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Tuesday, May 31, 2016

Revista "Correntes d' Escritas" 2016 – António Lobo Antunes




A revista, publicada anualmente por ocasião do Festival Literário Correntes d'Escritas, a decorrer todos os anos em Fevereiro na Póvoa de Varzim, está dividida em três secções: uma, dedicada à ficção curta ou, simplesmente, textos em prosa, afim de proporcionar aos leitores uma pequena amostra dos estilo literário dos vários escritores participantes no evento; outra, dedicada à poesia com a mesma finalidade da anterior; e, por fim, uma única secção com textos dedicados ou inspirados na obra literária, do escritor em destaque naquele número da revista. Este ano, o autor a quem coube essa homenagem foi António Lobo Antunes, cujo rosto surge na capa com fotografia de Daniel Mordzinski.


Comecemos pelo final. Foi com enorme prazer que desfrutamos da elevadíssima qualidade dos textos incluídos no dossier de dedicado a António Lobo Antunes, com especial destaque para o ensaio de Ana Paula Arnaut sobre o tratamento dado às personagens femininas na obra antuniana, intitulado “Modelo(s) da personagem feminina na ficção de António Lobo Antunes” onde disserta sobre os pilares em em que assenta essa mesma construção ficcional operada por ALobA nos seus romances.

Harrie Lemmens focaliza a sua análise na polifonia existente no discurso literário de ALobA no belíssimo texto “Vozes ao redor – António Lobo Antunes em Holandês”. Lemmens não se limita a discutir as armadilhas da tradução para uma língua germânica como aquela que é proposta no título, mas chama sobretudo sobretudo a atenção para a penetrabilidade da ficção portuguesa de altíssimo nível como é o caso num país da Europa do Norte onde domina essencialmente a literatura escandinava ou anglo-saxónica.

A temática antuniana escolhida Maria Alzira Seixo incide na importância da metáfora vegetal/floral na obra de Lobo Antunes num maravilhoso ensaio intitulado “ As Flores do Inferno” numa clara ligação inter-textual com a obra de Rimbaud Un saison en Enfer. Maria Alzira Seixo centra a sua análise no poder da imagem, na temática da condição humana, na perseguição do valor universal como é a Verdade na obra antuniana, a qual ou se esconde geralmente por detrás de um véu ou máscara (aqui poderíamos encontrar paralelo na obra de Rawls quando se refere ao “véu da ignorância”) ou se retira discretamente para a sombra. Outro aspecto evidenciado pelo uso deste género de metáfora é o conflito entre o impulso de preservação da “condição de inteireza” do Eu e a noção do dever e fidelidade a alguém, que se manifesta na como ALobA utiliza a simbologia da estufa e dos jardins. Aqui a perspectiva de Seixo que converge, neste último aspecto com a análise de Norberto Vale Cardoso no texto “António Lobo Antunes: uma escrita preenchendo o vazio”.

Os últimos textos do dossier são da autoria de três escritores portugueses, Rui Vieira, Rui Zink e Valério Romão, os quais adquirem a forma de panegírico sobre a obra de Lobo Antunes. O primeiro, recria o processo de produção ficcional, através da (re)construção de uma cena do quotidiano transfigurada em ficção, onde são incorporadas situações e personagens da ficção de AlobA. O resultado é uma criação de pendor surrealista que poderia servir de base a um guião para uma curta-metragem inspirada no processo de criação da escrita literária. Já o outro Rui, Zink, claro, opta por um tom de admiração/devoção que raia a idolatria sem deixar de trair uma certa ironia eivada de uma pitada daquele célebre ciúme criativo (o mesmo que leva a deusa que dá o nome à capital grega a transformar Aracne em insecto), quando fala da “escrita que queima” (a de Lobo Antunes, pois claro). Uma escrita que afecta e muda o seu destinatário, que se inscreve no imaginário dos seus leitores, que os contagia, porque é impossível deixar de se sentir afectado por ela. A principal consequência é o risco de silenciar, apagar, contaminar as outras vozes do mesmo universo literário. Este último aspecto é explorado com mais detalhe na crónica de Valério Romão intitulada “Manual de Sobreviveñcia a Lobo Antunes”.
Deste dossier faz ainda parte o ensaio de Susana João Carvalho “A quantidade de vezes que treinámos esta cena”, ao longo do qual a autora opta por explorar a dimensão cinematográfica presente na obra de Lobo antunes, complementando o olhar sobre a imagética antuniana abordado também por Norberto do Vale Cardoso.


Recuando um pouco mais na revista, uma vez que começamos pela terceira parte, vamos ter à secção intermédia, dedicada à Poesia.

