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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, August 24, 2013

“Sem Sangue” de Alessandro Baricco (Dom Quixote)


Tradução de Rosa Freire D'Aguiar

Alessandro Baricco nasceu em Turim, 1958. É escritor, crítico musical, director de cinema. Conquistou o Prémio Medicis Étranger, em França com o romance Terras de Cristal, o qual também foi finalista do Prémio Salezione Campello, em Itália. Outro romance, Seda (1996), já comentado aqui no blogue, tornou-se um best-seller internacional, sendo posteriormente adaptado ao cinema para ser protagonizado por Michael Pitt e Keyra Knightley.

Na sinopse, vemos que a trama do romance trata de “um médico vive com dois filhos pequenos numa velha fazenda isolada no campo. Um dia, quatro homens fortemente armados chegam pela estrada poeirenta. Algo terrível e indescritível está para acontecer entre facções inimigas de uma guerra recém-terminada. A violência e a fúria das represálias logo se instalam na propriedade do doutor Manuel Roca, chamado por seus inimigos de Hiena. A única testemunha do cruel acerto de contas é uma criança, escondida e encolhida no fundo de um depósito. É ela a testemunha do rescaldo perverso dessa guerra que parece não ter fim. (Propositadamente, Alessandro Baricco não a situa no tempo nem no espaço, mas num país imaginário de nomes hispânicos, embora as peripécias lembrem a resistência dos partigiani talianos ao fim da Segunda Guerra Mundial.) É Nina, a criança, que meio século depois reviverá um novo acerto de contas.
No romance de Alessandro Baricco, os gestos, o silêncio e o olhar dos personagens valem tanto quanto as frases curtas e de forte conteúdo. Baricco, escritor premiado e o mais traduzido da literatura italiana contemporânea, narra com ritmo de thriller esta história de duas criaturas confrontadas com o passado, a dor e a guerra.” (vide http://companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12635)

Da leitura da sinopse de “Sem Sangue” percebemos que se trata de um romance negro. Publicado em 2002, não lhe faltam ingredientes para cativar o leitor: um crime horrendo, o desejo de vingança, amor e redenção a tecer uma trama extremamente bem arquitectada a pôr em destaque as feridas putrefactas da História por um lado e, por sua vez, a implacabilidade da perseguição aos fins últimos da Justiça pela mão de Némesis, a deusa-vingadora ao serviço de Júpiter mas, contudo, sem sangue. Uma autêntica operação “mãos limpas”levada a cabo pela protagonista. Mas isto só percebemos na totalidade depois de lermos o romance. De um só fôlego, de preferência.

O romance é divido em duas partes. A primeira, consiste na descrição de um crime, um homicídio qualificado, que passa pelas fases da preparação execução e desenlace, relativamente a uma vingança, ainda sangrenta na primeira, testemunhada por uma criança, escondida na cave de uma casa no meio do nada. Pouco depois, a mesma criança é descoberta por um dos participantes do crime que a não denuncia aos comparsas.

Na segunda parte, assistimos ao reencontro das duas personagens do momento narrativo anterior. Passaram-se algumas décadas, o cenário é completamente diferente: a paisagem é urbana, a cidade fervilha em ritmo de crescimento. Estamos em pleno ciclo de recuperação do pós-guerra.

Entre o antigo assassino e a vítima que ficou sem o pai há muitas coisas a serem explicadas, dado que o dia em que se encontraram pela primeira vez, alterou definitiva e radicalmente os seus percursos. Há, no entanto, duas faces da mesma moeda: a realidade apresenta-se multifacetada e é preciso conhecer os vários pontos de vista.

A escrita de Baricco é concebida de forma a proporcionar uma leitura veloz. Os capítulos são extremamente curtos e a narrativa onde predominam, sobretudo na primeira parte, os verbos de acção, faz com que o leitor se sinta parte integrante na história, como testemunha, juntamente com a criança, escondida, na cave da carnificina perpetrada. Como se estivéssemos na cauda de um furacão, com a vida por um fio, tal é o frenesim nos impele a avançar na história. Os acontecimentos sucedem-se a uma velocidade vertiginosa.

