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Wednesday, July 01, 2015

Flanzine nº 7 - “Miopia” (org. João Pedro Azul e Luís Olival)





Há uma semana atrás foi lançado o mais recente nº da Flanzine, o nº 8 intitulado LOL & Pop mas, dado que este ainda não me chegou às mãos, falar-vos-ei do nº anterior. Miopia, precisamente. A Miopia está na ordem do dia, e é omnipresente, ubíqua. Dificuldade em ver ao longe. Pode também ter a ver com a “cegueira” de que falava Saramago no livro que lhe serviu de trampolim para o Nobel e que me deixou intrigada numa primeira leitura, ainda no início dos anos 2000, sobretudo pela semelhança estrutural e pelo aspecto progressivo que partilha com o romance de Camus, A Peste. Mas, após a segunda leitura, já dois anos após o rebentar a crise de 2008, vi-me obrigada a olhar a Europa com lentes progressivas, saindo da miopia mental e sem precisar de um transplante de córnea.

Na Flanzine nº 7 fala-se dos mais variados tipos de miopia, situações episódicas, por vezes de cariz autobiográfico, histórias que remetem para o lexema e a sua condição estigmatizante, associando-o a uma miopia física que adquire a forma de metonímia. Ou não. De miopia mental, ideológica, social.

Este número da Flanzine cativa ao primeiro olhar logo pela imagem arrepiante que exibe a aguarela de cariz algo macabro onde pássaros (estorninhos?) vazam o olho esquerdo de Jorge Luís Borges. As aves picam o olho de onde emerge uma chuva de sangue, enquanto o outro, o direito, está opaco e completamente incapaz de ver seja o que for. A autoria da ilustração é de Tamara Alves.

João Pedro Azul fala de estigmatização e miopia levada a cabo pelos “outros” e de como essa miopia pode ser usada em favor do estigmatizado.

No texto de Catarina Nunes de Almeida é também abordada a situação onde o estigmatizado é o imigrante que chega à Europa, através de um mais do que actual poema em prosa “Naufrágio em Lampedusa”.

Aludindo a um conto de Hans Christian Andersen e, simultaneamente ao mito de Fátima no poema “Miocardia ou Miopia do Coração” o poema de F.S. Hill aponta os paradoxos da moderna cristandade, acompanhado da belíssima ilustração em tons de cinza de Carlota Lagido, onde figura um coração que emerge de uma moita e se encaixa na imagem de uma ave que, a alguns, poderá parecer uma pomba. Do lado esquerdo, quase invisível, um gato preto de aparência algo mefistofélica, com patas e nariz brancos e olhar fosforescente, suge uma luciférica anti-miopia.

Poema magnífico é o de Joana Bértholo a revelar a exímia artífice da palavra e destreza no domínio da linguagem, particularmente no aspecto das múltiplas declinações semânticas da palavra “miopia” nas suas “Anotações Inter-galácticas”.

João Silveira traz para a Flanzine 7 “As Dioptrias do Coração de Elisa” aludindo ao poema de António Gancho "As Dioptrias de Elisa" para dar uma machadada na indiferença dos bem-instalados na vida e na respectiva miopia face à miséria social que é sugerida pelo narrador acerca daqueles que vivem centrados no próprio umbigo. O poema é satírica e eficazmente ilustrado por Duarte G. exibindo dois hipsters blindados num carro, encurralado por uma manifestação que decorre lá fora, enquanto ligam a rádio para não ouvirem as vozes dos manifestantes, preferindo ficar imersos em pilhas de revistas de arte e jornais sobre finanças, viram a cara ao que se passa na rua. Sobre todos eles, paira um balão, com um ícone obeso que ostenta um cifrão e um sorriso obsceno.

Miguel Martins traça em linhas gerais uma cena do quotidiano, à mesa de um café onde só se assiste à banalidade. E, no entanto, as questões mais próximas do homem são precisamente as mais prosaicas, fazendo lembrar a tarde de natação recordada por Kafka no seu diário, referindo-se ao dia em que a Alemanha havia declarado guerra à Polónia.

De Sónia Batista surge o poema que fala do proibido e da educação que não ensina a ver excepto por um único e determinado ponto de vista. Uma forma de miopia selectiva, onde se joga com dioptrias e dislexias cognitivas. Estereótipos e distorções, portanto.

Já o texto de Miguel Cardoso a miopia é encarada como o universo cognitivo dos medíocres ou dos ingénuos que param no tempo.

Lina e Nando são os autores da ilustração que incarna a figura mitológica da Miopia, com quatro olhos (ou lentes), acompanhada do texto: “Miopia, filha de Zeus, de tanto espreitar ao longe homens e mulheres desnudos, arregalou-se-lhe na face um segundo par de olhos...”

A melancolia é a nota dominante do díptico, dois belos poemas de Renato Cardoso, acompanhados por uma lindíssima fotografia de Olga Santos, que recebem o título genérico de “Hipermetrofia de S. Lázaro”, enquanto Marta Bernardes nos dá a conhecer uma visão desencantada do mundo e da sociedade com “seis dioptrias à esquerda e sete e meia à direita”.  Ao lado do poema mas independente deste, Luís Silva ilustra uns óculos que dificilmente se encaixariam na anatomia humana, pouco ajudando a curar a miopia de quem quer que seja.

Alex Gozblau ilustra o poema de Rute Castro, inspirado em Virginia Woolf e Valério Romão aponta a miopia relacionada com a falta de visão em relação ao futuro, que nada tem a ver com astrologia, tarologia ou quiromancia (todas formas míopes de olhar o futuro) e para o qual a sociedade (elites e massas) só conseguem dirigir um olhar estrábico.