Os poetas que nela participam são Benjamim A.S.M. M'Bakassy, João Pedro Azul, José Manuel Mendes, J.A.S. Lopito Feijoó K., Luís Filipe Castro Mendes, Matilde Campilho e Rui Spranger.

De Benjamim A.S.M. M'Bakassy chegam até nós os poemas de teor político que se misturam com aqueles de carácter mais intimista, incidindo nas temáticas do Amor e da Liberdade. E, uma vez que estas se encontram estreitamente ligadas, não chega a espantar o leitor mais atento o emprego recorrente de metáforas alusivas ao prazer físico e aos fluídos corporais como nos poemas “Caracol-cisne” e “A Tosse dos Tambores”.

Caracol-cisne

Ainda te sujo nas pegadas que deixo
Nem de propósito
Deixo(-te)
O teu rasto
Como baba
De um caracol que já se despiu
Cisne

A tosse dos tambores

Ainda que estrando em mim
Seria igual
Ao outro
Eu
O desfigurador
O disforme
O Analfabeto
(…)
Ó arco-íris de sangue que te fazes poeta em mim
Na calada da noite me embalas na tosse dos tambores e não me ensinas a dançar
Ó sangue
Meu sangue
Dança por mim


Já na poesia de João Pedro Azul a tónica dominante no discurso é a melancolia que nele surge inscrita pelo recurso à modalização temporal, marcando a diferença entre o “antes” e o “agora”, para entreabrir uma janela para um passado marcado pela paixão e pelo desejo como contraponto a um tempo presente, o “agora” do sujeito poético. Nesse presente onde a chama agoniza, apagando-se na lentidão das horas, deixando em seu lugar o vazio como mostra o poema tripartido “VARIAÇÕES EM RÉ MENOR” sobretudo em “Manhã sem ti” e “Solo” ou na primeira parte de “a solidão cai” e nos versos finais de “frágeis manhãs de silêncio”.

Manhã sem ti

Manhã de todos os dias
inevitável manhã
Outrora doce
Agora simplesmente esquecida
Desperto para ti
E tu acolhes-me na tua melancolia
Manhã de sonhos desfeitos
Ouvia-te sussurrar
Nas árvores e nas janelas
De minha casa
E eras bem-vinda
O tempo apagava-se
E tu sorrias
Onde te perdeste
Minha bela manhã
Eu continuo aqui
Esperando a tua chegada
Em cada amanhecer

E enquanto José Manuel Mendes disserta sobre temas vários, sob a égide da estética surrealista, em diversos exercícios de estilo, Lopito Feijoo K. traz, pelas correntes marítimas do Atlântico, a poesia arrancada à terra, povoada de metáforas vegetais e animismos para exprimir a força telúrica que une o espírito humano ao solo e ao pó de onde veio em “Mami Wata” e “Larvas e Lágrimas” ou poemas de teor político eivados de revolta ou indignação como “Lar triste lar” e “Homem serere”.

Mami Wata

Estende-se extensa
amargurada lavra com listradas plantações
adormecendo sobre o manto de um rio
(…)

Peixes, répteis, plásticos banheiras e bestas
entre um passado algo por ventura
(…)

  • Eis que MAMI WATA reluz sereia
    qual Féniz nas sobras da sombra relaxando e
    enquanto isso o continente clama...espera e desespera!

Alguns dos melhores poemas incluídos na Revista Correntes d'Escritas são da autoria de Luís Filipe Castro Mendes. Particularmente sublime mostra-se, desde logo, o primeiro, “Sicília, Setembro”, aludindo aos naufrágios em Lampedusa; e, logo a seguir, “Depois da Festa”, o poema que fala de memória e esquecimento, que é o que acontece ao amor quando fenece. Em “Árvores”, o sujeito poético usa a retórica afim de mostrar ao interlocutor todo um leque de possibilidades de interpretação à questão colocada logo no início do poema. Por último, “Fonte” alude à inspiração, à Musa, que permite que a memória daquilo que escapa à atenção dos historiadores se inscreva na poesia.

Sicília, Setembro

Temos perto de nós os invasores
e numa terra de ruínas o silêncio
faz-se mais luminosa esta certeza
que nada sabemos do que virá breve.

Os guerreiros não esperavam aliados
e os comerciantes junto aos novos templos
dispunham o trigo, as tintas, as pedrinhas:
que importa o rei cunhado nas moedas?

Temos perto de nós os invasores
e o ruído da História soberana:
som e fúria, só no fim saberemos
do que estivemos tanto tempo à espera.

As ondas são mais baixas neste mar
e as civilizações, bem vês, são só a espuma...

