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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, May 31, 2010

O Doente Inglês de Michael Ondaatje (Dom Quixote)




Michael Ondaatje nasceu no Sri Lanka a 12 de Setembro de 1943. Em 1954 foi viver para Inglaterra e, desde 1962, estabeleceu residência no Canadá onde é considerado um dos mais proeminentes escritores contemporâneos daquele país. Possui uma vasta obra que se reparte por vários géneros literários, sobretudo o conto e a poesia, mas é ao romance que deve a sua notoriedade. E foi precisamente O Doente Inglês que, após ter sido adaptado ao cinema por Anthony Minghella, o tornou mundialmente conhecido. O Doente Inglês ou The English Patient, foi vencedor do Booker Prize 1992 e, também, do Governor General’s Literary Award for Fiction no mesmo ano.

O Doente Inglês é uma obra de invulgar talento , escrita em meados dos anos 1990, isto é, durante o interregno das duas Guerras do Golfo. No entanto, ao invés de optar por um romance de propaganda ao Ocidente, Ondaatje recusa-se a esconder o peso da acção dos Países Aliados, na configuração das tensões geopolíticas que resultaram do desfecho da segunda Grande Guerra.

1. Contexto histórico e localização espacial: uma casa em ruínas a norte de Florença

A história passada na Vila de San Girolamo representa um microcosmos representativo do drama pelo qual estava a passar a Itália durante a retirada alemã na fase final da guerra. O território intensamente minado, tornava impossível as actividades diárias mais banais como cultivar a terra colher frutos das árvores, tirar água de um poço. Os próprios móveis das casas e instrumentos musicais encontravam-se armadilhados. Também as cidades se encontravam inabitáveis e com o património histórico e cultural gravemente danificado.


Na villa, paredes com paisagens trompe l’oeil confundem-se com a paisagem natural: o interior está em contacto com o ar livre, devido ao desmoronamento das paredes após o impacto das bombas.



A fome grassa em Itália e, na villa San Girolamo, não é excepção, Hana nunca consegue saciar completamente a fome. Chega mesmo a deambular pela cidadezinha mais próxima, junto das padarias para sentir apenas o cheiro do pão recém-saído do forno.


1.1 A acção Principal

O romance desenvolve-se em dois tempos, não muito distantes entre si, e dois lugares diversos, ganhando sentido através do encaixe de duas narrativas paralelas. A narrativa principal desenrola-se lentamente mas já a aproxiamar-se o desfecho da guerra, logo após a retirada das forças alemãs do território italiano, o qual é, nesta fase, é passado a pente fino pelos Aliados, numa minuciosa operação de desminagem.




Entretanto, no Extremo Oriente, a guerra continua, envolvendo a participação massiva do E.U.A.




Mas a Villa a norte de Florença está parcialmente destruída. Serviu de hospital provisório que foi cedo trasladado para outro local com melhores condições, ficando a Villa apenas com quatro ocupantes: um doente terminal com o com corpo quase carbonizado; uma enfermeira de espírito missionário, que se responsabiliza pelo seu bem-estar na tentativa de colmatar uma ausência; um outro mutilado de guerra, frequentador da casa da jovem e amigo da família; e, mais tarde, um perito em desminagem, vindo da Índia e dos últimos dias do Império britânico, que se junta ao trio.

As personagens que de movimentam dentro da narrativa principal desenvolvem uma intensa e complexa rede de relações, condicionada por uma que se caracteriza pelo elevado risco que implica viver num território detalhada e perversamente semeado de bombas, cujo objectivo é exterminar indiscriminadamente civis e militares. O ritmo da acção é lento, pautado pelas sombras que deslizam nas paredes parcialmente destruídas, como se de um relógio de sol se tratasse. Os sentimentos vão-se entrelaçando entre as quatro personagens como trepadeiras, formando uma espécie de quadrado amoroso entre Hana e os três homens com quem a jovem convive no dia-a-dia.

Com o misterioso doente que no hospital diziam ser “inglês” Hana entabula uma relação de dever que se mistura com a compaixão pelo sofrimento do ex-piloto, ao qual compara a um Cristo. Hana vê nele um mártir, com o corpo quase totalmente destruído pelo fogo. À compaixão soma-se a admiração, pelo ao saber e pela vasta cultura que aquele insiste em partilhar com a jovem. Em troca, Hana lê-lhe os livros que, entretanto, apodrecem na biblioteca, exposta às intempéries. Dedica-lhe também, um amor filial, semelhante àquele que sentiria pelo pai, falecido entrtanto.



Relativamente a Caravaggio, o mutilado de guerra, amigo de família - um homem de cerca de quarenta anos que começa a perder a sua fulgurante beleza - Hana trata-o como a um primo, ou tio, pelo qual tivesse tido um dia uma paixoneta de adolescente. Transfere-lhe um pouco da compaixão dedicada ao seu doente acamado, pois as dores em provenientes da mutilação dos polegares aquando da tortura, sofrida as mãos da Gestapo, obrigam-no também, a depender de morfina.
Caravaggio nutre pela jovem uma espécie de amor platónico, que se consolida pela resistência de que dá provas durante a estadia na Villa.

A relação que nasce entre Hana e Kip, o engenheiro mecânico perito em minas, é de outra natureza. A atracção erótica vai-se manifestando com o convívio diário, é intensificada pela sensação de segurança e protecção que lhe proporciona não apenas o saber técnico como perito em minas mas, sobretudo, pela postura de Kip em relação à vida, o equilíbrio, a serenidade e o sangue frio e, também, uma invulgar capacidade de adaptação à mudança.



Kip é meticuloso mas delicado, não possui o menor resquício de vaidade, exibicionismo ou tendência para a "vanglória". O desapego de Kip provém da crença de que a morte não existe, só a transformação, o que lhe dá uma certa invulnerabilidade em situações face às quais a maior parte dos ocidentais ficariam dominados pelo terror ou pânico.

1.2 Os diálogos de Almásy, o Doente inglês, e as restantes personagens

Para Almásy, Hana é o seu elo de ligação com o exterior. Depende dela para tudo. A jovem é simultaneamente a filha que não teve, uma irmã e uma mãe. É, também, a ouvinte. Hana é o público diante da qual abre a porta do próprio passado, guiando-a através de um tortuoso labirinto de memórias. Hana torna-se umo pretexto o ex-piloto libertar o páthos da sua paixão por Catherine, que parece sair de um dos clássicos dramas gregos. A narração é catarse.

E assim chegamos à acção secundária, embutida dentro da acção principal. O catalisador desta acção dramática é um livro de Heródoto, do qual Almásy jamais se separa e que lhe serve de base para as suas investigações como cartógrafo do deserto norte-africano.

O referido livro começa por captar a atenção de Hana, sobretudo pelas anotações nas margens e folhas soltas, inseridas entre as páginas da obra, levando-a a espreitar a vida secreta do seu”doente inglês”. O mesmo livro tinha antes atraído, também a atenção de Katharine Clifford, de forma irresistível, deixando-a fascinada por uma lenda antiga onde se misturam paixão, traição e vingança.

Caravaggio também se interessa pelo passado de Almásy, cuja identidade permanece incógnita, para os restantes ocupantes da Villa, durante a maior parte do romance. Caravaggio sente-se, ainda, dentro do seu papel de espião, apesar de a guerra estar praticamente acabada. Não mede esforços para encontrar um culpado para a sua condição de mutilado de guerra. Assume, por isso, o papel de advogado de acusação, se não mesmo o de juiz. Recorre, inclusive, a métodos questionáveis, sobretudo se aplicados a um doente: uma espécie de "soro da verdade", fabricado à base de uma mistura entre morfina e álcool.



Kip é o único elemento masculino que vive na casa com quem o doente “inglês” encontra afinidades. Lazlo Almásy é, também, um perito em bombas e armamento, tornando-se extremamente útil a Kip por conhecer com detalhe os engenhos alemães e a melhor forma de os utilizar. Kip admira-lhe um quase inesgotável reservatório de conhecimentos e o estoicismo. Almásy, por sua vez, admira a discrição, a destreza e o desapego do jovem.

2. O clássico triângulo amoroso


Almásy, Katharine e Clifford formam um triângulo amoroso, construído segundo os moldes das tragédias clássicas. A narrativa secundária, de que faz parte a vida passada do piloto e geógrafo Lazlo Almásy, acaba por ser a parte da memória que o mantém agarrado à vida, após o acidente. O próprio narrador, através do olhar de Hana, dá a entender que toda a vitalidade do “doente inglês” se encontra concentrada no cérebro e a maior parte da actividade mental, voltada para o passado.

A forma como Almásy conhece os Clifford, é anterior à guerra. Quando se dá o primeiro encontro entre o trio, em pleno deserto, esta é, ainda, uma possibilidade que se vai tornando cada vez mais verosímil. Quando a guerra está eminente, os conhecimentos de Lazlo tornam-se uma preocupação para os países Aliados, que receiam que o inimigo venha a beneficiar dos seus conhecimentos.

