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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, January 31, 2008

“Uma Caligrafia de Prazeres” de António Mega Ferreira com desenhos de Fernanda Fragateiro (Texto)


As belíssimas aguarelas de Fernanda Fragateiro ilustram as crónicas de António Mega Ferreira, num livro onde conseguimos extrair a fruição do prazer estético proporcionado pelos sentidos e pelo apurado conhecimento do Autor acerca do melhor que a vida pode oferecer. Trata-se de um livro que nos faz viajar pelo mundo das coisas belas, que se dão a conhecer através de um helenístico e apolíneo sentido de harmonia.


A pulsão que levou António Mega Ferreira a escrever as suas crónicas num formato semelhante ao de um guia turístico foi a necessidade de partilha. Isto porque, na sua óptica, “àqueles a quem a vida não tem sido madrasta, cabe uma boa parte da responsabilidade em tentar perceber o que foram os seus prazeres”

As crónicas de Uma Caligrafia de Prazeres estão divididas em secções intituladas de O que se vê, O que ouve, O que se sente e Como se está.

O autor foi, assim, escrevendo aquilo que lhe ia surgindo ou “…saltando, semana após semana (…) gestos, momentos, circunstâncias; o que me dava prazer era escrever sobre o que, à margem dessa abordagem racional ou abrangente do leque dos prazeres vividos, aparecia na esquina das minhas recordações”.

Relativamente à classificação, o Autor esclarece que: “Para os prazeres (…) não há catálogo possível: estes são a sua narração, e as palavras que os descrevem (…). Os prazeres não se deixam catalogar, porque, o melhor que podemos fazer com eles é não desesperar de os encontrar (…) quando menos estamos à espera”.

O que se vê na caligrafia de prazeres de A. Mega Ferreira é tudo o que cativa o olhar, as sensações visuais, o que, tanto poderá ser um quadro, as cores, a intensidade e as variações de luz numa dada paisagem, a arquitectura de um edifício ou as gentes de um país distante. O resultado é um mosaico constituído pelos mais belos locais do mundo onde, pela voz do autor, podemos apreciar algumas das maravilhas criadas pela mão ou pelo poder de criação do Homem. Deliciamo-nos então, a efectuar uma caminhada imaginária por lugares como Praga, Marraquexe, Nova Iorque, Paris – onde entramos propositadamente no Louvre para descobrir, por exemplo, o mistério do sorriso mais enigmático do mundo – , o eterno encanto do legado deixado pelos Gregos da antiguidade clássica, o romantismo de Veneza e a nostalgia evocada na ponte do Rialto.

A vontade que nos desperta a leitura destas crónicas é a de correr para o aeroporto e percorrer o roteiro sugerido por esta obra magnífica à semelhança de Phyleas Fogg e fazer a nossa própria “volta ao mundo em 80 dias”…

Passamos a O que se sente…ou se degusta.

Desde Um grande Amor, despoletado ou catalizado pelo sabor enfeitiçante de uma garrafa de Esporão – o qual assume o papel de elixir do amor – a toda uma panóplia de memórias evocadas através dos sabores: o chá, o café, um polémico leite-creme, o chocolate, o anti-politicamente correcto prazer de saborear um cigarro, os gelados e as melhores gelatarias…numa prosa em que quase que sentimos os sabores, voluptuosamente descritos.

Segue-se o tempo dedicado à música com O que se ouve. E, aqui, delicio-me a encontrar uma descrição que quadra perfeitamente com a forma como aprecio a música de Vivaldi, e que (re)descubro o segredo do encanto de vozes como a de Ella Fitzgerald, Diane Scheuer, da música de Cole Porter, Duke Ellignton ou George Gershwin e me detenho num magnífico texto sobre Callas… seguem-se Bach, Mozart e a voz de Kathleen Ferris a interpretar Schubert, Gluck ou Brahms, o que me impele a correr para a Internet na tentativa de captar ou tentar ouvir as versões descritas, uma vez que não há a possibilidade de conseguir todos os CD’s de uma assentada. A secção dedicada à música e aos prazeres da audição termina com uma homenagem a Claudio Monteverdi, il divino Claudio, o grande impulsionador do teatro lírico na Europa tal como o conhecemos hoje em dia.

Passamos à rubrica Como se está, uma eclética amálgama de pequenos prazeres ou, se quisermos, um pequeno roteiro, semelhante a um mapa do tesouro, cujas pistas vamos desvendando e percorrendo passo a passo – desde os melhores restaurantes, hotéis, lembranças evocadas a partir da escrita de Pessoa ou Thomas Mann ou Ballester; a sensação de conforto ao calçar um sapato de qualidade excepcional; o prazer de falar a língua Natal, dentro ou fora do País; a exuberância do espectáculo das fogueiras de S. João na estrada entre Caruaru e Recife e, finalmente, o prazer de coleccionar um acessório que identificado com a vaidade masculina por natureza (ou, mais propriamente, pela cultura ocidental): a gravata. E, por último, o prazer maior, a liberdade de fazer o que se gosta, de não ter obrigações.

Todas as crónicas estão acompanhadas pelas belíssimas ilustrações da pintora Fernanda Fragateiro, que executa de forma magnífica a interpretação visual, numa perfeita conjugação de símbolos, em articulação com os textos de um cronista com a alma de um ateniense do século de Péricles.

Uma oferta preciosa.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, January 22, 2008

“O Milagre segundo Salomé” de José Rodrigues Miguéis (Estampa)




Um livro maldito. Para alguns, herético. Retirado há muito do circuito comercial das livrarias, descobrimo-lo apenas nos alfarrabistas ou entre as estantes poeirentas do “cemitério dos livros esquecidos” (passo o plágio a Carlos Ruiz de Zafón) de uma Biblioteca Municipal.

De um facto, não restam dúvidas: trata-se de um romance assumidamente laicista e anticlerical, nascido da veia racionalista- positivista de um Autor que não consegue calar a indignação face àquilo que vê como a permanência de um obscurantismo quase medieval na mentalidade colectiva dos portugueses, na primeira metade do século vinte e que se prolonga pelos primeiros anos após a Revolução dos Cravos.

O Milagre segundo Salomé pode ser considerado um livro revolucionário, saído da mente de um admirador incondicional dos pensadores do Século das Luzes e do positivismo científico preconizado pela vanguarda intelectual do século XIX, particularmente nas ciências sociais como a Economia, o Direito, a Sociologia e a Psicologia.