Templo de Selinunte, Sicília

Depois da Festa

Basta olhares-me nos olhos: estão vazios.
Das imagens e das luzes que passara,
ficou o rasto amargo das memórias
que melhor não fossem ditas nem pensadas.
Tu não guardas nada, tu atravessas
as coisas que foram vida e alegria
e no que te demoras há o rasto
do que para sempre sobrou da tua vida.
O fim da festa é sempre um bom momento
para tomares por ti o peso à alegria
e sorrires com os teus olhos: estão vazios.
Nunca teve uma história o que te deram
nem a tua sombra na terra fez o dia.


Matilde Campilho foi a mais jovem participante nos painéis das Correntes d'Escritas de 2016. A revista revela-nos uma pequena mostra da sua poesia desconcertante, logo no primeiro poema, “Príncipe no Roseiral”, ao longo do qual desfaz todos os estereótipos associados à ideia do Príncipe Encantado dos contos de fadas ou dos romances sentimentais ou das temáticas exploradas nas telenovelas. O poema é a negação de tudo isso porque é um poema de protesto contra o esquecimento dos invisíveis na sociedade.

Príncipe no roseiral

Escute lá
isto é um poema
não fala de amor
não fala de cachecóis
azuis sobre os ombros
do cantor que suspende
os calcanhares
na berma do rochedo
Não fala do rolex
nem da bandeirola
da federação uruguaia
de esgrima
Não fala do lago drenado
na floresta americana
Não diz nada sobre
confeitaria fedorenta
que recebe os notívagos
para o café da manhã
quando o dia já virou
Isto é um poema
não fala de comoções
na missa das sete
nem da porcentagem
de mulheres que se espantam
com a imagem do marido
aparando a barba no ocaso
Não fala de tratores quebrados
na floresta americana
não fala da ideia de morte
na cidade dos revolucionários
Não fala de choro
não fala de virgens confusas
não fala de publicitários
de cotovelos gastos
Nem de manadas de cervos
Escute só
isto é um poema
não vai alinhar conceitos
do tipo liberdade igualdade e fé
Não vai ajeitar o cabelo
da menina que trabalha
com afinco na caixa registradora
do supermercado
Não vai melhorar
Não vai melhorar
isto é um poema
escute só
não fala de amor
não fala de santos
não fala de Deus
e nem fala do lavrador
que dedicou 38 anos
a descobrir uma visão
quase mística
do homem que canta
e atravessa
a estrada nacional 117
para chegar a casa
ou a algum lugar
próximo de casa.

A mesma intenção iconoclasta encontra-se inscrita no discurso poético dos dois textos em prosa “Conversa de fim de tarde depois de três anos de exílio” e “M”. O primeiro apresenta-se como um retrato de uma cena do quotidiano onde sobressaem as diferenças culturais (e de personalidade) entre dois seres opostos que se atraem como dois átomos de diferentes carga iónica. O segundo, como uma série de curtíssimas metragens a compor o caudal vertiginoso e sincopado do fio de pensamentos da voz poética nele transmitida. Por último, em “Texaco” as imagens surgem em catadupa a sugerir uma fome de vida coexistente com a permanência de um vazio constante, onde o amor é procurado como a última gota de água no deserto e como o antídoto para uma mundo em destruição.

E finalizamos a secção dedicada à poesia com o poeta Rui Spranger a marcar presença com quatro pequenos grandes poemas: “Praia do Norte”, a lembrar o cenário de um casamento tradicional no qual é notória a paixão já desgastada pelos anos numa relação onde só as crianças parecem ser o objecto do amor. Enquanto isso, os corpos dos adultos que as geraram estão já tão gélidos quanto o mar das praias do Norte.

Praia do Norte

Na praia só a alegria das crianças
inspira amor e cuidado
Depois há o mar demasiado frio
O teu corpo demasiado frio
a consciência da fragilidade do meu

O vazio e o frio são elementos que aparecem relacionados com a falta de amor, o arrefecimento da paixão, temática que surge novamente em “Ainda não a despedida”, onde se fala essencialmente de ausência. Neste poema, apesar da referência explícita ao Verão como o tempo presente no momento em que o poema é enunciado, altura do ano em que as casas mesmo no Norte não são frias, o locutor refere as “divisões frias” da casa que serve de cenário ao poema, projectando no local o estado anímico do sujeito poético.

Ainda não a despedida

É verão
A casa está agora vazia sem ti
E não sei qual de nós os dois é o fantasma
Que circula nestas divisões frias
E o vazio de fora e ao vazio de dentro
A abaterem-se sobre mim.

