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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, March 29, 2006

“A Montanha da Água Lilás” de Pepetela (Dom Quixote)


Uma fábula para todas as idades.

A presente obra é uma belíssima alegoria alusiva aos Povos de África ou a qualquer parte do globo cujos recursos naturais se tornem imprescindíveis para a espécie humana.
Utilizando uma linguagem simples e, simultaneamente, poética, o Autor consegue fazer entender a um público tão vasto quanto possível, o processo social que leva à diferenciação de classes e, simultaneamente, a estruturação de uma economia assim como a instituição de um sistema político dentro de um dado território que comporte uma ou mais etnias.

A estória é contada no português dos PALOP utilizando o léxico e a semântica tipicamente angolanos. O Autor introduz, também, algum vocabulário da sua própria autoria – neologismos. Apesar disto, o leitor, após um período inicial de desorientação, passa facilmente a deduzir o significado deste léxico, para nós exótico, integrando-o facilmente no contexto.

Dedicado a Lueji, a filha do Autor, A Montanha da Água Lilás é um conto narrado por um ancião à luz da fogueira, em plena noite africana, cuja magia tem como objectivo deslumbrar um público sem idade.

Trata-se de um conto que nos poderia ter sido trazido de qualquer parte de África, ou até do Oriente, onde, segundo a lenda, também existe água lilás. Esta água perfumada é um produto extraordinário, vital para a humanidade, cujas propriedades têm a faculdade de eliminar todo o tipo de parasitas que infestem a pele dos lupis (habitantes da Montanha da Água Lilás) e também o humor dos seres vivos em geral.

Utilizando a água lilás como riqueza natural, que se torna necessária a todos os seres vivos, o Autor faz-nos entender o processo de estratificação social entre os lupis, a formação das profissões e a constituição dos diferentes tipos sociais que permitem que uma sociedade funcione como um todo, isto é, como um sistema social.

Da mesma forma, o Autor consegue, ao utilizar um discurso de uma candura que torna imediata a apreensão do significado de coisas extremamente complexas, mostrar-nos de que forma a água lilás consegue transformar uma economia fechada, numa economia de mercado e despoletar o aparecimento de uma sociedade de consumo.
A água lilás acaba também por ser o catalizador que leva a uma desigual distribuição da riqueza e a uma total inversão de toda uma escala de valores, possibilitada pelo desenvolvimento da economia e do contacto com outras culturas. É através desta preciosa matéria-prima que – inicialmente benéfica, mas que depois de transformada pelo (mau) uso da ciência e da tecnologia, sem ter em vista o bem comum, se torna nociva – nos é dado a conhecer o processo social que leva à elaboração de armas químicas e biológicas, com o objectivo de destruir os grupos rivais, desenvolvendo a corrida ao armamento. A água lilás torna-se assim, a longo prazo, a semente do ódio, da cobiça, da inveja e da ambição desmedida.

No meio de tudo isto, assiste-se, como é habitual na sociedade de consumo, à marginalização dos visionários – na pele de figuras tipo como o Pensador e o Poeta – que são os representantes do Idealismo. Ou seja, dos seres incómodos, que rapidamente identificam as complicações advindas de uma exploração comercial desenfreada e da má utilização da água lilás. Por outro lado, dá-se a ascensão fulgurante dos parasitas como os jacalupis, ou o triunfo dos medíocres. E assiste-se, paralelamente, ao sucesso do ávido comerciante, do sôfrego armazenista e de espécimens escorregadios e oportunistas como o diplomata e o advogado. Todos eles o retrato fiel daquilo que é a estrutura normal da sociedade.

Pepetela oferece-nos uma deliciosa metáfora social ao dotar o texto de uma sonoridade e de um ritmo tropical que lhe conferem um estilo com um encanto singular.
Mais ainda, o livro está povoado de lindíssimas ilustrações que contém em si o essencial de cada capítulo ajudando o leitor a decifrar a estória e a visualizar os lupis, lupões e jacalupis.

