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Thursday, February 19, 2015

“Atrás dos Montes” de Gerrit Komrij (ASA)

Tradução de Patrícia Couto




Gerrit Komrij é um autor muito pouco divulgado pelos média portugueses, apesar de ter escolhido o nosso país para viver durante os últimos anos de vida. Holandês, nascido em 1944, foi poeta, escreveu ficção, ensaio, traduziu e organizou antologias, tornando-se uma figura de destaque, dentro da produção literária e intelectual holandesa.

O romance Atrás dos Montes mostra o retrato daquilo que hoje se poderia chamar de “Portugal profundo”, ou seja um Portugal de difícil acesso, pelo facto de a trama se passar numa povoação isolada pela serra transmontana, numa pequena vilazinha, “atrás dos montes” ou “over de bergen” no original.

A paisagem mostra-se bela, mas agreste, senão mesmo hostil, devido aos rigores do clima e às condições habitacionais, que tornam difícil suportar Invernos húmidos e gélidos e oVerões infernais. A história passa-se nos anos oitenta, pouco menos de uma década após o vinte e cinco de Abril, mas ali o tempo parece ter parado na época da Ditadura. Ou mesmo da Monarquia. É o olhar de forasteiro do protagonista – que pertence a uma das famílias mais tradicionais da região, mas cujos membros ou se encontram a viver na capital do país ou estão dispersos pelas várias cidades ou regiões do Continente – a constatar o desfasamento chocante entre o litoral (em pleno torvelinho de desenvolvimento) e o interior (esquecido pelo centro decisor ou, no mínimo, relegado para segundo plano).

Foi precisamente em meados da década de oitenta que Komrij havia decidido refugiar-se num lugar remoto, cujo isolamento extremo lhe garantisse a tranquilidade que a fama, adquirida no seu país de origem, lhe roubara. O interior transmontano parecera-lhe, então, a solução perfeita, elegendo a localidade de Alvites para aí viver – e escrever – com o seu companheiro. Mas foram cinco anos (de 1984 a 1989) durante os quais rapidamente eclodiram os conflitos entre a forma de viver e convicções do escritor e os poderes locais. Mudam-se então para Vila Pouca de Aguiar (Concelho de Oliveira do Hospital) uma localidade também isolada, tranquila, mas já perto daquilo a que chamavam de “civilização”, ou seja uma pequena cidade onde havia, pelo menos uma livraria. Foi ali que Komrij desenvolveu o conhecimento da língua e o gosto pela Literatura Portuguesa.

Atrás do Montes é um romance onde o autor consegue de facto mostrar até que ponto a evolução económica, social e, sobretudo, da mentalidade colectiva dominante, continuava renitente no seu estatismo, assente numa férrea resistência à mudança, nas localidades mais isoladas que ainda hoje faz o país avançar a duas velocidades: à velocidade do caminho-de-ferro, até onde a linha férrea alcança; e à velocidade dos veículos de tracção animal, nos lugares onda as estradas só são alcatroadas mediante o estatuto de quem lá vá morar.

O romance foi publicado em 1990 e encontra-se actualmente esgotado.


A Trama

No romance, o protagonista, Pedro, é um dos herdeiros do antigo solar numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, pertencente ao concelho de Vila Flor. A casa é uma das muitas propriedades do clã, espalhadas pelo país. Seduzido pela simplicidade da vida local e pelo acolhimento caloroso dos habitantes daquela povoação, Pedro cedo se apercebe dos interesses nada altruístas da classe dominante e dos maquiavélicos jogos de poder, levados a cabo pelas famílias da elite local, empenhadas até à medula em fazer com que as coisas não mudem, uma vez que a melhoria das condições de vida da população, implicariam uma perda substancial de poder e influência dos “senhores da terra”.

