recorrendo a uma linguagem mais rude para se dirigir aos seus pares.

Para Romeu, jovem culto e aristocrata, utiliza, inicialmente, o soneto de inspiração petrarquiana – recorre à metáfora e a elementos temáticos retirados dos clássicos –, a linguagem cortês do período isabelino, que naquela época começava a cair em desuso, é dirigida a Rosalina. Para falar com Julieta, Romeu substitui o soneto petrarquiano pelo shakespeariano ao abandonar a linguagem formal, algo pretensiosa e arcaica, para adoptar um discurso mais espontâneo e próximo da realidade da namorada. Com ela, utiliza metáforas de inspiração bíblica, ligadas à religião, como “peregrino” e “santa”.

Julieta fala, frequentemente, por monossílabos, recorrendo muitas vezes ao epitálamo.

Mercuccio utiliza a rapsódia, para descrever as lendas associadas à rainha Mab e à explicação dos sonhos, numa narrativa cheia de onirismo e Páris a elegia, diante do túmulo de Julieta. As personagens do povo exprimem-se numa linguagem caracterizada pelo prosaísmo. Em Mercuccio e na Ama deparamo-nos, com frequência, com trocadilhos de natureza sexual.
Segundo Júlia Kristeva, “do ódio entre ambas as famílias nasce o clima propício à paixão, envolvendo um véu de secretismo que cobre a relação dos amantes”.
Há quem pense, também, que a tragédia de Romeu e Julieta é a projecção do luto do Autor pela morte do filho, Hamnet.

Identidade de Género

A ambiguidade que envolve algumas das personagens, como Mercuccio e Benvoglio, no que respeita à identidade de género é outro elemento que marca uma forte presença neste drama de Shakespeare.

Em ambas as personagens está patente, quer pelo comportamento quer pelos diálogos, uma certa ambiguidade sexual, com pendor tendencialmente homossexual. Um dos principais méritos de Shakespeare é a percepção de que a identidade sexual é sobretudo uma construção social, muito antes do surgimento da Psicologia e, principalmente, do construtivismo. Daí a forte ambiguidade sexual nas frases de Mercuccio dirigidas a Romeu.

Intertextualidades

A maior parte das influências literárias que encontramos em Shakespeare provêm, sobretudo dos clássicos, como as Metamorfoses de Ovídio, a história de Príamo e Tisbe, amantes na antiguidde, provenientes de famílias reais, d’ Os Contos Efésios de Xenofonte, datado de meados do século III, onde se dá uma separação drástica dos dois amantes, das diferentes versões da lenda dos amantes de Verona, incluindo o Decameron de Boccaccio, entre outros…

William Shakespeare é, para muitos, um Autor visionário, com uma capacidade superior de entendimento da natureza humana e destituído de preconceitos de índole moral, sexual e religiosa, o que faz dele um Autor universal e intemporal.


Cláudia de Sousa Dias

Nota: os dados históricos e biográficos foram pesquisados através da Wikipédia

Monday, December 14, 2009

“O Pássaro Espectador” de Wallace Stegner (Teorema)




Filho de imigrantes escandinavos nos EUA, Wallace Stegner nasceu no Iowa em 1909. Formou-se na Universidade do Utah, em 1930, tendo-se doutorado cinco anos depois pela Universidade do Iowa. Professor de literatura nas Universidades do Wisconsin, Harvard e Stanford onde dirigiu o Creative Writing Center desde 1948 até 1971, altura da sua jubilação. Faleceu em 1993, em Santa Fé, no Novo México.

Wallace Stegner iniciou a carreira literária em 1937, com o romance
Remembering Laughter e ganhou o Prémio Pulitzer com Angle of Repose. O livro de que aqui tratamos, O Pássaro Espectador obteve o National Book Award, em 1977.

A trama de O Pássaro Espectador consiste no dia-a-dia de um agente literário reformado, imbuído da nostalgia da juventude e da angústia causada pelo envelhecimento e consequente degradação física e ampliada pela dos entes queridos e pessoas com quem partilha o quotidiano.

