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Thursday, December 31, 2015

“Freshwater – A Comedy” by Virginia Woolf (Harvest Books-Harcourt)



Drawings by Edward Gorey


Na nota do editor, na contracapa da edição anglófona de que aqui famalos hoje, está escrito o seguinte (tradução minha):

A única peça de teatro conhecida, de autoria de Virginia Woolf, Freshwater, é uma hilariante farsa baseada na vida da tia-avó da escritora, Julia Margaret Cameron, famosa fotógrafa da era vitoriana. Escrita originalmente para ser representada em sessões privadas, Freshwater foi, primeiramente, levada a cena no Vanessa Bell's London Studio, em 1935, num dos serões teatrais do Bloomsbury Group. Faziam parte do elenco Leonard Woolf, Vanessa Bell, Duncan Grant, Julian e Angelica Bell. Cerca de cinquenta anos depois, Freshwater voltaria a ser notícia, após ser representada em Nova Iorque, contando com uma equipa de produção francesa, recheada de estrelas do mundo das Artes, incluindo o dramaturgo Eugène Ionesco, o realizador Alain-Robbe-Grillet e a romancista Nathalie Sarraute.

Nesta edição, o espírito inerente aos diálogos escritos por Woolf é realçado pelas delicadas e algo naif ilustrações macabras da autoria de Edward Gorey, cujo produto final numa perfeita combinação de ironia e sátira.

Virginia Woolf (1882-1941), foi um dos maiores ícones literários do século XX, marcando a arte da escrita ficcional com trabalhos tão fracturantes como Mrs. Dalloway ou To the Lighthouse. (...)

Esta edição, em inglês no original, conta com o prefácio de Lucio P. Ruotolo, que tem o mérito de fornecer uma contextualização detalhada da escrita e produção da peça para ambas as versões. Não explica, no entanto, o porquê da razão pela qual um texto que contém uma crítica social tão poderosa, dirigida à Inglaterra vitoriana e, sobretudo, a alguns dos seus ídolos com pés de barro, seja ainda hoje considerada uma obra “menor”, saída do imaginário de Woolf, uma vez que os críticos especializados no Reino Unido (país no qual ainda não se encontra publicada) a classificam como representativa da feceta “light” da autora de As Ondas. Sobre a obra, ainda só publicada nos Estados Unidos, Ruotulo escreve o seguinte:

«A encenação de Freshwater, em 1935, peça de teatro que Virginia Woolf escrevera doze anos antes e submetida a uma minuciosa revisão especialmente para este evento, foi apenas um dos muitos serões teatrais que caracterizavam as festas “Bloomsbury”, desde o início da década de 1920. O leque de actividades deste grupo abrangia desde a produção do Comus de Milton, até espectáculos de variedades e dramatizações que, nas palavras da própria Virginia, poderiam ser mesmo “obscenamente sublimes” (ou sublimemente obscenas, se optarmos por uma tradução mais literal). David Garnett [artista plástico e, dizem as más línguas, amante da irmã de Woolf Vanessa Bell]recorda, na sua autobiografia, de entre as comédias mais antigas ali representadas, uma peça intitulada Don't be Frightened, or Pippinngton Park, inspirada no relato jornalístico sobre um cavalheiro abastado que molestara uma jovem no parque. Vanessa Bell fazia de vítima, e o último acto era encenado como um pas de deux por Lydia Lopokova e Maynard Keynes. Outra peça, escrita por Quentin Bell [sobrinhode Virginia, filho de Clive e Vanessa Bell], mostrava a sua casa em Charleston como uma ruína arqueológica, num futuro distante, visitada por turistas. Bell recupera também o género drama cómico em coplas rimadas, a que dá o título de The Last Days of Old Pompeii. Estas representações tiveram lugar em várias residências diferentes do grupo.