A tradução para português é feita a partir da Língua Holandesa por Patrícia Couto, uma tradução com algumas falhas em termos de coordenação sintáctica e gralhas ortográficas nos primeiros capítulos, pelo seria aconselhável uma revisão cuidada do texto para futuras reedições. A capa reproduz um óleo de Artur Loureiro, intitulado “vista para o Gerez”, a exibir uma paisagem montanhosa e de difícil acesso, que poderia também perfeitamente ser a de Trás-os-Montes. Mas este isolamento, exasperante do final dos anos oitenta, não impede que apreciemos o excelente domínio da construção da narrativa ficcional de Komrij e o evidente realismo com o qual construiu o retrato social de uma época naquele locus específico, bem como da nitidez com que "pinta" discursivamente a paisagem natural e o clima transmontano.


A história divide-se em três andamentos, tal como um concerto de música clássica, cada qual seguindo o seu ritmo próprio. Assim, a trama é modalizada, em termos de ritmo e duração, em três movimentos diferentes: “Largo”, “Adagio” e “Staccato”.

O primeiro movimento, “Largo” é desenvolvido de forma lenta, a acção prolonga-se no tempo. É a parte da história que é detentora de maior durabilidade, indo do capítulo I ao capítulo VI. Inclui a viagem de Pedro, até chegar ao solar da família, nove horas ao todo, partindo de Lisboa, com várias mudanças de transporte pelo caminho, lembrando quase a viagem de Jacinto de Paris até Tormes em A Cidade e as Serras de Eça de Queirós. Todas as cenas deste “Largo” são construídas à semelhança de uma longa metragem onde cada plano regista o mais ínfimo movimento ou pulsar da vida, captando o mais pequeno detalhe. Os pormenores sempre enquadrados de forma a mostrarem o quanto são fundamentais, todas as micro-peças de uma engrenagem que compõem um todo, tal como num filme de Manoel Oliveira.

O capítulo I, após uma breve introdução, apresenta a verdadeira protagonista da história, a casa da família de Pedro. O narrador, de terceira pessoa, inicia a descrição de cada uma das fases da extenuante viagem, retratando as pessoas em volta no comboio, mas através do olhar de Pedro, que repara nos diversos tipos sociais que o acompanham na carruagem – desde a camponesa que transporta animais de criação para consumo ao descontraído médico reformado da aldeia. O narrador sublinha o cansaço acumulado no protagonista que atinge o auge um instante antes de desabar na cama de um dos quartos de hóspedes da casa, a qual se encontra gelada pelo frio de um rigoroso Inverno e na qual não se acende uma lareira ou um aquecedor. No primeiro contacto de Pedro com a casa esta mostra-se hostil, apesar da simpatia dos serviçais, sobretudo de Graciosa, a governanta.

O capítulo II começa a narrar as actividades do dia seguinte, a adaptação de Pedro à rotina e aos hábitos da casa e ao temperamento das pessoas que a habitam. A linguagem empregue e, sobretudo os adjectivos, acusam o desgaste, a degradação do solar, fruto da acção do tempo e do abandono pelos donos, da falta de manutenção, captada e registada pelo olhar do forasteiro. A atmosfera é triste e desoladora. Sobretudo quando se fala, em contraponto, de um passado de glória daquele solar no tempo em que era habitado pela família, e que está inscrito nos objectos, nas paredes, nas vigas que a sustentam, tudo vestígios de um passado não tão distante assim: fotografias, um quadro a óleo da Tia Augusta, um uma infinidade de vetustos e nobres objectos decorativos.

No capítulo III, é introduzida outra figura central na trama, uma personagem que tem tanto de enigmática como de esquiva: o Padre Rodrigo, encarregue de zelar pela Fundação Pedra Viva, a qual sobrevive com parte dos dividendos da herança da Tia Augusta, a falecida proprietária do solar. Impossível não reparar que, apesar de Pedro ser um dos donos da casa e um dos herdeiros directos, não se sente à vontade para agir como tal. Esta atitude está patente nas delicadas manobras do jovem, sobretudo discursivas, no sentido de evitar ferir a susceptibilidade do clérigo, que ali se move como se fosse ele na verdade o proprietário. Apesar da aparente delicadeza e bonomia do padre, este move-se como se se sentisse perfeitamente à vontade na propriedade. No entanto, são por demais evidentes os sinais de abandono se não mesmo de descuido, como se a casa estivesse a mirrar, a morrer lentamente. Não há ali um único objecto que Pedro pense em mudar de lugar sem antes se interrogar se o padre ficará ou não ofendido.