A acção do romance propriamente dito passa-se durante o período de maior turbulência da Primeira República com a transição do regime monárquico para o regime republicano, desde os finais da primeira Grande Guerra até final dos anos 1920 /1930.

O cenário que serve de pano de fundo ao romance é colorido com a luta de interesses entre diferentes facções partidárias que se digladiam numa impiedosa – e destituída de escrúpulos – luta pelo poder: de um lado, estão os barões da alta-finança (banqueiros e especuladores dos mercado de acções e obrigações na Bolsa) – uma classe emergente de burgueses que consegue, nesta época, uma ascensão fulgurante - ; do outro, uma aristocracia decadente, endividada, com o património a sumir-se a uma velocidade galopante, num ambiente social em tudo semelhante ao da Itália, descrito por Lampedusa em O Leopardo.

Há, ainda, a classe eclesiática que tenta conseguir a aliança que lhe proporcione mais vantagens materiais, independentemente das convicções ideológicas.

O Autor esforça-se, ainda, por evidenciar o escandaloso contraste entre o estilo de vida daqueles que detém o capital - como o caso do banqueiro Zeferino Zambujeira – e e os habitantes dos bairros degradados da zona velha de Lisboa como Alfama, Mouraria ou Alcântara.

Sem falar nas condições de vida dos habitantes do meio rural propriamente dito, cuja extrema miséria e isolamento os impede de ter conhecimento ou sequer de imaginar as condições de vida das classes mais favorecidas, num registo a fazer lembrar por vezes Os Miseráveis de V. Hugo ou História de duas Cidades de Charles Dickens.
O Autor salienta o facto de a miséria, falta de horizontes e esperança de uma vida melhor, levarem a que um povo, na sua esmagadora maioria ignorante ou iletrado, se volte para a religião na esperança de, aí, vislumbrar uma fuga à situação de desespero em que se encontra. A necessidade de que o céu lhes proporcione um milagre que detone uma transformação radical nas suas vidas ou que, pelo menos, os reconforte com a promessa de um céu que lhes traga uma compensação, é tão grande que estão naturalmente predispostos a acreditar no que quer que seja e para o qual não tenham explicação natural por desconhecimento ou ignorância.

Por outro lado, os grupos que detém as rédeas do poder não têm quaisquer escrúpulos em servir-se de uma equívoco para produzirem um “milagre” do qual resulta um escandaloso aproveitamento financeiro da ingenuidade e da fé dos simples através do florescimento de inúmeros negócios relacionados com o mesmo “milagre”. De onde resulta o enriquecimento de um poucos comerciantes e a ausência total de investimento e desenvolvimento do sector secundário.
Verifica-se, da mesma forma, a inexistência de investimento na educação e de um esforço efectivo no combate à iliteracia.
Promove-se, pelo contrário, a religião como analgésico, para esquecer a fome, os magros salários, a carestia geral das condições de vida; como distractor da tensão crescente, sobretudo nas cidades, onde cresce, de dia para dia, a ameaça de uma guerra civil.

A solução aparece com a divulgação e promoção de uma Mentira, à escala nacional, com pretextos pretensamente pacificadores e de desenvolvimento financeiro.

A obra de José Rodrigues Miguéis ilustra, ao longo de praticamente seiscentas páginas, o oportunismo de uma burguesia rapace, a arrogância das classes militares – sobretudo as de baixa patente – personificadas na personagem Azeredo, a indolência da aristocracia e a venalidade do clero e, por último, na impotência do idealismo em homens de saber e consciência da realidade como o General Adriano Belmarço e Couto, ou o seu adjunto, o Major Tristão. Também são evidenciados o racionalismo cínico do deputado Mota Santos e, no extremo oposto, o idealismo incorruptível de Gabriel Arcanjo, jornalista e poeta de cariz proudhoniano, cujas acutilantes crónicas que escreve para o jornal são lidas atentamente, sobretudo por aqueles a quem critica, Maios do que por aqueles cujos direitos se propõe defender (talvez devido ao índice de analfabetismo nas classes populares).


A ausência de salário garante-lhe, no entanto, uma relativa liberdade de expressão, até porque a integridade do seu carácter, o qual quase poderíamos classificar de arcangélico, não lhe permitindo aceitar artigos de encomenda ou, simplesmente fazer jornalismo panfletário.

Os seus Entremezes ou intermezzi fazem o enquadramento histórico do romance.

Estrutura da Narrativa, Estilo e Temáticas abordadas

Na primeira parte, intitulada A Queda Ascencional os Retrospectos descrevem os antecedentes das personagens principais que interagem durante a trama propriamente dita.

Trata-se de um texto, de certa forma, atípico em relação ao resto do romance. O registo utilizado nesta secção da narrativa está recheado de juízos de valor, onde o narrador utiliza uma linguagem que apela ao sentimento a fazer lembrar os ultra-românticos, Victor Hugo, Camilo Castelo Branco ou Castilho, o que retira um pouco a qualidade literária ao texto. Contudo, logo após as primeiras cem páginas, o Autor abandona o tom persuasivo relativamente ao carácter de algumas personagens e adopta um estilo de prosa mais analítico e objectivo – sobretudo nos Entremezes de Gabriel Arcanjo – de onde sobressai a veia satírica e irónica do Autor, a tónica que irá dominar todo o romance.

As frases que se seguem, deixam transparecer o caos da economia, a tendência para o messianismo como traço cultural fortemente enraizado no (in)consciente colectivo, a instabilidade e tensão sociais motivadas pela carestia de vida em geral e a forma tipicamente portuguesa de solucionar os problemas, como alguns dos aspectos que o Autor se propõe denunciar:

O Leopardo Inglês devorava as entranhas da nação, inerme, deixando as sobras aos abutres da finança.

Uma tropa de Ingleses, carregados de sacos de golfe, passa a caminho do Palace e olha com espanto esta gente morena e apoquentada que parece tomar a vida a sério ou esperar sempre que um milagre a salve, outras índias, brasis, um novo Dom Sebastião ou um terramoto.

Não resta dúvida, uma coisa anda no ar e não são só as andorinhas.

Nós somos a terra do efémero e do improvisado
.

(entremezes de Gabriel Arcanjo)


Tal como os ácidos comentários onde se pretende mostrar que, em Portugal, é o medíocre que se ri dos competentes (…) Portugal é um sistema em desequilíbrio crónico irremediável. Não se lhe pode mexer sem estragar tudo (…), terra pobre de minérios, e portanto, sem indústria; gente bruta e sem iniciativa; não há dinheiro porque não há renda e não há renda porque não há indústria.