A modalização temporal é flagrante, com a interrupção da primeira parte e início do segundo momento da narrativa. Além da mudança de cenário, o ritmo também sofre um abrandamento brusco.
Do final da segunda Guerra Mundial, temos uma omissão (elipse) do caos que se lhe seguiu face à total destruição dum país que, apesar dos nomes hispânicos, facilmente identificamos com Itália. Trata-se de um artifício do Autor para proteger a identidade dos habitantes – já que estamos perante uma história baseada e factos reais –, mas também por uma questão estética, já que o próprio Alessandro Baricco defende que os nomes em língua castelhana dotam o texto de uma musicalidade muito típica que resulta, em última análise, numa alteração do ritmo da narrativa. Tudo isto ajuda à ideia/sensação de cisão que sentimos ao acabar a leitura da primeira parte e passarmos à segunda. É como se o tempo ou a sua passagem tivessem erodido a paisagem de tal forma que até os nomes mudaram. Como mudaram a identidade dos protagonistas que vivem agora outra vida.

O reencontro, a seguir à elipse, tem como fim reconstruir a história das personagens e, também, a História, ao colocar os estilhaços nos seus devidos lugares.

O tempo é, agora, de paz, as feridas parecem cicatrizadas, mas as marcas e a memória das dores antigas permanecem. A cidade renasceu das cinzas, o que é notório pelo reordenamento urbano, pela limpeza das ruas, pelo cuidado em restaurar/conservar as fachadas dos edifícios. Ou pelos quiosques que vendem tranquilamente os seus produtos junto ao café onde as pessoas se sentam a saborear as especialidades e a conversar, como faz o casal protagonista. Ou pela impecabilidade do serviço do hotel onde ambos são conduzidos por Némesis que dirige as Erínias de forma a liquidar definitivamente as contas do passado. Sem sangue.

A vingança perfeita. Total.

05.10.2012-09.07.2013
Cláudia de Sousa Dias


Friday, August 16, 2013

“do Rio de Janeiro” de Alexandra Lucas Coelho (Tinta-da-China)




Na colecção de livros de viagens dirigida por Carlos Vaz Marques para a Editora Tinta-da-China falamos hoje de uma pequena colectânea de textos de Alexandra Lucas Coelho sobe a Cidade Maravilhosa, reunidos num pequeno volume promocional que foi, durante algum tempo, oferecido aos leitores que comprassem pelo menos um livro da colecção. Este será talvez uma pequena amostra de mais uma obra de ALC publicada por esta editora tal como o foram as obras Viva México e Caderno Afegão, as quais serão brevemente (espero eu) comentadas neste blogue.

Dados Biográficos

Actualmente, Alexandra Lucas Coelho é jornalista no Público e Grande Repórter, correspondente daquele jornal no Rio de Janeiro, mas o seu curriculum é bastante vasto e diversificado. Sendo natural de Lisboa, cidade onde veio ao mundo e 1967, ALC chegou a estudar Teatro, mas licenciou-se em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa. Trabalhou como jornalista na RDP de 1991 a 1998, data a partir da qual editou os suplementos Leituras e dirigiu a colecção Mil Folhas do Público.

A partir de 2001, viaja com regularidade pelo Médio Oriente e pela Ásia Central onde recolheu material que serviu de base a Caderno Afegão (Tinta-da-China, 2009). Esteve também em Jerusalém, entre 2005-2006, período após o qual lançou o livro Oriente Próximo (Relógio d'Água, 2007). Publicou ainda, também na Tinta-da-China o livro de crónicas Viva México e Tahrir, os Dias da Revolução (2011), a propósito da Primavera Árabe no Egipto.

