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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, April 23, 2011

“As Aventuras de Maresia do Mar e outras Histórias para Aprender” de Francisco Moita Flores




Francisco Moita Flores estreia-se na escrita infanto-juvenil com esta publicação, a qual inclui quatro pequenas histórias que incidem em temas que fazem parte integrante do currículo escolar do ensino básico.

O Autor apresentou o mesmo livro, que conta com as belíssimas ilustrações de Ricardo Tércio, no passado dia 20 de Março na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco.

Confesso ter tido alguma dificuldade em classificar esta obra, pelo facto de algumas histórias como As aventuras de Maresia do Mar ou mesmo Os Astros poderem ser facilmente recomendadas para crianças do primeiro ciclo do ensino básico; no entanto, uma delas poderá adequar-se ao 2º ou 3º ciclo e outra, mais adequada ao público adulto, se transformada em alegoria ou sátira às Nações Unidas, pelas razões que passaremos a explicar.

A primeira história, AS Aventuras de Maresia do Mar, começa por ser uma bonita metáfora, personificada numa viagem à volta do mundo de uma gota de água. Trata-se de uma história simples e concreta que operacionaliza conceitos relacionados com o ciclo da água. Um conto que poderia facilmente ser adaptado a um pequeno telefilme de animação.

A segunda história seleccionada para este volume é a alegoria às Nações Unidas, satirizada um pouco ao estilo de La Fontaine intitulada As aflições herbívoras que deixaram um onmívoro feliz. Esta história seria, no entanto, mais adequada a uma adaptação a uma peça de teatro, uma vez que se enquadra perfeitamente no género “farsa”. Trata-se de um conto que pode ser olhado em paralelo com a situação actual das Nações Unidas uma vez que, os animais que figuram na assembleia, estão agrupados e estratificados consoante o lugar que ocupam na cadeia alimentar, da mesma forma que, na ONU, as nações estão representadas e agrupadas conforme o lugar que ocupam na Economia Mundial. A analogia é interessante, sobretudo quando verificamos que, as diversas espécies de animais começam, quando a forme aperta, por se devorar uns aos outros. Exactamente como os humanos em tempos de crise. Mas o que levanta sérias dúvidas quanto à indicação deste conto para crianças é que, para problemas graves que afectam o mundo, como a luta pelo poder ou pela subsistência, a solução esteja na etilização por meio do Vinho do Porto, que surge aqui como um veículo de abertura dos laços de camaradagem entre os povos, eliminando a agressividade e estimulando a alegria. Para o público adulto, a sátira funcionaria na perfeição, mas, para os mais novos, a interpretação de uma história como esta pode transformar-se numa considerável distorção da realidade, see a leitura da mesma não for convenientemente orientada por um adulto, uma vez que, como sabemos, o consumo de álcool estimula, na maior parte dos casos, comportamentos agressivos, diminuindo a percepção de risco para o próprio e para os outros.

A terceira história intitula-se Os Astros, sendo, também, aquela que é detentora de maior conteúdo poético e literário.

A quarta história pode servir de base a um argumento de um pequeno filme de ficção científica para crianças, onde os principais personagens são... vírus e bactérias. Ou seja, os habitantes de Microlândia, trazida à luz do conhecimento humano pela invenção do microscópio no século XIX. Trata-se de uma história sobre a questão da sobrevivência dos microrganismos responsáveis pela debilitação e morte dos seres humanos no planeta e que nos dá, indirectamente, as soluções para a obtenção de um estilo de vida saudável.

O livro é um objecto belo pelas ilustrações de Ricardo Tércio, expressivas e de cores ora suaves e discretas, ora quentes, ou ainda apostando nos contrastes.



Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, April 19, 2011

"Despojos de Berlim" de Michael Pye (ASA)

Tradução: Isabel Alves


Após ter dedicado grande parte da vida profissional ao jornalismo, Michael Pye optou pela dedicação, a tempo integral, à actividade de escritor, dividindo o tempo entre Londres e Portugal.

A carreira anterior e a formação académica – é licenciado em História – contribuíram largamente para a compilação do romance de que aqui tratamos, cuja trama é inspirada em personagens reais e factos históricos.

O tema escolhido é o comércio ilegal de obras de arte, roubadas na Europa durante a Segunda Grande Guerra do século XX a um número avultado de famílias judias, pertencentes às classes abastadas nos vários países europeus, anexados ao Terceiro Reich.