Uma prosa onde se pinta o cinismo de que detém o poder:

É melhor mantê-los divididos, baralhar tudo e todos. Governar é confundir


Face a esta situação, é de referir que, no romance, o milagre tornou-se o pão nosso de cada dia (…); A notícia levada de boca em boca, correu o país, avolumou-se como o incêndio no carrasco das almas ressequidas de heresia (sic), impiedade e crise. O substrato místico do povo aflorou numa erupção de lavas represadas.


O Milagre de Meca marca o início de uma era de ressurgimento religioso a opor-se à vaga de ateísmo, paganismo e materialismo desenfreado dos nossos tempos (…)

O Estado pode ser laico, mas a nação não o é.

O problema principal que atravessa o país, na época em que decorre a acção, reside em Como harmonizar a europeização, renovação e apetrechamento da metrópole com o aproveitamento das províncias ultramarinas. A intenção seria a de deixar a estas últimas o papel de fonte de matérias-primas destinadas à industrialização ou, em alternativa, continuar com o Portugal agrícola onde o aparente excesso demográfico se relaciona com a emigração e a fuga da mão de obra disponível para o sector secundário para o estrangeiro.

Ao longo da obra, é notório que o caminho para a Ditadura começa a abrir-se, falando-se, cada vez mais, da necessidade de um estado paternalista, de uma liderança forte que possibilite a obtenção de uma solução de compromisso entre o fascismo italiano, na altura em ascensão, e uma ditadura de carácter oligárquico, como na Rússia.

Na altura em que decorre a trama, quem está à frente do destino do país assume uma atitude que se pode considerar como caracterizada por uma pusilanimidade doentia relativamente à forma como encara as necessidades de desenvolvimento do país e, consequentemente do povo Português. Trata-se sobretudo de uma questão de mentalidade, de falta de visão a longo prazo como se vê no discurso de homenagem “a um perfeito homem de bem” – um homem vindo da Europa dita desenvolvida, a residir em Portugal, que possui os meios, isto é, que “dispõe da faca e do queijo” que pode cortar a seu bel-prazer, mas que não os utiliza em proveito do bem comum…

O “perfeito homem de bem” considera que o investimento em algo como a generalização da distribuição da energia eléctrica num país como Portugal – assim como a escolaridade obrigatória ou o desenvolvimento da indústria – seria prejudicial, aumentando o endividamento, por um lado, e criando condições para fomentar a desestabilização social pelo aumento da capacidade reivindicativa das classes operárias tal como se verifica nos países mais desenvolvidos.

Linguagem, alteração da toponímia, dos nomes das personagens históricas e introdução de alguns anacronismos.

Na obra O Milagre segundo Salomé, o discurso é alterado consoante a origem social das personagens. O vocabulário utilizado inclui os regionalismos e o sotaque, bem como expressões tipicamente populares das aldeias beirãs e, também, das vielas de Lisboa, nos bairros mais degradados. As alterações à norma e a fonética regional são escrupulosamente mantidas de forma a passar ao leitor a autenticidade dos diálogos pretendida e a tornar o discurso das diferentes personagens verosímil.

Para evitar ferir susceptibilidades o Autor procedeu à alteração da maior parte da toponímia em quase todo o texto – embora alguns nomes sejam facilmente identificáveis, como o nome de alguns estabelecimentos comerciais, cidades, universidades e até nomes próprios.

A decisão relativamente à alteração da nomenclatura prende-se sobretudo com razões de carácter político, no sentido de evitar represálias por parte do Governo, uma vez que o autor escreveu o romance durante o Período da Ditadura do Estado Novo. Mesmo assim a publicação do romance só foi possível depois da Revolução de Abril de 1974, devido ao carácter fortemente crítico e laicista da prosa de José Rodrigues Miguéis, em parágrafos como o que se segue:

A exploração do Milagre pela iniciativa privada, como a salvação do País (da bancarrota e da ameaça da guerra civil) dependia de uma governo forte, de autoridade e competência, de uma chefe capaz de ombrear com semelhante empreendimento e de tirar dele partido.

Personagens e Romance

Paralelamente ao contexto histórico – num romance essencialmente político e de crítica social, política e económica e de tal forma polémico que poderá ser colocado na mesma prateleira que O Código DaVinci de Dan Brown, A Última Tentação de Cristo de Nikos Kazantzakis, Em directo do Calvário de Gore Vidal ou Jesus na Fogueira de Catherine Clément – há, também o romance ou folhetim que se entrelaça com a narrativa principal. Apesar do romance propriamente dito estar longe de alcançar o mesmo nível que os comentários críticos dos entremezes de Gabriel Arcanjo ou dos diálogos entre Zambujeira e Mota Santos ou mesmo das reflexões do Major Tristão, o livro, em geral, revela um elevado interesse literário pela caracterização objectiva e pela lucidez da apreciação crítica relativamente a uma época crucial que caracterizou o Portugal do século vinte e cujas consequências dos acontecimentos de então se reflectem ainda nos dias de hoje.

Não obstante, a caracterização de algumas personagens que compõem a trama, como a protagonista – Salomé ou Maria das Dores – que é uma figura que cativa, gera simpatia, mas que é pouco credível. De facto esta Salomé, se existisse, seria em tudo semelhante à protagonista do filme Corrupção do que propriamente a figura cândida que Miguéis nos apresenta.

Há, em Salomé, um sem-número de contradições que desmantelam a verosimilhança do seu carácter. Isto porque papel de vítima que lhe é atribuído, no início da obra, relativo ao período que compreende percurso de vida da então jovem órfã, antes de ingressar no bordel de Dona Rosa, condiz pouco com o monólogo interior da mesma personagem, já depois de esta estar a viver com o banqueiro Zeferino Zambujeira e, posteriormente, com o heroísmo demonstrado quando abandona o milionário. Incongruente é, também, a classe e distinção exibidas nos salões e festas promovidas pelo banqueiro, notadas também por Gabriel já depois desta regressar às ruas, com a cena de “faca e alguidar” no capítulo Onde a Lava transborda durante a qual o verniz de requinte e educação estalam, aparecendo, no lugar do “ídolo dourado”, à imagem de Hollywood dos anos 30, uma saloia de Alfama em toda a sua vulgaridade.