Do Rio de Janeiro

A variedade temática da colecção de textos de que aqui tratamos e que estão incluídos neste volume promocional, deixa-nos antever outro exemplar de crónicas a ser, provavelmente, publicado dentro de alguns anos na referida colecção, que nos deixará uma perspectiva não só jornalística mas sobretudo antropológica da forma de viver das gentes do Brasil nas primeiras décadas do século XXI.
Adoptando o ponto de vista dos habitantes locais Alexandra Lucas Coelho repara, com notável agudeza de espírito, diversas particularidade do “homo brasiliensis” em geral e dos cariocas em particular. A começar pela exploração da diversidade lexical e semântica das duas variantes do português – europeu e brasileiro – observando as consequências, na maior parte das vezes divertidas, dos equívocos originados por estas questões terminológicas no uso pragmático da língua pelos falantes de ambos os países. A língua continua a ser a fonte da qual se parte para falar de temas como o movimento intelectual e artístico do Tropicalismo na cultura brasileira, a amálgama resultante da fusão de culturas que compõem o produto final que é a Cultura Brasileira, o multi-culturalismo, a omnipresente religiosidade, o peso da religião e do sincretismo religioso do povo brasileiro. A isto junta-se ainda a vivência da trepidante vivacidade do Carnaval do Rio, cujo desfile tem, pelo menos durante poucos dias, o condão de diluir muitas barreiras sociais, à maneira das antigas Saturnais romanas. Aqui, é simplesmente a voz do corpo que fala mais alto.

Alexandra conduz-nos à favela Buraco Quente, num dos textos mais alucinantes desta publicação, até porque se trata de uma situação algo delicada que exige algumas medidas de precaução em termos de segurança. O motivo principal da visita é um surreal – para nós europeus – festival de música funk na favela onde dominam temáticas relacionadas com o sexo e a sedução mas também sobretudo com o poder...das armas. A pobreza é omnipresente mas a música e a dança parecem actuar como um refúgio ou um anti-depressivo, que se sobrepõe a tudo o resto. Afinal, está-se no Brasil e o sol convida à folia, mas nas entrelinhas da prosa ágil de ALC conseguimos captar algo está subjacente ao conteúdo das letras das músicas: é notória uma raiva latente, face à situação de gritante desigualdade social, algo que faz com que o tema dominante no festival seja a contestação do poder e da ordem estabelecida. Um sonho de revolução paira no ar e estamos apenas em 2010, ainda longe dos protestos que hoje se fazem sentir um pouco por todo o Brasil. Nesta altura, é apenas um sonho que anima a vida e actua como uma força centrífuga face ao vazio que é a realidade e a esperança de um futuro.

ALC é particularmente bem sucedida na descrição das realidades sociais, pintando quadros diversos da acção humana. É a fotógrafa da escrita. A objectiva do seu olhar antes das projecção na escrita é atraída pelas mais diversas situações, facetas ou hábitos sociais dos cariocas: desde a extrema pobreza em ambiente de favela no rio de Janeiro, à descrição do estilo de vida das jovens da classe média-alta daquela cidade, patente no texto Meninas do Rio, intertextualidade resultante da transposição para o feminino do título da canção Menino do Rio de Caetano Veloso, para um texto onde se fala das relações de género, da forma de estar de cada um, da divergência / de objectivos, enfim, de emancipação feminina, conquanto estreitamente ligada à emancipação masculina, em plena igualdade de oportunidades e equilíbrio das relações de poder géneros, sobretudo na forma de encarar a sexualidade. É ainda abordada a temática dos amores, da comoção de um concerto de Caetano Veloso, também numa favela, e da odisseia travada pela jornalista até chegar ao local do concerto, a provar que a rede de transportes públicos tem ainda muito por se (e que se) expandir, de forma a abranger toda a área metropolitana do Rio.

A principal virtude de ALC como jornalista, para além do estilo limpo, escorreito, sem floreados barrocos – e para além, também, da exactidão e da verosimilhança, que faz com que fiquemos com a impressão de estarmos a assistir a um documentário acerca da vida dos habitantes do Rio –, é a habilidade ao com que parece transitar de um tema para o outro, parecendo areseentar-nos um conjunto de textos em continuum ao invés de reportagens separadas, permitindo-nos quase que adivinhar um fio condutor que liga uma história e outra.

É por todas estas razões que aguardamos com alguma ansiedade o volume completo destas histórias do Brasil acerca do qual este volume já me fez abrir um apetite desenfreado, pelo resultado final mas que posso (e o leitores poderão também fazê-lo) ir degustando lentamente, história a história, no actual blogue da Autora que aqui vos deixo.