A narração é feita por várias personagens, sendo explorado o respectivo ponto de vista, em duas épocas diferentes. O jogo do tempo é um recurso estilístico que o Autor utiliza com mestria, adaptando a forma de olhar, consoante a época e a personagem. Assim temos a vilã da história enquanto criança e, depois, idosa; o protagonista, na infância e na meia-idade; uma filha, que funciona como observadora exterior, sem participar directamente nos acontecimentos que fazem parte da trama principal. A alternância dos narradores permite mudar a perspectiva dos factos, como se filmássemos a mesma cena a partir de ângulos diferentes.

Uma das cenas que mais impacto causam no leitor é a descrição feita por Helen, a filha de Nicholas Müller-Rossi, que vigia a caminhada do pai em direcção à estação de caminho de ferro para apanhar o comboio que o levará à cidade onde decorre o funeral do próprio pai, avô de Helen. A extrema solidão que envolve o sexagenário é enfatizada pela descrição detalhada do ambiente desolador em pleno Inverno Suíço. O estilho é cinematográfico, mas a exaltação de certos detalhes faz lembrar um filme de animação de Tim Burton.

A característica que mais chama a tenção em Nicholas é o desalento que o envolve e a impenetrável muralha de solidão que constrói à sua volta e o abraça como um pesado sobretudo submergindo-o como um nevão nos Alpes, o que o torna invisível aos olhos dos poucos transeuntes que circulam na rua àquela hora. A mesma invisibilidade e aparente conformismo criam, no entanto, uma empatia instantânea no leitor.

A personalidade da mãe de Nicholas é usada como contraponto no desenvolvimento da trama. Frívola, Lucia Müller-Rossi demonstra um gosto excessivo pelo luxo e pela ostentação. É a incarnação da avidez, dissimulada sob uma capa de falso altruísmo e falsa dedicação maternal. O gosto pelo exibicionismo é destacado logo a partir da infância, no seio de uma família privilegiada de banqueiros italianos. Neste ponto haverá, talvez, algo a dizer a respeito da escolha do narrador: o autor optou por um narrador não participante, que relata a atitude da jovem Lucia, a partir da observação externa. No entanto seria, talvez, mais enriquecedor se a narração deste capítulo fosse feita a partir da memória da própria personagem de forma a que o leitor pudesse entrar no fio condutor do pensamento, do raciocínio e das motivações da mesma, ao invés de o fazer de forma indirecta ou melhor, conduzida pelo narrador externo.

Mesmo assim, percebemos apenas que Lucia não soube lidar com o empobrecimento ao atingir a idade adulta, o que lhe começa a criar sérias dificuldades sobretudo quando pretende continuar a usufruir de um padrão de vida semelhante ao de outrora. As dificuldades quotidianas tornam impossível o desejo de manutenção do mesmo nível de qualidade de vida em tempo de guerra e as fortes privações fazem com que desfira sucessivas punhaladas na ética, atirando ao mesmo tempo a responsabilidade dos seus actos para os ombros do filho pequeno que era, então, Nicholas de forma a justificar os seus actos.

Dicotomia entre passado e presente na estrutura do romance

Uma das características principais do romance é, como já foi dito, a ênfase no jogo entre os “tempos” da narrativa. A trama prossegue o seu curso através de um vaivém de cronológico, de forma a desvendar progressivamente o mistério sob o qual se ocultam as atitudes das personagens. Desta forma, o Autor consegue adiar a descoberta de um passado embaraçoso numa família de classe média alta, a viver tranquilamente na Suíça em plena década de 1990. O mesmo passado incómodo irrompe abruptamente como que pela mão de uma Némesis nonagenária, incarnada na figura de uma jornalista judia, descendente de uma das famílias espoliadas a viver em Inglaterra, Sarah Freeman.

O contraste entre o presente mostra uma Suíça onde reina a ordem e o progresso. Já a caótica Alemanha do final dos anos 1930 e 1940 confere à história o movimento necessário para dotar o romance de dinamismo.

O elo de ligação entre as várias épocas continua a ser o interesse da mãe de Nicholas por obras de arte e o desejo de posse de Lucia ou, pelo menos a vontade de fazer girar a vida à volta do luxo, seja este desejo operado de forma lícita ou não. Lucia justifica todas as suas atitudes em nome da sua sobrevivência e do filho: ao mudar-se para a Alemanha no período mais “quente” do conflito, Lucia conseguirá sempre, graças aos seus contactos e encanto pessoal, um emprego considerado na altura invejável - num estúdio de cinema e na produção de filmes de animação. No entanto, Lucia quer sempre o melhor e está disposta a tudo para obtê-lo.

