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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, May 29, 2007

“O Sorriso de Percival” de Luísa Monteiro (Ausência)


Ana Paula Moreira, Docente da cadeira de Semiótica na Universidade do Algarve, afirma que, nesta obra, a «Autora respira ao tempo do mesmo ou “aquele que é partido pela metade”. Uma escrita que abre a porta para a intertextualidade do Desejo.»

Luísa Monteiro fala-nos, então, do abismo entre pensamento, impulso, desejo e a palavra propriamente dita, escrita ou não-dita. Ou se calhar inter-dita. A Palavra que veste a máscara, que dissimula ou altera o sentido do pensamento original, através de uma estratégia individual de auto-censura, criado inconscientemente (ou não), para não ferir o outro ou, simplesmente adequar-se ao Eu colectivo.

A estrutura da obra desdobra-se em quatro contos inspirados nos últimos momentos de vida de Manuel Teixeira Gomes, António Aleixo, Branquinho da Fonseca e de…um leitor imaginário.

Ao ler a obra fiquei agradavelmente surpreendida ao encontrar algumas crónicas de Pó d’Enraizamento como parte integrante de alguns destes contos de grande beleza, solidão e ousadia a que já nos habituou esta autora de origem minhota, com a sua prosa ácida, temperada pelo sol quente e pela suavidade morna do vento sul vindo do Norte de África.

Os quatro Percivais presentes na obra têm como denominador comum, a procura da metade perdida, do Eu que se reflecte na outra metade de um espelho partido ao meio – na infindável tarefa de encontrar no outro os estilhaços que encaixem nos seus. Que, no fundo, se resume a reunir os dois arquétipos separados – o Ying e o Yang – a metade masculina e feminina, independente do sexo biológico a que se refere.

Percival é, assim, o ser perfeito que reúne as duas metades – os dois arquétipos: masculino e feminino.

No primeiro conto introdutório – O Sorriso de Percival (um poema da metade ) -, a cargo do narrador anónimo, que veste a pele de um viúvo celibatário – um professor que se apaixona por uma aluna, que imagina quase como uma mulher saída da Bíblia, com o maço de livros à cintura como se de uma bilha de água se tratasse. Livros que matam a sede inesgotável – de conhecimento – da jovem a quem ele apelida de Líbia, fazendo lembrar um pouco o romano Catulo, pela forma como o narrador invoca a sua musa.

Destaca-se a deliciosa e terna cumplicidade dos amigos para com a solidão do professor em contraste com o violento sentimento de culpa e auto-censura por parte deste por sentir-se, de certa forma, violar a ética profissional. E também de pena, por sentir-se responsável pelo desaparecimento dos últimos resquícios de infância, na jovem.

A simbologia utilizada em cada conto daria, por si só, para escrever um volume de quatrocentas páginas, tal a profusão de metáforas, personificações, alegorias, sinestesias, encontradas na riquíssima prosa poética de Luísa Monteiro.

A mais significativa e frequente é a simbologia da sinestesia e trocadilho fonético relacionado com a palavra amora – amor a…alguém. Ou a sedução negra do olhar de um pássaro nocturno que canta antes do romper da alvorada – melros ou rouxinóis. Também o girassol é identificado com o amor/paixão que segue a poesia “como se de sol se tratasse”.

A morte crava o ferro na carne do escritor que, até ao último instante, prossegue na demanda do seu Graal – a tal outra metade.

A morte está presente sob o signo cabalístico do número quatro.

Serão, desta forma, quatro os contos que escreve.

Antes disserta, ainda, sobre a natureza do amor: aquele que considera verdadeiro, aquele que não morre –, a identidade ou o amor-próprio. O falso amor é identificado com a necessidade de posse, de apropriação, de anulação da vontade do outro. Aquele que mata e que morre. Destrutivo.

O primeiro conto do narrador-escritor, intitulado Noivos Judeus, é um canto de morte, feito em homenagem a Manuel Teixeira Gomes, no leito de morte que é fotografado pela bela Madame Berg. O quarto é o número 13. Ou seja, a antecâmara da morte – 1+3=4, o número da Morte.

Um conto que é um diálogo entre dois ex-amantes, onde impera a nostalgia.