Uma obra deliciosa e um conto irresistível pela pureza com que é narrado. A mestria do Autor é evidenciada na transparência cristalina com que é tratado um tema tão complexo.

Por que o perfume da água lilás devolve-nos a capacidade de entender a realidade da mesma forma que as crianças: simplificando-a.

Um texto que mostra a beleza das coisas simples e a forma como a superficialidade da maior parte dos desejos onde, frequentemente, se confunde opulência com bem-estar.

A realidade sem máscaras.

Colocando o dedo na ferida.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, March 24, 2006

"Aphrodite" de Pierre Louÿs (Círculo de Leitores)


Um romance erótico de inspiração ática.

Contemporâneo de Verlaine e Stéphane Mallarmé, toda a obra de Pierre Louÿs remete para temas relacionados com a Antiguidade clássica:
Astarté (poesia), Leda, Ariane (narrativas líricas), La Maison sur le Nil (romance) e Les Chansons de Bélites (poemas musicados por Claude Débussy).

Aphrodite foi catalogado como um romance de costumes antigos, licencioso para os padrões da época (sec.XIX), mas que contribuiu largamente para a consolidação da reputação internacional do Autor, não só pela qualidade da escrita como também pela fidelidade à mentalidade da época, relativamente à sociedade ateniense, num Egipto helenizado. A abundância da descrição dos ritos e tradições antigas foi colhida através das suas inúmeras traduções de obras clássicas, destacando-se a tradução de Diálogos das Cortesãs, de Luciano de Samosata. Muitas dessas obras foram impedidas, pelos padrões morais da época, de ser publicadas. Este é um dos motivos pelos quais tanto a obra, como o nome do Autor permanecerem, de certa forma, relegados para a obscuridade. Algumas obras mais ousadas tiveram, inclusive, de ser publicadas sob pseudónimo por atacarem a moral sexual da época como o romance L’Île aux Dames – uma paródia a A Ilha do Tesouro de Júlio Verne. Conta, ainda, com um romance póstumo intitulado Psyché .

A acção de Aphrodite situa-se em Alexandria no reinado de Ptolomeu Auleta e Berenice – irmã mais velha de Cleópatra – no século I a.c., algumas décadas antes do Egipto ser anexado por Roma.

A personagem principal é uma hierodula ou cortesã sagrada, uma jovem sacerdotisa de Aphrodite, que exerce a sua profissão na cidadela pertencente ao templo da Deusa. Crísia, Crisis ou Criseida é, na realidade, uma jovem originária da Galileia, raptada aos doze anos, por mercadores que a vendem no bairro sagrado, onde passa a ser muito requisitada, pela longa cabeleira loira, pelo azul sombrio do olhar e pelas feições muito semelhantes às das jovens atenienses.

Crisis incarna aquilo que os homens, desde sempre, mais admiram e temem nas mulheres: o poder da sua beleza. Que, na jovem galileia de aspecto arcadiano, atinge um nível muito próximo da perfeição, a ponto de quase a confundirem com a própria Deusa. Sem falar na particularidade de a jovem incarnar, também, o estereótipo negativo da personalidade feminina: inveja, cobiça, fome de poder, um ego desmesurado e uma marcada ausência de escrúpulos na utilização do seu poder para manipular a consciência masculina através do Desejo.

Crisis é o tipo de mulher que coloca a própria vontade e o poder da sua beleza acima do bem e do mal.

Porque Eros é cego. E conduzido pela Loucura, sua parceira inseparável.

Por Crisis e pela sua semelhança com a Deusa, o escultor Demétrios, esquece todos os princípios éticos e comete os maiores crimes, inclusive o assassínio e o sacrilégio.

Na perspectiva do Autor, à semelhança dos clássicos, o protagonista masculino não age de forma consciente, mas sob o veneno da flecha de Eros. Passado o efeito, recobra a razão e tenta reparar o erro. Não obstante, o facto de ter tirado a vida a duas mulheres parece ser considerado como um mal menor, à luz da mentalidade da época. Na cultura helénica, a vida e o carácter femininos não eram grandemente valorizados, uma vez que a mulher era considerada pouco mais do que um animal em cujo útero era possível plantar e desenvolver-se uma nova vida.

