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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, October 31, 2006

“Alves e Companhia” de Eça de Queirós (Planeta deAgostini)


Uma das mais divertidas sátiras queirosianas que tem por base um tema que é muito caro ao Autor: o adultério.

O protagonista masculino desta divertida comédia é Godofredo da Conceição Alves, responsável por um empreendimento comercial e financeiro de grande sucesso. Bem instalado na vida, casado, próspero de consolidado prestígio social - características que o aproximam bastante do banqueiro Cohen de Os Maias, Godofredo assemelha-se ainda, em muito, ao marido de Madame Bovary de Flaubert. Godofredo Alves é um homem atencioso para com a esposa, provedor – Eça chega mesmo a compará-lo a um pássaro que provê o ninho. Trata-se de uma alma generosa na sua essência, embora dada a acessos de cólera passional.

A protagonista feminina – Ludovina ou Lulu – para além da semelhança com algumas características psicológicas da heroína flaubertiana, apresenta traços físicos e de personalidade comuns com a Raquel de Os Maias – o tédio no casamento que a leva, por um lado, a entusiasmar-se por Machado e, por outro, a uma posterior submissão ao marido, mais por conveniência do que por afecto. Fisicamente, Lulu vai buscar a Raquel a pesada massa de cabelos negros a cair pelas costas, um ar semi-penteado “a sugerir intimidade”. Lulu possui também características de “Genoveva” a mulher fatal de A Tragédia da Rua das Flores, pela sua aparente frivolidade e materialismo. Contudo, Ludovina é mais sensível às dificuldades e desigualdades sociais do que Genoveva. Para compor esta personagem Eça foi, ainda, buscar a imponente estatura de Maria Eduarda para dotar Lulu de “um corpo magnífico, de rainha bárbara”, o porte erecto, “o cabelo ondeado e crespo” e o olhar negro.


Sócios e Rivais

Godofredo Alves e o seu sócio, Machado, têm uma relação muito sui generis. Em termos profissionais, trata-se de uma parceria extremamente bem articulada, com base numa relação de complementaridade. Godofredo, do alto dos seus trinta e sete anos, transmite a imagem de solidez e estabilidade, reforçada pela sua vida de homem casado, habituado a assumir responsabilidades e a honrar compromissos. É, contudo, um homem indolente, com uma faceta romântica, escondida no cantinho mais secreto de uma mente sonhadora.

Já Machado, o sócio, é um jovem e belo mancebo de vinte e seis anos, que incarna o dinamismo, a simpatia, a capacidade de decisão e a visão estratégica para o negócio, aliada a uma distinção que lhe confere o magnetismo necessário para atrair clientes. É um jovem muito atraente, com um aspecto que chama a atenção: loiro, elegante, apreciador de aventuras clandestinas que, tal como a fêmea do cuco, gosta de deixar o ovo no ninho alheio. Neste caso, um macho humano que gosta de deixar os seus espermatozóides em ninho alheio...ou, para sermos mais exactos, em vaginas casadas.

Em termos pessoais, ambos os sócios são íntimos sem, no entanto, haver verdadeira camaradagem masculina entre eles. Machado nunca comenta com Godofredo acerca das suas aventuras íntimas, embora este lhas adivinhe pelas suas atitudes e saídas misteriosas, conjecturas que lhe são posteriormente confirmadas por terceiros. Apesar disso, as famílias de ambos conhecem-se, o jovem Machado é presença assídua na casa de Godofredo, frequentando jantares e serões na companhia de Lulu, sendo o seu comportamento, pelo menos na presença do marido, socialmente correcto para com ela. E o de Lulu, o de uma autêntica mulher de César, isto é, acima de qualquer suspeita.

O tema da obra é recorrente em Eça de Queirós repetindo-se aqui, numa declinação de um triângulo amoroso já presente em O Primo Basílio, Os Maias e até em A tragédia da rua das Flores. Desta vez, porém, o Autor constrói uma divertida sátira, com o objectivo de reduzir o orgulho masculino e a falsa moralidade burguesa a pó. Um contraste gritante com o pesado drama de O Primo Basílio, uma obra que apesar de versar sobre o mesmo tema, é destinada a sensibilizar a consciência colectiva dos portugueses, ao invés de troçar da moral e dos pseudo bons costumes como o faz – e fá-lo brilhantemente – em Alves e Companhia. Uma obra com algo de Moliére, muito mais desenvolvida e cheia de pormenores burlescos do que o episódio de que envolve Ega e o casal Cohen em Os Maias e, simultaneamente, muito menos inocente do que a paixão entre Vítor e a esposa do pintor em A Tragédia da Rua das Flores.