Freshwater parece fazer parte de um conjunto de peças, levadas a palco em meados dos anos 1930 no Vanessa Bell's London Studio sito no nº 8 Fitzroy Street.  (...) O estúdio de Vanessa tinha a forma de um L, onde os espectadores eram dispostos ao longo do segmento mais comprido do “L”e com um palco tapado por uma cortina no segmento mais curto. Na noite de 18 de Janeiro de 1935, a lotação estava visivelmente esgotada, com uma plateia de cerca de oitenta convidados, que haviam comparecido especialmente, a pedido de Mrs. Clive Bell e Mrs. Leonard Woolf, para assistir a Freshwater, A Comedy. O evento era também parte da celebração do aniversário recente de Angelica Bell [sobrinha de Virginia e irmã de Quentin]. O público estava, já, em espírito de festa desde o início e a peça, que começara às 9:30, foi representada em ambiente barulhento e informal. A voz tonitroante de Clive Bell e, sobretudo, a sua gargalhada, foram ouvidos na sala durante toda a performance. Dado que o palco estava escassamente iluminado, nem sempre era possível ver, mas apenas ouvir, o que aí se passava. Mas a entrada do diário de Virginia no dia seguinte regista a sua própria apreciação acerca deste “serão de riso desbragado”. A produção, apesar de deturpada, assim como a própria escrita de Freshwater, agradara-lhe claramente. A sala onde decorrera a performance encontrava-se ligada por um passadiço de madeira, coberto por um telhado de ferro ondulado, ao estúdio, adjacente, de Duncan Grant. Depois de caído o pano, após a cena final, convidados e actores mudaram-se, como era hábito, ruidosamente, através do corredor, para uma festa no alojamento de Duncan. A reunião, depois da apresentação de Freshwater foi, como era previsível, longa e festiva.

Mas enquanto estas apresentações das peças do grupo Bloomsbury decorriam numa atmosfera divertida, a sua preparação obrigava a um grande dispêndio de tempo e trabalho árduo, tanto para os autores como para os participantes. Isto notou-se sobretudo no caso de Freshwater. Foram feitos ensaios ao longo de todo o Verão que antecedeu a estreia da peça e, até mesmo numa abordagem superficial ao texto, se consegue ver o empenho de Virginia na investigação do tema central da peça, a sua tia-avó, Julia Margaret Cameron. As notas desta edição Freshwater1dão apenas uma pequena ideia da típica meticulosidade com que abordava até mesmo projectos "menos sérios".

Os dois manuscritos da peça, aqui publicados pela primeira vez, foram descobertos por Anne Olivier Bell [esposa de Quentin], em 1969, algumas semanas depois do falecimento de Leonard Woolf [marido de Virginia Woolf]. Na verdade, Leonard Woolf só teve conhecimento da sua existência entre a vasta acumulação de papéis em Monk's House, mas não os conseguiu encontrar quando, primeiramente, Quentin Bell lhe perguntara pela peça não publicada de Virginia.

A questão da identificação destes dois textos tornou-se, então, complicada pelo facto de nenhum dos espectadores sobreviventes, assim como actores participantes que foram entrevistados terem a certeza de qual das duas versões havia sido representada em 1935. Quentin Bell estava entre o grupo de pessoas que receberam convite mas não puderam comparecer ao evento. Tendo faltado à representação feita no estúdio da mãe, foi forçado a preparar o primeiro rascunho da biografia da tia, para reconstruir a peça a partir da recolha de ensaios a que ele próprio havia assistido em Charleston. As notas de Quentin Bell2 são a melhor prova que permite a datação pelo menos de uma das duas versões, uma vez que este escrevera-as antes de a sua esposa ter encontrado os manuscritos e estas registam dois incidentes, que ocorrem no texto que começa por “Sit still, Charles”. Os dois incidentes são o poema de Tennyson sobre uma jovem afogada e, sobretudo, a cena na praia entre Ellen Terry e John Craig. Uma transcrição manuscrita feita por Vanessa, do seu papel como Mrs. Cameron, a qual inclui a listagem do elenco, constitui uma prova adicional. Com uma flagrante excepção (ver pp. 75-76, no original), Vanessa transcrevera as suas deixas tal como estão na versão “Sit still, Charles”.