O estilo do Autor obedece aos cânones da simplicidade ática, sem excessos ou floreados retóricos e sem cair na tentação do melodrama, numa prosa despida de sentimentalismo piegas. Apesar de tudo nota-se, nas entrelinhas, um ligeiro travo de cinismo relativamente ao carácter das mulheres em geral. O próprio carácter das rainhas Berenice e Cleópatra aparece revestido de uma aura de prepotência, sugerindo um forte sentimento de ginofobia relativamente às mulheres ligadas ao Poder.

Quanto à estrutura, Aphrodite obedece à construção típica das obras clássicas – uma tragédia em cinco actos – e onde há, em termos ideológicos, o confronto entre o princípio masculino e o princípio feminino, do qual o primeiro termo mencionado sai sempre vencedor. O que está de acordo com o papel e o âmbito de actuação permitido às mulheres na sociedade e cultura atenienses, desde o século de Péricles até à altura no domínio romano, em toda a área onde se fez sentir a influência da cultura grega. No século XIX, altura em que viveu o Autor, a situação das mulheres não era muito diferente. O trabalho feminino era exercido quase exclusivamente no domínio privado, sobretudo nas classes economicamente mais favorecidas. O acesso à cultura era muitíssimo limitado. E, na época clássica, não se fala sequer de mulheres a frequentarem a Academia ou mesmo a instrução elementar dada aos homens, embora tenhamos conhecimento de algumas excepções como Safo e suas discípulas, ou as rainhas egípcias como Cleópatra.

No que toca à ética, o Autor refere, no prefácio, não ter descrito a volúpia tal como ela é “a fim de exaltar a verdade”. Enfatiza que o amor era, para os gregos, um sentimento gerador de grandeza, uma energia impulsionadora do progresso e da evolução, sem lhe imputar a ideia de impudicícia e imodéstia trazidas pela tradição judaico-cristã. Em contrapartida, os filósofos austeros eram considerados pelos antigos como loucos ou perigosos. O que não deixa de constituir um paradoxo, uma vez que Demétrio, sob o efeito da paixão, causou o Mal, isto é, cometeu crimes, embora, posteriormente, passada a vertigem da volúpia, a memória do sentimento passado lhe permita criar uma obra de arte a legar para a posteridade. Ou seja, a mensagem que se pretende passar é a de que enquanto que a paixão em si é destruidora, o amor por seu lado, edifica, contribui para o progresso, para a criação do Belo como valor absoluto.

A intenção do Autor é a de criar uma intriga passada na Antiguidade, vista pelo olhar de um ateniense. Deste ponto de vista, a sensualidade é a condição necessária para criar desenvolvimento intelectual, das artes, das letras e da cultura de um povo. Louÿs defende que a inteligência humana é, antes de tudo, sensual, uma vez que os povos das civilizações mais proeminentes ao longo da história não eram propriamente púdicos.

Em termos estéticos, um dos episódios mais belos da obra é-nos dado quando Demétrio visualiza, através de um sonho, a concretização do seu amor absoluto e incondicional pela Deusa que veste a imagem de Crísis. A beleza e o detalhe com que é descrita a alteração da fisionomia da Bela, durante o acto de amor, são traduzidos num texto sublime, de uma precisão escultórica e cinestésica, sem uma única palavra supérflua.

Aphrodite, personifica a Beleza como o eterno feminino num romance de amor e morte.

O erotismo desprovido do mais ínfimo vestígio de vulgaridade.

A transposição da extrema sensibilidade estética dos Atenienses, numa homenagem à deusa mais amada de todos os tempos.

Um diamante literário lapidado até à perfeição.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, March 15, 2006

“A Tragédia da Rua das Flores” de Eça de Queirós (Livros do Brasil; Planeta DeAgostini)


O romance póstumo de Eça de Queirós – mantido “na gaveta” durante décadas quer pela delicadeza do tema tratado – um incesto entre mãe e filho, facto que chocaria de sobremaneira a sociedade portuguesa -, quer pela crueza das situações e realismo com que dotou algumas das principais personagens fazem deste romance um dos mais vanguardistas da época.