O protagonista, Joe Allston é uma pessoa não propriamente de trato fácil, um pouco solitário, algo misantropo, que oculta uma extrema sensibilidade por detrás da máscara de frieza e ironia. A isto junta-se um gosto estético exigente, depurado e avesso a exageros, o que faz dele um crítico exigente nas lides literárias.
Implacável e dotado da mesma inteligência, tradicionalmente atribuída à ave nocturna que o inspira a olhar para a vida com a postura de um “pássaro espectador” - o bufo real, companheiro de Athena, a ave que representa o conhecimento.

Um dia, ao encontrar um postal de alguém que conheceu durante uma viagem á terra dos seus pais, na Dinamarca, Allston decide procurar o diário que escreveu durante a referida estadia e, assim desenterrar gradualmente um passado que é ilumina e reinterpreta à luz do presente, colocando-se como espectador diante do filme da própria vida.

A viagem à Dinamarca ocorre nos anos 1960, altura em que Joe e a esposa, Ruth, entram na meia-idade. Durante a mesma viagem, o então agente literário aproveita para visitar a aldeia de onde a mãe é originária, antes de emigrar para os Estados Unidos.
Joe começa por visitar Copenhaga onde conhece a condessa Astrid, prima de Karen Blixen, cuja família é detentora de propriedades na aldeia onde viveu a mãe de Joe.

Localização Espacio-temporal

O texto de O Pássaro Espectador tem dois tempos e dois locais de acção. O primeiro, é o tempo presente e passa-se nos Estados Unidos, na segunda metade dos anos setenta, durante o qual o protagonista enfrenta os limites impostos pela rotina da vida de reformado. O segundo tempo narrativo passa-se mais de dez anos antes, na Dinamarca.

Este segundo tempo e consequente localização espacial advêm da leitura do diário por Joe, a pedido de Ruth. Joe lê uma parte da própria vida como se fosse uma história, um filme, olhando para o narrador/autor do diário que é ele próprio, como se se tratasse de um personagem fora de si mesmo, isto é, assumindo o papel de espectador. Esta atitude só se torna possível devido a este desfasamento temporal.

Personagens

Joe é agente literário de profissão unicamente porque as necessidades do quotidiano o obrigaram a seguir uma profissão que lhe permitisse ganhar dinheiro, ao invés de seguir a vocação.
A esposa, Ruth, é uma mulher generosa, afável, mas algo puritana, que encara o dever de auxiliar os outros como uma missão no que respeita ao trabalho de entretenimento levado a cabo com idosos e doentes terminais. A Joe, esse espírito missionário não o seduz e as tarefas associadas a este tipo de actividade deixam-no em estado de depressão iminente. Ruth é uma mulher de convicções fortes, gosta de esclarecer, esmiuçar as questões até ao âmago, por mais desagradáveis que se lhe afigurem, ao passo que Joe sente-se confortável ao reservar uma parte do seu eu para si mesmo – um quarto ou uma ala do palácio que é a própria afectividade, ou uma parcela do ego secreto a que só ele tenha acesso.
Esta luta entre ambos é a força motriz que impele o desenvolvimento do romance: o choque de duas vontades opostas.

A condessa Astrid Roddig

Uma intrusa amável, bela e misteriosa. A beleza advém-lhe dos genes escandinavos que lhe conferem a aparência da beleza clássica das lendárias fadas e feiticeiras, a par da distinção que lhe é transmitida pela via da cultura inerente a uma das mais antigas e tradicionais famílias da Dinamarca. Já a aura de mistério que a rodeia poderá estar relacionada com a atitude esquiva e algo segregadora que parecem adoptar aqueles que a conhecem de alguma forma. Parece haver, também, algo de intrigante na complicada trama das relações familiares de Astrid, o que, indirectamente, acabará por se estender à família do próprio Allston.