Almásy desconhece as intenções de Clifford. Este cativa-o com a sua jovialidade e displicência de milionário excêntrico. Mas a forte atracção sexual que surge entrea Almásy e Katharine é quase imediata, embora de início Almásy não se aperceba. O estado de paixão só se activa através do uso da palavra: primeiro quando a ouve declamar um poema e depois de a ouvir ler um episódio do seu volume de Heródoto: a história do Rei Candaules e de uma rainha de fatal beleza.

A lenda assume um pendor marcadamente feminista, por ao expressar a raiva de uma mulher que se vê exposta e exibida como um objecto. Katharine identifica-se com a personagem e acaba por precipitar os acontecimentos, como se o episódio narrado pelo historiador funcionasse como uma profecia e exercesse sobre as personagens uma espécie de sortilégio.
A paixão entre ambosperece estr, no entanto, directamente ligada ao sofrimento. A Almásy porque o começa a consumir o ciúme; a Katharine porque não suporta a duplicidade a que a obriga a condição de amante. Os próprios encontros entre ambos chegam a assumir uma faceta patológica: Katharine manifesta comportamentos algo violentos com Lazlo, maltratando-o fisicamente, o que faz com que a relação adquira laivos de Sado-masoquismo. O próprio colega de equipa de Lazlo, Maddox, chega a comentar as contusões e escoriações de Almásy, ao que este responde com galhardia mesclada de fleuma britânica.



A história de Katharine e Lazlo desenvolve-se de forma ligeiramente diferente da do rei Candaules. É o marido ciumento quem desencadeia a tragédia, numa altura em que a mulher e o rival já não são amantes, porque não suporta saber-se suplantado.

3. A morte de Maddox. A guerra como barreira afectiva

Maddox, o melhor amigo de Almásy, desempenha o papel de amigo, confidente e conselheiro embora se possa pensar que a afeição por Almásy ultrapasse a esfera da amizade. Maddox ocupa uma posição discreta na trama, mas de suma importância, uma vez que exibe um desgosto que parece avolumar-se à medida que a história de Lazlo e Katharine se desenrola.




Sobretudo depois de sempre ter desempenhado a função de “guardião” do amigo. É a personagem que mais se preocupa em alertar Almásy para que se mostre discreto na manifestação de qualquer tipo de sentimento envolvendo Katharine, chamando a atenção para o facto de Clifford ser um homem com muitos amigos influentes.

As circunstâncias em que se dá o suicídio de Maddox, já regressado a Inglaterra, durante um serviço religioso onde o sacerdote anglicano anuncia o início da guerra e aproveita para exortar a população a nela participar activamente, forma um dos episódios mais dramáticos do romance.




Maddox aproveita o discurso demagógico do pastor para demonstrar o que pensa face ao absurdo da guerra e protestar de forma violenta contra uma hipócrita e demagógica exortação ao morticínio em nome da conservação de um império, ao cometer suicídio. Maddox escolhe uma forma dramáticapara demonstrar um profundo desprezo e ao mesmo tempo dar largas ao desespero, enfatizando assim o repúdio categórico pelo absurdo da guerra, que se destina a sublinhar apenas e só, a estupidez do género humano e a avidez de uma minoria.




Um motivo não menos importante para esta atitude de Maddox é, porém, de ordem afectiva. É-lhe insuportável olhar alguém - Almásy - por quem sempre sentiu afecto, como um inimigo. Almásy torna-se, para os britânicos, persona non grata por ter vendido por seus conhecimentos aos Alemães, após ter recebido a recusa de auxílio por parte de um dos burocratas do exército Britânico na tentativa de socorrer Katharine.

Neste romance Michael Ondaatje utilizando a beleza da escrita e a descrição do absurdo para sublinhar a forma irracional em como a guerra divide pessoas. Situações como a de Almásy e Maddox, Almásy e Katharine e, até, entre Hana e Kip são disso exemplo.




O relacionamento do par romântico da narrativa principal não conseguiu, por exemplo, sobreviver ao final daguerra, apesar da cumplicidade nascida na rotina diária, da necessidade de partilha de um espaço exíguo e um esforço supremo de solidariedade entre os ocupantes da Villa em ruínas.


Na perspectiva de Ondaatje, o deflagrar das bombas atómicas em Hiroshima e Nagasaki do outro lado do planeta é capaz de destruir, também, o amor entre duas pessoas a milhares de quilómetros de distância: Kip, até então admirador da cultura ocidental e, particularmente, da eficiência e organização britânicas, passa a repudiar tudo o que lhe lembra o Ocidente e, sobretudo, o Imperialismo Britânico. Não suporta inclusive a presença da mulher que ama, apesar de nacionalidade canadiana.




Kip solidariza-se com os seus familiares na Índia, passando a partilhar dos ideiais revolucionários e desejo de independência do irmão mais velho, preso na Índia por questões políticas, pela contestação da presença de potências europeias noutros continentes.




Kip está convencido de que estas nações não são capazes de olhar os humanos com outras tonalidades de pele em termos de igualdade, ao contrário da propaganda política e demagógica que foi, na altura e no pós-guerra, largamente difundida pelos Aliados, uma vez que acredita ser impensável os EUA deflagrarem a bomba atónica no Velho Continente.



Os muros que se erguem durante a guerra parecem, inclusive, prolongar-se pela vida fora, muitas décadas depois do seu términus. De facto, as muralhas ideológicas erguidas depois da guerra colocaram o mundo sob tensão nas quase cinco décadas seguintes, agudizando-se com a situação no Médio Oriente, anos mais tarde, após a invasão da Faixa de Gaza por Israele com o barril de pólvora em que se transformaram as relações com países como o Irão, o Iraque e o Afeganistão.

O Doente Inglês foi escrito durante o interregno das duas guerras do Golfo Pérsico, nos anos 1990, podendo perfeitamente ler-se nas entrelinhas e pela atitude de Kip, o papel que tiveram os Aliados na formação das tensões geopolíticas que hoje se fazem sentir.



O que não se consegue explicar é a omissão no filme de Anthony Minghella da reacção de Kip ao lançamento das bombas como resultado do ataque a japonês a Pearl Harbour, optando antes por criar um final adocicado e pouco convincente para um filme que, apesar de tudo, conseguiu arrecadar o Óscar devido, muito provavelmente, à fotografia e ao excelente desempenho dos actores principais.

4. A escrita de Ondaatje



Do livro O Doente Inglês destacamos, para além da mestria com que Michael Ondaatje consegue encaixar uma estória dentro de outra, a beleza das páginas que falam dos ventos do deserto, da devastação da Europa logo após a retirada alemã, da descrição dos rituais das tribos nómadas do deserto, do vívido realismo colocado na descrição de exóticas melodias, saídas dos instrumentos musicais dos beduínos, da eficácia da medicina tradicional dos povos do deserto, com os seus inúmeros unguentos e mezinhas.

A escrita de Michael Ondaatje tem muito de poético. Trata-se aliás, como já foi mencionado, de um autor que conta, no seu curriculum, com vários volumes de poesia. Na prosa, as cenas retratadas que se revestem de um evidente teor poético, assemelham-se à descrição de quadros ou fotografias. Algo que facilita muito a adaptação ao cinema, pela composição de quadros ou planos detalhados, que parecem ajustar-se perfeitamente à objectiva de uma camaraman. As cenas descritas são como fragmentos de tempo, contextualizadas e explicadas pelos diálogos entre as diferentes personagens. Trata-se de uma escrita predominantemente visual e, em segunda instância, táctil e auditiva, como vemos na descrição do tilintar dos frascos de vidro do boticário que trata das horrendas queimaduras de Almásy.


Para o protagonista do romance, as pessoas desfilam diante de si como presentes oferecidos generosamente por uma entidade superior a quem não sabe se há-de chamar Deus, Sorte, ou Acaso.




Katharine, Clifford, Maddox e, depois, Hana, Kip e Caravaggio o boticário os colegas de equipa e muitos outros.



O romance pretende demonstrar que deixar as convicções desfazerem algo que lhe é superior pode preservar algo como a cultura, a identidade e a civilização mas perde-se algo que é vital: a felicidade.




Que sempre poderá estar do outro lado do muro.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, May 26, 2010

“Albas” de Sebastião Alba (Quasi)




Albas é a antologia da obra de Dinis Albano Carneiro Gonçalves, sob o pseudónimo de Sebastião Alba, nascido em Braga a 11 de Março de 1940. Sebastião Alba emigrou, em 1949, juntamente com a família, para Moçambique onde travou, anos mais tarde, amizade com Mia Couto e José Manuel Mendes. De regresso a Portugal, tornou-se amigo de Vergílio Alberto Vieira, Herberto Hélder e Miguel Torga. Viria a falecer em Outubro de 2000, vítima de atropelamento. Um homem que, segundo as palavras de José Manuel Mendes, “sempre se opôs a toda a volúpia do inautêntico, da vulgaridade…” in Revista Correntes d’Escritas 2001.