Trata-se, nitidamente de uma versão mais realista de Os Maias. Esse realismo encontra-se, simultaneamente, expresso tanto na crueza da linguagem, como no tom amargo e céptico contido nas entrelinhas o discurso. A semelhança entre as personagens principais é mais do que evidente, o que nos dá a sensação de que Os Maias são a versão adocicada e idealizada deste romance, mais cru e muito ao estilo balzaquiano.

Algumas personagens mantêm-se, como é o caso do Dâmaso que, para além do nome, conserva a figura, a boçalidade nos modos e no vocabulário, a personalidade mesquinha e o desejo de mostrar o “chique” que não tem. Mais velho, independente e abastado que em Os Maias, a constância nas atitudes é tal, que tudo indica tratar-se de uma personagem inspirada num indivíduo ou num grupo de pessoas com quem o Autor convivia diariamente pela abundância de pormenores com que é caracterizado.

Outras personagens sofrem ligeiras alterações quanto à sua situação socio-económica ou de temperamento mas mantêm, essencialmente, o seu papel na trama.

Genoveva é muito semelhante, mas ao mesmo tempo, muito mais credível do que Maria Eduarda Maia, a típica heroína romântica. A protagonista de A Tragédia da Rua das Flores é, pelo contrário, uma mercenária que não hesita em prostituir-se com o objectivo único e simples de “cardar” um pedante Dâmaso. Ao contrário da imagem de estátua grega de Maria Eduarda, a beleza loura de Genoveva tem algo de ave de rapina, acentuada pelo perfil aquilino (vagamente semítico?) que o autor lhe confere. Trata-se de uma mulher dura, profundamente egoísta, colérica e cínica, cujas atitudes não granjeiam a simpatia do público, sobretudo na época em que foi escrito o romance (finais do sec.XIX). A manifestação do lado mais obscuro do seu carácter só é atenuada quando se apaixona por Vítor uma vez que, para conquistá-lo, tem de adocicar a sua forma de ser.

Vítor é a versão plebeia de Carlos da Maia. Menos sofisticado, mais romântico e sentimental está mais limitado devido à sua situação financeira pouco desafogada.

Timóteo é o tio abastado de Vítor, um Afonso da Maia mais brusco, menos cavalheiresco, menos britânico, mas igualmente inflexível e puritano quanto às características daquela que julga ser a esposa ideal para o seu único herdeiro. Um autêntico Armand de A Dama das Camélias.

O pintor Camilo Gorjão tem o discurso escabroso de João da Ega, com o mesmo diletantismo ideológico que tanto num personagem como no outro os impedem de escolher um estilo ou um tema e desenvolvê-lo. Ambos manifestam, também, o desânimo perante o facto de não terem um público à altura das suas criações excepcionais. Contudo, Camilo Gorjão, é desprovido da jovialidade de Ega, acomoda-se durante um largo período de tempo à sua situação, apesar de insatisfeito. Camilo é, sobretudo, um esteta que ainda não encontrou a sua identidade como pintor. Sem conseguir decidir-se entre a arte apolínea (sóbria, sem excessos, típica dos clássicos gregos, preocupada com as proporções e a harmonia estética) e a arte dionisíaca, a sua verdadeira tendência – orientada para o excesso nas cores nas forma e nas atitudes, que é a atitude que orienta a sua vida privada.

Joana, a mulher do pintor, é de uma beleza escultural, um corpo de varina e rosto romano, por quem Vítor sente como que uma atracção irresistível e animal. Joana é uma personagem cuja alma se encontra nos antípodas da de Genoveva. É uma jovem ignorante mas sem o menor vestígio de calculismo e de uma total transparência na fisionomia por onde perpassam todas as emoções. É também diferente de Aninhas, a amante dependente do dinheiro do protector e da paixão por Vítor. Ambas têm em comum a falta de sofisticação e de requinte, mas esta última é destituída do encanto da simplicidade bravia e inocência de Joana.