É também neste momento da história que Pedro fica a conhecer outro clã influente na aldeia, o da família do médico, o qual encontrara já no comboio. Este é uma figura venerada na povoação. Este tem, no entanto uma atitude estranha pois avisa o protagonista, à laia de oráculo, para não se imiscuir muito com a população de forma a não ser “contagiado” pela miséria.


No capítulo IV, o leitor é confrontado com a alteração da paisagem campestre e montanhosa, que vai mudando conforme as estações. Komrij sublinha a impressionante beleza da transformação do ambiente da vegetação, das sensações térmicas como poucos escritores serão capazes de o fazer: desde o pesado rigor do Inverno transmontano, durante o qual as estradas não alcatroadas e enlameadas favorecem ainda mais o isolamento, à canícula do Verão, cuja intemperança vai engolindo a casa, devorando-a, como os lobos devoram uma carcaça. Uma casa pela qual Pedro se apaixona e se dispõe a recuperar, para conservar o património da família e a memória dos antepassados.

Ao longo de todo este movimento “«Largo”, Pedro vai lentamente tomando nota, da forma como os recursos naturais da região, sobretudo nas terras à volta da casa e que ainda são propriedade da família, vão desaparecendo misteriosamente sem que se saiba para onde vai o lucro – nem mesmo para as obras de manutenção da casa ou sequer para a construção de infra-estruturas que permitam uma escola decente, isolada do frio e da chuva, que deveria ser financiada pela Fundação Pedra Viva, segundo a vontade da Tia Augusta. Estranhamente (ou talvez não) o nome do Padre Rodrigo surge quase sempre ligado aos negócios da fundação e à exploração dos recursos naturais das terras da família de Pedro.
Outro elemento que intensifica a percepção de que algo de errado se passa, não só em relação à propriedade mas no tocante à aldeia e seus habitantes, é a conversa que Pedro acaba por ter com Joaquim, sogro do Padeiro, que o recomenda a Pedro para ajudá-lo nas obras da casa. Joaquim põe o herdeiro de Dona Augusta a par de uma história tenebrosa, um crime sexual, seguido de assassínio, cuidadosa e convenientemente abafado. Um facto a que não é alheio a família da vítima ser de poucos recursos financeiros e, por isso mesmo, não conseguir mover um processo judicial de forma a que seja conduzido com eficácia. A pesada lentidão da resposta das instituições leva as pessoas de condição social modesta a desistirem de recorrer à justiça como se vê no excerto seguinte referindo-se ao que Pedro ouvira da boca de Joaquim:

«Ninguém sabia dizer quando seria o julgamento. A polícia não lhe queria dizer nada. No tribunal, olhavam para ela como se nem existisse e fechavam os guichês.


- Somos pobres, compreende.

Pedro conseguira distanciar-se o suficiente dessa história bizarra para perceber que nesse caso só um advogado poderia ajudar. Era um caso de circunstâncias atenuantes, de impedimento, de defesa própria, de honra de família , resumindo, de todos os argumentos razoáveis e fingidos que os advogados poderiam evocar para fazer desequilibrar os pratos da balança da justiça tenaz, mesmo que aos olhos do espectador a sentença fosse evidente. Parecia que a mulher adivinhou os seus pensamentos.

- Gente pobre não tem advogado. 

Olhou-o fixamente, suplicante.

- Quem quiser ter um advogado precisa de ter amigos. Contactos. Pessoas que são ouvidas. O senhor não sabe de ninguém?»