Boas leituras

26.09.2012-09.07.2013

Cláudia de Sousa Dias

Monday, August 05, 2013

“Cem Garrafas numa parede” de Ena Lucía Portela (Âmbar)


Tradução de Manuela Correia Ribeiro


Ena Lucía Portela nasceu a 19 de Dezembro de 1972, em Cuba. É narradora e ensaísta, licenciada em Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidad de La Habana, tal como as duas protagonistas de Cem Garrafas numa Parede, Zeta e Linda. Apesar de ser este, até à data, o único romance publicado em Portugal, Ena Lucía Portela é uma escritora sucessivamente premiada por várias obras de sua autoria, sobretudo dentro dos géneros romance e conto. O romance El Pájaro: Piñal y Tinta China arrebatou o Prémio Cirilo y Villaverde de la Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC), em 1997. Publicou depois a colectânea de contos Una extraña entre las Piedras, em 1999. O conto El viejo, el asesino y yo obteve nesse ano o Prémio Juan Rulfo para a categoria “conto”, outorgado pela Radio França Internacional para logo ser publicado no ano seguinte. Em 2001, publicou o romance inédito La Sombra del Caminante. Quando conquistou, em 2002, o Prémio Jaén com o romance Cién Botellas en la Pared (Cem Garrafas numa Parede), o romance de que hoje aqui falamos, já não é propriamente uma estreante nas lides da escrita. Na verdade, este livro desencadeou tal impacto que arrecadou também o Prémio Deux-Océan Grinzane-Cavours, outorgado pela crítica francesa como o melhor romance latino-americano, publicado nos últimos dois anos. Corria, então, o ano de 2003.

Por todas estas razões e mais as que iremos ver a seguir, torna-se difícil compreender a razão pela qual ter tido, em Portugal, esta autora tão discreta – e tardia – projecção. Ena Lucía Portela publicou ainda uma colectânea de contos, em 2006, intitulada Alguna enfermedad muy grave e ainda o romance Djuna y Daniel, em 2008.

As protagonistas de Cem Garrafas numa Parede são duas personagens antagónicas e nada convencionais: Zeta, cujo nome em castelhano corresponde à última letra do alfabeto, é uma jovem gordinha, simpática e pobre, a viver precariamente e de expedientes, maltratada pelo companheiro, detentora de uma baixíssima auto-estima, que sonha um dia tornar-se escritora como a sua melhor amiga, Linda; esta, por sua vez, é uma jovem proveniente de uma família abastada, descendente de refugiados judeus, vindos da Alemanha nazi, bela, magra, homossexual e escritora de sucesso, especializada em romances policiais, sendo alguns deles adaptados ao cinema. Tem o espírito voltado para o amanhã, tal como a formiga de La Fontaine. As duas são como a cigarra e a formiga da fábula, tão diferentes na forma de pensar e estar na vida (e de escrever) como a água do vinho e, contudo, inseparáveis.

Zeta é a narradora principal e através de cujo olhar a história nos é desvendada pelo recurso à modalização temporal. A história é contada em tempos diferentes, sendo que a voz de Zeta começa por referir-se a uma descrição de uma cena doméstica situada no passado, a partir do qual irá relatar o seu percurso e desenvolvimento da situação até ao momento presente. É a voz de Zeta que nos dá as cores da vida quotidiana em Cuba, num prédio degradado da cidade de Havana, onde tenta escrever uma espécie de diário, o qual vai servir de base a um romance, elaborado debaixo do barulho ensurdecedor das eternas obras levadas a cabo pelos vizinhos, já de si pouco dados ao silêncio e à reflexão. Zeta chama-lhe “A Casa do Martelo Alegre” ao prédio onde vivem dezenas de pessoas, em condições de extrema pobreza. O contraste torna-se chocante quando o cenário muda para o sofisticado apartamento de Linda, cujos romances vendem como hamburguers, dentro e fora do país, garantindo-lhe um padrão de vida muito acima da média.

Há, no entanto, outras personagens femininas secundárias que se cruzam na vida de ambas as protagonistas e incarnam a exuberância do temperamento da mulher cubana. Uma delas é Broínha-de-Mel, a extravagante amiga de Linda que gosta de organizar, habitualmente, loucas e ruidosas festas, exclusivamente destinadas ao sexo feminino – com excepção de um ou outro inofensivo travesti. Trata-se de uma das personagens mais carismáticas do romance pela sua exuberância, generosidade e imoderação, uma personalidade inequivocamente dionisíaca.