Outra personagem de grande interesse é, apesar de periférica, D. João da Maia, proveniente de uma das famílias mais antigas e aristocráticas de Portugal. Ateu e republicano, “de maneiras delicadas, hábitos finos e predilecções literárias” é um indivíduo exaltado pela arte, sibarita, mas generoso apesar de empobrecido. Respeitado e amado, ninguém menciona os seus defeitos em voz alta. Com o ar de “príncipe bom rapaz” faz lembrar um Carlos da Maia empobrecido.

Joana Coutinho, uma das frequentadoras das soirées de Genoveva, torna-se amiga íntima de Vítor, depois da morte desta – uma relação intelectual. Trata-se de uma jovem etérea de aparência perfeita, de espírito independente e idealista, um tipo não muito apreciado pelo autor devido à sua aparente frigidez.

Apesar de se referir ao romance A Dama das Camélias de Alexandre Dumas Filho, A Tragédia da Rua das Flores é mais uma transposição da tragédia de Sófocles, Édipo Rei. O tema do incesto entre mãe e filho, especialmente nos moldes em que foi concebido – Genoveva é uma cocotte venal e não a digna rainha Jocasta – é especialmente provocador para a época, principalmente pela crueza da linguagem e pelo facto de Eça não tentar pintar a personalidade de Genoveva com as cores românticas: enquanto que Maria Eduarda é caracterizada como a mulher ideal, Genoveva é-nos mostrada como a típica mulher fatal, produto típico da sociedade mundana da belle époque.

As principais diferenças em relação ao autor clássico, é que a atitude de Vítor não interfere no destino do pai e, além disso, o jovem não chega a ter consciência da transgressão, logo não é afectado pela culpa ou remorso.


Atitudes, indícios e presságios

Na cena inicial, observamos uma mulher loira e requintada que chama a atenção do público masculino num camarote do Teatro nacional de S. Carlos, contrastando vivamente com o visual das portuguesas típicas da élite lisboeta.

Em seguida, especula-se sobre a sua identidade e origens. Apesar do seu requinte e sofisticação, há algo na sua toilette e comportamento que trai o seu aparente verniz aristocrático: uma bracelete em forma de serpente enroscada no braço, lembrando Sarah Bernhardt, com dois coruscantes olhos de rubi a denunciarem o verdadeiro carácter da dona. Por outro lado, a excessiva familiaridade com um homem vulgar, bajulador e fisicamente pouco interessante, eliminam de uma vez por todas a hipótese de tratar-se de uma senhora, ou de uma princesa como inicialmente se chegou a suspeitar. O comportamento é positivamente inadequado. Os gestos são os de uma mulher mundana. Trata-se de alguém cujo encanto provém unicamente do luxo e da sofisticação patentes,respectivamente, no vestuário e nos gestos de sedução estudados até ao mais ínfimo pormenor. Do contacto com artistas e intelectuais, limita-se a repetir aquilo que ouviu dizer aos homens considerados então de génio superior.
A mulher ideal para fascinar um jovem literato romântico, devoto de Byron e Tennyson, com tendência a uma mórbida melancolia.

Vítor avista-a e, a partir de então, os dados estão lançados. A trajectória da fatalidade é impelida como que por uma força física, semelhante à de uma seta disparada por Eros.

Entretanto há, vários tipos de presságios e indícios ao logo da obra que permitem ao leitor mais atento vislumbrar o desvendar da trama. Por exemplo: logo no primeiro capítulo, no teatro nacional de S. Carlos, uma das principais personagens da peça, Sir Galahad, garante estar ali para punir os amores culpados. E, por várias vezes, é também referida alguma vaga semelhança relativamente às feições de Vítor e Genoveva.
Por outro lado, em vários momentos da narrativa, afigura-se a possibilidade de, através de um informador privilegiado, desviar o curso da tragédia, o que devido a uma série de contratempos, acaba por ser frustrado.