Angelica Garnett [Bell de nascimento] descobrira recentemente, antes desta publicação, outra listagem do elenco, esta com a letra de Virginia, que mostra uma listagem de personagens Dramatis Personae de certa forma diferente e maior. Apesar da existência de diferentes listagens do elenco poderem significar outra representação da peça revista/reescrita, não se consegue encontrar indícios de que esta lenha sido levada a cena mais do que uma vez.

As notas de Vanessa Bell encontram-se depositadas, juntamente com as duas versões de Freshwater, na Biblioteca da Universidade do Sussex, em Brighton.

Apesar de a primeira versão não revista de Freshwater, incluída aqui no Apêndice, ser de certa forma mais difícil de datar, um exame tipográfico e das referências contidas sustentam a afirmação de Quentin Bell de que aquela é a versão de 1923. Já em 1919, Virginia demonstrara intenções de escrever uma comédia sobre Julia Cameron. Na entrada do seu diário de Julho de 1923, Virginia referencia ter estado a trabalhar arduamente em Freshwater, A Comedy, uma diversão bem-vinda na sua luta com The Hours (Mrs. Dalloway). Ela contava acabar a peça no dia seguinte. Mas seis semanas mais tarde, numa carta dirigida a Vanessa, Virginia exprimia consternação pelo facto de a peça ainda não estar acabada e convidava a irmã e Duncan Grant para a virem ouvir lê-la “o quanto antes”. A urgência da expressão sugere um prazo, o que é esclarecido na carta a Desmond MacCarthy, escrita provavelmente em Outubro daquele ano, a perguntar se ele consideraria conduzir a encenação da peça em palco, para uma produção de Natal. Este concordara, então, dirigir Freshwater. Virginia, no entanto, profundamente envolvida na escrita do seu novo romance, decepcionaria um número considerável de pessoas, ao decidir abandonar a produção. “ Eu podia escrever algo muito melhor,” explica ela a Vanessa, já no final do Outono de 1923, “ se eu disponibilizasse um pouco mais de tempo para tal: e antevejo que todo aquele assunto será um empreendimento muito maior do que eu pensava.” No entanto, só conseguiria arranjar tempo para melhorar aquela peça uma década mais tarde(...)».

Lucio P. Ruotolo


No tocante à contextualização literária, Freshwater traz implícita, até no próprio título, uma ruptura com o cânon, melhor dizendo os escritores contemporâneos consagrados na época em que viveu a autora, já no final da era vitoriana, o qual era sobretudo constituído pelos escritores do período edwardiano. Estes representavam a escrita clássica, de narrativa de desenvolvimento linear, com temáticas associadas à exaltação do império Britânico e os valores da sociedade vitoriana. Ruptura essa pela qual Woolf ansiava ardentemente e que foi conseguida passando a autora de “To the Lighthouse” a figurar entre os escritores do período georgiano e do movimento modernista que incluía autores como T.S. Elliot, Katherine Mansfield e James Joyce.