Luís Carlos Patraquim dizia que, Sebastião Alba foi, em Moçambique, uma voz dissonante. Em Portugal, o pequeno grande público que ainda tem coragem de comprar livros de poesia, desconhece-o…. No entanto, …ele sabia que o que salva, de facto, o homem de não ser é a coragem de estar vivo, de ser pedra, uma pedra ao lado da evidência.

Ao regressar a Portugal, após desempenhar com profissionalismo profissões como jornalista ou de promotor de vendas, Sebastião Alba torna-se andarilho. Refugia-se no álcool e na escrita.


Mas no final dos anos 1990, torna-se uma referência, literária e pessoal para a juventude estudantil da cidade de Braga.


As palavras que lega a Vergíllio Alberto Vieira, poucos dias antes da sua morte, reflectem o modo como encarava o dia a dia:

Se um dia encontrarem morto
o teu irmão Dinis
o espólio será fácil de verificar:
dois sapatos e a roupa do corpo
e alguns papéis
que a polícia não entenderá


in Revista Correntes d’escritas 2001

Albas nasce da reunião de vários manuscritos e documentos dactilografados: cartas, poemas, bilhetes, rascunhos, crónicas, que reúnem o pensamento do Autor. O livro divide-se em sete capítulos temáticos.


O primeiro capítulo, ou Livro I intitula-se Poéticas e é constituído por poemas em verso e em prosa. Seguem-se o Livro II, Crónicas do Andarilho; o Livro III, Guerrillas (crónicas de revolta e insubmissão); Livro IV, Flagrantes (fragmentos ou meditações de instante); Livro V, Ritmos (textos que se ligam a um determinado estilo ou ritmo musical); Livro VI, Alba y Yo (monólogos dialógicos, de acordo com a classificação de Maria de Sta. Cruz, autora do prefácio); e o Livro VII, Ícones constituído por fragmentos referentes a símbolos, antropomórficos ou não. Trata-se de representações sociais, mentais, estereótipos representativos de uma sociedade de consumo fundamentada nas aparências ou da sua antítese. No livro é, ainda, incluído um epílogo do qual fazem parte alguns dos seus últimos escritos, onde parece ser notória a antecipação da chegada da Morte.


O título Albas parece provir não só da derivação do diminutivo de “Albano”. Contém em si também não só a designação de escritos de Sebastião Alba mas também um desejo imperioso de mudança para uma nova ordem social, uma vez que “Alba” também significa “alvorada”, ou seja um novo dia, que no entender do Poeta seria marcado por um novo ciclo de vida. Sebastião Alba foi um homem de personalidade cigana, perseguidor da liberdade absoluta, ao mesmo tempo que se transformava em escravo da sua própria liberdade.


Sebastião Alba confessava-se, no entanto, admirador de todo o espírito criativo, presente na actividade dos músicos, pintores, cientistas e poetas. Possuía uma capacidade de fruição e sensibilidade estética muito apurada, fruto da sua vasta cultura. Desfrutava da arte e do conhecimento pela perspectiva da vida e não de uma Moral hipócrita” (Sta. Cruz, Maria in prefácio de Albas). A sua obra exprime, sobretudo, a necessidade de errância de cada ser humano a qual acredita ser tragicamente amordaçada por aquilo a que chama de “civilização”.

As influências mais marcantes na sua escrita formam uma extensa lista de onde se destacam nomes como o de Cervantes, Baudelaire, Puschkine, Dostoievsky, Victor Hugo, Rilke, Lorca, Schubert, Van Gogh e, claro, Che Guevara. A obra está dedicada a Nicolo Paganinni, para o Autor o, maior violinista de sempre cujo virtuosismo fazia que o julgassem como detentor de um pacto com o Diabo.


O conteúdo de Albas revela desilusão, cepticismo, mas também uma fidelidade pétrea às próprias convicções, enraizada numa alma que não se compra nem se vende.


O sarcasmo está impresso nas entrelinhas da maior parte dos textos, sob a forma de denúncia de todo um sistema social que considera viciado. As farpas contidas nos seus escritos são dirigidas como um tiro certeiro dado por uma arma de precisão à cabeça de uma fera.


Assim é a escrita de Alba. É a escrita de um poeta dotado do humanismo do tempo das grandes utopias do século XIX. Alba seria um Garibaldi dos tempos modernos, se a conjuntura a tal se tivesse proporcionado, isto é, com a vontade da maioria.


O amor também é fonte de inspiração onde a mulher que é mãe se torna fonte de inspiração principal. Nesta temática, está inscrito um dos mais belos poemas da obra o Cântico Vermelho.

As suas crónicas são autênticos quadros representativos de uma sociedade e cultura que se volta, progressiva e inexoravelmente, para o consumismo e individualismo extremos, virando as costas à solidariedade e ao prazer, proporcionado pela aquisição de conhecimento. Sebastião Alba capta, também, os aspectos mais obscuros que se escondem no mais íntimo da mente humana, através da simples observação das expressões faciais dos transeuntes quando julgam não estar a ser observados.


As suas Guerrillas trazem a denúncia da corrupção ministerial, da luta de classes e o apelo a uma ética universal, de cariz kantiano, como contraponto à civilização emergente após a queda do Muro de Berlim: a sociedade do advento do capitalismo e da globalização como fim da história.


Primeiro Napoleão (1812); depois, Hitler (1941); agora o Bush, era o que nos faltava!.


A par do facto de seres humanos de erudição, superiores pela sua humanidade morrerem muitas vezes às mãos de gente medíocre ao longo da história, o Autor descreve Portugal como um “país de comerciantes e clientes”, prevendo o colapso do Estado de Direito no curto prazo.

Os Flagrantes de Sebastião Alba são pequenos flashes que reproduzem pensamentos, ou então, breves instantes de felicidade. Reflexões onde se exalta a cultura e a fruição da beleza, fruto da criatividade humana. A arte é para ele o portal de evasão de uma realidade quotidiana marcada pela miséria e pelas privações. Sebastião Alba é, também, um acérrimo defensor dos direitos das mulheres como prova o texto galletas camilianas apesar de invectivar a superficialidade da população feminina em geral, inculcada a partir dos modelos comportamentais vertidos pelas telenovelas. Mas o acesso ao amor implica, no entanto, a integração na sociedade, preço que Alba não está disposto a pagar.


No campo científico não deixa, apesar da admiração que dedica à curiosidade que impele a necessidade de descoberta e a acção dos grandes cientistas, de se mostrar agastado face à cegueira de alguns. Denuncia, por exemplo, um evidente racismo na experimentação de uma bomba de extermínio em massa do outro lado do planeta, bem longe da Europa. O Holocausto perpetrado, também, pelo lado dos Aliados, 1945.


Em Ritmos, Alba alude aos grandes nomes da música clássica. Demonstra conhecimento, sensibilidade e um extremo bom gosto, ao enquadrar textos criativos com inspirados em obras de Mozart, Beethoven, Schubert, Falla e Paganini, ao criar o contraste entre a beleza sublime da criação de alguns humanos e a boçalidade do exibicionismo e avidez de Poder por parte de outros. A música é para Alba a via para a alienação da fealdade ou do grotesco do quotidiano e, sobretudo, da mediocridade.


Nos monólogos dialógicos de Alba e Yoo Autor explora a razão das suas próprias atitudes; é o intérprete do seu próprio comportamento, como se fizesse uma espécie de auto-psicanalise, num divã ao ar livre, formado pelas pedras da calçada, onde é, simultaneamente, o paciente e o terapeuta.


No capítulo Ícones, são referenciadas as figuras ou modelos que contribuíram para a sua formação ideológica, as suas principais referências.


Sebastião Alba mostrava-se decepcionado pelo facto de as comemorações de Abril se revestirem, na altura, cada vez mais de um formalismo que parecia debotar, cada vez mais, o vermelho dos cravos.

No epílogo, a escrita de Alba parece, já, revestir-se do pessimismo e melancolia que pressagiam o fim derradeiro. Finaliza a obra com o concerto nº 20 de Mozart: o seu preferido.


Albas é, por tudo o quanto foi dito, um belo livro. E, também, um libelo às contradições de uma sociedade cada vez mais desumanizada.




Cláudia de Sousa Dias

Monday, May 17, 2010

História abreviada da Literatura Portátil de Enrique Vila-Matas (Assírio & Alvim)




O Autor tece uma análise crítica, recorrendo à sátira, para caracterizar o comportamento dos elementos que fizeram parte de um determinado movimento literário, muito em voga nos anos 1920.