A verdade só vem ao de cima após o confronto de Genoveva com o Tio Timóteo, altura em que se dá o reconhecimento da fatalidade numa cena que em tudo lembra o segundo acto de La Traviata de Verdi – até pela presença de violetas e camélias nos vasos da sala onde se dá o encontro.


Também na última ida a S. Carlos, Genoveva enverga uma toilette em tons de vermelho e preto, as cores do sangue e da morte. Outro presságio de morte é dado a entender quando Genoveva afasta Vítor da janela em obras à qual foi retirada a varanda, alertando-o para o perigo das vertigens, seguido da afirmação sinistra do carpinteiro “Era um saltozinho bonito…”. E o último beijo trocado entre os dois amantes antes da chegada do tio traduz o sabor da despedida e da saudade antecipada…o toque de romantismo é aplicado a tudo o que se relaciona com a conduta de Vítor.

A Tragédia da Rua das Flores mostra-nos um Eça especialmente corrosivo, num romance que não foi escrito para agradar às audiências. É por isso que as cantoras do S. Carlos são-nos dadas são-nos dadas a ouvir a “ganir” enquanto o tenor Sarrotini “muge com furor garibaldino”. Genoveva é constantemente tratada de “bêbada” e “pêga” por várias personagens. A palavra “chulo”, tirada directamente do vernáculo, é várias vezes mencionada em vez do vocábulo de “proxeneta” - mais utilizado no discurso literário clássico e muito menos expressivo. Tal como quando se refere às “atoucinhadas ancas” do Palma.

Uma obra que se torna irresistível pelo fiel retrato de uma época falsamente puritana onde, salvo raríssimas excepções, a mediocridade é elevada à categoria de excelência.

O Eça menos popular. Mas nem, por isso menos acutilante. Um tiro certeiro nos tabus da sociedade lisboeta nas últimas décadas do século XIX.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, March 02, 2006

“Todos os Dias” de Jorge Reis-Sá (Dom Quixote)


O primeiro romance do autor famalicense Jorge Reis-Sá fala-nos da beleza das pequenas coisas que fazem parte do nosso quotidiano. Porque são os momentos que se repetem todos os dias que dão a estabilidade, a segurança o sentimento de pertença, que satisfazem a necessidade de integração, indispensável ao equilíbrio emocional do ser humano.

A beleza de Todos os Dias reflecte-se na capa do livro, da autoria de Stuart Staples, onde domina a cor lilás, em contraste com o verde das folhas carnudas do cacto no canto inferior esquerdo. Porque, tal como as plantas, o amor que votamos aos nossos, exige que nos dediquemos todos os dias.

E Todos os Dias é um romance que fala de perda. E da forma como os vários membros da família vivem a perda de um ente querido. E de como reestruturam as suas vidas em função de cada perda que sofrem.

O texto é contado a quatro vozes, isto é, possui quatro narradores: Justina, a mãe de Manuel Augusto; António, o pai; Fernando, o irmão; e Cidinha, a avó, já falecida, o único narrador omnisciente, que conhece por completo as motivações de todas as restantes personagens.

A acção desenrola-se ao longo de vinte e quatro horas e divide-se de acordo com as diferentes fases do dia: Aurora, Manhã, Almoço, Tarde, Crepúsculo, Jantar e Noite. No final, é-nos dado um epílogo intitulado “Tarde Demais”, marcado por uma quinta voz: a do já falecido Manuel Augusto, personagem à volta da qual se centra o romance.

E o romance fala da rivalidade, amor e ciúme entre irmãos, onde se nota o confronto entre o idealismo na alma lunar de Manuel Augusto, o homem que vive para o sonho. Introvertido e inadaptado, ao refugiar-se no seu próprio mundo, capta o olhar e a atenção de todos aqueles que, à sua volta, desenvolvem esforços homéricos para aceder à sua esfera, para penetrar na sua torre de marfim.