O Conde Eigil Roddig

Egil Roddig, o irmão maldito da família de Astrid causa em Allston o efeito clássico da primeira impressão: o primeiro impacto é negativo, fruto da extrema arrogância de Roddig, impressa no tom de voz, que dirige aos outros como se fosse o dono do mundo. Pouco depois, parte dessa primeira impressão desfaz-se ou desvanece-se. Allston admira o desembaraço, a visão, o espírito empreendedor e a ambição do aristocrata. No entanto, apercebe-se de algumas marcas ideológicas no seu discurso que se opõem esta impressão favorável: um interesse desmedido pelo aperfeiçoamento genético da espécie humana, o apreço pelas teorias raciais da história – as quais já há mais de uma década haviam sido refutadas. A estes indícios junta-se uma evidente tendência para a formulação de ideias e projectos de grande magnitude, por vezes a roçar a megalomania e uma certa falta de humanidade, a raiar o desrespeito pela espécie humana e, simultaneamente, uma evidente observância de uma ética muito ao estilo Göeringiano.


Referências Literárias

A obra O Pássaro Espectador comporta inúmeras referências literárias e intertextualidades, desde o imperador Marco Aurélio ao polémico Nikos Kazantzakis, do qual faz uma enigmática e sibilina citação que consegue despertar o interesse de Ruth: “Amaldiçoado será aquele cuja sede for saciada”. Esta sede representa a curiosidade que precipita a descoberta e a desilusão, confirmadas por outra citação que se lhe segue: “ o arrependimento e a culpa são emoções secretas e egoísticas”, o que dá consistência e corpo a esta linha de desenvolvimento.

A Passagem do tempo e a noção de irreversibilidade: a irrecuperabilidade do tempo e das oportunidades perdidas

Estas são as duas principais componentes que sobressaem em ambas as narrativas, que formam o romance na sua totalidade. O primeiro elemento está patente na referência constante aos sinais de envelhecimento, ao qual está implícito um certo grau de conformismo, frustração e recalcamento, eivados de estoicismo.
Com o outro elemento, a perda de oportunidades a que se vê obrigado alguém que tem de ignorar a própria vocação em prol da sobrevivência, sucede algo parecido. E também, da mesma forma, com o amor, onde à amada se afiguram mais urgentes as obrigações familiares do que a procura de outros lugares onde assentar raízes e desenvolver em pleno o seu potencial.

Há, no início do romance, uma personagem que afirma em relação ao desenvolvimento das doenças, que o tempo não as deixa atingir o seu potencial máximo, encarregando-se de exterminar os seus portadores. Acaba por concluir que com o potencial de desenvolvimento das pessoas sucede exactamente o mesmo. A morte faz a sua colheita antes que esse fenómeno ocorra.

John opta assim por, durante muitos anos, ocupar-se da escrita dos outros, muitas vezes de escritores medíocres ao invés de escrever os seus próprios livros. A submissão a um emprego sofrivelmente remunerado, acaba por atirá-lo, quase no fim da vida, para uma situação de relativa degradação económica e, simultaneamente, para um casamento estável, seguro e desapaixonado.

A escritora Karen Blixen, aparece como personagem na segunda narrativa. Desempenha o papel de sibila ou fada, numa casa semi-escondida no meio de um bosque de faias, cuja luz verde e dourada faz lembrar um eclipse, noites brancas, instantes recheados de magia...

Parecia não ter marcas no rosto e os seus olhos eram como que grandes demais para o rosto. Uma cara de pássaro...”
“... a casa de campo, herdada e provavelmente repleta de amores perdidos crimes e sussurros do passado que ela transcrevia para as suas histórias.” “O que é isto?”; “Isto? Isto é a segurança.” Deste breve diálogo pode-se depreender que Karen e Joe são igualmente pássaros espectadores que, um dia, decidiram trocar o protagonismo e a liberdade pelos bastidores e o anonimato.
“Karen é uma bruxa, feiticeira; (...) a condessa, Lorelei, mas nem por isso menos vidente”.

Nas palavras de Karen está a chave do romance, que nos surge como um castelo com várias salas secretas que se vão desvendando página a página.
Para Karen, “o mal se existe não é feio como um sapo. Muitas vezes é até mais bonito do que aquilo que as pessoas referem como bom. Isto é, pode ser extremamente sedutor. Daí as pessoas sucumbirem”.