Os denominados “escritores de literatura portátil” preconizavam um determinado estilo de vida, projectado na escrita,o qual se traduzia numa atitude perante a vida marcadamente divertida, lúdica e por um discurso sarcasticamente mordaz. Estas eram os principais traços da então chamada “literatura portátil”. Esta teve a sua génese na Europa e foi, depois, exportada para outros continentes. A principal ambição dos “escritores portáteis” consistia em ser shandy – vocábulo típico do dialecto de algumas localidades situadas no Yorkshire que significa “alegre”, “volúvel” ou “louco”. Pretendia-se, com esta atitude perante o mundo, fazer a apoteose dos “pesos ligeiros da história da literatura”, passando a rotular-se de “insuportáveis” as obras “intransportáveis”.


As características dos Shandy

Para se ser shandy e escrever literatura considerada portátil - e, portanto, “suportável” - seria necessário ao escritor ter uma considerável dose de irresponsabilidade o que significava permanecer solteiro ou, pelo menos, actuar como se o fosse. Era necessário ser-se hiperactivo sexualmente, de forma a ser-se um “artista portátil” ou seja, alguém que se pode levar facilmente a qualquer parte.

Os shandy eram, por isso, pessoas de espírito inovador, sexualidade extrema, ausência de grandes propósitos, nomadismo infatigável, tensa convivência com a figura do duplo (o interlocutor imaginário), simpatia pela negritude e exímios no culto da arte da insolência.

Esta insolência é exaltada pelos “portáteis” shandy devido à capacidade de prontidão de resposta que lhe está subjacente, à facilidade em quebrar normas e crenças pré-estabelecidas, atacando “um inimigo poderoso mas lento” com a velocidade de um relâmpago.

Deste grupo de excêntricos literatos faziam parte Marcel Duchamp – o qual fazia a ponte entre o escritor e o artista plástico – Tristan Tzara, Georgia O’Keefe – pelas mesmas razões de DuchampCesare Varese, Paul Morand, Jacques Rigaut, Alaister Crowley e até Scott Fitzgerald e - pasme-se – Fernando Pessoa.

Escritores amados e odiados eram vistos como “delinquentes” para autores como Hermann Broch. Vila-Matas descreve-os com olhar de antropólogo, ao qual junta uma fina ironia que se transforma numa espécie particular de humor que se revela uma iguaria rara. No prefácio, Vila Matas descreve-os como escritores turcos de tanto tabaco e café que consumiam, amantes da escrita quando esta se transforma na experiência mais divertida e também na mais radical.

A obra consiste numa série de contos/ narrrativas que descrevem as hilariantes aventuras desta louca sociedade semi-secreta, onde não falta a presença de belas mulheres fatais, algumas delas também escritoras, indispensáveis a qualquer “máquina solteira” (masculina) que lhe permita funcionar com falsa eficácia e sem medo de avariar.

A superficialidade e a extravagância são os principais traços de personalidade das personagens desta História abreviada da Literatura Portátil, cujas loucas reuniões são deliciosamente pintadas por Enrique Vila-Matas, numa obra tão portátil como a literatura daqueles que a inspiraram, profusamente recheada de condimentados mexericos, narrados à semelhança das peripécias de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. Porque os shandy são personagens que, no convívio social, têm um comportamento tão extravagante e marcado pelo nonsense como o Chapeleiro Louco de Carroll.

História abreviada da Literatura Portátil torna-se uma obra susceptível de ser lida em voz alta, de forma a ser partilhada, para desfrutar em grupo das divertidas peripécias protagonizadas pelas suas personagens, cuja loucura é o meio de que se servem para desdramatizar as suas próprias tragédias pessoais, o vazio das suas vidas, o tédio, que as ameaça como o pior dos monstros. O riso é, assim, colocado num pedestal como uma potente arma contra a morte – sobretudo a morte pelo suicídio que ataca muitos dos escritores, sobretudo os que não são portáteis. Mortes sem explicação aparente cujo absurdo se revela ao colocar a nu as contradições que norteiam o comportamento humano e…rindo-se delas.


A sociedade Shandy é o remédio contra o excesso de seriedade nas sociedades da era pós-vitoriana, cuja ética assentava numa moralidade repressiva.

Esta História abreviada da literatura portátil torna-se, portanto, indispensável para todos aqueles para quem o riso está ausente do quotidiano.


Cláudia de Sousa Dias


Tuesday, May 11, 2010

"Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago (Caminho)




A frase retirada do Livro dos Conselhos - Se podes olhar, vê; se podes ver, repara -, colocada em epígrafe no romance, é a chave que ajuda a descodificar a mensagem que o Autor pretende transmitir. Para Saramago a visão divide-se em vários patamares: olhar, ver e reparar são as suas três declinações, sendo que a primeira, de carácter nível mais elementar, implicando, por isso, uma panorâmica geral, istó é, pressupõe o abarcar de um determinado espaço que é “varrido” pela vista, sem contudo se deter, muito sobre nenhum aspecto em particular. Logo depois vem o “ver” que obriga a fixar a vista em algo que chamou a atenção durante o “olhar”, pressupondo, já, algum grau de descodificação ou capacidade de interpretação. Como se a lente ocular ampliasse o objecto, tal como a lente de um binóculo, de um telescópio ou mesmo dum microscópio. Por último, o grau máximo de precisão nesta escala tem a ver com o acto de “reparar” em algo. O aspecto focado no estágio anterior é, além de analisado e dissecado, retido na memória a longo prazo, A memória é permite a detecção, identificação, ligação e finalmente a compreensão das situações, por analogia, proporcionando as adaptações do comportamento necessárias à mudança.


É sobre este prisma que a leitura de “Ensaio sobre a Cegueira” faz com que olhemos, vejamos e reparemos numa humanidade que sofre um colapso temporário, o qual se manifesta numa estranha cegueira que não tem relação com qualquer tipo de anomalia física. Trata-se de uma ocorrência de teor apocalíptico que se concretiza numa mutação repentina, traz o caos ao quotidiano. Apenas um único ser humano consegue escapar ao flagelo, fazendo tudo para minimizar os seus efeitos mais nocivos.

A obra é, toda ela, uma alegoria (aliás não é por acaso que nenhuma das personagens tem nome) que opõe a consciência e o sentimento de responsabilidade social – incarnados na mulher do médico – ao alheamento e à passividade, à demissão do sujeito face às suas funções sociais e aos seus deveres cívicos.

A trama desenvolve-se em crescendum, à semelhança do processo de propagação de uma epidemia, tal como no romance A Peste de Albert Camus, a quem o Autor foi beber, talvez, a inspiração para o desenvolvimento estrutural do romance. A temática de Saramago é, no entanto, diferente da de Camus, embora sejam análogas. A “peste” de que fala o Autor francófono é o nazismo, que consistiu na primeira metade do século XX, uma espécie de cegueira ideológica. Já a cegueira de que fala Saramago é o individualismo levado ao extremo. Em ambos os romances existe uma calamidade social, que se desenvolve como uma pandemia, isto é, em progressão geométrica.

Em termos estéticos, José Saramago descreve cada cena como se empunhasse uma câmara de filmar em movimento. O tom de voz do narrador é quase o de um locutor de televisão a fazer um documentário do National Geographic, mas onde o cenário é uma grande metrópole e o animal a observar, o Homem. Por exemplo: a narração da primeira cena, faz com que o leitor sinta que está por detrás de uma câmara de filmar, como se esta fosse um “olho omnisciente – o narrador – o qual acabará por delegar, a dada altura, parte das suas funções na única personagem que não perde a visão: a mulher do médico, a qual se torna líder de uma facção de cegos que a escolhem democraticamente. Nela, estão presentes um forte impulso maternal e um vincado instinto de protecção face ao Outro, assim como um elevado sentido de responsabilidade cívica, que a tornam imune à misteriosa cegueira.

O Autor caracteriza uma sociedade distópica, que nada mais é do que uma selva de betão, um meio urbano onde habita o homo economicus e onde se ergue a sociedade do ter e do “salve-se quem puder”. Esta encontra-se caracterizada logo na primeira cena, onde a agressividade natural dos participantes anónimos parece conter em si o gérmen da sua própria destruição:

O disco amarelo iluminou-se (…) na passadeira dos peões surgiu o desenho do homem verde (…). Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata.

E é precisamente no momento de arranque, quando o semáforo passa a verde, que cega a primeira personagem.