A alternância dos espaços interiores, domésticos, presente ao longo do romance – da casa de Zeta, para a casa de Linda e, de lá, para a casa de Broínha-de-Mel –, confere ao romance o dinamismo necessário de forma a proporcionar ao leitor uma viagem pelo espaço doméstico feminino de uma forma socialmente transversal. Esta visão do espaço doméstico interior nos diferentes níveis socio-económicos permite também comparar outro fenómeno social: o desenvolvimento das relações amorosas que são cuidadosamente escrutinadas pela Autora Ena Lucía Portela, tanto na vertente hetero como homossexual, sendo que o foco da análise é colocado na questão da violência doméstica, tanto física quanto psicológica, que afecta as relações íntimas e que não se restringe aos meios sociais mais desfavorecidos. E, neste aspecto, o que fica deste romance, é que a mesma violência é também socialmente transversal, à medida que as relações se desumanizam e as pessoas se fecham em si mesmas, até mesmo num contexto em que se vêem rodeadas de gente, como na ruidosa festa em casa de Broínha-de-mel, onde há ilhas de infelicidade no meio da alegria que parece querer submergi-la, nascendo de um desequilíbrio das relações de poder entre os parceiros.

A Patologia da Paixão

Zeta tem uma paixão avassaladora e obsessiva por um homem bastante mais velho do que ela, Moisés, o qual usa o relativo poder económico de que dispõe, para além da força física, para a dominar e humilhar. Moisés é um ex-juiz do Supremo Tribunal com alguns traços de personalidade anti-social, até mesmo na forma de se vestir, de se mostrar para a sociedade – Moisés tem o aspecto de um mendigo, exibindo um ar andrajoso, apesar das roupas caras e do poder económico de que dispõe, demonstrando com isso um profundo desprezo pela sociedade. Esse desprezo pelo Outro é o motivo pelo qual foi expulso das suas funções e obrigado a reformar-se. O seu comportamento inadequado e violento faz dele uma personagem pouco simpática, a que se junta a extrema agressividade para com Zeta, a quem espanca ao mínimo pretexto. Esta aceita as humilhações do amante, na altura em que se dão os acontecimentos, com aparente resignação. Mas passa a encarar a situação com humor ácido e corrosivo, num tempo posterior, depois de ultrapassada que a coloca em situação de vulnerabilidade, com a voz da narradora actual e o devido distanciamento crítico. A narrativa de Zeta não se traduz numa mera conversão para o papel de uma experiência pessoal, mas antes na descrição de vários quadros sociais que nos vão proporcionando uma visão panorâmica do problema da violência dentro das relações amorosas.

A descrição do estado interno de Zeta e das razões que a levam a aceitar as humilhações do amante, leva-nos a perceber que não se trata apenas de uma questão de vulnerabilidade social, mas também muitas vezes, fruto de uma personalidade romântica que leva a confundir com amor um sentimento de posse e desejo de controlo que está, normalmente, associado ao ciúme.

Outro exemplo de violência nas relações íntimas tem a ver com a relação desequilibrada em que se transforma o efémero romance entre Linda e Alix, marcada sobretudo pela violência psicológica e ciúmes doentios. Linda é uma jovem impiedosamente individualista que não hesita em relegar Alix para a condição de serviçal, quando esta se torna demasiado dependente. A pena e o medo da vingança da ex-amante impedem-na, no entanto, cortar de maneira definitiva e radical, os laços, cada vez mais ténues, que a prendem à jovem. Pode-se dizer que, neste caso, a violência é proveniente de ambas as partes, é é sobretudo psicológica, ao contrário do caso anterior, onde esta assume uma forma unilateral e gratuita além de deixar marcas bastante evidentes no corpo de Zeta.

A crítica literária e também escritora Catherine Clément compara a descrição de Cuba pela personagem de Ena Lucía Portela ao cadáver do poema baudelairiano, vendo na decadência social patente no romance um processo análogo à decomposição de um cadáver. Ou seja, para esta Autora e investigadora francesa, a sociedade cubana apresenta-se como um corpo social em desagregação e decadência, de onde sobressai uma única relação saudável: a amizade desinteressada entre Zeta e Linda, estabelecida desde os tempos do liceu e consolidada durante décadas de auxílio mútuo. Catherine Clément classifica este romance como autobiográfico, ao sublinhar a forma como Ena Lucía Portela cria ficção a partir da realidade circundante.