As consequências e o impacto das atitudes desta mulher só são conhecidas meio século depois, pela mão de Sarah Lindemann, Freeman após o casamento, na altura em que esta identifica um dos objectos roubados à própria família, exposto precisamente na montra da loja de Lucia.

A personagem Lucia e os factos que são construídos à sua volta são extraídos a partir de acontecimentos veríodicos, que vieram a público nos anos 1990, envolvendo actividades ilícitas e criminosas de uma comerciante de arte Andreina Schwegler-Torré e através do relato de Thomas Bluomberger sobre o comércio ilícito de arte na Suíça. É daqui que nasce Lucia Müller-Rossi, mãe do protagonista Nicholas.

A Luz sobre os “despojos” de Berlim

A luz fria que incide na paisagem helvética, dias cinzentos ou a beleza gélida da natureza alpina como que mantém congelado um passado que perece encontrar eco na paisagem e na memória dos habitantes no tempo presente. No passado, em plena Berlim dos anos 1940, a paisagem é também cinzenta e fria, mas urbana, desumanizada e inquietante, onde os habitantes se esgueiram por entre os escombros, resultantes dos bombardeamentos. Quase respiramos de alívio de cada vez que regressamos ao presente e à límpida claridade dos Alpes, onde são evocadas as memórias de Nicholas a partir das quais nos apercebemos das verdadeiras cores do passado. À medida que Nicholas se afasta do contacto social para se reencontrar, a sós, com a própria consciência e a magnitude da responsabilidade com que lhe carregaram os frágeis ombros, hoje vergados pelo cansaço o drama vai-se condensando como o gelo antes de deflagrar a tempestade de neve. Ou a avalanche.

Só no final do livro nos percebemos que afinal é realidade de que se trata no romance é feita de cores intermédias, após a leitura do ultimo capítulo. Até lá, o Autor brinda-nos apenas com alguns vislumbres parciais, flashes, quer através do olhar atento e inocente de Nicholas enquanto jovem, no tempo de solidão e afastamento na Berlim em guerra, enquanto a mãe trabalhava. Nicholas é suficientemente inteligente para reparar em alguns aspectos incoerentes da vida da própria mãe, sem no entanto conseguir descodificá-los: uma vida cheia de ausências e mistérios, onde se adivinha uma intensa actividade social, mas uma vida da qual ele, Nicholas, não faz parte.

O mergulho no passado ajuda à compreensão de que a solidão é uma constante ao longo da vida dedo jovem, interrompida somente durante o casamento com “Marthe”.

A carência de víveres ,sofrida na pele pela população durante o período de guerra e de qual Lucia se serve para justificar um passado do qual no fundo se envergonha, nunca chega a ser absoluta em casa dos Müller-Rossi, devido à facilidade com que a mãe utiliza os seus contactos sociais para conseguir géneros ou senhas de racionamento.

A Ética e a moral

As personagens Sarah e Péter servem de bitola para as atitudes de Lucia, mas nada podem fazer para inflectir o destino de Nicholas de forma que a vingança Nemésica de Sarah deixa de ter sentido a não ser para recuperar os objectos materiais.

Outro aspecto curioso no romance é a referência de A Peter, ex-piloto da RAF à situação social Alemã. Ao piloto reformado confunde-o o facto de não haver variação na paisagem urbana, a diferença entre as casas dos ricos e as dos pobres é quase nula. O excesso de ordem na cultura germânica e o facto de a pobreza existir mas não ser visível causam-lhe desconforto. A Alemanha e a cultura germânica é talvez, demasiado higiénica para os padrões britânicos. Ou, talvez demasiado hipócrita.

Aos acontecimentos de Despojos de Berlim, está subjacente a ética observada nos nossos dias, na Europa da actualidade onde se acentua de dia para dia uma tendência para a desculpabilização e relativização das responsabilidades individuais por, via da psicologia social que tudo parece explicar e compreender.

Uma forma de olhar o mundo que, levada ao extremo, poderá reforçar atitudes pouco éticas e muito pouco responsáveis por parte de certas pessoas, no entender do Autor. Em relação a Lúcia, esta não será a harpia que se pensa no início do romance, mas alguém que sacode, sem ponta de remorso, toda e qualquer responsabilidade ou sombra de culpa dos próprios ombros no tocante às consequências dos seus actos.

Sarah Lindemann actua no romance como uma espécie de juiz empenhado em colocar as coisas no seu devido lugar, papel que é confirmado pela afirmação de quepodemos ser absolvidos nos tribunais pelos crimes mais abomináveis, mas nunca nos perdoamos a nós mesmos. Por isso se finge, se representa o papel de mãe amorosa e sacrificada.