A personagem que incarna o mal no romance é, sem dúvida, o irmão de Astrid. Segundo as palavras de Karen, “A verdade é que Eigil nunca poderia ser desinteressante ainda que tentasse. Se o conhecerem pode ser que o achem fascinante.”
Karen escolhe a vida tranquila e segura na Dinamarca, abandonando o continente que ama: África. No entanto, a Europa fá-la sentir-se “enferrujar, sem brilho, quando o que desejava era sentir-se brilhante e utilitária (…). A segurança é uma faca de dois gumes”. Karen dentro do humor cáustico que caracteriza o seu discurso, chama de “cotovelos” aos americanos, devido à forma arrogante como arrumam os adversários “como quem dá cotoveladas”.

Mas para o protagonista, a ferida maior será talvez a dor da perda do filho, obcecado com o radicalismo da contracultura beatnick do final dos anos 1960, cuja morte deixa em Joe, mais uma vez, a sensação de uma oportunidade que se esvaiu e a sensação da irrecuperabilidade. Daí a necessidade de viajar até à Dinamarca, a terra onde o filho perdeu oi que restava da própria lucidez…
Em relação aos outros escritores, Joe Allston estabelece com eles uma relação de impiedosa crítica em relação à superficialidade e ao uso e abuso de conteúdos sexuais. (A negação, por parte do autor, da ideologia mórmon, de que fazia parte a sua própria família que se traduz na projecção deste modelo de estrutura familiar, transposta para uma das famílias europeias na segunda narrativa do romance?). A descrição desta segunda trama é, toda ela, feita sem recorrer a juízos de valor, mas nota-se que o protagonista de afasta, de forma deliberada, daquele modelo ou estilo de vida. Na escrita, Allston demonstra uma clara aversão pela utilização do sexo como forma de exibicionismo e satisfação dos objectivos do mercado, direccionados para o lucro imediato. Sobretudo, pelo facto de este tipo de escrita excluir as faixas etárias mais idosas e sexualmente menos activas.

A leitura final do diário de John Allston constitui o climax do romance preenchendo, assim, as expectativas lançadas no início pela frase de Kazantzakis, uma vez que Ruth insiste em não deixar um único recanto da alma de Joe na obscuridade.
Joe demonstra ser o pássaro espectador que jamais deixa de ser a ave nocturna que voa das trevas para a luz, contempla a paisagem e regressa às trevas na mais completa solidão; à terra das bruxas e das fadas, do sol da meia-noite, deslumbrante e belo a lembrar a vida àqueles que já não a têm para despertar o desejo da chegada da Grande Ceifeira.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, December 02, 2009

“Lavagante”de José Cardoso Pires (Ed. Nelson Matos)




Por altura do décimo ano do falecimento do Autor, a editora Nelson Matos decidiu, de comum acordo com a família, publicar um texto inédito, o qual existia somente em algumas versões manuscritas ou dactilografadas, do qual o presente texto seria a versão mais recente. Escrito entre 1962 e 1968, o texto sofreu alterações, saindo apenas da obscuridade meio século depois de se verificarem os acontecimentos mencionados no romance.

O local da acção

O cenário onde se desenrola a primeira parte da história tem o sabor do relato de uma notícia ou uma crónica com um cheirinho de investigação policial. A primeira cena decorre no bar de praia A Lanterna, situado na margem sul do Tejo. A narrativa está a cargo de alguém que possui o dom de manter uma aura de mistério à volta das personagens, cuja neblina vai conseguindo dissipar, gradualmente, por camadas. Por último, a narração dos acontecimentos é acompanhada pelas mais saborosas iguarias, apreciadas pelo exímio gourmet e enólogo que é o narrador.

A localização temporal adivinha-se pelas condições meteorológicas – o pino do Verão – e pela indumentária dos transeuntes, que trazem roupas e acessórios de praia. Está-se no final de Julho de 1962, os que vem enquadrar a trama nos factos históricos de que falaremos mais adiante.