Um romance de duas escritoras

Zeta e Linda, as duas protagonistas de Cem Garrafas numa Parede possuem ambas discursos radicalmente opostos como opostas são também, as suas vivências. Zeta torna-se insegura ao falar de si mesma, ao considerar a própria forma de escrever como errática, caótica e emocional, própria de uma amadora, pouco preocupada com as questões de estilo ou género, em contraste com o tom profissional, narrativo e cheio de autoconfiança de Linda, que se reflecte na estrutura linear do típico romance policial, embora assente na tónica do humor negro e ironia que lhe vai assegurando inúmeros prémios, sucesso profissional e económico. Para Zeta, Linda é, por todas estas razões, a “verdadeira escritora”.

Ao longo do romance percebe-se que Zeta deseja viver da escrita e não dos expedientes de que se socorre normalmente, mas está convencida de que não dispõe de competências para tal, devido às notas medianas que sempre obteve na faculdade. Zeta escreve sobre o quotidiano da cidade de Havana e das suas vivências, relacionando a sua experiência pessoal com as questões sociais, numa escrita polvilhada de referências cinematográficas. Zeta consegue visualizar nos seus escritos uma possível adaptação ao cinema como acontece com Linda, mas não ao cinema comercial. As estórias de Zeta enquadram-se noutro género de cinema, alternativo, talvez mais próximo do cinema europeu, sobretudo francês ou italiano.

Personagens e desenvolvimento da História

Mais do que a deterioração das condições sociais, o foco deste romance é a deterioração das relações amorosas. Para além dos dois casais já referidos – Zeta e Moisés; Linda e Alix – a festa no apartamento de Broínha-de-mel é um palco privilegiado onde assistimos ao apodrecimento dos afectos que vai progressivamente invadindo o quotidiano das pessoas. As frequentadoras das loucas festas da dançarina de cabaret possuem, muitas delas, marcas do passado e profundas cicatrizes – o caso de Marita, presa no passado – mas há entre elas , no plano da amizade, um sentimento de coesão que dá a Zeta, apesar de assumidamente heterossexual, o sentimento de segurança necessário face à amizade de Linda, para não se deixar monopolizar totalmente pelo companheiro, que a trata como uma prostituta.

O apoio de Linda e das outras amigas torna-se fundamental e é o pequeno grande detalhe que lhe permite tomar a decisão de se colocar a si mesma em primeiro lugar quando decide mudar o rumo ao próprio destino e assegurar a própria vida. Curiosamente, será a silenciosa e tresloucada Alix, que detonará em Zeta o impulso final que a leva a agir, no sentido de assegurar a própria sobrevivência que corre um forte risco enquanto vive com Moisés.

O discurso de Zeta, que ocupa a maior parte do romance é sobretudo diarístico, com recurso a analepses, num tom essencialmente memorialista. Curiosamente, não se vislumbra quaisquer sinais de nostalgia, mas antes um corrosivo humor negro, em relação à maneira de ser da “antiga Zeta”, ácido, pautado por um sarcasmo violento, que se traduz num registo tragicómico, que os leitores encontram logo no primeiro capítulo, no qual é descrita uma cena de extrema violência no apartamento de Zeta, perpetrada por Moisés a companheira como alvo. A descrição de uma violência atroz é pautada por expressões carinhosas o que dá um ar tragicómico à protagonista de um drama que desenvolveu a capacidade de rir de si própria e das suas atitudes. É como se a voz do locutor no momento presente, ou seja, não fosse já a mesma pessoa que é convocada ao enunciar as frases que ilustram uma situação passada. A polifonia existente no discurso narrativo é marcada pelo forte contraste entre os dois tempos diferentes que correspondem ao Locutor (eu presente) e ao Enunciador (eu empírico), dando-nos assim a modalização do discurso narrativo evidenciada no sarcasmo da Zeta,, depois dos acontecimentos terem ocorrido. Esta técnica permite que o leitor se “cole” à voz do narrador, rindo-se com ele da situação descrita. Este será, talvez, o aspecto que mais evidencia o talento da Autora Ena Lucía Portela: a capacidade para convocar e articular as diversas vozes presentes no discurso narrativo, como mostra o seguinte excerto do primeiro capítulo intitulado “Pelo menos um bofetão”