Mas a verdadeira Némesis na história não é uma pessoa física mas o Tempo. A humanidade não abala a consciência mas a passagem do Tempo deixa marcas. A passagem do Tempo e a velhice, a degradação da mente desempenham o papel das Fúrias, num final digno de um conto de fadas no tocante ao destino dos vilões, onde estas Erínias se abatem impiedosamente sobre a protagonista feminina, ao aprisioná-la num passado do qual nunca consegue sair, dando vazão á Lei do Pêndulo ou do Eterno Retorno.


Para Urbano Tavares Rodrigues, este Despojos de Berlim não faz parte daquilo que se considera como "Grande Literatura" apesar de:

...como romance essencialmente apostado em vender muito e depressa, não deixa de ter, para além do interesse com que se lê, uns laivos de psicologia das personagens e uma criação, embora leve, de atmosferas, a de Berlim durante o período nazi, a do acolhimento dos exilados no estrangeiro, a do pequeno mundo dos antiquários, compradores, traficantes.
A intriga vai-se desvelando pouco a pouco: quem era verdadeiramente, ou como iludia e manobrava os judeus e os funcionários, essa tão digna Lúcia Muller-Rossi que um dia vê aparecer-lhe o autêntico proprietário de um pequeno tesouro que ela expunha na montra da sua loja.
Michael Pye, o autor, é um jornalista hábil, formado em História por Oxford, de escrita muito directa, que sabe proporcionar aos leitores um entretenimento agradável.


Um romance cativante mas de fácil leitura para levar numa viagem de férias.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, April 13, 2011

"A Aurora dos Bem-Amados" e "O Grande senhor" de Louis Gardel (Bizâncio)

Tradução de Clara Alvarez



Louis Gardel é um conhecido guionista francês e, também, que também gosta de escrever ficção. A presente obra é a história de uma saga respeitante às vicissitudes e intrigas palacianas no Império Otomano, escrita aqui em dois volumes, onde, a par da sucessão de dois monarcas ficamos a par de uma visão mais realista de um grande senho que deu origem à terrível lenda do Conde Drácula...
Louis Gardel foi, ainda, vencedor do prémio da Academia Francesa em 1980 com o romance "Fort Saganne". Em A Aurora dos Bem-Amados, o Autor dá a conhecer como se estabeleciam as relações de amor, amizade e poder, num cenário das mil e uma noites. A intriga gira em torno de um agitado período da História do Império Otomano, envolvendo os conflitos palacianos em torno da amizade do Sultão Solimão - mais tarde cognominado de O Magnífico - pelo seu homem de absoluta confiança, Ibrahim (um ex-escravo grego, obrigado a converter-se ao Islão na adolescência, que ascende posteriormente à posição de grão-vizir, braço direito do Sultão) e da sua paixão pela bela e cativante escrava Hurren (oferecida ao sultão por Ibraim), mais tarde convertida em Imperatriz. A estes dois sentimentos, amor e amizade, irá inicialmente aliar-se o Poder, que passará, depois, a dominá-los - tanto a Solimão como a Ibrahim - e, por fim, a submetê-los. Louis Gardel dá a entender, de uma forma muito simples e clara que são, na verdade, estes três ingredientes, a mola impulsionadora do curso da História, ao deixar entrever os meandros das intrigas do Serralho, os sangrentos conflitos relacionados com a luta pela sucessão ao trono (que inclusive, passa por cima de laços de parentesco muito próximos e acabam por degradar toda e qualquer forma de amor ou amizade), bem como as relações entre o Império Otomano e o Ocidente (que interferiren com as ambições de Carlos V e a pretensão ao domínio dos mares pela Sereníssima República de Veneza). É desta forma que a luta pelo poder se irá transformar numa impiedosa luta pela sobrevivência, num ambiente em que o Medo e a Inveja acabam por dominar as consciências: uma psicose social que é reforçada por um sistema que permite a ascensão ao trono baseando-se não na sucessão do filho mais velho, mas na nomeação do membro da família considerado mais capaz, alçgo que se torna, na prática, na sobrevivência da "águia" mais forte, ou o "falcão"mais implacável. O harém é outro ninho de víboras, devido à rivalidade entre os clãs oriundos das "proles" das diferentes esposas do Sultão. As intrigas e mexericos sucedem-se. Neste romance sobressai, mais do que tudo, a ideia de que, o gozo do favoritismo, quer seja concedido pelo cargo, quer pelo casamento ou concubinato, implica um estado de vulnerabilidade, face a todo um conjunto de armadilhas políticas que podem culminar na morte dos, até então, hiper-privilegiados. Uma história que, apesar de ocorrida na Turquia do séc.XVI, tem a frescura do vento da actualidade.
Em O Grande Senhor é destacado o amor obsessivo pelo Poder e a secundarização do amor nas suas múltiplas facetas.