À mesa do bar A Lanterna estão sentados o narrador e o jornalista, a conversar, de forma simultaneamente casual e compenetrada, envolvendo também o barman, de ouvido atento, diligente e prestável como só se faz aos clientes assíduos e com quem se estabelece uma prolongada e gradual camaradagem.

O jornalista e o narrador observam os transeuntes, sendo o primeiro aquele que se atreve a comentar, de uma forma velada, a situação política da época e o fenómeno abjecto da delação, ao lançar uma observação aparentemente inocente acerca dos hábitos dos veraneantes:

“As pessoas devoram-se umas às outras, só se preocupam com o próprio umbigo”.

É a partir desta observação que se estabelece a linha orientadora do romance. A partir desta frase introdutória e aparentemente casual, o jornalista passa a comentar as dificuldades da profissão, o próprio acto de escrever como actividade viciada, condicionada. O tom é sarcástico quando refere que é a Censura quem escreve pela mão dos jornalistas guiando-os sem permitir o mais pequeno desvio: “Quem sabe escrever amanhã quando a censura acabar?”. À mesa, onde se serve espadarte fumado, está exposta a cegueira provocada pela ignorância que grassa num país onde, a mão de quem escreve, treme e escreve com medo.

A metáfora do Lavagante

“É mais saboroso que a lagosta e parece mais selvagem porque não se adapta tão bem aos viveiros”. A frase é do barman d’A Lanterna. Para o narrador, porém, a conotação psicológica associada a este animal é bastante mais sinistra: “um animal de tenebrosa memória, paciente e obstinado, e terrível nos seus desígnios”.
Nesta frase, está implícita a caracterização do Engenheiro Sapo, o grande vilão deste romance em forma de narrativa, membro da polícia política. A sua conotação com o lavagante advém da forma insidiosa como atrai as presas para a armadilha: alimentando-as dentro de um buraco até que estas estejam tão gordas que já não conseguem sair, altura em que se prepara, então para as devorar. No fundo, tem o mesmo procedimento da bruxa da estória de Hansel e Gretel. Tanto o engenheiro sapo como a bruxa do conto dos Irmãos Grimm são ambos lavagantes, uma vez que possuem a mesma capacidade de premeditação do animal que engorda e alimenta a presa, atraindo-a simultaneamente para uma situação que a expõe aos perigo e a coloca em situação vulnerável e da qual só se apercebe quando é tarde demais para escapar.

Cecília, a lavagante fêmea ou a síndrome de Estocolmo

A principal personagem feminina da trama é uma estudante de arquitectura, usada como isco pelo Lavagante Maior: o engenheiro sapo, membro de elite da PIDE, caçador dos opositores à ideologia do regime que, então, ocupava o poder. A lavagante fêmea será usada pelo lavagante macho para capturar o safio, o médico que colabora com os detractores do regime colocando o exercício da profissão acima das conveniências políticas. Trata-se de Daniel Lobo cujo ego é, durante largas semanas, engordado pela atenção de uma mulher invulgarmente atraente.

A descrição e análise detalhadas dos gestos e comportamentos de Cecília pelo narrador assemelham-se ao estudo de um etólogo que observa os movimentos de um animal selvagem no seu habitat, dissecando-os. Como na cena em que a jovem entra no bar, acompanhada pelo Sapo – como boa princesa que se preze, extraída dos contos de fadas – “Também não se chegou demasiado ao companheiro, como fazem as mulheres quando pretendem afugentar qualquer presença inesperada, qualquer recordação”. Na realidade, esta parece tratar-se de uma relação fria , norteada apenas por uma simbiótica troca de interesses de parte a parte, fazendo suspeitar ser esta figura dona de uma personalidade fria, calculista e bastante interesseira, pela ausência de ostentação de qualquer ponta de embaraço pelo sucedido nos últimos meses.

O comportamento frívolo de Cecília cria um forte contraste com a perturbação do jornalista, amigo de Daniel: Tinha (...) um rosto soberano e quase frio; e os olhos pintados , só os olhos (…) - “Cabra”.