A cegueira vai afectando sucessivamente as personagens é “uma estranha cegueira branca” que impede o discernimento, impossibilita a distinção das coisas (note-se que na bandeira francesa o branco simboliza a igualdade): a verdade da mentira, o bem do mal, o justo do injusto. Trata-se de uma incapacidade de discernimento que dilui os limites que separam o lado positivo e negativo de um mesmo continuum, aumentando a zona de transição, um limbo de incerteza que leva à desorientação. O campo de concentração onde são isolados os primeiros “portadores da doença” é um microcosmos onde se reproduzem vários modelos sociais, representados pelas diferentes camaratas. Esses modelos sociais esses vão desde a democracia à autocracia, como sublinhou a Socióloga Maria do Rosário Fardilha durante o debate na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, em Março último, a propósito de Blindness o filme de Fernando Meirelles, baseado neste romance. Segundo MRF, a um idealismo quase platónico, presente numa das camaratas ( aquela onde se encontram o médico e a mulher que não é cega), onde o representante da camarata é eleito democraticamente, opõe-se a camarata daquele que se autoproclama chefe, porque detém uma arma (o símbolo do poder militar, ainda segundo Rosário Fardilha) e das ditaduras, como sucedeu em países como o Chile, o Iraque, Portugal, Itália, entre outros.

A cegueira espiritual progride traduzindo-se num aumento insustentável dos detidos que vivem de um estado de providência. Não trabalham e subsistem à custa do Estado. A par da dependência e da falta de autonomia produtiva prolifera, cada vez mais, a ausência de clarividência, o crescimento da ignorância, em todos os grupos sociais, como se estivessem ofuscados por uma cegueira de luzao, ao mesmo tempo que se vêem esgotar os recursos e o espaço se torna cada vez mais exíguo.


A "cegueira" faz com que estímulos visuais se tornem progressivamente auditivos, exactamente como nas sociedades onde proliferam os boatos e onde a informação raras vezes é confirmada. As pessoas deixam de ser testemunhas oculares dos factos para apenas reproduzirem o que ouvem , facilitando a progressão do boato pela deturpação da informação. Até os lugares passam a ser reconhecidos pelos odores e a atmosfera das emoções pela oposição silêncio/ruído. Trata-se de uma humanidade cujo raciocínio se baseia muito mais na intuição do que nos factos e, por isso, muito mais facilmente manipulável pelos órgãos de informação e poder, sobretudo por aqueles que são responsáveis pela distribuição dos bens essenciais à sobrevivência. Para um controlo social mais eficaz, as autoridades governamentais da cidade sem nome, encarregam-se de difundir mensagens optimistas – censura de informação – na tentativa de acalmar os ânimos. E, desta forma, se constitui uma sociedade composta por cegos alegremente envoltos numa luminosidade nublada.

Para estes a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas mas no interior de uma glória luminosa...


Esta luminosidade seria o paliativo da sociedade de consumo onde os média vendem uma ilusão glamurosa, baseada em mensagens douradas e vazias de conteúdo, com o objectivo de expurgar toda uma população de capacidade de raciocínio e sentido crítico.

Por outro lado, os atrasos no fornecimento das refeições (ou dos salários), a insuficiência das provisões (ou a diminuição do poder de compra) e o aumento em massa do número de pessoas internadas (desemprego) aceleram o processo de deterioração das condições de vida. Instala-se o caos, multiplicam-se fraudes e casos de extorsão. Prostituição, proxenetismo e lenocínio, em nome da sobrevivência, fazem com que as vítimas deixem de ser consideradas como pertencentes ao género humano. O domínio de um género pelo outro ou o domínio de um povo pelo outro, a subjugação do mais fraco pelo mais forte, são sintomas de um sistema judicial que se encontra em grave estado de enfermidade. Porque em tempo de crise, a sobrevivência cabe aos mais fortes, ao poder das armas. Ou do dinheiro.

A mulher do médico, cuja visão se associa a uma personalidade que a coloca próxima do ponto de vista do narrador consegue enxergar os comportamentos que os outros julgam ser impossíveis de ser observados, como se estivesse num laboratório. Apercebe-se, inclusive, dos elementos de ligação entre os que com ela partilham a mesma camarata, passando, a dada altura, a saber mais sobre as pessoas do que elas próprias. A sua lucidez permite-lhe tomar consciência de que, sozinha, não pode alterar as coisas rapidamente. A viragem da situação terá de ser feita de forma lenta e inexorável, mas nunca isoladamente. Nunca sem o apoio das massas. mas para isso é preciso combater a agnosia.

A mulher do médico, apesar de ser a única que vê realmente aquilo que se passa, mantém-se em silêncio quanto ao facto. Da mesma forma que em tempos de ditadura, aqueles que são contrários ao regime vigente têm de manter ocultas as suas convicções. Mas possui capacidade de análise e raciocínio comparativo todas as representações sociais estão contidas naquele campo de concentração-manicómio.

O mundo está todo aqui dentro.

Com a chegada de um outro personagem “ o homem da venda preta” chegam, também, notícias do exterior e a percepção de que a cegueira se generalizou a tal ponto que a sociedade inteira está à beira do colapso, fazendo com que as estruturas burocráticas político-jurídicas e económicas de desintegrem de vez. A quarentena serve apenas para obter alimentos com certa periodicidade, mas por pouco tempo. Enquanto houver para distribuir.


Na vida real, Saramago pretende, muito antes da crise actual se instalar, utilizar a metáfora do financiamento do alimentos em analogia com o esgotar dos fundos do Estado de Providência, a generalização do desemprego e da exclusão social estão condensados, inicialmente, dentro dos muros do sanatório/campo de concentração espahando-se, depois, para além dos muros que o cercam. Da mesma forma, estão implícitas fortes críticas às directivas emanadas da União Europeia desde o início dos anos 1990, com a alusão à PAC – Política Agrícola Comum –, personificada em atitudes como a do cego contabilista, encarregue de recolher e orientar o pagamento da comida pelas restantes camaratas:

(...)não se esqueceria o cego contabilista de condenar (…) o procedimento criminoso dos cegos opressores que preferem deixar que se estrague a comida a cedê-la a quem dela tão precisado está.

Por outro lado, a crise económica favorece o surgimento de actividades paralelas como o tráfico humano. As mulheres tornam-se o alvo mais fácil, uma vez que, por razões históricas de exclusão das esferas do poder e de autonomia económica, estão em situação mais vulnerável – de notar que tiveram de se prostituir para se alimentarem a si mesmas e aos seus homens e que estes as encorajaram a fazê-lo logo após se lhes terem esgotado os objectos de valor ou, pelo menos, não se opuseram. Uma espécie de cobardia, instalada também por razões culturais ou históricas: é mais fácil entregar o corpo alheio ao sacrifício do que enfrentar as feras e revoltar-se, enfrentando a prepotência em nome da justiça.

Violações e Infidelidades

Em relação aos comportamentos sexuais desempenhados pelas personagens arquetípicas ou, se quisermos alegóricas, de Ensaio sobre a Cegueira, vemo-nos diante de situações extremas que fazem emergir o lado mais animal do ser humano enquanto espécie, ou por outro lado o tempramento magnânimo consoante o temperamento de cada um enquanto sujeito individual. Comecemos pela mulher do médico - um ser atípico. Em circunstâncias normais do quotidiano, uma infidelidade conjugal, ainda que pontual, poderia abalar uma relação estável. Mas as circunstâncias em que ocorre o episódio de atracção sexual entre o médico e a rapariga de óculos escuros, em que a esposa está demasiado ocupada em salvar a humanidade, ou pelo menos, a protegê-la de uma crise sem precedentes, faz com que quase não tenha tempo ou disposição para a intimidade. A faceta de mãe da humanidade e o sentido de responsabilidade social sobrepõem-se à faceta de mulher-fêmea, o que faz com que encare o episódio com bastante mais indulgência do que o que seria habitual. A atracção entre o médico e a rapariga dos óculos escuros ocorre, precisamente, quanto a relação entre ambos esfria um pouco em termos sexuais. O médico, na opinião de Maria do Rosário Fardilha, também não se sente confortável na situação de dependente face aos cuidados da mulher o que contribui um pouco para que se crie alguma distância entre ambos. É um facto que, a partir do momento em que a mulher passa a cuidar do marido como se de uma mãe se tratasse, se cria uma espécie de barreira face ao papel de amante , o qual passa, durante algum tempo, para segundo plano. Quanto ao médico e à rapariga dos óculos escuros, o sentimento de culpa e o da vergonha não deixam de estar presentes. Nenhum deles deseja que a mulher do médico se aperceba do que sucedeu, porque a amam.

José Saramago introduz, aqui, uma interessante parábola relativa à especificidade e às circunstâncias em que se processam a ocorrência de uma relação extra-conjugal criando, ao mesmo, tempo uma intertextualidade com o Génesis e a noção do Pecado Original, mas fazendo ver aos homens que se libertam da cegueira da ignorância que qualquer transgressão, sobretudo nas relações pessoais tem ser olhada e avaliado à luz de cada caso concreto e não ao abrigo de convenções obsoletas.