«Se havia alguma coisa que verdadeiramente o irritava, se algo o predispunha à violência e ao homicídio era que quisessem fazê-lo acreditar em coisas. Ah! O seu semblante tingia-se de vermelho, vermelho-fogo, vermelho-ferro, labaredas brilhantes com Moisés no centro, enlouquecido com cornos e cauda, uma serpente, um basilisco, um dragão, o diabo no inferno. Espectáculo tremendo. A gente chegava a recear que morresse, assim, subitamente, por combustão espontânea. Não que ele desconhecesse o lado absurdo e, até, ridículo, da sua cólera. Sabia que aqueles velhacos, (…) jamais conseguiriam fazê-lo acreditar na mais pequena das suas parlapatices. Faltava-lhes astúcia, chispa, mundo. Faltava-lhes classe. Faltava-lhes tudo o que a ele sobrava, tudo o que ele tinha para dar e vender.

(…) Mas controlar-se, fosse em que situação fosse, custava-lhe imenso. Já o tinham detido várias vezes por escândalo público, por esbofetear um polícia de trânsito, por andar à porrada com três negros do bairro de Los Muchos, por atirar um banco ao espelho de um bar, por partir uma garrafa na tromba do campónio da farmácia, por incendiar um hotelzeco.

(…)
Porque os outros, os desavergonhados não o deixavam descansado. Eles insistiam, voltavam a insistir, porfiavam até ao infinito com uma asquerosa calma. E, ainda por cima, os grandessíssimos filhos da mãe atreviam-se muito ufanos, a olhá-lo com velhacaria, com os seus olhos cínicos.

Como era um homem extremamente sagaz, sabia que nem sequer eles, aqueles canalhas predicadores, acreditavam no mais pequeno dos seus embustes.

(...)

Num aprazível crepúsculo de Outono, no dia de equinócio com passarinhos cantores e rãzinhas no charco, atrevi-me a sugerir-lhe que não lhes ligasse, que encolhesse os ombros:

Ignora-os, bichano – sussurrei-lhe ao ouvido –, trata só do que te diz respeito. Nada de combater o inimigo, nem de ficar nervoso, nem sequer de aceitar qualquer desafio. Não dizes que eles nunca te poderão convencer? Então, amorzinho – beijei-o no pescoço – porquê sofrer por uma coisa que não vale a pena? De que te adiante pores-te assim, meu querido? Se não te pões a pau, um dia destes ainda te dá algum ataque fulminante, uma apoplexia, um desmaio. Vais ficar todo teso, feito um vegetal. E olha que eu, experiência para tratar de inválidos não tenho nenhuma. - Desapertei-lhe a camisa com todo o vagar. - Tens de sair desse círculo vicioso, querido, tens de sair...Estás muito tenso, muito rígido – e estava mesmo –, olha como estás. Porque é que não tentas relaxar-te? Exercícios de ioga, esse género de coisas. Ioga significa tranquilidade, equanimidade, muita calma, nada de nervos, paz de espírito ou coisa parecida, já nem me lembro... - acariciei-lhe o peito. - Mas é que primeiro que tudo está a saúde. Olha, quando eles virem que te são indiferentes, que as suas opiniões não valem um peido, deixarão de te chatear. Uma pessoa não lhes liga pêva e eles desandam e vão foder o juízo a outro que os ature Faz-lhes ouvidos de mercador e vais ver o que acontece, vais ver, vai...- beijei-o na boca.

Para falar a verdade, eu não tinha a mínima ideia quem podiam ser «eles». Lembrei-me tão só que, numa situação tão desesperada, o melhor talvez fosse estar de fora. Não fazer caso. Laisser faire, laisser passer.

Ora bem, não me ligou. Pior: olhou-me espantado.

- Sai de cima de mim – gritou e sacudiu-me como se eu fosse uma aranha peluda. E de seguida ferrou-me um soco na barriga e outro num olho para não me armar em parva. - Ah, as mulheres! Sempre instaladas na estultícia, na sandice, maquinando frivolidades. As mulheres são o cúmulo do mongolismo, quem é que as inventou? Nem sequer por acaso conseguem perceber a essência dos fenómenos, o mundo como vontade de representação. »

Influências Literárias e Culturais

Para além das várias referências no romance a figuras da Literatura e Cinema Francês, como já foi aqui mencionado, há também inúmeras referências explícitas a nomes da Literatura anglo-saxónica, nomeadamente a Virginia Woolf - a quem Zeta se refere, jocosamente, como “a lagartixa inglesa”, quando pensa em escrever, no meio da ensurdecedora orquestra dos instrumentos da construção civil de A Esquina do Martelo Alegre, um romance de pendor reflexivo como o de Mrs. Dalloway, dada a impossibilidade de obter “um espaço só seu” (A Room of her Own).