Em relação ao companheiro – o Sapo – o retrato (e a alcunha) é inequívoco: "Temos presentes as suas ameaças aos microfones na época das eleições e as rusgas que o tornaram célebre". O narrador termina a primeira parte do relato na altura em que o sol se aproxima do horizonte e o vinho tinto velho é servido pelo barman, dois factores que proporcionam um ambiente que convida a confidências.

2ª parte - a história de Daniel Lobo

Uma semana após a conversa com o jornalista é a vez do médico, Daniel Lobo, recém-saído da prisão, ir ter à Lanterna onde conversa também com o narrador.

Após a saída do médico, o barman comenta discretamente com os dois companheiros da mesa a relação de Daniel com Cecília, comparando-o a Pigmalião, por ter tentado aperfeiçoar a sua musa em termos ideológicos. Daniel é Pigmalião apenas por tentar moldar a mulher amada à semelhança de um mito, um ideal, um arquétipo de intelectualidade. Ao visitar a Lanterna, encontra os seus amigos à mesa. Junta-se a eles e, então inicia, na primeira pessoa, o relato da história do seu relacionamento com Cecília.

Retrato Físico e Psicológico de Cecília

A mulher que consegue seduzir Daniel Lobo tem a aparência típica de uma mulher do Norte de Portugal , de entre Douro e Minho. Cecília parece exibir o aspecto físico de das antigas mulheres celtas, atendendo à descrição do jovem médico:

Exemplar celta. A Cecília vem de uma família de camponeses próximos do mar de uma região do Norte habitada pelos celtas...” (…) cabelo claro busto pequeno em relação às coxas, que são longas e possantes, pernas e pés sólidos (herdados de camponeses habituados a cobrir descalços grandes distâncias arenosas). E, para terminar uma fria altivez, dominando um corpo vivaz. “Cavalo de cem moedas”, chamavam noutros tempos à avó dela e a expressão era a de marchantes determinados que tinham batido todas as feiras e vilas (…). A sua herança foi essa. A sua raça partiu de camponeses da planície e de “cavalos de cem moedas”, passada agora a um apuramento de cidade”.

Cecília encontra-se, na época em que conhece Daniel Lobo, em Lisboa, matriculada na faculdade de Arquitectura, para poder continuar a fazer uma vida liberal na cidade e, ao mesmo tempo, usufruir de uma confortável mesada dos pais. Cecília leva uma vida dupla, em virtude de uma educação conservadora, que condena a sexualidade fora do casamento. No entanto, anseia por um estilo de vida liberal, o que faz com que se sinta compelida a esconder dos seus os hábito que pratica na cidade.
Trata-se de uma jovem culta, ou que, pelo menos tem acesso à oferta cultural fora do mainstream da época. Um facto que se torna evidente quando refere Bergman, Visconti, Sam Fuller, James Joyce ou Henry Miller, em conversa com Daniel. O isco perfeito para caçar revolucionários.

Há, ao longo de toda a trama, no que toca ao envolvimento desta personagem feminina, uma constante duplicidade (ou falsidade), tal como no lavagante um aspecto que parece abarcar todas as dimensões do seu carácter. Uma ambiguidade sinistra que se torna patente até mesmo na dedicatória que escreve no livro oferecido a Daniel, à laia de aviso:

É necessário cometer amiúde algumas imprudências, mas convém que sejam devidamente calculadas (Napoleão). Lembranças de Cecília

No que toca ao comportamento, Daniel é o primeiro a detectar alguma arrogância nas atitudes da jovem, nomeadamente na forma como o aborda pela primeira vez, ao transformar pedidos em ordens.

Daniel consegue, também, detectar alguns sinais de desajustamento social, patentes na forma como lhe tremem as mãos, que suam com facilidade.
A maturidade corporal comporta também algumas contradições: “Mão adulta, face adolescente. Cecília tinha o corpo marcado pela indecisão, apesar do tronco bem definido e da firmeza do andar que, esse sim, era acabado, tranquilo e sem a autoridade voluntária com que se deslocam as jovens.”