Deste excerto é possível perceber até que ponto Komrij foi capaz de captar, na transição dos anos '80 para os anos '90 do século XX, o quanto a sociedade portuguesa é hierarquizada e rigidamente estratificada, ainda submetida a uma pesada herança feudal.


No capítulo V, a casa começa a recuperar, a reviver, a respirar como se fosse um ser vivo em convalescença após doença prolongada, graças às obras de manutenção e restauro levadas a cabo por Pedro. Este começa a tornar-se, ele próprio uma pessoa influente na terra à medida que vai fazendo valer os seus direitos sobre a propriedade e melhorando as condições de vida dos que nela habitam. Porém, o jovem herdeiro continua a achar estranho que a escola, frequentada pelos filhos dos camponeses, que deveria ser financiada pela Fundação Pedra Viva se apresente tão degradada a ponto de chover lá dentro no Inverno, assim como as refeições escolares, que também deveriam ser suportadas pela Fundação dirigida pelo Padre Rodrigo, sejam tão incompreensivelmente exíguas.

O narrador-locutor dá a entender, não sem uma leve tonalidade de sarcasmo, ser o padre alguém muito ocupado para se afligir com assuntos triviais como as necessidades dos trabalhadores, sobretudo das mulheres que, com excepção de Fernanda e da falecida Tia Augusta desempenham, geralmente, funções serviçais na aldeia. Estes (e estas, sobretudo) tanto para o sacerdote como para os notáveis da aldeia, são apenas instrumentos que servem para produzir, como se vê no excerto seguinte:


«As famílias de dezenas de 'jornaleiros' dependiam da apanha da azeitona no Inverno e da vindima no Outono. Cabia a ele (ao Padre Rodrigo) fazer com que cada uma recebesse o seu salário a tempo e horas. Sobre ele caíam as responsabilidades. Um homem com o seu estatuto na aldeia não pode ser incomodado, com cada contratempo das mulheres. E, como sacerdote ocupado com aquilo que a Igreja considera essencial, ele provavelmente nem reparava nos problemas delas. Não era por negligência, argumentava Pedro, era causado pelo distanciamento que existia entre os padres, crescidos e formados nas proximidades do céu e da terra. Ele podia ser prestável mas tinha mais que fazer.

Isso explicava por que ele , na manhã em que Filomena quis abrir um dos presuntos na cozinha e se tinha aleijado, se limitou a mandar Graciosa ligar a mão de Filomana, que sangrava profusamente, com um pano de cozinha.

(…)

Filomena levantou a mão no ar. O sangue escorria pelo braço. Graciosa e Clara estavam as duas encostadas à parede e abanavam a cabeça. Não restava mais nada ao Pedro do que correr pela estrada fora, para o Bairro e avisar o Luciano.

Pouco depois, estavam com Filomena no táxi. Daniel, o filho mais novo, vinha pela estrada. Pararam e deixaram-no entrar. Toda a viagem olhou o Pedro com ar carrancudo.

Quando chegaram à praça em frente ao hospital de Vila Flor, já passava do meio-dia. O táxi parou na entrada para as urgências, ao lado de uma ambulância, com as portas traseiras abertas. Pedro correu para dentro. Não encontrou ninguém, o posto estava deserto. Por uma porta lateral, chegou à entrada do Hospital.

- O médico! – gritou para o homem atrás do balcão. Contra vontade, o homem levantou os olhos do jornal e disse:
- Os médicos foram almoçar.
- É uma urgência!
- Foram todos almoçar.
E, no tom de quem, com a última réstia de paciência, explica, mais uma vez, que no mundo dois mais dois serão quatro, acrescentou, olhando para o relógio:
- É meio dia e meia.
Pegou novamente no jornal e continuou a ler.»