Hélder Magalhães num poema paródico que se decompõe em seis Hai-ku e uma quadra (apesar de não se apresentar graficamente dessa forma, a leitura em alta voz dá-lhe esse ritmo) congrega elementos vários como o amor, a nudez, luz e miopia, criando um efeito, de certa forma, “impressionista. Ilustrado por uma bela fotografia de Mário Venda Nova.

Sempre em tom de provocação, parodiando a obra “A Origem do Mundo” de G. Courbet, João Vilhena apresenta o trabalho plástico (ou de silicone) intitulado “Stereo Myope étant donnés Pubien”. O poema de Margarida Ferra focaliza a miopia da memória, o olhar que vê o passado desfocado, por vezes tão esbatido que adquire a imaterialidade da inexistência em “Vilanela como quem não vê”.

E passemos agora aos textos em prosa.

Comecemos pelo texto de Margarida Ribeiro, que efectua a ligação ao tema deste número da revista, na última frase do texto, a remeter para a questão da visão míope quanto à forma específica de captar imagens, dotando assim o texto de uma grande beleza plástica.

Nuno Estêvão apresenta-nos “O Senhor Serafim”, protagonista de um conto cujo cenário é ambíguo, deixando o leitor na dúvida se se trata de uma consulta num oftalmologista ou num hospital psiquiátrico, onde o narrador faz a apologia do absurdo, a resultar num hilariante texto de teor marcadamente surrealista.

Cláudia Lucas Chéu constrói um pequeno texto dramático cujo objectivo é realçar a componente esquizofrénica dos programas de entretenimento televisivo que transformam o espectador em espectáculo. Note-se a ironia do título “Devemos ajudar os desprivilegiados”, objectivo que está totalmente ausente da interacção entre o pivot e o ouvinte. Todo o texto é um autêntico “diálogo” ou melhor um conjunto de enunciados que é tudo menos um diálogo, onde a réplica ao outro é completamente ignorada, denunciando a autêntica “miopia” patente na relação interpessoal entre ambos os intervenientes.

Gonçalo M. Tavares trata o tema com “Miopia e Erudição” dois conceitos que, no conto, se aproximam tanto que chegam a confundir-se, traçando cinco quadros onde se desdobram critérios de (não) avaliação das dioptrias dos utentes que vão parar à consulta do oftalmologista.

Já para Beatriz Hierro Lopez miopia é tudo uma questão de perspectiva.

Filipa Leal, por sua vez, estabelece um diálogo, sob a forma de texto dramático, inspirado na peça Salomé de Oscar Wilde e nos Contos de Gin-tonic de Mário Henrique Leiria, criando a história de um equívoco onde a culpada é a miopia: “É o que faz a miopia”.

Com João Reis a miopia está presente por causa da presença de “um homem com óculos”, apenas para demonstrar como pode a miopia matar por um motivo fútil.

Manuel Cintra traz-nos, por outro lado, a “Desmiopiação” que surge ao lado de uma belíssima ilustração de Raquel Costa a mostrar a forma de ultrapassar a miopia passando a realidade por uma lupa. No texto de Cintra o protagonista é jovem míope assediado, na melhor das hipóteses, por um fantasma e, na pior, por um ser infernal, dotado de apetites vampíricos.

Paulo José Miranda cria um dos mais belos e mais bem construídos textos das revista, a articular-se na perfeição com o tema desta edição da Flanzine. Discorrendo sobre as faculdades de ver ao longe e ao perto do ponto de vista filosófico, o autor re-liga o mito e o sistema de crenças à beleza da palavra e à criação de sentido(s). A ilustração é de Rui Rasquinho.

Ariana Aragão mostra o seu “Plástico Fetiche” através de um mergulho sórdido no ambiente de decadência, exclusão, desvalorização social e destruição de ilusões em que se move uma trabalhadora do sexo,m contraponto com o fascínio doentio que a sordidez nas relações humanas exerce no voyeurismo de uma sociedade míope.

João Sobral expõe outro lado da miopia social numa mini banda desenhada onde descreve, em poquíssimas palavras, a indiferença dos privilegiados e, mesmo, dos remediados que o sistema económico-financeiro empurra para a miséria.

Frederico Pereira centra-se na dificuldade em remar contra a maré, ao compreender a recusa da sociedade em lutar contra a solidão que implica a degradação progressiva do corpo físico, a par da também progressiva alienação da mente. A miopia voluntária da sociedade para com este lado do real serve de base à construção do discurso duríssimo do seu “Contracorrente”.

Inês Fonseca e Santos apresenta uma miopíssima “Lagarta Listrada”, de onde sobressai um discurso intencionalmente híbrido entre o Português Europeu e Brasileiro e, ao mesmo tempo, as intertextualidades com os contos tradicionais como “O Capuchinho Vermelho”, com a poesia de Manuel Bandeira e com o discurso do absurdo e de cariz surrealista de Lewis Carroll em “Alice no País das Maravilhas”. Ilustrou Catarina Vieira.

A hilariante ilustração da contra-capa é de Pardal/Shut up Cláudia a representar uma Eva e um Adão míopes, totalmente desorientados na procura do fruto proibido, procurando-o no chão, enquanto ele se encontra nas árvores. O trocadilho fonético que lhe serve de legenda poderia figurar no semanário de Charlie Hebdo, “Num bejo uma piça!” é o mais perfeito retrato da MIOPIA. E com esta me calo.

Cláudia de Sousa Dias
14.05.2015