Já o episódio do estupro colectivo, ou da concretização do acto sexual sob coação, é apresentado com todas as cores do grotesco. O objectivo é o de causar asco no leitor e consequente repúdio por todo o acto sexual que não resulte directamente do desejo e da livre vontade de todos os intervenientes.

A violação é usada em Ensaio sobre a Cegueira como forma a mostrar o repúdio pela violência de género, pelo tráfico humano e pela tradição do uso a violência sexual como imposição do domínio do género feminino pelo masculino. Como contraponto, Saramago utiliza o recurso do silêncio na obra, que Fernando Meirelles utiliza – e muito bem – em Blindness para sublinhar a humilhação do género feminino na cena em que as mulheres da primeira camarata lavam o corpo de uma companheira, morta em consequência das sevícias sofridas pelos membros da camarata opressora.

A própria relação entre os membros das diferentes camaratas assemelha-se àquela que se estabelece entre os diferentes estados, cuja acção é ditada pelos respectivos regimes políticos.

O Autor aborda este tema ao descrever uma situação agudizada ao extremo onde o ponto de viragem só se dá quando a mulher que vê encontra aliados activos. Sobretudo com a entrada em cena do velho da venda preta o qual toma a dianteira no sentido de, colocar-se na linha de frente e ao lado da mulher do médico, a encabeçar uma revolução que fará valer os direitos dos mais vulneráveis. A frase paradigmática que faz emergir esta atitude e se torna o sentimento dominante na maioria dos habitantes da primeira camarata é a de que

Sempre houve quem enchesse a barriga com a falta de vergonha.

Destruição /reconstrução


A revolução culmina com a destruição pelo fogo. O manicómio, ou campo de concentração onde estão detidos os cegos, desfaz-se em cinzas e a humanidade ressurge. Como a Fénix. As intertextualidades presentes relacionam-se não só a figura da mitologia clássica, mas também com o livro do Apocalipse onde a velha ordem é destruída pelo fogo que actua como elemento purificador.
A súbita libertação destes “cegos”, aprisionados numa sociedade cheia de contradições, despoleta um período de transição, readaptação e reorganização, marcado inicialmente pela total anomia ou desordem. O sentimento de insegurança paira sobretudo naqueles que até aí sentiam uma segurança relativa, apesar das privações, mas tinham o mínimo, garantido por um estado de providência, mas que mal dava para se manterem vivos.
As sociedades, cegas pela ignorância e pela alienação não sabem, normalmente, viver em regime democrático, porque não têm consciência política, sentido crítico ou responsabilidade cívica: “Numa sociedade de cegos, governada também por cegos, a humanidade ao habituar-se a viver sem olhar, deixará de ser humanidade.”


E que “Se a vítima não tiver direitos sobre o criminoso, deixará de haver justiça; deixará de haver humanidade.”

A mulher do médico, após a libertação do manicómio, continua a exercer o seu papel de provedora daqueles que lhe são mais próximos durante os momentos mais críticos.


As casas – O regresso

Os habitantes da primeira camarata regressam do exílio às suas casas mas nada está como antes. O tempo exerceu a sua acção sobre as coisas e sobre as pessoas. As casas estão desabitadas, ocupadas por outros habitantes ou sofreram a degradação dos elementos, falta de cuidados ou, simplesmente, a pilhagem.
Uma cena curiosa é aquela em que os elementos do grupo dialogam com o escritor que ocupa a casa do primeiro cego e recorre a informadores qualificados quando não tem elementos para completar as suas descrições. As visitas do grupo são-lhe úteis para o desenvolvimento da obra. Um alter-ego de Saramago, a colocar-se discretamente como uma personagem periférica.

A casa do médico e da mulher é aquela que se encontra em melhores condições porque inviolada. A chegada do grupo a casa do médico e da mulher assemelha-se à chegada dos eleitos à Terra Prometida, à terra do “leite e do mel”. Lá, encontram água potável armazenada, que acompanha os alimentos que a mulher do médico conseguiu retirar de um supermercado. A água sacia-lhes a sede e a chuva que cai lava-lhes a alma. A água é usada como recurso estilístico a simbolizar a limpeza da alma e a sua revitalização. Para as mulheres, a chuva lambe-lhes as feridas do corpo e da alma, uma vez que a água, ao contrário do fogo, purifica sem destruir.

Pausa na Igreja

A pausa na igreja para um momento de descanso, após a ida ao supermercado, introduz um episódio de conteúdo algo surrealista – aliás toda a obra, porque alegórica, simbólica, acaba por revestir-se de um carácter algo surrealista – em que todas as esculturas e imagens pictóricas estão de olhos vendados. Aliás os olhos das imegens encontram-se cobertos por uma venda branca, na tentativa de imitar a cegueira que afecta a humanidade. Para o Autor, As imagens vêem com os olhos que as vêem e como os olhos humanos são incapazes de ver ou de discernir, o autor da façanha terá pensado que seria justo que os santos tivessem a mesma sorte que os humanos. Esta ideia provém da convicção de Saramago é da opinião que os deuses são construídos à imagem e semelhança do Homem e não o contrário, uma vez que o Autor vai beber a maior parte das suas concepções ideológicas ao Século das Luzes, muito ao estilo de Voltaire, Renan ou Rabelais ao qual mistura o humanismo de Victor Hugo.

Deste episódio decorre a ideia de que os deuses são indiferentes ao destino dos homens e o acto “sacrílego” de colocar uma venda branca proviria de alguém, segundo o narrador, com um espírito crítico e sentido humanitário muito vincados tendo-o executado o acto antes de cegar – se é que chegou a cegar.
Dentro do grupo que se abriga na casa do médico e da mulher, as reacções ao acto são o mais variadas possível. Mas as opiniões expressam-se livremente, são analisadas e integradas. A casa é o lugar onde se albergam a Liberdade e o Respeito pela Diferença.

Então, de um momento para o outro – e não é por acaso – um por um, começam a recuperar a vista. Fazem-no, apenas e só, a partir do momento em que a Humanidade, ou pelo menos parte dela, atinge um estágio de maturidade que lhes permite agir de forma construtiva.

O pensamento dominante no último parágrafo do romance é, precisamente, aquele que confirma a hipótese da agnosia psicológica, proposta logo no início: a de que, na realidade, ninguém cegou realmente e que, a humanidade, salvo raríssimas excepções, continuará cega ou atravessará períodos em que a incapacidade de discernimento pela alienação a atingirá com a mesma violência das grandes catástrofes naturais.

A escrita de Saramago

A escrita de José Saramago em Ensaio sobre a Cegueira é feita ao correr do pensamento. Assemelhando-se mais a um relato e tem nela impregnadas muitas marcas da oralidade. Os diálogos são entremeados com o discurso indirecto, sucedendo-se as diferentes vozes separadas por vírgulas e maiúsculas, o que acelera de forma vertiginosa quer a narração quer a leitura.

Chamem a polícia, gritavam, tirem daí essa lata. O cego implorava, Por favor, alguém me leve a casa. A mulher que falava de nervos foi de opinião que se deveria chamar a ambulância, mas o cego disse que isso não, não queria tanto, só pedia que o encaminhassem até à porta do prédio onde morava, Fica aqui muito perto, seria um grande favor que me faziam.”

Trata-se de um estilo de narrativa onde se fundem as vozes do narrador e as das personagens. O efeito daí resultante é a transmissão da Babel de vozes que traduzem o pânico vivido, onde todos falam e ninguém ouve. O ponto final que nesta cena marca uma pausa silenciosa, em oposição ao ruído.

O Autor recorre a diversas figuras de estilo como a parábola, a metáfora e a ironia, enriquecendo o conteúdo da obra, já de si complexo, dotando-o assim de múltiplas significações:

No fim de contas não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e tatebitate com o olho posto na herança.

Ou o paradoxo:

Fazemos dos olhos uma espécie de espelho virado para dentro, com o resultado de muitas vezes, mostrarem eles o que estávamos negando com a boca.

As intertextualidade com a Bíblia são, como já vimos, mais do que muitas. Para além destas nota-se a influência de Victor Hugo no paralelismo que se pode estabelecer em Os Miseráveis, presente sobretudo na linguagem que apela à solidariedade ou à condenação: “os pobres infelizes” ou “a camarata dos malvados” . ´

A influência maior parece ser, no entanto, a de Albert Camus, sobretudo no desenvolvimento estrutural da trama. Aí encontramos uma nítida inspiração na obra do autor franco-argelino, A Peste, também ela uma alegoria, mas neste caso, denunciadora de um flagelo ideológico


A descrição dos momentos de maior abjecção dentro do manicómio onde são depositados – ou exilados – os primeiros cegos – é ajudada por inúmeras sinestesias fazendo lembrar uma pintura representativa do inferno pelo pintor Hyeronymous Bosch, povoada dos monstros que habitam a mente humana, aprisionados no inconsciente e de cuja ignorância ou inconsciência faz de todos nós cegos perante as aittudes dos outros e das nossas.