Além daquilo que já foi dito a propósito deste excerto, o que dele sobressai é, sobretudo na última parte, na cena do posto médico, o desprezo das instituições por quem não possui poder ou influência, como já se havia verificado também no caso do tribunal, relatado na primeira pessoa por um familiar de Joaquim.
Outro aspecto a salientar é o facto de as vozes do narrador e de Pedro serem normalmente coincidentes, estando quase sempre os pontos de vista de ambos os enunciadores muito próximos. Excepto no que diz respeito ao Padre Rodrigo, com quem Pedro simpatiza, pelo menos até este ponto da evolução da trama. No excerto vemos que Pedro ainda tem esperança de que haja alguma explicação para a estranha conduta do Padre. Mas, aqui, a divergência de ambas as vozes, a do narrador e a de Pedro, que citada de forma indirecta pelo narrador, o qualreproduz o pensamento da personagem, incorporando-o no seu próprio discurso – “não era por negligência, argumentava Pedro”. O proprietário do solar está, ainda, em fase de negação no tocante ao carácter do sacerdote, mas esta dissonância de vozes é já um indício do volte face que irá ocorrer em breve.

Na última secção deste capítulo, é introduzido mais um elemento de mudança: a única personagem viva feminina que, na trama, não ocupa uma posição de serviçal ou de doméstica, dona-de-casa: Fernanda, a sobrinha do Padre. Trata-se de uma visita inesperada que altera as rotinas de toda a gente e é motivo de “falatório” na aldeia. Fernanda é, na aldeia, a única mulher que goza de autonomia, desloca-se de motorizada (quase não há viaturas na localidade), tem uma profissão cujo salário lhe permite viver sozinha no Porto, veste de forma extravagante, a contrastar violentamente com os trajes das camponesas ou das discretas esposas dos notáveis da povoação. Após uma entrada triunfal, Fernanda começa por ocupar uma posição periférica na trama, distanciada de Pedro e do solar. Será o Padre Rodrigo a promover a aproximação de ambos.

O capítulo VI, com o qual finaliza o movimento “Largo” assinala a chegada da Primavera e o alívio de um Inverno impiedoso. O quadro descritivo final mostra a crescente azáfama produtiva das gentes que trabalham a terra,seguindo o ritmo biológico da Natureza e das estações do ano, extraindo da terra os seus frutos, alimentando-se dela como de uma mãe primordial. A influência de Pedro na comunidade continua a crescer, mediante a preocupação demonstrada pelas condições de vida dos trabalhadores nas terras que pertencem à família.


O capítulo VII marca a entrada na segunda parte do romance: o movimento “Adagio”, muito mais breve que o primeiro, contendo apenas um capítulo. Este “Adágio” é como que um momento de suspensão face ao resto da narrativa, antecedendo o desenvolvimento brusco do movimento seguinte. O ritmo, nesta fase de curta duração, é ainda mais lento do que na primeira parte mas mais fluido. O peso dos dias e a inactividade causada pelo isolamento, devido a estradas intransitáveis, causadas pelo degelo e pelos dias ainda álgidos, fazem as horas arrastarem-se. Por outro lado, é nesta fase da intriga que o plano delineado por vontade alheia à do protagonista, começa a ser posto em marcha. Pedro comete um erro fatal, caindo na cilada que lhe preparam, cometendo um deslize que depois irá precipitar a escalada de acontecimentos negativos da terceira parte do romance e culminam no desfecho trágico, ou a derrocada final, já no movimento Staccato.

Uma palavra sobre a personagem Fernanda: contrariamente ao que seria de esperar não se trata de um personagem que se torna simpática ao público feminino, ao contrário da cozinheira Graciosa, uma mulher simples, mas transparente, que dá mostras do seu contentamento para com o patrão cozinhando-lhe leite-creme. Fernanda tem uma presença arrogante, marcada logo pela entrada em cena, pautando o seu comportamento e imagem pela extravagância e não pela discrição, fazendo questão de demonstrar ostensivamente o quanto se destaca das outras figuras femininas. O visual kitsch com que se apresenta é muito semelhante ao de uma personagem de uma série norte-americana dos anos oitenta Fame ou quando muito, o de uma personagem do filme Grease. No entanto, a autonomia e a profissão que desempenha despertam curiosidade não só no protagonista como no leitor. Infelizmente a vulgaridade que deixa transparecer na imagem exterior é, realmente, a projecção do “eu” de Fernanda que o narrador vai deixando entrever neste "Adágio" e se revela em toda a sua abjecção no “Staccato”.