Ainda em relação à crítica social, outro tema invariavelmente tratado por Eça de Queirós em toda a sua obra, é notório o ataque à burocracia no funcionalismo público, concretamente no Ministério da Marinha – logo na cena inicial –, ao factor C como “desburocratizador” e à ausência de espírito crítico, dentro daquela categoria social, e à pobreza intelectual dos mesmos. Eça execrava, realmente, a pobreza de espírito principalmente quando esta se manifestava sob a forma de pensamento crítico.

A Pseudo-Moral

Na sequência do facto de Godofredo surpreender a mulher com o sócio, verifica-se uma série de consequências surpreendentes. Para além da reacção emocional clássica, ao encontrar a mulher nos braços do sócio – um dos momentos mais emocionantes do romance – um previsível acesso de fúria, que se torna pouco dignificante, com uma acentuada componente de ridículo, em virtude de Godofredo tropeçar num tapete ao precipitar-se para os amantes dando-lhes, inadvertidamente, a oportunidade a um de fugir e a outra de se trancar a salvo no quarto; a tentativa de forçar a porta torna a situação ainda mais ridícula para Godofredo, que está desesperado para aplicar o “correctivo” à mulher. Esta balbucia algumas tentativas patéticas de justificação e atenuantes sem qualquer tipo de fundamento. Sobretudo quando as provas se amontoam à sua volta de forma irrefutável...Trata-se , sem dúvida, de uma das passagens mais tragicómicas do romance.

A ilustrar o acesso de passionalidade, tipicamente lusitano, em relação a este tipo de situação, Godofredo mostra o desejo de bater-se com o rival para “lavar a honra”, apesar da inabilidade manifesta no manejo de armas, ao contrário do que sucede com Machado.

Passado o momento de cólera e depois de enviar a esposa para casa do pai, outro tipo de preocupações começa a assolar a mente do empresário. A sobrepor-se à moral, o medo do ridículo leva-o a enviar a mulher, juntamente com o sogro e a cunhada, para uma estadia à beira-mar, fora da cidade para, aparentemente, tratar de um problema de saúde.
Esse mesmo medo torna-se no seu ponto vulnerável, expondo-o à chantagem do sogro que começa a sangrá-lo perigosamente nas suas finanças. A própria criada de Godofredo aproveita-se da situação para negligenciar o trabalho, sabendo que o patrão para conservar o seu silêncio em relação a tão embaraçoso assunto, não a pode despedir...

A separação do casal leva, desta forma, ao caos doméstico, com a criada a comportar-se, de certa forma, como a execrável Juliana de O Primo Basílio sem chegar, contudo, a fazer chantagem abertamente.

Destaca-se o papel magistral dos padrinhos do duelo, que actuam como dissuasores e dissipadores da tragédia. São os grandes responsáveis pelo lado cómico e burlesco do romance, ao usar magistralmente da arte do sofisma para conduzir à desculpabilização do par “transgressor”, à reconciliação dos sócios e ao regresso ao lar da esposa adúltera.
Principalmente porque, enquanto consolam Godofredo, comentam entre si os pormenores picantes das suas próprias aventuras com mulheres casadas.
O que, aqui, Eça pretende denunciar é exactamente a sobreposição de motivos menos nobres para sufocar um escândalo que seria condenado pela moral da época.

Em relação a Lulu, os motivos que a movem e a impelem a regressar ao lar, também não são dos mais altruístas ou genuínos. Também ela mascara as suas verdadeiras motivações. Lulu começa por sentir, em primeiro lugar, as saudades do conforto e do luxo em casa do marido, dos presentes que lhe eram regularmente oferecidos e não propriamente do afecto ou paixão que o marido lhe despertava.

A reconciliação de Godofredo Alves com a esposa reveste-se assim, de carácter prático onde se nota um certo alívio, pelo regresso da ordem doméstica com a chegada da dona da casa.

A evolução da vida destas três personagens mostra uma certa acomodação onde o bem-estar financeiro como que engole outras pretensões relacionadas com aventuras escaldantes, no caso de Machado, ou a preocupação com a honra ou a moral, no caso de Godofredo. As personagens esforçam-se por manter uma convivência cordial, chegando até a haver entreajuda e convívio – depois do casamento de Machado. Nota-se o sacrifício dos grandes amores a uma vida anódina, mas onde há em contrapartida, suficiente bem-estar material pode ser facilmente confundido com felicidade ou realização pessoal.