Já as atitudes da personagem Tesouras fazem um todo perfeitamente coerente com a forma de vestir, os gestos, a linguagem e as expressões faciais, compondo, na perfeição a figura do lobo que veste a pele do cordeiro, para esconder dentes e garras. Salomé é, nesta fase, uma capuchinho vermelho cuja carência a todos os níveis dispensaria o enfatizar constante da sua situação de vítima da sociedade.

Em relação a Zeferino Zambujeira, os traços porcinos do rosto, contrastam com as atitudes de cavalheiro refinado, que ascendeu social e financeiramente à sua própria custa, e que lhe permitem encantar, inicialmente, Salomé, pelo acentuado contraste com a falsidade e cobardia de Tesouras.

Salomé possui, se excluirmos a cena demonstrativa de total falta de compostura em casa de Zeferino, um papel semelhante ao de Madame Bovary, embora em circunstâncias sócio-económicas diversas daquelas expostas no romance de Flaubert, transposta para o século vinte.
A jovem entedia-se (tal como Emma Bovary), farta de ser tratada como uma boneca de luxo a ser exibida em festas como objecto de ostentação de Zambujeira (ao passo que Emma, para além da paixão ambiciona, também o luxo). Para Salomé, a falta de uma verdadeira paixão torna-lhe a existência sombria, sentindo-se cada vez mais, como prisioneira numa gaiola dourada.
Até mesmo o sentimento de segurança, que julgou estar garantido com a união com o banqueiro, se dissipa no momento em que toma consciência de não estar protegida contra predadores, sobretudo daqueles que conheceu durante a sua estadia no bordel de Dona Rosa.

Azaredo, um sargento arrogante que conhece Salomé na altura em que a jovem se prostitui no Bordel de Rosa, é um indivíduo intratável, inculto, presumido, cuja vaidade esconde um desejo imoderado de ser temido e de dominar e conquistar pela violência. A sua auto-estima está directamente relacionada com a capacidade de instaurar o medo naqueles com quem convive. Azeredo incarna típico “macho” português.

A indignação de Salomé é perfeitamente legítima, uma vez que Zeferino Zambujeira permite que um indivíduo cujas atitudes denunciam, desde o primeiro momento, um carácter perigoso como é o caso de Azeredo,, circule livremente pela casa, com o único objectivo de agradar ao general de quem espera obter favores.
A única contradição reside na forma como a “calma” e “refinada” Salomé expressa a sua indignação.

Salomé manifesta todos os sintomas de uma depressão, cujas causas são imediatamente intuídas pelo médico que a trata, sem no entanto se atrever a divulgá-las abertamente a Zambujeira.

Salomé passa, desde então a sentir a necessidade de procurar as suas raízes e a visitar a terra natal: Meca (Fátima?) acompanhada pelo chauffeur, o leal cabo-verdiano Joaquim.

Na Cova da Ursa (Cova d’Iria?) a própria Salomé não consegue realmente perceber o que se passou, ocorrendo-lhe um lapso de memória, que a impede de se lembrar correctamente do que aconteceu.

Já na parte final, o desenrolar da paixão romântica entre Salomé e Gabriel é, na opinião do jornalista – o verdadeiro milagre: o da felicidade. Este final surge como aquilo que se esperaria ou desejaria para as duas personagens geradoras de simpatia ao longo do romance, para além de Joaquim, o protótipo da lealdade incondicional.

As relações entre eles eram assim, um misto de poesia e sensualidade edénica, de mistério e de pureza religiosa onde nem a visita da serpente personificada por Zambujeira consegue tentar a “Eva” de Miguéis – Salomé – utilizando um frasco de perfume ao invés de uma maçã.

Sobre o Autor e a obra



Parece haver uma clara identificação entre a actividade de cronista da personagem Gabriel Arcanjo com a actividade de jornalista e analista político do próprio Autor, patente sobretudo, no diálogo entre Gabriel e o colega redactor, isto é, entre o jornalista profissional assalariado e o livre-pensador, que troca a segurança de um emprego com salário fixo pela livre expressão do pensamento, colocando em risco a sua própria sobrevivência.

Redactor - Escrevo o que me mandam. Anónimo. Vivo da pena. E você, intelectual, escreve o que lhe dá na gana.

Gabriel – Escrevo o que posso ou me deixam. Assumo inteira responsabilidade. E não vivo da pena, morro dela. Há uma certa diferença…


Porque Gabriel, tal como o próprio Autor, Escrevia como quem pinta um panorama sem fim, ou talha um monumento sem plano na rocha viva dos caos (sic).

Sobre o livro, o Autor explicita nas notas finais, que O Milagre segundo Salomé não é um romance histórico, não pretendendo por isso, reconstituir factos ou acontecimentos.

No entanto, os factos descritos que se inspiraram na realidade aparecem transpostos anacronizados, ou conjugados segundo as conveniências da narrativa (sic).

José Rodrigues Miguéis deixa, por isso, ao leitor o trabalho de julgar e aderir àquilo em que quiser acreditar.

Afirma ainda que (…) é evidente que me retive, subconscientemente de dizer quanto desejaria (…)

E sublinha: (…) quanto mais liberdade intelectual houve neste país, nos tempos áureos do liberalismo, nas fases derradeiras da monarquia e até nos tempos ominosos da Real Mesa Censória, das licenças eclesiásticas e da Inquisição, do que a partir da “Revolução Salvadora” de 1926 e da mentirosa e corruptora “política do espírito”.

E continua: (…) O Autor deste romance presenciou muito do que narra e de que dá testemunho e fé.

E finaliza: (…) Nunca servi patrões, padrões, narizes-de-cera, nem doutrinas apriorísticas, mas apenas aquilo a que tinha a peito dizer – e disse mal – ou não mo consentiram.

Independência que lhe serviu para criar uma obra que ainda nos dias de hoje se encontra relegada para a obscuridade, apesar de aproveitada para um filme que apesar, de concorrido à nomeação para o óscar de melhor filme estrangeiro, e de premiado em vários festivais de âmbito internacional, não teve, praticamente, direito a uma divulgação significativa nos Meios de Comunicação Social nacionais…

…o mesmo acontecendo com o livro.

Uma pena.

Pela pertinência do tema.

Pelo não aproveitamento do elevadíssimo potencial intelectual de um pensador cuja obra deveria fazer parte do plano nacional leitura…


Cláudia de Sousa Dias

Monday, January 14, 2008

“Um Capricho da Natureza” de Nadine Gordimer (Dom Quixote)


A escritora sul-africana Nadine Gordimer, galardoada, em 199, com o Prémio Nobel da Literatura é, actualmente, membro executivo do Congresso de Escritores sul-africano, sendo considerada a mais importante ficcionista de Africa do Sul nos dias de hoje.