Os outro dois poemas, “Naquele tempo em que o amor” e “Trazer-te assim pela mão” são, respectivamente, o contraponto dos dois anteriores. Estes dois podem ser lidos separadamente, apesar de estarem relacionados. O contraste nestes dois pares de poemas advém da modalização temporal, onde estes últimos são os poemas que dizem respeito ao “outrora” quando o amor era “presente”. Os dois últimos versos do poema de Spranger que encerra a secção de poesia da revista Correntes d'Escritas 2016 tiram contudo, por serem talvez redundantes e apostarem numa rima fácil (presente/carente), alguma da força ao poema.


A primeira parte da Revista diz respeito a textos em prosa, sendo eles na sua maioria contos, crónicas ou relatos de Ana Cássia Rebelo, Antônio Torres, Cláudia Clemente, João Felgar, Manuela Gonzaga, Miguel Real e Raquel Patriarca.

Cláudia Clemente e João Felgar escolheram cada qual um conto cujo cenário se passa num cemitério. Clemente preferiu um cemitério parisiense, cheio de sombras e mausoléus, e um porteiro português (claro, o porteiro tinha de ser português), para dotar a sua história, “O Brinco de Pérola”, de uma atmosfera gótica com um toque de surrealismo. Por seu lado, Felgar escolhe um cemitério inglês, mas situado em Portugal, para compor uma história onde a tónica dominante é a melancolia a servir de base à fidelidade, ao amor e à devoção caninos demonstrados pela zeladora (portuguesa, of course) do mesmo cemitério, em cuidar dos mortos de Sua Majestade em território luso durante décadas a fio. A impressionante capacidade da protagonista de “Da Rainha sempre gostei” em dedicar-se voluntariamente a uma figura que encarna a realeza evidencia uma mentalidade conservadora, o noção de hierarquia, como se sempre tivesse vivido numa época feudal.

Há também um ligeiro travo a literatura gótica, embora de forma marginal, no conto de Ana Cássia Rebelo, “A vida inteira pela frente”. Rebelo brinca com a superstição que liga os gatos pretos à ideia de “má sorte”, enraizada na tradição oral europeia, para utilizá-la como índice de que a vida da protagonista poderá sofrer uma variação, inflectindo para uma período menos solar. O conto tem como tema central a expectativa do casamento defraudada pela noiva virgem na noite de núpcias. O texto é marcadamente feminista e a simbologia do gato adquire, ali, o valor de questionamento, de dúvida ou até mesmo de recusa da sociedade patriarcal, na forma como é encarada a sexualidade feminina (apenas e só dentro dos sagrados laços do matrimónio), tal como era há não muitas décadas atrás.

Antônio Torres preferiu o cenário do Porto, situada nos já algo longínquos anos 1960, para a sua história de cariz autobiográfico, num período que marcou o início da sua carreira como jornalista. Torres propôs-se retratar o ambiente na Invicta, na sua faceta mais boémia e hedonista algo que se evidencia logo a partir do título do conto, “O Porto bebido e revivido”, onde as vicissitudes da sua profissão e o choque cultural, fruto das vincadas diferenças de mentalidade lusa e brasileira, estão patentes quer nos equívocos semânticos de ambas as variantes da Língua Portuguesa, quer na forma do protagonista olhar o real em contraste com os outros participantes na história.

Manuela Gonzaga trouxe-nos um texto situado algures entre a prosa e a poesia “Só de pensar nela”. Um conto erótico, com a volúpia de um quadro de Rubens ou Poussin e um toque de onirismo estilhaçado, no final, pela luz crua da realidade.

Miguel Real recria um episódio do Evangelho “As Bodas de Caná”, mas deslocalizado para a área metropolitana de Lisboa – Alcântara, Cacém, Carcavelos – e actualizado para os dias de hoje. O resultado é a junção sincrética entre magia, fé e milagres que se misturam no mesmo cadinho de onde sai uma história que em nada fica a dever aos episódios ritualísticos de alguns romance de Jorge Amado (O Sumiço da Santa ou Tenda dos Milagres). Miguel Real torna-se assim o autor do melhor conto da revista.


Raquel Patriarca escolhe um conto em forma de carta, “Caminho para Damasco” na qual o narrador anónimo (um Eu que se dirige a um tu, ambos anónimos) se questiona ao seu interlocutor num estilo simultaneamente reflexivo e informal, sem grande preocupação com o formalismo literário, usando expressões coloquiais para questionar o Outro sobre ética e os limites de liberdade (sobretudo de expressão) sendo que esta última choca violentamente (e com frequência) com o uso da palavra como agressão.

A revista Correntes d' Escritas é algo que um amante de literatura nunca poderá deixar de ter na sua estante, quanto mais não seja pelos dossiers que exploram a obra dos melhores autores portugueses nas últimas décadas.



Londres, 30 de Abril de 2014

Cláudia de Sousa Dias