Não muito diferente da vida de muitos casais em pleno século XXI.

Mais uma obra brilhante do Eça intemporal a agitar a consciência dos portugueses.

Que se lê de um só fôlego.

Ou melhor dizendo, entre duas gargalhadas.



Cláudia de Sousa Dias

Friday, October 20, 2006

“Verdade ao Amanhecer” de Ernest Hemingway (Dom Quixote)


Em África uma coisa é verdade ao amanhecer e mentira ao meio-dia e não devemos respeitá-la mais do que ao maravilhoso e perfeito lago bordejado de ervas que se vê além na planície salgada, crestada pelo sol. Atravessámos essa planície pela manhã e sabemos que tal lago não existe. Mas agora está lá e é absolutamente belo, verdadeiro e verosímil.

Ernest Hemingway in Verdade ao Amanhecer



Verdade ao Amanhecer, o romance póstumo de Ernest Hemingway, é, na verdade, um relato que narra o período durante o qual o escritor viveu com a sua quarta esposa – Mary – no Quénia, ainda sob a administração britânica, quando desempenhava as funções de guarda-florestal substituto.

A decisão de publicar o presente livro deve-se à iniciativa do filho do Autor, Patrick Hemingway, que recuperou o manuscrito original, sujeitando-o, contudo, a uma série de cortes que o reduziram a cerca de metade, em relação ao volume original. Este estaria, na opinião de Patrick, como que no estado de um diamante em bruto, antes de sofrer o processo de lapidação/depuração a que o seu pai normalmente submetia os seus textos antes de os publicar. E ao qual o filho tentou, através de um método semelhante, dar a forma definitiva.

Como resultado da sua reformulação, Patrick Hemingway acaba por atribuir um papel de maior destaque a Debba, papel esse que estava diluído no volume original. Debba era como que a “esposa secundária” africana do escritor e, por isso, o reverso da imagem de Mary que, segundo a cultura africana, deteria o posto de “esposa principal”.

O inconformismo de Mary face à situação de ter de partilhar o marido com outra esposa, à qual apelida de “namoradinha” quando fala dela ao marido é, por ela, cuidadosamente dissimulado. Por ela e pelos cortes de Patrick no texto. Ou, ainda, ingenuamente ignorados pelo Autor. O que é um facto é que a progressiva dependência de Mary face ao gin que culminou com a sua autodestruição, aparece bastante atenuada.

José Lima, o responsável pela tradução, não deixa de frisar, na nota final, a arbitrariedade de Patrick Hemingway em relação aos cortes efectuados, devido à ausência de explicações acerca de “onde, como e porquê de tais intervenções” levando os leitores a questionar-se se o texto actual será ou não fiel à intenção inicial do Autor da obra.

Desta forma, Verdade ao Amanhecer não tem o acabamento, a forma definitiva, cuidadosa e minuciosamente revista do romance Adeus às Armas, trinta e nove vezes reescrito. O vocabulário e a adjectivação são parcos, como é típico de Hemingway, em cuja escrita tudo é wonderful.

Entre os vários aspectos salientados por Ernest Hemingway na presente obra, destaca-se a dificuldade em gerir os conflitos entre as diferentes facções ou etnias africanas, incluindo os povos Bantu, Massaï, a tribo de guerreiros Wakamba, os trabalhadores agrícolas rebeldes, oriundos da tribo Kikuyu. Principalmente estes últimos, cujos ataques visavam, sobretudo, os proprietários rurais de origem europeia, no Quénia a norte do Equador, no início dos anos cinquenta.

A função desempenhada por Hemingway ao serviço do Governo Britânico visava, para além do que já foi referido, zelar pela protecção do ambiente, nomeadamente o controle da caça furtiva e das populações animais que matavam o gado ou destruíam as colheitas.

O paternalismo entre brancos e negros está presente em toda a obra. Os indígenas negros são tratados como crianças pelos colonizadores, inclusive pelo próprio Hemingway. Sobretudo quando este utiliza o seu talento como efabulador para melhor impressionar os africanos, facto que também é responsável por alguns dos episódios mais cómicos da narrativa.