Neste romance, que é a sequela de A Aurora dos Bem-Amados, Louis Gardel analisa, num texto de grande densidade psicológica, a evolução do reinado de Solimão, o Magnífico, rei supremo do Império Otomano. O livro explora a dimensão psicológica do conturbadíssimo reinado deste monarca, explicando as motivações mais profundas que o levam a condenar à morte, o filho mais velho, Mustafá, em cuja popularidade vê, simultaneamente, uma ameaça e uma afronta ao seu poder absoluto. Mais tarde assiste, impotente, ao afundar de Cihangir, o seu filho favorito, no abismo da depressão. A perda de Cihangir, deficiente físico e, por isso, incapaz de se tornar um rival, é um duro golpe para este imperador despótico, consciente de que este jovem frágil foi, talvez, o único ser humano que o amou de forma incondicional. Por outro lado, a sua relação com a Imperatriz Russiana, ou Hurrem, a Feliz, sofre também uma série de turbulências dado o carácter manipulador e o apurado instinto de sobrevivência desta soberana que tenta, pelos meios mais tortuosos, fazer com que o Sultão abdique, nomeando o seu filho Bajazeto como seu sucessor. A Imperatriz, mesmo depois de destituída da beleza e do temperamento dominador, consegue, já no outono da sua existência, recuperar o amor do sultão para morrer pouco tempo depois. O que não a impede entretanto de usar essa proximidade para fazer valer os seus interesses. Esta é uma morte que, tal como a de Cihangir, não deixa Solimão indiferente, pois trata-se dasua grande paixão da juventude. Frustradas as tentativas de Russiana para fazer Bajazeto ascender ao Sultanato, devido às armadilhas políticas engendradas pelo seu corrupto e maquiavélico irmão Selim, o Bêbado, Solimão, vê o seu filho mais velho ser estrangulado por ordem de Selim, juntamente com os seus cinco netos, filhos de Bajazeto. Minado pela doença, Solimão consegue ainda, como prémio de consolação, consolidar o seu domínio na região dos balcãs até à Hungria - situação geopolítica que gera o embrião que eclodirá, muito tempo depois, já no sec. XX, em alguns dos mais graves e intrincados conflitos ocorridos na Europa com repercussões a nível mundial (a 1ª Grande Guerra de 1914/18 e a Guerra dos Balcãs já na última década do século passado). Próximo do fim , com as articulações paralisadas pela ancilose, perdido no deserto da solidão do Poder Absoluto, o monarca reencontra em Efraim, o pequeno judeu corcunda, cujas mãos o aliviam das dores atrozes que atormentam os últimos dias da sua existência, a sua derradeira fonte de afecto. Na deficiência física deste assistente do seu médico pessoal, o Sultão recorda o malogrado filho Cihangir. Antes do fim, consegue, ainda, acabar com o último foco de resistência cristã em Szigetvar, minando a resistência da Cidade onde se encontram os Soldados de Deus que, tal como os soldados de Allah, não hesitam quando têm de escolher entre o paraíso e a desonra. Expira, sem o conhecimento do seu exército, mantido na dúvida até chegar a Istambul pelo fiel Efraim, onde se procederão as exéquias. Solimão morre vitorioso, às portas da Europa e do Ocidente, mas afastado dos descendentes que lhe restam: Selim, o filho corrupto que despreza e Mihirimar, uma cópia patética de Russiana, cuja alma alimentada pelo fanatismo religioso pretende compensar o deserto afectivo que a rodeia. Solimão, consegue, apesar de tudo, ter por companhia nos seus últimos momentos, alguém capaz de uma dedicação sem precedentes e desinteressada. Um drama das mil e uma noites que pretende transmitir a mensagem de que, por vezes, a felicidade está na palavra Renúncia. Um romance sublime para quem gosta de mergulhar nas raízes da História e descobrir o mundo actual. Cláudia de Sousa Dias.

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Wednesday, April 06, 2011

"Lettres sur l’Italie” de Charles Mercier Dupaty (Nicolas Chaudun)



Charles Mercier Dupaty foi uma figura de proa no mundo intelectual do Iluminismo , amigo de Voltaire e Montesquieu, simpatizante do liberalismo económico e científico que, então, dominava o continente inglês. Dupaty era um homem crente, embora vincadamente anti-clerical e um acérrimo crítico da interferência da Igreja no quotidiano e na vida privada dos cidadãos.