Um Capricho da Natureza é um romance que assume contornos biográficos sobre a vida de uma jovem, de origem judia, nascida em pleno regime de apartheid ao qual ganha, desde tenra idade, uma aversão que pode ter a ver com as histórias relacionadas com os pogroms, no tempo do terceiro Reich na Europa – reminiscências de episódios de perseguição nazi sofridos pelos seus parentes.

Hilella, a protagonista, apesar de nascida no seio de uma família conservadora torna-se, para muitos, numa adolescente problemática, cujo comportamento irreverente, desafiador das convenções e da ordem estabelecida, incomoda as mentalidades mais tacanhas cuja pusilanimidade cai no conformismo. Apesar de tudo, Hilella não deixa de assumir, por vezes comportamentos de risco, como na altura em que foge de casa na companhia de uma colega de escola, para dançar num night club ou aquando da evasão do país na companhia de uma estranho, do qual não possui quaisquer referências. A predisposição de Hilella para confiar em desconhecidos parece ser uma característica recorrente no seu carácter que a leva a embarcar, não raro, em situações arriscadas, das quais se consegue salvar, praticamente, devido ao factor sorte.

Amada por muitos e detestada por outros tantos, Hilella é quase sempre vista como uma figura polémica.

O facto de não existirem laços muito fortes que a liguem à família, a qual deixa quase sempre Hilella entregue a si própria, ou então, convenientemente depositada em colégios internos. Um facto que acaba por lhe proporcionar o desenvolvimento de estratégias de luta pela sobrevivência e também a consolidação das suas próprias convicções. Um conjunto de situações que a torna completamente independente face a essa mesma família, supostamente de orientação.

Hilella é, sobretudo uma jovem cuja integridade não lhe permite aproveitar-se das vantagens inerentes ao facto de ter nascido branca, num país como África do Sul, onde há cerca de década e meia atrás, a cor da pele fazia toda a diferença no que dizia respeito ao usufruto dos direitos de cidadania.
Esta Hilella criada por Nadine Gordimer poderia, de facto, ter escolhido o caminho mais fácil e obter a recompensa de ser tratada como uma princesa, em casa da tia Olga. Opta, no entanto, por se aliar àqueles que estão “do outro lado”. Do lado dos excluídos. Juntar-se-á, por isso, à maior parte dos presos políticos deportados ou refugiados, partilhando com eles a incerteza do exílio.

Uma característica curiosa é a de Hilella nunca conseguir identificar-se com os valores e a forma de estar da família de origem e dos brancos em geral, no seu país de origem.

Será, por esse mesmo motivo, uma das principais peças da engrenagem que irá colocar o processo de mudança em andamento.
Hilella conta, para isso, com dois factores decisivos: a sua natureza emocional, a qual só conseguimos adivinhar pelas atitudes ou comportamentos demonstrados – um forte espírito de camaradagem e fraternidade genuína, muito mais autêntico do que o desejo piegas de praticar caridade desenvolvido pela tia Pauline ou pela prima Charlotte -,aliando-se àqueles cujo apoio não lhe falta nos momentos cruciais, independentemente da nacionalidade, estrato social, ou cor da pele. Hilella é, verdadeiramente a sport of nature – uma verdadeira camarada ou uma natureza genuinamente solidária, traduzida erroneamente por “Um capricho da Natureza”. E outra característica que se revela decisiva e que leva a que as pessoas se associem a ela é o magnetismo da sua beleza, colorida por uma refinada sensualidade a qual aprisiona, cativa as pessoas em geral.

Esta obra de Gordimer debruça-se sobre inúmeros aspectos relacionados com a história do contingente africano no século XX, como as consequências do processo de descolonização e desmembramento de vários impérios coloniais: o conflito racial entre Boers, Zulus, Bantus, trazem à luz situações que ilustram o absurdo do regime e as proporções escandalosas do nível de discriminação que chega a atingir laivos de obscenidade.
Igualmente escandalosa e abusiva é a intromissão do Estado nas relações pessoais entre cidadãos sendo essa mesma intervenção justificada apenas com base na diferença da cor da pele.

A própria capa do livro ilustra a prepotência da situação, que a Autora quis denunciar com a publicação deste livro: uma mão branca tapa a boca a um rosto negro, em cujo olhar se nota a humilhação e o constrangimento por não poder protestar pelo abuso de que é alvo. A gravura pretende representar a impotência de todo um continente que se vê amordaçado.


As origens de Hilella

A protagonista do romance é filha de uma mãe inconformista, Ruth, a ovelha “negra” da família. Ruth rompe com os tabus e com a hipocrisia dos padrões de conduta da família tradicional ao abandonar o marido, a filha, a casa, o país, voltando as costas a uma realidade social onde não pode exprimir livremente o direito à selecção, escolha ou troca do seu parceiro sexual, sem sofrer represálias.

Algo semelhante parece estar também, destinado a acontecer a Hilella, noutras circunstâncias: Hilella não é casada mas as suas amizades devem excluir negros. A sua sexualidade está também comprometida, seja ela desenvolvida com parceiros brancos ou negros, primeiro em casa da Tia Olga, depois em casa de Pauline.

A evasão de Hilella é um grito de liberdade e independência que se traduz não só num desafio às autoridades oficiais, como também um acto de afirmação do direito de presidir às suas próprias escolhas.

Outra característica da personalidade de Hilella é a dificuldade em estabelecer laços afectivos sólidos com figuras femininas, nomeadamente com aquelas às quais é atribuído o papel de matriarca, - talvez pelo facto de as mulheres que desempenharam essa função na sua própria família terem falhado redondamente no desempenho dessas mesmas funções, na altura em que a jovem mais precisava da sua orientação, segundo critérios construtivos e pedagógicos e não assentes em falsos moralismos e em padrões de conduta baseados numa moral obsoleta e cheia de contradições.

Isto traduzir-se-á mais tarde, na dificuldade demonstrada por Hilella, em criar laços e cumplicidades típicas entre mulheres, sem no entanto entrar em conflito com elas, como por exemplo o caso da mulher do médico com quem chega a trabalhar ou da esposa do diplomata em casa de quem é governanta.