Noiva de um militar, embora por um curto período de tempo, Cecília revela, ao abordar Daniel pela primeira vez, mais um aspecto do seu carácter enganador: Cecília aprecia o noivo como um objecto sexual, um mero animal de prazer, quando faz notar que “possui um belo corpo”. No entanto, faz questão de deixar claro que não o admira. Também a distância, entre o lugar onde supostamente estuda e o local de residência do namorado favorecem a camuflagem de que necessita para fazer a vida que deseja:

... era uma vantagem para uma jovem que precisa da liberdade e protecção aos olhos dos pais para a sua liberdade.

O terceiro momento da narrativa: o alpendre na casa de praia

O clima que envolve o cenário onde se insere o relato dos acontecimentos que levaram ao desfecho da acção muda ligeiramente ao passar d’ A Lanterna para o alpendre da casa de praia, para onde se retiram as personagens/expectadores – um ambiente mais intimista, tranquilo e onde as paredes não tenham ouvidos.
É lá que Daniel se sente à vontade para recuar dois meses na sua vida e relatar, com todos os detalhes, aos amigos o sucedido na madrugada de 2 e Maio de 1962.

A dificuldade de reconstrução de um episódio tão conturbado tem, para Daniel, uma semelhança muito próxima com a impressão que lhe é transmitida pelos farolins de um carro em noite de nevoeiro. Daniel crê que a memória é a capacidade de aprisionamento de momentos dispersos, capturados pelo flash da máquina fotográfica cerebral. Para Daniel, esses momentos “existem mas levantam-se e desaparecem ao sabor das ondulações”- Tal como os sinais emitidos pelo farol aos navios no meio do nevoeiro. A partir daí, será função da memória a tarefa de recriar, ligar e “traçar o desenho exacto de um cerco de pesca”. E “Cecília é um punhado de instantes luminosos”. Durante os encontros com Daniel, a curiosidade deste acerca da jovem aumenta com a percepção do perigo e os diálogos incidem sempre em assuntos que possam suscitar o interesse do médico.

A referência ao Sapo e à relação de Cecília com o elemento da polícia política é também aflorada numa destes diálogos: o Sapo conhecia-a desde pequena, era íntimo da casa e insinuava-se sub-repticiamente.

A relação de Cecília com o lavagante Maior é, como já foi dito, a de uma cómoda simbiose, onde se verifica um certa tendência para a síndrome de Estocolmo, isto é, o sentimento expresso de alguma simpatia e benevolência em relação ao abusador: “Sim, tenho ouvido dizer coisas dele. Mas a mim diverte-me. Tem uma bela casa, um yatch, dois carros...Para uma pessoa, quando está chateada é mais do que o suficiente. E depois é inofensivo. Ou quase. Trata-me por “menina”, como quando andou comigo ao colo, em casa do meu pai. Acho que isso o excita. Mas vai à cautela...”. A atitude de Cecília para com o protector, típica de uma acompanhante de luxo. Por outro lado, verifica-se uma contradição entre a cultura exibida e a superficialidade demonstrada no que toca à hierarquia de valores e compreensão da natureza humana.

Cecília, a mulher que se olha ao espelho

Cecília tem o hábito de usar o espelho nos lugares públicos para verificar a postura. Para Daniel Lobo, este tipo de mulher, “ A mulher que se olha ao espelho é aquela que está permanentemente diante de si mesma. O pavor do ridículo(...) origina(...) uma incapacidade de se entregar cujas consequências são, por vezes, dolorosas. A mulher que se olha ao espelho preza-se demasiado (ama-se é o termo) para conseguir deixar de se estudar nas circunstâncias mais adversas e procura compensar as suas quebras de autoridade com uma crítica impiedosa das situações absurdas”.