Sendo Freshwater, como já foi referido, na nossa opinião injustamente tratada pela crítica, torna-se importante frisar a importância da classificação da obra dentro do género comédia ou sátira social dirigida precisamente à facção intelectual que estava em voga no final da era vitoriana (os escritores e artistas do período edwardiano). A acutilância de Woolf exprime-se aqui na forma como são mostradas as atitudes das diferentes personagens que roçam a hipocrisia, o ridículo e, por vezes, o patético, onde a diferença entre o ser e o parecer é de tal forma chocante e o abismo entre o ethos individual ( o eu na sua faceta privada e interior, a componente interna da sua personalidade) e ethos colectivo (imagem pública, o comportamento observado) da mesma personagem é tal que esta se torna objecto de troça por parte dos destinatários anónimos a quem se destina o conteúdo da peça (o público leitor ou a plateia que assite à cena) sobretudo ao poeta Tennyson e ao pintor Watts (ambos condecorados pela Rainha Vitória) sem deixar contudo escapar, o perfeccionismo obsessivo e algo caprichoso da própria tia, a fotógrafa Julia Cameron. Tennyson e Watts são especialmente visados pela apuradíssima arte do escárnio e mal-dizer de Woolf: Tennyson é mostrado na peça como a incarnação de fauno, ou de um velho maníaco, que gosta de perseguir jovenzinhas púberes no parque. Neste caso, tenta seduzir a esposa adolescente de outro personagem cujo ethos individual não é também de todo favorável, o pintor Watts, idoso e impotente, o qual escraviza a jovem esposa, obrigando-a a posar horas a fio, imóvel e com roupas escassas independentemente das condições climatéricas, até a adolescente chegar ao cúmulo de desmaiar de exaustão. Por outro lado, na versão de Freshwater de 1932, Woolf enfatiza bastante mais do que na primeira, escrita dez anos antes, o carácter enérgico e dominador de Julia Cameron logo a partir do primeiro enunciado da peça, a qual abre com esta personagem, cujo discurso, nesta versão refinada e melhorada pela autora, jorra com uma extraordinária força ilocutória: “Sit still, Charles! Sit still!”. Esta forte componente performativa do discurso contrasta com o tom introspectivo da mesma personagem na primeira versão, a qual se exprime num monólogo perorativo com o qual é aberta a cena. Também o final desta primeira versão é dotado de um tom bastante mais solene e lúgubre, a denunciar um olhar mais dramático e (talvez) um pouco mais pessimista. Tudo isto resulta numa atmosfera bastante mais pesada do que aquela com que a autora apresenta na versão dos anos trinta, onde a dimensão e teor do ridículo têm um peso muito maior, pela associação da ideia de hipocrisia, onde se premeia uma fachada que tem por base uma construção de um ethos colectivo fictício por não ter correspondência ou reflexo no ethos individual. Isto porque, Sua Majestade a Rainha não está a premiar a beleza dos versos de Tennyson, nem a perfeição das arte plástica de Watts, mas a repercussão que tem a imagem pública de ambos os vates em todos os recantos do Império e para lá dele. A Magnificência ou a Grandiosidade, implícitas na expressão "The Utmost for the Highest" que é aplicada às artes e repetida até à exaustão durante a peça, servem para enaltecer o mesmo império e a própria imagem da Rainha, do seu poder e da grandeza do Império.

Por último, uma palavra para o título da peça: "Freshwater" é a localidade onde se passa a acção, na vivenda Dimbola. É o lugar onde, por via da imaginação de Woolf, se refresca o espírito, através da contestação dos símbolos inatacáveis do Imperialismo Britânico e à suposta rigidez da moral vitoriana, da obsessão pelo politicamente correcto para em seu lugar fazer a apologia da espontaneidade, da livre expressão, verbal e corporal dos desejos, características de personalidade que são incarnadas pela jovem adolescente Ellen Terry (Nell) e são plenamente verbalizadas quando esta decide finalmente deixar o dever (de esposa obediente), seguir o seu próprio rumo e abandonar uma vida sufocante, recheada de pompa e circunstância, uma autêntica feira de vaidades, onde todos a tratam com condescendência devido às suas origens e lhe ditam constantemente o que deve e não deve fazer. Nell é a única personagem que é caracterizada com benevolência e com alguma ternura por Woolf que lhe atribuiu ethos (imagem) de um ser algo angélico, naïf que passa a agir orientada pelo princípio do prazer libertando-se do seu superego (as restrições morais impostas pela sociedade que dispõem do poder e da vida dos outros) mas sempre sem intenção de magoar seja quem for. o amadurecimento de Nell dá-se quando aprende, progressivamente, a dizer “não”.

O desenrolar das peripécias de Freshwater, por se tratar de uma peça composta por personagens reais, algumas delas sendo pessoas próximas e inclusivamente familiares da autora, cujos defeitos são exagerados, foi, por esse motivo, representada em privado durante a vida da autora, persistindo até hoje no domínio da semi-obscuridade. Já é, pois, por tudo o que já aqui foi dito, tempo de lhe dar o destaque mais do que merecido.


Cláudia de Sousa Dias
Londres, 14 de Dezembro de 2015.




1As quais também incluímos nesta tradução a partir do original.

2Para essa biografia.