Aparentemente, Hilella sofre de uma espécie de “síndrome de filha abandonada”, consequência directa de ser sucessivamente descartada pelos membros da família – sobretudo pelas mulheres: a mãe, a amante do pai, a ta Olga e, por último a tia Pauline. O pai não quer sobrecarregar a amante com a filha do anterior casamento e as tias têm dificuldade em, por um lado aceitar as escolhas de Hilella (Olga) e, por outro, em lidar com situações inesperadas que mexem com as emoções mais atávicas que se manifestam numa total inabilidade em lidar com a explosão da sexualidade da prole adolescente dentro do agregado (Pauline).
Olga, inicialmente trata-a como uma boneca de estimação, um bilbelot caro.Para ela Hilella “é como se fosse sua filha”.
Mas não é, na realidade, sua filha.

É apenas “como se fosse”.

Na primeira ocasião em que Hilella se comporta de forma a que a tia ultra-conservadora considera como “traição à sua classe”, Olga desfaz-se dela, da mesma forma que se descarta do caríssimo gato de porcelana Imari, depois de este se partir. O gato apesar de restaurado, deixa de ser um objecto coleccionável perdendo grande parte do seu valor.

Tal como Hilella após regressar a casa depois de efectuar um passeio com um jovem negro.
Em casa de Pauline, a puritana activista do movimento anti-apartheid, ao qual se entrega com uma convicção quase fundamentalista, Hilella está inserida num ambiente familiar caracterizado por estilo de vida típico de classe média-alta. A Tia Pauline não vê, aparentemente, quaisquer problemas no facto de Hilella se relacionar com negros, aos quais abre, clandestinamente, as portas de sua casa, permitido a entrada indiscriminada de todas as facções do movimento, inclusive extremistas e oportunistas.

No entanto, a partir do momento em, que toma consciência da atracção sexual entre Hilellla e o seu filho mais velho Sasha, Pauline passa a encarar a sobrinha como uma mulher perigosamente fatal, como Ruth, a irmã transviada. Pauline sempre receou as mulheres que dão largas aos impulsos sexuais, associando-as geralmente a destinos trágicos.
O ciúme jocastiano em relação ao filho, Sasha, e o receio de contaminação da filha Charlotte fazem-na expulsar Hilella de casa, entregando-a à sua própria sorte. A justificação desta atitude incide no facto de “achar que a maturidade sexual de Hilella denuncia, também, a capacidade de sobreviver sozinha, pressupondo um amadurecimento simultâneo de todas as restantes faculdades.

Hilella conta nesta fase, com a ajuda do factor Sorte – para além de uma magra mesada da tia Olga, enquanto não arranja emprego – o que acaba por compensar a falta de experiência e qualificações.

A oportunidade de fugir para o Ghana advém-lhe de uma aliança com um jovem jornalista que se revela ser de pouca confiança, mas uma vez fora da África do sul, a Fortuna vem, mais uma vez, ao seu auxílio.
É precisamente numa praia do Ghana que vem a conhecer aquele que mais, tarde será o seu primeiro marido.
Mas antes, Hilella fará várias amizades dentro das esferas do movimento anti-apartheid. Hilella usa o seu magnetismo como forma de lhe abrir portas que mais tarde lhe permitirão não só garantir a sua sobrevivência, como também de ser um agente de mudança a um nível transcontinental. O seu raio de acção passa não só pelo Ghana, mas também por Angola, Moçambique, Inglaterra, Estados Unidos e, também, Leste Europeu.

Hilella acaba por revelar uma maior facilidade na criação de laços quer de natureza sexual quer de amizade com figuras masculinas. Sente-se, sobretudo, próxima de personagens que tenham uma causa pela qual lutar e que se envolvem em acções concretas para o eclodir de uma transformação efectiva das estruturas, como o primeiro e, posteriormente, o segundo marido, ambos negros.

Os seus casamentos constituíram uma verdadeira pedrada no charco no seio da sociedade sul-africana e mesmo nos círculos diplomáticos transcontinentais.

A escrita de Gordimer

Um Capricho da Natureza é uma obra que adquire contorno de romance/biografia pelo discurso, objectivo, frio, de pendor quase que jornalístico, utilizado pela Autora durante a maior parte do romance. É, também, uma obra fortemente voltada para a intervenção política e social.

Como contraponto, surge-nos uma escrita emocional, de carácter poético e, não raro, carregada de uma forte sensualidade, sobretudo nas cartas de Ruth, em alguns relatos, nos diálogos de Hilella com o primeiro marido Whaila e no desespero contido nas cartas de Sasha, na prisão:

Deitada ao lado dele, olhando-lhe as mãos pálidas, as coxas, o ventre: vendo-se a si própria como incompleta, abandonada, algures. Ela examina-lhe o corpo minuciosamente e sem pudor, e ele acorda para a ver a fazê-lo, e sorri sem dizer porque: ela é a primeira que não finge que as cores diferentes e a diferente textura dos seus seres não é um fascínio aterrador(…).

- Quando me tocavas, a princípio, isto era uma luva (e ela pega-lhe na mão negra e espalma-a na anca), isto era uma luva. Verdade. A cor negra era uma luva. E por toda a parte, pelo teu corpo todo, a cor negra era como um manto. Uma coisa que Deus te deu para vestires(…). Não são nada como uma peça de vestir. São tu. És tu. E não são negras, são de todas as cores da carne. Não sabes? Nas lojas – e nos livros! – a “cor da carne” é a cor dos Europeus! Não a cor de qualquer outra carne. Só a dos Europeus e mais nenhuma! Olha para as tuas unhas, são rosa malva, porque por baixo apele é cor-de-rosa. E (virando-lhe as palmas das mãos), aqui a cor é como se vê por dentro daquelas grandes conchas que se vendem em Tamarisk. E isto, esta pele maravilhosa, de seda negra que eu estou a puxar para cima e para baixo (o pénis dele na mão dela), quando a ponta aparece é rosa-âmbar. Dizem-se tantos disparates acerca do tamanho da coisa dos negros, mas nunca ninguém disse ainda que ela não é só negra… (sic).


Duas vozes da mesma Autora que mostram a qualidade da sua escrita e o génio que lhe valeu o prémio Nobel.

Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, January 09, 2008

“O Cheiro da Sombra das Flores” de João Negreiros (Papiro Editora)


Partindo do prefácio de Joaquim Pessoa sobre este livro de João Negreiros do qual destacamos as seguintes palavras - «…um jovem poeta que conhece (…) os caminhos, os segredos, a magia e a força do discurso poético (…) transformando, com invulgar talento, as diversas vozes que há na sua voz, de modo a oferecer-nos um canto em que a dúvida, a interrogação do outro, a confrontação do indivíduo com a realidade é, às vezes dolorosa e, muitas vezes, incómoda. A repetição rítmica das s palavras, das ideias, dos conceitos, é uma arma de arremesso contra uma realidade parada num palco que se move à sua volta.» - estamos perante um jovem com uma potencial invulgar, no âmbito da poesia.

Joaquim Pessoa torna-se mais incisivo na sua apreciação crítica da obra ao afirmar:

«Talvez a palavra inconformismo seja o que melhor define o posicionamento de João Negreiros (…) perante um conjunto de vivências (…) que não são mais do que sinais exteriores de uma vida formal, sem força interior (…)»


«Não é vulgar no panorama da nova poesia portuguesa (…) esta coragem de enfrentar o leitor. Negreiros rasga, fere, incomoda (…). O seu discurso não é doce, o seu lirismo está frequentemente carregado de ansiedade, de angústia, (…) mas também é ele que sai mais magoado (…) mas não vencido (…)».

«Os outros são o alimento da sua poesia, ao contrário do culto narcisista da maior parte da poesia que hoje se faz (…) onde cada livro tem dificuldade em inovar, em criar a diferença».

O Cheiro da sombra das flores destaca-se, por isso, no universo dos jovens poetas portugueses pela ousada mestria impressa no ritmo das frases, de onde sai uma profusão de jogos de palavras e sonoridades através de um quase que xadrez homofónico, no qual as palavras são compostas e decompostas, partidas a meio e depois reagrupadas, com uma grafia diferente. A fonética de palavras aparentemente semelhantes entra em rota de colisão com a grafia e a sintaxe, multiplicando-lhes o significado como no poema A voz dos natos mudos.

Onirismo e surrealismo são as palavras que nos ocorrem face à riqueza imagética sugerida logo pelo título O Cheiro da sombra das Flores.

Contradições, imagens difusas, que se confundem e se misturam como num sonho. Ou num delírio.

De entre as diversas vozes do Autor de que falava Joaquim Pessoa, sobressai a voz da Ausência como nos poemas A Tristeza, O Anjo que até dá pena e Código Postal – a este último mistura-se também a voz do Desamor -; a voz da Revolta em poemas de intervenção como O que a humanidade precisa, O emprego das palavras, ou Infantário de infantaria.

Há, também, uma certa dose de Nihilismo que espreita nas entrelinhas de O jornalista da vossa beleza e A beldade doente internou-se.

Há, também, a voz da Esperança, traduzida na expressão da perseguição de um sonho utópico de felicidade em Trilho dos dedos dos pés. Ou a da Desesperança como em O diabo esfregou-me os olhos.

A ironia mordaz destilada pelo Autora aflora a veia sensível do leitor como o amargor do fel expelido pelo poeta como resultado do egoísmo e da indiferença da sociedade em O Cornudo e Estou por tudo.

A voz do Erotismo e da Sensualidade aparece-nos em A Toalha de Turco saltando, em seguida, para a tonalidade mais sombria da voz do Desespero ou da Solidão Acompanhada em Há sempre lugar para mais um, uma denúncia virulenta face ao comércio do sexo.
Poema irmão de A Tristeza é aquele cujo título, Botão de Campainha, não é aquilo que parece. Trata-se de mais uma polissemia derivada d’O Cheiro da sombra das flores e, consequentemente, um dos poemas que melhor incarna o espírito inerente ao título, onde contradições e paradoxos brotam de um onirismo que lembram a pintura do surrealista Onik ou, porque não, o próprio Dalí. E onde os sentidos da visão e do olfacto se confundem numa orgia sinestésica.

A crítica social como denúncia da falta de civismo ou de respeito para com o outro dá voz à Indignação em poemas como Fechou o Tasco e Eu amo no turno dos Outros, nos quais a denúncia face aos males da sociedade surge como contraponto àquilo que esta tem de positivo: a Amor. Trata-se, aliás, de um poema que apresenta as diferentes nuances do amor que vão desde o desprezo condescendente até à adoração incondicional.

Outra vertente da crítica social presente neste volume dá voz à expressão da Raiva face à indiferença autista do outro em A muda de roupa que fala nua.

O mais sublime de todos os poemas desta publicação, talvez o mais dilacerante, onde João Negreiros se ultrapassa a si próprio, é o poema dedicado à figura maternal que acolhe toda a humanidade no seu seio: Mãe.

Logo a seguir Negreiros cria um violento contraste ao expor os impulsos menos nobres de uma alma que é apesar de tudo, humana, nos últimos versos de Galanteio. Contradições inerentes a uma alma de poeta.

Novamente a voz do Inconformismo de Eles Verão mostra de forma inequívoca o dilema do Autor com a frase «…não quis que quem tem merda na cabeça lhe pusesse estrume nos pés…». Um conflito que envolve o narrador, no qual a preservação da identidade choca com a parede dos preconceitos de uma sociedade de “vistas curtas”.

O mito e Eco e Narciso está subjacente em Contigo é isso tudo, apesar da inversão de papéis, um poema onde o amor mútuo é como o cheiro da sombra das flores, isto é, é como se fosse uma miragem, existindo apenas no imaginário daquele que sonha, que imagina o amor, que o vive dentro de si e para si mesmo.

Um amor que se transmuta na voz da Amargura nos últimos versos do já mencionado A Beldade doente internou-se e seguindo-se a voz da acalmia após a tempestade emocional com uma momento de paz ao Pequeno-almoço.

É assim a poesia de João Negreiros.

Complexa.

Paradoxal.

Bela.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, January 02, 2008

“O Lápis do Carpinteiro” de Manuel Rivas (Dom Quixote)


Manuel Rivas é um reputado romancista galego, nascido na Corunha em 1957. Licenciado em Ciências da Comunicação, Rivas é um escritor multifacetado: ensaio, poesia, conto, romance são os géneros aos quais dedica a sua actividade literária, paralelamente à escrita jornalística.

O local de acção de
O Lápis do Carpinteiro situa-se na Galiza, em 1936.

Franco está no poder e a repressão ideológica é apertada.

Na prisão, um preso político, um “pintor de ideias” desenha o Pórtico da Glória, utilizando um lápis de carpinteiro. Vermelho. Cor do sangue e da fraternidade.