É também notório que os negros que falam inglês estão mais integrados na cultura europeia e são mais respeitados pelos colonos em relação àqueles que falam apenas as línguas africanas.

No entanto, a descrição de Hemingway envolvendo os costumes, os valores, tradições e personalidade das tribos africanas é bastante objectiva. Não só pela já citada parca adjectivação, mas também pela ausência explícita de juízos de valor e pela exactidão e profusão de detalhes com que o Autor descreve os episódios nos quais os membros destas tribos intervêm ou são mencionados. O mesmo se passa em relação aos padrões de conduta, observados entre as tribos, e aos contactos sociais que se verificam entre ambas as culturas – africana e europeia, sendo exemplo disso, as próprias efabulações do autor em relação, por exemplo, ao número de esposas que diz possuir ou envolvendo o preço que atingiria o valor da sua esposa, Mary, depois de matar o leão que assaltava os rebanhos dos Massaï.

Personagens

Verdade ao Amanhecer reveste-se de um conjunto de personagens pitorescas, das quais se destacam:

- O Informador, uma espécie de batedor ou espião que trabalha para Ernest Hemingway e que, devido à delicada posição que ocupa, desperta a antipatia geral e suspeitas de duplicidade.

- A Sra. Singh, a bela e sedutora esposa do lojista de origem indiana, que desperta paixões platónicas e as fantasias eróticas dos homens em geral (negros e brancos).

- Debba, a jovem Massaï namorada do escritor, é considerada como a sua segunda esposa pelos locais. A sua ausência de malícia conjugada com uma sensualidade sem tabus que não chega a ser desprovida de inocência, cativam Hemingway. Torna-se comovente o seu respeito, veneração e algum receio face à sua rival, a loira esposa inglesa do escritor que carrega normalmente uma espingarda consigo e que tem um fascínio especial pela cinegética...

- Mary, a protagonista feminina, a quarta esposa de Ernie, é a personagem mais complexa e omnipresente do romance. Ex-jornalista, de personalidade vincada, com pendor marcadamente feminista, Mary é, no entanto, vaidosa, egocêntrica e caprichosa. Característica notória no episódio em teima em matar o leão que aterroriza os Massaï, para conquistar o prestígio e admiração das tribos locais cujo objectivo, depreende-se, seria o de colocar-se num plano ainda mais elevado em relação a Debba. A sua irresponsabilidade atinge laivos de imbecilidade quando insiste em assumir a liderança de uma operação para a qual não está tecnicamente preparada (Mary não possui a arma adequada para matar um felino de grande porte, nem saberia utilizá-la e, também, não possui altura suficiente para conseguir avistar a posição da fera no meio das ervas altas). Mary faz “birra” com o marido quando se apercebe que foi este quem, na realidade disparou o tiro fatal, apesar de Hemingway, deixar generosamente atribuir os louros à loira e idolatrada esposa.

Destaca-se a relação de lealdade e cumplicidade estabelecida entre Hemingway e os colaboradores africanos, diferente da camaradagem de copos existente com os seus camaradas britânicos.

O escritor exerce o poder que lhe é atribuído pela sua função através da mestria com a qual utiliza o poder da Palavra, não só por escrito mas também verbalmente.

Através da sua escrita simultaneamente objectiva e detalhista, Hemingway traça-nos um retrato do Quénia, nos anos cinquenta do sec XX, onde sobressai a beleza de um continente cuja natureza esmaga, submete e deslumbra qualquer homem, não importando a sua nacionalidade, credo ou religião. A precisão com que descreve o ataque de um leão, a perfeita sucessão cronológica de movimentos que demoram milésimos de segundo, a magia dos sons da noite africana, no sopé da Grande Montanha – onde o perigo pode esconder-se atrás de um arbusto, entre as ervas altas ou no cimo de uma árvore; e onde o conforto sobre limitações inconcebíveis para o animal educado na selva de betão –, alia-se o prazer de saborear uma liberdade absoluta, de desfrutar de uma total flexibilidade no que toca ao horário de trabalho e, principalmente, de usufruir de tempo para se dedicar àquilo que mais ama – a leitura e a escrita.

Tudo isto tinge a pena do escritor com a tinta do deslumbramento, a ilustrar uma das épocas mais ditosas da sua vida: a estadia num quase que Jardim do Éden com uma Eva loira.

E é por tudo isto que Verdade ao Amanhecer não se limita a ser apenas mais um romance sobre África.