O movimento “Stacatto” de Atrás dos Montes é composto pelos capítulos VIII, IX e X. O ritmo da narrativa obedece a uma cadência bastante mais acelerada que, mesmo ao chegar ao final, sofre uma suspensão violenta ou, se quisermos, uma paragem brusca. Staccato. Estacando. Estagnando. Suspendendo.

Nos capítulos VIII e IX, o narrador passa a ser de primeira pessoa, autodiegético e, portanto, levado a cabo pela voz de Pedro, que conta a forma como se processa a sua derrocada. A versão do protagonista contraria a versão “oficial” da história, difundida na e pela comunidade. Dois pontos de vista opostos mediados por uma terceira voz, aquela que narra os restantes capítulos. O ponto de vista de Pedro é crucial para se obter um termo de comparação, porque é ele quem está na posse de informação fundamental, que não é do conhecimento geral mas que muda completamente a configuração dos factos: quem foi na verdade contemplado no testamento de D. Augusta, quais os verdadeiros fins da Fundação Pedra Viva e, por último, quem e durante quanto tempo deverá estar encarregue da sua gestão.

Por motivos vários, que compreendem uma série de peripécias, sucedidas entre o final da segunda parte e nos dois primeiros capítulos da terceira, não é a versão completa dos factos que chega ao conhecimento geral. A narração autodiegética de Pedro, à laia de depoimento, ou diário, vem colocar as coisas no seu devido lugar, descrevendo o processo, gradual e cumulativo, iniciado no final do Inverno, descrito na primeira parte até ao Outono do ano seguinte, que compreende uma complexa rede de intrigas. Tudo isto tem como consequência o progressivo isolamento do protagonista, encurralado na casa que é a sua fortaleza, onde conta com o apoio e lealdade de Graciosa lá dentro e de Joaquim, fiel amigo, cá fora. Fora de casa, estala uma autêntica guerra de nervos, uma guerra psicológica, cuja principal arma é a difamação, que vai minando a resistência de Pedro. O tom, essencialmente narrativo, neste “staccato”, explica a aceleração do ritmo da acção.

O desânimo é a nota dominante no final do capítulo IX, com o ambiente dionisíaco da festa do fim das colheitas, a transmitir um certo desalento Pasoliniano com um toque burlesco de Buñuel, como no filme “Viridiana”.
No capítulo X, a narrativa de Pedro é suspensa e surge, à laia de epílogo, novamente a voz do narrador de terceira pessoa, a dar uma visão mais global e distanciada dos acontecimentos e a dar conta da evolução das personagens, num tempo mais recente, a posteriori portanto, da casa e daqueles que a habitam, incluindo Pedro, que foi, outrora, um jovem promissor mas que, agora, se afunda na ruína. A casa e ele envelhecem juntos, fundindo-se as almas de ambos, como se fossem um casal, inseparável até à morte.

Atrás dos Montes é um retrato pessimista, mas próximo da realidade do Portugal mais afastado do centro de decisões e do olhar dos media, onde o controle social e o exercício do poder locais são feitos com mão de ferro e pelas vias mais tortuosas, o que explica o facto de o tempo ali parecer stacatto, suspenso e estagnado, paralisado de forma abrupta, como no movimento final desta narrativa.



Cláudia de Sousa Dias
17.12.2014-22.01.2015




Podem ler um pouco mais sobre a ligação do autor a Portugal, aqui:
http://www.cmjornal.xl.pt/cultura/detalhe/funeral-de-gerrit-komrij-amanha-em-vila-pouca-da-beira.html