A obra é bastante valorizada pela riqueza estilística e inúmeras intertextualidades e alusões a autores relacionados com a escrita jornalística como Hemingway, Puzo e Barnes, clássicos como Shakespeare, autores fracturantes, à sua época, como Virginia Woolf e cineastas como Scorcese e Zeffirelli, para além das inúmeras referências ao cinema francês.

Cem Garrafas numa Parede

O título atribuído ao romance tem a ver com uma canção popular mexicana que fala da total destruição de uma adega , quebrando as garrafas, uma a uma. A referência à canção prende-se com a analogia do processo de violência que muitas vezes se desenvolve em crescendum nas relações amorosas, quebrando sucessivos tabus em direcção à desumanização que ocorre em progressão geométrica e ao longo da qual o ser agredido se transforma em objecto progressivamente desvalorizado, até à destruição final.

Este é também o título do romance policial escolhido por Linda, a qual se propõe escrever no final e no qual participam também Zeta e Moisés. O fim da relação entre Zeta e Moisés no romance imaginado por Linda é dramático, embora ligeiramente divergente da que fica publicada no romance autobiográfico de Zeta.

As personagens de Ena Lucía Portela neste romance são complexas e fascinantes, não apenas as duas amigas protagonista e também escritoras, mas também as personagens secundárias como Marilú e Alix, pela tragicidade e dramatismo nelas contidas.

As personagens masculinas são estranhas, nenhuma delas atraente, mais sapos do que príncipes. E talvez por essa razão surgem em primeiro plano a tenacidade dos elos de ligação entre as mulheres – sobretudo nas relações de amizade. É também por esse motivo que elas que surgem como heroínas, ocupando constantemente o primeiro plano na diegese.
Zeta e a escrita

A intenção da Autora, para além da de evidenciar os problemas sociais da pobreza, da violência e da exclusão vividos pela população de Havana, é também a de evidenciar as dificuldades sentidas por uma escritora como Zeta em conseguir realizar-se e ser reconhecida como tal. O seu percurso é bastante mais tortuoso que o de Linda, mais íngreme, uma vez que ambas não partem do mesmo patamar. Zeta possui, no entanto, a experiência de vida e uma forma de apreender a realidade totalmente diversa da de Linda: ao invés de converter a sua vivência num romance policial, Zeta escreve sobe emoções, pessoas, dificuldades do quotidiano e problemas sociais apresentando o retrato de uma cidade cuja população, apesar de estar a ser esmagada pela pobreza, demonstra um inquebrantável apego à vida que se manifesta no culto à alegria e ao prazer. Há vida em Havana para lá da pobreza.

O acesso à educação é, apesar de tudo, universal a todas as camadas sociais, mesmo o ensino superior, o que permite gerar uma amizade tão pouco provável como a de Zeta e Linda, cujas origens sociais não podiam ser mais divergentes. A cumplicidade entre ambas é estabelecida fruto do de serem detentoras de personalidades complementares e afinidades ideológicas, que se traduzem num sentido de ética que se pauta pelos mesmos valores e ideais de justiça, onde o temperamento voluntarioso de Linda se coaduna com a doçura e reflexão de Zeta.

Num dos episódios de maior teor literário e humorístico, intitulado de “Mangas e goiabas” a Autora serve-se de uma metáfora que reporta à variedade de frutos e sabores existentes – e maior variedade ainda de gostos e preferências entre os humanos –, para colocar Linda a explicar a sua orientação sexual a Zeta, num dos momentos mais hilariantes do romance.

Uma obra aliciante de uma autora que esperamos que, um dia, possa visitar Portugal.

Para quem quiser, tem aqui o primeiro capítulo a língua original:



17.09.2012 – 30.06.2013

 Cláudia de Sousa Dias