Em contraste absoluto com Manuel Augusto, está o seu irmão Fernando. O seu temperamento pragmático, solar, faz dele um homem voltado para a realização dos objectivos a que se propõe. Fernando move céus e terra para conseguir conquistar a admiração da família, ao concretizar tudo o que Manuel Augusto deixou para trás. No entanto, não consegue sair do círculo abrangido pela sombra do irmão. Manuel Augusto é a estrela que lega a obra para a posteridade. Fernando é apenas o homem comum que lega apenas os genes na pessoa de Rafael – a fusão dos dois irmãos num só, na óptica de Justina e António. Paradoxalmente, Rafael torna-se a única razão de viver dos avós que agora se podem dar ao luxo de serem pais a tempo inteiro. É com Rafael que, na velhice, conseguem expulsar o tédio das suas vidas e preencher algumas horas do dia que se tornam cada vez mais longas, penosas, infinitas.

As quatro personagens principais são o produto da sua época e do meio cultural onde nasceram – uma sociedade, semi-rural na periferia de uma pequena cidade, mas de fácil acesso a um dos maiores centros urbanos do país pela proximidade da via férrea.

Justina e a sua sogra, Cidinha, são mulheres que assumem plenamente a sua função de matriarcas, ao cuidar da casa e da família – Justina foi durante muitos anos auxiliada por Cidinha na altura em que exercia uma actividade profissional no posto médico. Trata-se de uma sociedade matriarcal onde, apesar das aparências, é a mulher quem assume a posição de chefe de família e quem toma decisões quanto à gestão da casa e distribuição de tarefas.

António, o pai de Manuel e Fernando, marido de Justina, perde completamente o rumo e o gosto pela vida com a morte do filho e a vinda da reforma.

Fernando é o homem das concretizações: sucesso profissional, um casamento feliz, pertence a uma geração diferente onde a relação com Madalena se baseia, sobretudo, na cooperação e entreajuda como é típico nas famílias nucleares (compostas unicamente pelo casal e respectivos filhos) das sociedades mais urbanizadas.

O estilo de Jorge Reis-Sá é depurado, os capítulos são curtos, o discurso é reflexivo porque compsto de memórias, que são constantemente confrontadas com o tempo presente.

A repetição anafórica da expressão “todos os dias” constitui a tónica do romance impondo-lhe um ritmo, uma musicalidade que confere um dinamismo sem precedentes na escrita de JRS. A adjectivação, na descrição do ambiente exterior e interior da casa, confere ao texto um colorido sensorial que, aliado ao pormenor das acções e movimentos das personagens, é enriquecido com a linguagem típica do Minho. Tudo isto transmite a sensação de estarmos a ver um vídeo de uma cena do quotidiano, isto é, de todos os dias, passada em casa dos nossos avós.

Os regionalismos tornam-se poesia porque enquadrados num cenário desaparecido ou, segundo as palavras do próprio autor, “em vias de extinção”( isto é, uma casa que, apesar de estar na orla de uma pequena cidade, conserva, nas traseiras, um pequeno quintal onde são cultivados alguns produtos hortícolas), como por exemplo, a cena em que Justina recorda o prazer de preparar um almoço de sardinhas, às quartas-feiras (dia de feira na cidade) com a ajuda da sogra Cidinha. A Poesia vem da memória que transforma o sabor marítimo de um almoço de sardinhas em Saudade.

É por esta razão que Todos os Dias se lê com prazer renovado em cada capítulo.

E é por esta razão que, Todos os Dias, é a beleza das pequenas coisas que, tal como no romance de Arundhati Roy, está impressa nos pormenores que ninguém se dá ao trabalho de registar, a não ser alguém com a sensibilidade fora do comum, como Manuel Augusto que, nesta faceta, é um pouco o alter-ego do próprio autor.

O resultado é um romance pleno de sensações. Ou a Poesia em formato de Romance.

O quotidiano tornado único pela presença dos seres amados e de tudo aquilo que se torna parte de nós mesmos.

Uma estória de todos os dias.

Para ler de um só fôlego.

Num único dia.


Cláudia de Sousa Dias