Cecília está continuamente preocupada com a imagem ou a camuflagem da sua verdadeira personalidade. Deseja ser uma mulher emancipada, livre, como as mais progressistas feministas do século XX. No entanto, precisa de se mostrar no pequeno mundo da povoação onde vivem os pais, como uma mulher tradicional, a virgem à espera de ser desflorada na noite de núpcias. Por isso, consulta Daniel e quer saber tudo sobre himenorrafia, ou seja, a reconstituição/sutura do hímen. Trata-se de satisfazer a vaidade de um noivo que, provavelmente não vai gostar de se saber comparado com alguém tido, possivelmente, como melhor amante. Daniel volta a observar novamente as mãos de Cecília, adultas e amadurecidas em relação ao resto do corpo. O jovem vê nas mãos “o prolongamento da intimidade, memória de um corpo, retido em cinco dedos esguios e trémulos”. Ao compará-las, então, com as próprias mãos chega à conclusão da incompatibilidade entre ambos. As mãos de Daniel são “um nó sensível com que se pode medir o cansaço, a indiferença, a idade, o amor”.

Também o Autor atribui às mãos o veículo máximo de expressividade, logo a seguir ao olhar.
Pode-se ainda considerar uma marca da genialidade do mesmo Autor o enquadramento das atitudes e gestos das personagens principais tanto nos acontecimentos históricos da época, a anunciar aquilo que se irá passar cerca de doze anos depois (espírito visionário) , com o 25 de Abril de 1974. Exemplo disso, é a momento em que o casal se detém na baixa a admirar a desenvoltura com que as mãos da vendedora de flores sacam os cravos vermelhos do molho, “com graça de bailarina”, precisamente no dia da prisão de Daniel.

O clímax da acção: O encontro no snack bar da Rua da Prata

O rescaldo do ocorrido na madrugada de 1 de Maio de 1962. trata-se de o chamado “Dia seguinte”. Marcado pela repressão da revolta popular e estudantil que vai levar ao desfecho da trama. O levantar do último véu. Os acontecimentos parecem ter sido de uma violência de tal ordem que as pessoas, nesse dia, não conseguem reparar quão agradável está o tempo, um perfeito dia de Primavera, após um longo e deprimente Inverno que assolou a na Baixa de Lisboa. Uma clara alusão à política repressiva do Estado Novo e à possibilidade, muito real, de uma mudança na direcção do vento.

Nas últimas semanas o céu esteve ligeiro, aliviado e era a Primavera (…) tal como ela costumava chegar a Lisboa, depois de muitas hesitações e muito trabalho para vencer as nuvens da costa. As pessoas mal dão por isso.” Parece haver algo que funciona como distractor e coloca as pessoas como que num estado de alienação, como se fossem sonâmbulas. Trata-se do Medo.
Mas neste dia 2 de Maio a multidão da Baixa andava alheia aos céus e às águas luminosas do Tejo. Olhava as fachadas dos edifícios, salpicados de balas.”

É desta forma que José Cardoso Pires alude à revolta estudantil de 2 de Maio de 1962, violentamente reprimida pelo Exército e pela PIDE-DGS. Neste contexto, a sua personagem, Daniel, decide arriscar a vida ao exercer a profissão sem atender fronteiras políticas, cuidando dos feridos revolucionários.

“Enquanto Daniel tratava dos feridos e a cidade andava em guerra Cecília, no seu quarto de mulher só, fumava cigarro atrás de cigarro”.

Cecília, enquanto isco oferecido ao safio Daniel pelo Grande Lavagante, pensa tratar-se o médico de um importante membro de ligação com os revolucionários. O olhar de triunfo que exibe no momento da prisão de Daniel não deixa dúvidas quanto à sua personalidade.

Na opinião de Daniel, “O Lavagante acaba por libertar o safio para ganhar uma outra presa”. Neste caso, o lavagante fêmea, a qual tenta, no último minuto, salvar a própria imagem diante de Daniel. Trata-se de uma mulher previdente que não sabe de que lado soprará o vento no futuro. Para uma lavagante como Cecília a imagem, o disfarce, é tudo o que realmente importa.

O disfarce, o apetite pela presa e o prazer da caça.



Cláudia de Sousa Dias