…il y a toujours à l’esprit l’idée que l’Anglaterre constitue, en 1785, la seule nation libre de l’Europe.

Foi um adepto fervoroso do desenvolvimento científico, facto que se pode facilmente confirmar pela leitura da sua correspondência. A presente edição conta com o prefácio de Hugo Lacroix do qual transcrevemos o parágrafo que se segue:

L’ancien et le noveau

Lumières sur l’Italie. Coup de vent frais sur l’an 1785. Tout ce q’écrit Dupaty paraît l’avoir été hier matin. Il écrit vite et bien, comme il respire. Voyageant, il s’impregne par touts les pores des realités humaines du pays qu’il découvre.

O prefácio de Hugo Lacroix não deixa de ser, também ele, uma peça literária, uma mais valia a acrescentar à obra pela forma como desvenda a informação que recolhe do discurso de Dupaty, de onde sobressai uma impressionante capacidade de análise votada aos aspectos mais simples da vida quotidiana. O resultado é uma belíssima descrição das motivações e estilo usado pelo escritor, o qual versa sobre comportamentos e atitudes, costumes locais e espiritualidade dos habitantes das cidades por onde passa sob a égide daquilo a que poderíamos chamar uma inesgotável “curiosidade antropológica”.

As questões sobre a Itália contemporânea do Autor não podem, no entanto, deixar de ser avaliadas segundo um olhar e critério europeus, mais propriamente francófilos e anglófilos, a que se associa um sentimento de um certo paternalismo condescendente, face a um país que, apesar da sua riqueza histórica e patrimonial continuava, então, em termos económicos, em vias de desenvolvimento e, em termos de mentalidade colectiva, um pouco desfasado em relação aos outros dois países.

Relativamente à personalidade do Autor, percebe-se que este valoriza a amizade, é bastante selectivo nas escolhas que faz de acordo com um apertado crivo de afinidades, uma vez que o Autor convive com algumas das mais brilhantes figuras do universo intelectual da época como Diderot e Condorcet, para além dos autores e pensadores supra-mencionados.

Ao falar das Mulheres em Itália, o Autor dedica-se à análise detalhada das convenções que regulam o comportamento feminino das mulheres de Génova, Roma, Nápoles, Florença e Sicília, registando curiosamente as variações que vai observando, à medida que percorre o território em direcção ao Sul daquele País.

Descreve nos mínimos detalhes o ritual da corte, do namoro, do noivado e do casamento em, praticamente, todas as cidades que visita, registando as diferenças subtis, inclusive sobre o quotidiano doméstico das famílias, nos gostos específicos locais que se projectam na decoração, no vestuário, na propensão para a frugalidade ou para o excesso, nos diversos graus do prazer da ostentação do supérfluo, na forma de gerir ou de preencher os momentos de ócio, no viver da religiosidade. Sem esquecer a ética, a moral, as costumes ou a aparência de cada um destes componentes.

Hugo Lacroix é da opinião que a escrita de Dupaty corresponde ao ideal voltairiano que sublinha que l´écriture est la peinture de la voix.

Sendo que o estilo de escrita de Dupaty é neste período caracterizado por:

Une écriture vocale, se passe rarement de reinventer la ponctuation, afin que soit saisie à la lecture une halaine, un souffle. Nous connaissons, ne serait qu’en pointillé, les suspensions et les exclamations d’un romancier comme Céline. L’Auteur de Lettres sur l’Italie nous rend sensible son proper flux à l’aide d’une cascade de point-virgules, qui ralient des series d’instantanés cinétiques, puis confie l’autorité finale au deux-points. Sa réthorique imite, avec drôlerie, l’escrime. Le poit-virgule dirige les passes. Les deux-points préparent la pointe. Pas de haîne, mais des adversaires: le clergé, lorsqu’il nous fait voir les réligieux en insectes des diverses couleurs, est combattu avec violence.

(…)

Le langage de Dupaty se modele sur dês rythmes binaires, comme un air de ballade secouée par une sténographie dês enfants.

(…)

Léfficacité du français classique, alors langue vivante, faisait presque coïncider le langage litteraire et la langue quotidienne. Ni la diffusion des Lumières, ni l’ample crise des valeurs qu’elle révèle, n’en rendent l’usage caduc.

(…)

Saint-Just le confirme: Le Français n’a rien perdu de son caractère en saissisant sa liberté, mais il a change des manières.»