Para o Autor este é o livro que traça um retrato fiel da essência do Homem: porque


É desta massa que nós somos feitos: metade de indiferença, metade de ruindade.



Cláudia de Sousa Dias

Monday, May 03, 2010

“As Ligações Perigosas” de Choderlos de Laclos (Relógio d’Água)



Com posfácio de Carlos Drummond de Andrade

Quando Choderlos de Laclos, um militar de ideias revolucionárias do século XVIII, simpatizante do pensamento voltairiano, de vincado espírito crítico e frequentador de salões privados onde se realizavam saraus musicais e tertúlias literárias publicou As Ligações Perigosas, a sociedade reagiu violentamente, manifestando um repúdio categórico pelo conteúdo da obra. Estava-se em pleno reinado de Luís XVI e tudo indica que a reacção se deveu ao facto de a mesma sociedade se ter visto espelhada no conteúdo da correspondência trocada entre as várias personagens, as quais incarnam diversos tipos sociais representativos das elites de então. Este sentimento de repúdio generalizado pela obra encontra-se expresso no conteúdo moralista da Advertência ao leitor antes do primeiro capítulo:

Julgamos do nosso dever prevenir o público de que apesar do título desta obra (Alusão ao subtítulo da edição original: Cartas recolhidas num meio social e publicadas para ensinamento de outros (N. do T.)) e do que o redactor diz no seu prefácio, não garantimos a autenticidade da colecção, e de que temos mesmo fortes razões para pensar que ao fim e ao cabo se trata de um romance.


Supomos, além disso, que o autor que , todavia, parece ter procurado a verosimilhança, a destruiu ele próprio e bem desastradamente, devido à época em que colocou os acontecimentos quer traz a público. Na verdade, várias das personagens que põe em cena, têm taus maus costumes que é impossível supor que tenham vivido neste século Neste século de filosofia em que as luzes, derramadas por toda a parte tornaram, como é sabido, honestos todos os homens e modestas todas as mulheres.


É, pois, nossa opinião, que se as aventuras relatadas nesta obra têm um fundo de verdade, só podem ter acontecido noutros lugares ou noutros tempos; e censuramos muito o Autor, seduzido na aparência, pela esperança de interessar mais, aproximando-se do seu século e do seu país, ter ousado apresentar, com as nossas vestimentas e os nossos modos de viver, costumes que nos são tão estranhos.


A fim de preservar o leitor demasiado crédulo, tanto quanto em nós caiba, de qualquer surpresa a este respeito, apoiaremos a nossa opinião num raciocínio que lhe propomos com confiança, pois que nos parece vitorioso e sem réplica: é que sem dúvida as mesmas causas não deixariam de produzir os mesmos efeitos e que entretanto não é possível, hoje, vermos qualquer jovem, com sessenta mil libras de rendimento, fazer-se religiosa, nem qualquer esposa de um presidente de tribunal, nova e bonita, morrer de tristeza
.

O Tema


A trama, em si, envolve o quotidiano de dois sedutores, cujo principal desporto e prazer consiste em coleccionar aventuras sexuais.

As Ligações Perigosas é um romance epistolar, cuja correspondência trocada entre as personagens põe a nu um conjunto de mecanismos de defesa do ego, cuja finalidade é a de camuflar comportamentos individuais que não são socialmente bem-vistos. A descodificação destes mecanismos advém da possibilidade de comparar o discurso das personagens consoante os destinatários – particularmente nos casos de Mr. de Valmont e Madame de Merteuil.

A racionalização e a sublimação são duas atitudes que estão constantemente presentes na maior parte das cartas emitidas pelos protagonistas. Sobretudo quando dirigidas aos ingénuos Cécile Volanges, ao Cavaleiro Danceny ou, ainda, a Madame de Tourvel. As personagens secundárias são habilmente manipuladas pelos dois protagonistas através de cujas atitudes o Autor aproveita para criar uma evidente e, por vezes sinistra, intertextualidade com algumas das personagens das fábulas de LaFontaine, nomeadamente com o Lobo que veste a pele de Cordeiro (Valmont) ou a astuta raposa que desdenha as uvas que quer comer (Merteuil). Trata-se de dois predadores humanos que utilizam a técnica do disfarce , da sobreposição de várias máscaras sociais, consoante o papel que estão a desempenhar, para garantir a eficácia dos seus objectivos: capturar e seduzir as respectivas presas. O discurso impregnado de cinismo patente numa das cartas de Merteuil a Valmont, na carta V no início do romance, não deixa margem para dúvidas:

O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridículo capricho! Reconheço bem a sua má cabeça que não sabe desejar senão o que não pode obter. Que tem, pois, essa mulher? Trtaços regulares, se quiser, mas nenhuma expressão. Sofrível de corpo, mas sem graça. Vestida sempre de um modo que faz rir! Com os seus molhos de lacinhos ao pescoço e o corpete que lhe chega ao queixo!


Um cinismo mordaz aliado ao mecanismo de racionalização dá a esta invectiva, que esconde uma grande dose de despeito, a aparência de uma crítica fria, apesar de carregada de veneno. Uma crítica que, no entanto, omite detalhes importantes. A tónica pela qual a Marquesa avalia as mulheres em geral, sobretudo as que podem rivalizar com ela é, normalmente, depreciativa. No entanto, com as mulheres idosas a sua atitude muda radicalmente: para elas é amável e doce como o mel. Afinal são elas que constroem a reputação das mais novas. E Merteuil consegue preservar, graças a um meticuloso xadrez de amabilidades e adulações e dissimulações, uma reputação inatacável, recorrendo inclusive à sublimação, isto é, dar um aspecto heróico ou sublime a algo que normalmente seria condenável. A Marquesa de Merteuil transforma a própria vida numa ficção, numa ininterrupta peça de teatro cuja persona ou máscara despe somente quando vai dormir – a sós. Desvenda-a, ocasionalmente, um pouco somente em conversa com Valmont, o seu alter ego. Valmont é a versão masculina de Merteuil. Ambos têm personalidades muito similares, das quais se destaca um profundo egocentrismo, um forte desejo de domínio ou submissão do Outro e uma Ânsia desmedida de protagonismo social que se consolida pela afirmação do seu poder de sedução, sobretudo no caso de Valmont. Já Merteuil , deseja a submissão do género oposto como vingança face a uma educação sexualmente repressiva, criadora de obstáculos ao prazer, conjugando-a com a depreciação de potenciais rivais.


Causas Sociais e Motivações


A origem da personalidade de Merteuil reside numa grande dificuldade em lidar com a frustração. A curiosidade em relação a temas relacionados com a sexualidade na infância e o intenso desejo sexual experimentado na adolescência esbarram com pesadas restrições de carácter religioso da época, que se prolongaram pelo século seguinte, até à belle époque. A religião seria, então, o mecanismo usado no Ocidente para controlo da sexualidade feminina, ao preconizar uma acentuada diferenciação de papéis e atitudes em ambos os géneros, na forma de encarar a sexualidade. As mulheres como Merteuil, Cécile ou Madame de Tourvel eram orientadas de forma a adoptar uma atitude passiva no que toca à sedução – o estigma de Eva – ao passo que o Homem é encorajado a ser activo nas suas conquistas amorosas. O que Valmont faz com o cerco que vai montando a Madame de Tourvel. Ou a Cécile. No entanto, o Visconde de Valmont age como se espera que aja um aristocrata do Ancien Régime em relação às mulheres.

Mas com Merteuil não sucede exactamente assim. Esta só consegue aceder ao prazer sexual fora das convenções – e ao poder – de uma forma velada, caso contrário não seria respeitada socialmente, nem recebida em casa das mulheres de “boas famílias”. Para Merteuil, a imagem é determinante na construção do seu estatuto, do auto conceito ou valorização pessoal e do reconhecimento por parte do meio.


Merteuil expressa um ódio violento a um mundo, mas guardando uma porção especialmente letal de veneno emocional dirigido à mulheres sem, no entanto, jamais o demonstrar: Junto o talento de um autor ao de um comediante. Merteuil é uma efabuladora, tecedora de enredos e intrigas. Uma actriz digna do grande palco que é a vida, como se pode observar na cena da pseudo-violação que envolve Prévain, um jovem oficial gabarola.


Já Valmont, como é educado para pensar que o valor de um homem se mede pelo número de mulheres que consegue seduzir ou, pelo menos, persuadir a esquecer-se do modo como foram educadas, é detentor de um ego que se sente reforçado na proporção directa ao número de mulheres que consegue destruir. Para Valmont, uma vitória suprema reside no facto de uma mulher estar disposta a perder o respeito social de que usufrui em troca de uma paixão.