O Pórtico representa o Dia do Juízo Final. Os rostos dos anjos e dos profetas estão representados pelos prisioneiros políticos enquanto que os demónios torturadores são os guardas do inferno prisional da prisão de San Simón. O rosto de Daniel da Barca, o médico cubano e amigo de Che, representa o profeta Daniel. Na cova dos leões. Um dos poucos que consegue escapar à voracidade da fúria das feras humanas.


Dono de uma prosa sublime, Rivas manipula o lápis (ou a caneta) não de carpinteiro mas de artífice da Palavra, construindo frases e ideias a partir de factos e personagens reais. O resultado é a criação de uma obra de ficção cuja dolorosa beleza cria no leitor a sensação de verosimilhança semelhante àquela que experimentámos ao visualizar uma obra cinematográfica como A Lista de Schindler, realizada por Steven Spielberg.

Isto porque tal como no romance de Thomas Keneally que deu origem ao filme, a personagem principal, neste caso o ex-guarda prisional Herbal, muda, a dado momento da narrativa, de convicções mediante o choque causado por uma imagem. Tal como Schindler, o fabricante de armas nazi, que sofre uma revolução emocional face ao impacto do cadáver de uma criança de vestida de vermelho em cima da pilha de cadáveres destinados ao forno crematório. No caso do carcereiro da prisão de San Simón assistimos à ocorrência de um abalo emocional do mesmo género após esta sinistra personagem ser obrigada a executar o autor do Pórtico da Glória – pintura mural executada com um vulgar lápis de carpinteiro representando o Apocalipse, onde os rostos dos prisioneiros políticos dão forma a anjos e profetas. O “pintor de ideias”, considerado subversivo e perigoso para o regime de Franco, faz uma última conversão antes de morrer, através do impacto imagético do seu génio artístico, a qual se traduz na redenção do seu próprio assassino.

Herbal, o guarda que assassina o pintor, herda o vulgar lápis de carpinteiro que inspirava a arte nos seus dedos, transformando o pensamento em imagens. Após a sua morte, o mesmo lápis vermelho de carpinteiro, transforma-se na voz da sua Consciência. Ou do Remorso…

… sempre que o coloca atrás da orelha.

Como se o artista lhe segredasse ao ouvido do carrasco os próprios pensamentos. Um toque de realismo mágico, introduzido pelo Autor, que se serve deste recurso para expressar a voz do humanismo.

O pretexto para a narração da história é despoletado pelo jornalista Carlos Sousa, de origem portuguesa, o qual tem como missão entrevistar o Doutor Da Barca, antigo prisioneiro político, defensor dos direitos humanos e das condições de higiene nas prisões no tempo da ditadura. Daniel da Barca será, posteriormente, exilado e lutará pelos seus ideais ao lado de Che Guevara.

Carlos visita o Doutor, já idoso e agonizante, martirizado pela tísica.

Paralelamente, a narrativa continua do outro lado, do ponto de vista do ex-guarda, Herbal, que gere o bar de alterne local com a proxeneta Manila. Sentado à mesa, Herbal vai desfiando o rosário das suas memórias à jovem prostituta Maria de la Visitación, enquanto olha o lápis do carpinteiro, seu companheiro de tantos anos – a voz dos fantasmas que lhe povoam a mente..

O desenvolvimento da narrativa é feito com base no confronto entre forças duas opostas: aqueles que lutam por um ideal de justiça social, como o Dr. Da Barca, o Padre Poeta e o Pintor de Ideias e todos aqueles que tentam defender o regime.

Herbal, o carcereiro e, a dada altura carrasco, sendo um dos narradores da história, representa, na altura em que conhece o jovem médico Daniel da Barca, a categoria dos excluídos sociais, um camponês de origem humilde, sem estudos, carente a todos os níveis, vítima de maus tratos por parte do pai. Desenvolve, em consequência das privações, um ódio social face àqueles que têm a oportunidade de ter tudo aquilo que lhe foi vedado. Principalmente o jovem médico, belo e culto, que consegue cativar Marisa Mallo, a filha do cacique da região, a mulher mais bela da terra.

O Dr. Da Barca, chegado à Galiza, vindo de Cuba, partilha muitas das convicções de Che Guevara a respeito dos ideais de justiça social, tornar-se-á, mais tarde, o médico dos seus companheiros de prisão, ao declarar guerra à tísica e ao assumir a luta pelas melhorias das condições de vida dos prisioneiros.

Antes de ser preso, Daniel da Barca sofre a discriminação por parte da família da noiva, devido à precariedade da situação económica de médico recém-formado, sem reputação construída. Além do mais, a sua situação de forasteiro causa, também, desconfiança.

Daniel vê-se duplamente visado: primeiro, pelas suas ideias políticas e, depois, pela sua paixão correspondida por Marisa.

A beleza e o carácter da jovem tornam-na admirada por todos e, consequentemente, desejada por muitos. De tal forma que a sua preferência por Daniel acaba por colocá-lo em perigo…

Por outro lado, o espírito rebelde e independente de Marisa faz dela a perfeita heroína romântica e o par ideal para uma personagem com o carácter de Daniel da Barca.

A paixão romântica dos dois protagonistas, uma típica história de amor em tempo de guerra civil, foge ao lugar comum pela exposição do sofrimento dilacerante como o gume de uma lâmina do anti-herói, Herbal, o mal-amado.

Também o ultrapassar das barreiras ideológicas, após o final da guerra, leva à acalmia e à estabilização emocional do vilão, permitindo que as peças se encaixem no seu devido lugar, ao mostrar-lhe com a passagem das décadas, uma visão mais global da realidade. Estamos a falar do amadurecimento que resulta da consolidação da mudança de Herbal, motivada pelo poder persuasivo de um lápis de carpinteiro, atrás da orelha.

Ou das memórias a ele associadas.

O lápis do qual saiu uma pintura mural (ou, neste caso, moral) numa prisão, como testemunho e denúncia das atrocidades cometidas.
O lápis que despoleta o extirpar do mal através de uma espécie de exorcismo dos demónios internos, de dissolução da podridão emocional causada pelo Ciúme e pela Inveja, ao usar a jovem prostituta como confessora…

É, também, o lápis que traz a memória de um poema a falar do canto dos melros da autoria de um jovem padre poeta assassinado.

A memória e a nostalgia de um passado que são trazidas à consciência do tempo presente, pela voz associada a um lápis, fraternal e revolucionário, que segreda ao ouvido a doutrina do amor pela Humanidade…

Cláudia de Sousa Dias