(…)

Voyager en Italie ne représentait pas une aventure perilleuse en 1785 (…)

L’Italie etait un passage obligé ou l’Europe cultivée, qui allait boire aux sources de l’art et de la civilization, se précipitait.

(…)

Les beaux-arts ne sont pas un sujet sur lequel Dupaty ait innové: les quelques lettres où il exerce son admiration des chefs-d’ouvre, ne figurent pas dans l’édition propose ici: elles ne reflètent pas le caractère de la plus part des cent-quinze letters composant l’ouvrage. Entre touts les voyageurs de son temps, il est, semble-t-il, celui qui change l’humeur du voyage.

(…)

Son tour d’Italie accomplit l’ideal voltairien. (…) Dupaty rencontre en Italie des humanistes que lisent les memes livres que lui, en amateurs des philosofes.

Lettres sur l’Italie foi editado pela primeira vez em 1785, sendo posteriormente alvo de inúmeras reedições: na época da Revolução, na época Imperial, na época Romântica ou na época Contemporânea.

Estrutura do texto

As Lettres sur l'Italie de Charles Mercier Dupaty dividem-se em conjuntos ou grupos, consoante as cidades a que se referem, estando dispostas por ordem cronológica, de forma a percorrermos o mesmo o itinerário com o Autor, o qual assume o papel de guia, numa viagem amena e cheia de sol, sob um clima temperado, onde se pressupõe, pela ausência de chuva, que a mesma viagem se realizou no final da Primavera ou no início do Outono.

A primeira paragem é Mónaco onde nos surpreendemos pela constatação de como o nível de vida dos monegascos é, à época, bastante modesto. Na verdade, o país era então extremamente pobre, embora com um povo pacífico, afectuoso e dócil. Fatalista, também, tal como os portugueses. Um povo que ama o Princípe, convencido da sua impotência para reverter a situação de pobreza crónica e estrutural que assolava a região.

A segunda parte da viagem decorre em Génova, um lugar que o Autor vê como uma terra de comerciantes. comenta o mau gosto das mulheres, denuncia o exibicionismo tão contrário à sua moral calvinista, assim como a falta de requinte dos genoveses. Não deixa de reparar também, na falta de autonomia feminina na gestão da casa nas famílias mais abastadas. Gestão essa, que é controlada pelo clérigo, o qual chega, inclusive, a dar palpites na composição da ementa da casa e no cardápio.

Já em Roma, Dupaty julga ver uma civilização imponente que perdeu já muito do esplendor de outrora, dos tempos faustosos dos antigos imperadores e da exuberância dos tempos de Nero, classificando-a de o cadáver ruinoso daquele passado imperial. Na sua óptica, a decadência está um pouco por todo o lado, uma vez que já não é a população que aí formiga, mas vermes, que a devoram. É implacável na crítica ao domínio da Igreja naquela cidade.

Em termos sociais, observa que o amor é, para as Romanas, olhado como uma espécie de “febre” que leva a que as jovens sejam cuidadosamente vigiadas pelas famílias para, assim, preservarem a virgindade para o altar. A virgindade, note-se, não a inocência. Os homens, por sua vez, casam apenas se tiverem poder de compra e, quando o têm, usam-no no exercício da própria liberdade. Critica ainda a falsidade nas relações, num ambiente social onde as pessoas se comportam como actores a tempo permanente. Menciona, também, os guettos judeus em Roma, que não são molestados pela Inquisição, como na Península Ibérica, mas em contrapartida são obrigados a pagar uma taxa por não irem à missa.

Em Florença, as coisas são um pouco diferentes. A cidade é governada pelo Grão-Duque Leopoldo, sob a égide do liberalismo económico e do despotismo esclarecido, o que gera graves dificuldades económicas aos pequenos negociantes com a abertura ao comércio ao exterior...uma pequena antevisão daquilo que aconteceria três séculos mais tarde com a globalização da economia.

Em Nápoles, a miséria local é camuflada pela beleza luxuriante da paisagem e pela opulência e ócio exibidos pela aristocracia decadente da região. O Autor brinda-nos, ainda, com a exaustiva descrição de uma espectacular erupção vulcânica do Vesúvio, num cenário de trevas absolutas, interrompidas por uma luminosidade vermelha. A aflição de escapar ao cataclismo obriga-o a perder os sapatos pelo caminho.

Uma palavra ainda para a beleza tranquila da viagem entre Pompeia e Salerno um momento de paz idílica a contrastar com a violência das últimas horas vividas em Nápoles.