Casamentos de Conveniência, Lenocínio e Proxenetismo


Os casamentos arranjados em função da manutenção do património eram uma constante num meio social onde se pretende preservar um estilo de vida abastado e onde impera o luxo e a riqueza garanta o acesso ao poder. Merteuil, sendo viúva de um homem extremamente rico trava uma acirrada batalha com os restantes herdeiros deste, frutos do primeiro casamento.
Com o objectivo de assegurar o futuro económico à filha, Madame Volanges, mãe de Cécile, planeia casar a jovem com um homem bastante mais velho, Gercourt, ignorando ter sido este amante de Merteuil. Gercourt procura uma jovem núbil, modesta e loira. E Cécile, de rosto angelical, tocadora de harpa e educada num colégio de freiras, ajusta-se como uma luva às suas pretensões.


A imposição da virgindade até a altura de casamento para que o noivo sentisse salvaguardada a legitimidade da própria descendência. Isto fazia que, paradoxalmente, as mulheres passassem a gozar de maior liberdade após o casamento, uma vez que passavam a ser alvo de menor controlo social, sobretudo por parte da família de orientação. A Madame de Merteuil, o casamento e, mais tarde, a viuvez, servem-lhe de camuflagem para viver casos extra-conjugais, fazendo os seus amantes acreditar terem sido, cada um deles, uma excepção à sua vida de “mulher fiel e recatada”.


Desde que Gercourt decide trocar Merteuil por uma virgem – Cécile de Volanges – aquela decide vingar-se do ex-amante dedicando-se, a partir de então, a corromper a jovem, contando para tal, com a ajuda de Valmont como aliado.


A forma de persuasão usada par a convencer o Visconde de Valmont a aderir ao plano, reside na adulação e na provocação, utilizando todo um manancial de tácticas de intrigas. Valmont não se mostra entusiasmado com a ideia, até Madame Volanges decidir interferir no esquema de sedução que Valmont traçara para vencer a resistência da pudica madame de Tourvel. A partir de então, o hímen de Cécile será, para ele, uma questão pessoal.


Merteuil, não hesita em recorrer a um esquema de lenocínio com o propósito de executar uma vingança, assim como à difamação, utilizando o jovem Danceny, ternamente apaixonado por Cécile. A mentira também faz parte dos seus esquemas, como quando insinua à jovem que, após o casamento com Gercourt, poderá conservar o seu preceptor como amante.


Mas o mquiavelismo de Merteuil atinge o auge de refinamento ao ridicularizar Valmont, na altura em que este se mostra relutante em colaborar nos seus planos:

Sabe, Visconde, que perdeu mais do que supõe não querendo encarregar-se dessa criança? È verdadeiramente deliciosa! Não tem carácter nem princípios. Imagine como a sua convivência será doce e fácil. Não creio que ela venha a brilhar pelo sentimento; mas tudo anuncia nela as sensações mais vivas. Sem espírito e sem finura, ela tem todavia certa falsidade natural, se se pode dizer assim, que algumas vezes a mim própria me espanta e de que ela virá a aproveitar tanto mais quanto o seu rosto oferece a imagem de candura e da ingenuidade.


Já Valmont serve-se, por sua vez, do tom melífluo, usado no discurso presente nas cartas a Madame Tourvel, recheadas de uma angélica hipocrisia, na tentativa de convencer uma mulher de hábitos de vida austeros de que ele próprio é um ser inofensivo e cheio de boas intenções, como se vê na carta XLVIII, escrita a Tourvel, usando o dorso de uma prostituta como escrivaninha:

É depois de uma noite tempestuosa e durante a qual não pude conciliar o sono; é depois de ter estado sem cessar ou na agitação de um ardor febricitante, ou no total aniquilamento de todas as faculdades da minha alma, que venho procurar junto de vós, senhora, uma calma de que tenho necessidade e da qual todavia não espero poder gozar ainda. Na verdade, a situação em que me encontro, ao escrever-vos dá-me a conhecer mais do que nunca o poder irresistível do amor. A custo consigo manter domínio suficiente sobre mim, para por alguma ordem nas minhas ideias. E desde já prevejo que não terminarei esta carta sem ser obriga do a interrompê-la. Pois quê, não poderei esperar que partilharei algum dia a perturbação que experimento neste mesmo instante?.


A Ingenuidade de Madame Tourvel é cinicamente explorada por Valmont que se regozija em fazer-lhe aflorar desejos interditos. Madame Tourvel teve uma educação rígida, de forte pendor religioso a raiar o puritanismo, o que pressupõe fortes convicções envolvendo a noção de lealdade e fidelidade conjugal, juntamente com um conceito muito vincado de solidariedade social que concretiza na ajuda aos menos favorecidos. Valmont explora simultaneamente este ingenuidade e generosidade. Por outro lado, Tourvel é demasiado educada para deixar uma carta sem resposta. Além de que não possui qualquer tipo de experiência em lidar com um predador sexual, o que a deixa sem margem de manobra, para contradizer a retórica falaciosa do vilão de Valmont.


As Ligações Perigosas é o retrato vivo de uma época e de um determinado estrato social cuja publicação, tal como já foi aflorado, causou incómodo em determinadas facções da mesma sociedade por se verem aí espelhadas.


Segundo Carlos Drummond de Andrade , “Aos 41 anos, Choderlos de Laclos solta o seu livro como quem dá um tiro. A surpresa é geral. E o desconforto também. Algumas casas fecham-se à sua visita. Esperava-se uma história licenciosa, que apenas divertisse, e ela aí está, mas sente-se que é muito mais do que isso, que o puro enredo galante se prolonga em algo de sério e, sobretudo, incómodo.


(…)
E as mulheres, que nesse livro são um prodígio de perversidade, como Madame de Merteuil, ou de tolice juvenil, como Cécile Volanges, atacam-no publicamente, embora encham Laclos de atenções como a um inimigo poderoso. O pecado não está nas palavras, que são sóbrias e, mesmo, castas (…), está na intenção do autor que nos convidou para um “
divertissement” e nos oferece um espectáculo atroz em que o mais sujo e o0 mais imperdoável de nós mesmos é captado com solércia. Depõe contra duas classes em luta, depõe contra o tempo, depõe contra a natureza humana. É um livro impossível.”


Drummond de Andrade refere, ainda, a apreciação de André Gide acerca desta obra como um livro desconcertante onde não se percebe se o autor está realmente a ironizar no prefácio ou se pretende realmente realizar uma obra em favor dos “bons costumes”. Gide parece demonstrar alguma reserva tendendo a considerá-lo medíocre quando, no final, cede ao dar razão a Madame de Rosamonde e Madame volanges – o partido dos “bons costumes” contra o verdadeiro amor e a verdadeira virtude, personificados em Tourvel, e não em Valmont ou Merteuil.

Charles Baudelaire manifestava admiração pela obra que retratava um mundo onde tudo era fingido e dissimulado.


Laclos esclarece os leitores: Não sei se Madame de Merteuil jamais existiu. Não pretendi fazer um libelo. Ela tanto pode ser francesa como pertencer a qualquer outro país. Onde quer que nasça uma mulher de sentidos activos, com um coração incapaz de amar, algum espírito e uma alma vil e cuja maldade tenha uma profundeza sem energia, aí estará Madame de Merteuil.


Carlos Drummond de Andrade contrapõe ao afirmar que As Ligações Perigosas não pintam a paixão mas o seu fingimento, exceptuando o caso de Madame de Tourvel, que atesta a sua legitimidade mesmo que clandestina:


O livro passa-se numa atmosfera de laboratório, em que se exercitam um homem ou uma mulher condenados pela sua natureza a realizar até à morte experiências de sedução. É um livro álgido, um livro triste (…) à força de dilacerarem as suas vítimas num esforço para a obtenção do inefável através da satisfação do amor-próprio, na procura de um amor que se nega a si mesmo e que se quer artificial…


Não há solidão maior do que aquela que se alimenta da destruição de outros seres; e Valmont e Madame de Merteuil são dois solitários completos, inabordáveis, petrificados. Os seus contactos sociais são apenas manejos. Incapazes de interesse a não ser por si próprios e traídos pelo mito da conquista que os devora.


Influências literárias


As intertextualidades com as Fábulas de La Fontaine e Esopo são mais do que muitas. Há inúmeras analogias com os múltiplos Lobos e Raposas que povoam as fábulas dos dois autores, personagem animais com características humanas a representar os arquétipos da vilania e da astúcia, respectivamente. Depois da publicação de As Ligações Perigosas a influência de Laclos estende-se pelo século XIX a Stendhal até chegar depois ao romance moderno de crítica social como Balzac ou Flaubert e, em Portugal, a autores como Eça de Queirós.

Um clássico indispensável em qualquer biblioteca.

Cláudia de Sousa Dias