É, antes de tudo, a alma do próprio Hemingway.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, October 09, 2006

“E como eram as ligas de Madame Bovary?” de Francisco Umbral (Campo das Letras)


Francisco Umbral, jornalista, escritor e eminente crítico literário, propõe-se, com uma obra de título altamente sugestivo, a despertar a curiosidade dos amantes das artes e das letras ao elaborar o mapa cultural da Europa, traçando o retrato psicológico e social dos grandes génios, literários e não só, do Velho Continente.

Na introdução, à qual intitula de A que chamamos Europa, Umbral manifesta a intenção de explicar a civilização europeia, mais com homens do que com letras. A superstrutura na qual esta se baseia é explicada recorrendo às motivações pessoais, às relações familiares, ao maior ou menor grau de integração ou aceitação social, ao grau de dificuldades económicas, às ambições, orientação sexual ou religiosa e ao tipo de sensibilidade estética de cada um, desde Virgílio a Picasso, passando por Napoleão a Cervantes ou Voltaire.

Posteriormente, cada capítulo é dedicado a uma figura europeia de vulto no Universo das artes e das letras.

No seu conjunto, E como eram as ligas de Madame Bovary incide, sobretudo, nos mais célebres autores dos últimos dois séculos fazendo, simultaneamente, a ligação entre estilo e temática presentes na obra de cada um deles com as respectivas vivências, integradas no contexto histórico correspondente.

Ironia, sátira e muita malícia, na forma como coloca em evidência os pontos fracos de das figuras que se propõe a analisar, destacando, com um toque de humor perverso, as fraquezas, complexos e manias de cada um – o paradoxo dos grandes génios da Europa em toda a sua grandeza e miséria.

O Autor tenta identificar qual é a parte do seu Eu – o lado mais íntimo e pessoal – que cada uma destas figuras de vulto projecta na sua obra. E o que, dentro daquilo que ficou para a posteridade, fazia parte do mundo real de cada um deles.

É neste contexto que surge o título da obra, E como eram as ligas de Madame Bovary. A roupa interior da personagem Madame Bovary não é mencionada na obra, apenas sugerida, tal como as cenas eróticas entre esta e o seu amante. Também muito pouco se sabe sobre a amante de Flaubert que inspirou o romance. Apenas se sabe que o passeio na carruagem com as janelas fechadas que levava os dois amantes era um dos maiores fétiches do Autor.

É o mesmo que tentar distinguir a imagem idealizada da Dulcineia do Dom Quijote de Cervantes, da camponesa Aldonza que serviu de inspiração ao perseguidor dos moinhos de vento.

Infelizmente, Umbral esquece-se de analisar a vida e obra de mulheres como George Sand, Jane Austen, Anne, Emily, Carlotte Brontë, Virginia Woolf ou Camile Claudel e, obviamente, Safo, dando-nos o retrato cultural de uma Europa monossexuada.

Com excepção da bela e generosa mecenas Lou-Andreas Salomé,que Umbral com a sua viperina verve reduz a pó, ao referir-se aos seus dotes literários.

É também notória a ausência dos grandes vultos da língua portuguesa no índex de Francisco Umbral, sobretudo de Camões, Eça de Queirós, Florbela Espanca, Fernando Pessoa ou Mário de Sá Carneiro. Com uma única excepção: o Nobel José Saramago que, por coincidência ou não, se encontra a viver em Espanha.

Não deixa de ser igualmente interessante, a forma como as fraquezas e falhas dos autores del país de nuestros hermanos são atenuadas e, de certa forma, encaradas com alguma benevolência (vide capítulo dedicado a Camilo José Cela) em contraste com a maioria dos autores de nacionalidade francesa (vide Capítulo dedicado a Beaudelaire ou Sartre) que são alvo das suas acutilantes farpas.

O livro que começa por ser uma acutilante e divertida sátira aos pilares do edifício que constitui o grande génio da Europa, a dada altura torna-se simplesmente maledicente e, por último, reveste-se de um certo paternalismo nacionalista.

A leitura vale a pena pela possibilidade de olhar o lado mais obscuro da vida de um artista na Europa e, sobretudo, por chamara atenção para a dificuldade em ser-se diferente quando se evita a tentação de escrever para agradar às massas.

Um livro acutilante.

A perspicácia do olhar do falcão.

Combinada com a mordedura de uma serpente.


Cláudia de Sousa Dias