E chegamos à última etapa da viagem, em terras sicilianas, onde domina a beleza nostálgica de uma paisagem agreste, a qual o Autor classifica como paradigmática do esplendor tristemente magnífico de Itália ao exclamar:

Quelles matinées fraîches! Quels midis brillants! Quels soirs calmes et silencieux! Enfin, quelles nuits amoureuses!


Cláudia de Sousa Dias

Sunday, April 03, 2011

"Como Água para Chocolate" de Laura Esquível (ASA)

Tradução do Espanhol do México por Cristina Rodriguez revista por Elena Piatok de Mattos (Adida cultural da embaixada do México)


Há seis anos atrás classifiquei este livro como "um suculento best-seller que se degusta até à última página".

Talvez por falar tanto de comida. E de misturar um caleidoscópio de emoções daquilo que parece ser um melodrama do início do século XX com sabores, receitas aromáticas, com o apimentado e algo sarcástico humor mexicano.

Este é um romance construído com base num conflito entre tradição e afectos.

O cenário da acção é o México rural, do início do séc.XX. Mamã Elena é uma mulher seca, amarga, de carácter dominador, que administra o seu rancho e, simultaneamente, a sua família com mão de ferro. O seu despotismo determinará que Tita, a mais jovem das três filhas da proprietária, sacrifique a expressão e concretização dos seus afectos para cuidar da mãe durante a velhice. A despótica matriarca delibera que Pedro, o apaixonado de Tita, case com Rosaura, a filha mais velha, Mamã Elena está, nada mais nada menos, que a unir o útil ao agradável: Tita é a mais a filha mais dócil e diligente de toda a sua prole.

Mas Pedro, só aceita a imposição porque é a única forma de estar próximo da mulher que ama.

A paixão reprimida de Tita por Pedro é sublimada através da arte culinária, pois é na cozinha, ao manipular temperos e alimentos que Tita usufrui de total liberdade para exprimir o que sente. Ao elaborar pratos sofisticados, Tita projecta emoções, sufocadas por uma tradição obsoleta e desumana, na comida. Emoções que, através de um processo semelhante à osmose, são por sua vez, transferidas para aqueles que se deliciam com as iguarias da protagonista. E que neles despoletam os comportamentos mais bizarros sendo, desta forma, levados a agir segundo a perspectiva e forma de sentir de Tita.

Por exemplo: a indisposição geral que se abate sobre os convidados durante o casamento de Pedro e Rosaura, logo após ingerirem o bolo que Tita é obrigada a confeccionar. Um mal-estar que é confundido com uma invulgar e extremamente violenta intoxicação alimentar, a qual se manifesta num estrondoso vomitório colectivo. No entanto, trata-se apenas da forma como Tita gostaria de exteriorizar o que sente face ao atentado contra o livre arbítrio dos dois amantes.
Outro exemplo é o "incêndio" que deflagra no corpo de Gertrudis, a irmã domeio, após degustar um prato afrodisíaco de Tita - codornizes com pétalas de rosa - que a leva a fugir, montada na garupa á semelhança de Lady Godiva renascida, com um revolucionário.

Cada capítulo de Como Água para Chocolate é iniciado com uma receita à qual está, de algum modo, associada uma forte carga emocional.

A paixão de Tita por Pedro deixa-a mesmo "como água para chocolate" (bebida mexicana preparada com água e cacau), expressão idiomática que significa: em ponto de ebulição. Mas esta bebida só se forma quando os dois ingredientes se misturam...e o amor também, ou seja quando duas almas se fundem à temperatura da água ao formar o chocolate quente. Mas ao fazê-lo, as duas substâncias deixam de existir para formar o novo composto...

Logo que a presença gelada de Mamã Elena deixa de exercer a sua influência na livre expressão dos afectos dos dois protagonistas, a poderosa reacção alquímica ocorrida entre eles corre o risco de provocar uma combustão espontânea, idêntica ao accionar de todos os detonadores de um arsenal de explosivos como profetiza Jonh, o médico da família...

O estilo da Autora incide sobretudo num discurso onde predomina o uso da hipérbole, do exagero e até do absurdo para melhor enfatizar o ridículo da contradição ente a moral associada aos costumes e tradições – mores – e a ética fundamental e universal, que reside no livre arbítrio, no direito inalienável de cada indivíduo efectuar as suas escolhas e, com base nelas, construir a própria vida.

Um romance, que incide num tema clássico, onde o amor é negado aos protagonistas, e onde se "cozinha" muito mais do que receitas emocionais: um mundo imaginário onde ocorre a vulcanização de uma paixão proibida, dentro do género do realismo mágico, ao estilo de Jorge Amado ou Gabriel García Márquez.

Cláudia de Sousa Dias

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