Já no que respeita ao segundo, trata-se de um monólogo, dedicado aos amigos de Branquinho da Fonseca.

A personagem é uma espécie de dandy, transtornado não se sabe bem se pelo absinto ou pelo ópio, que fala do amor nefasto – “(…) o doce veneno que nos envelhece e nos mata”. A desesperança e a descrença na realidade do Graal. A negação do Paraíso…

Trata-se de O regresso do Pródigo onde o narrador se imagina a regressar a casa para assistir ao seu próprio funeral aproveitando para observar as reacções daqueles que se intitulam seus amigos.
Um discurso onde predomina o sentimento de amargura de um génio incompreendido, onde se nota um pesado agudo ressentimento, resultado da falta de amor. Um texto que se saboreia como um remédio amargo, embora necessário, pela crítica impiedosa mas pertinente face à indiferença.
É a estória de um potencial sibarita, que passou ao lado do vinho da vida, sem chegar a saboreá-lo, pelo ateísmo emocional que professa:

Sou viúvo de uma viúva, está a ouvir? – De uma viúva? (…) uma dessas lacrimosas, vestidas de luto que nunca ousam cortar o cabelo?

Dessas cheias de noite e de chuva, de caminhar felino e ondulante, com uma tristeza romântica, cheias de melodias e violoncelos graves no bater dos cílios?... Ah, meu amigo, essas viúvas são um luxo (…) de dia, são escorregadias e misteriosas como a noite, mas é de noite que elas revelam o corpo argênteo de lua e nos cegam com os seus relâmpagos tempestuosos de prazer…”

O escritor delira com a consciência alterada por substâncias tóxicas (ou fármacos) nos seus últimos momentos de vida…numa alucinante viagem para aquilo que ele julga ser “um túnel de luz”. Ao fundo…o Graal?

Na estória dedicada a António Aleixo Um Cão não chora, temos uma fábula canina, de ternurentos cães humanizados e de dupla visão. Ou homens dotados de visão canina – duas vezes superior à dos restantes humanos.

Aleixo, o dono de um dos cães, é também um homem partido pela metade: uma criança de olhar ensombrado pelo “tempo ranhoso da ditadura”. E, simultaneamente, um Leviathan, “enorme como as estátuas dos anjos

O amigo, é o serra-da-estrela Seba – como Sebastien Melmoth, pseudónimo de Oscar Wilde – mais outro ser dilacerado, partido pela metade.

O amigo Rafeiro está infeliz por ter feito amizade com “um homem telúrico a quem a condição social tratou de colocar na sombra o seu lado mais eloquente e sensível” – António Aleixo. Também ele de um dualismo que o torna incompleto e o impele a uma constante procura da metade em falta: “submisso e amargo” e, ao mesmo tempo, de alma “soberana e primaveril”. Para que a fatalidade se abate porque no seu país “o palco estava atulhado de um público infame e sem alma que nunca conhecera a terna máxima helénica de que «o início do saber é o amor»”.

O cão chora a morte do dono sob o aguilhão da saudade. O abandono do cão pelo dono que a terra Natal despreza…

O último conto – In delirium – é dedicado aos leitores da última estória de amores dilacerados.

Uma jovem de beleza não convencional, andrógina, de traços masculinos e femininos procura a metade que a completa,

Um escritor com falta de inpiração procura uma personagem fora do comum: encontra uma narradora com forte personalidade. A paixão torna-se inevitável como uma possessão.

Passa, então a contar as suas fantasias sexuais a Úrsula – o seu Eu feminino – amor, sexo, proibido, permitido, implícito, explícito, rompendo convenções como se de hímenes se tratasse – num registo que torna LM muito próxima de Maria Gabriella Llansol.

A dureza nihilista daqueles que tudo procuram saber da dor e do sofrimento, sem nunca o terem sentido na pele, numa clara alusão às guerras do fim do século como os Balcãs e o Iraque. Onde a principal vítima sacrificial é o Amor. Aquele que não morre. Ou não devia morrer. Mas que é constante e diariamente aniquilado pelo ódio, e o desejo de domínio, de Poder.

O leitor é, desta forma, desafiado a espicaçar o espírito crítico de forma a evitar a morte da consciência, pela humanização das imagens de horror, diariamente debitadas pelos media.

A História repete-se, num contínuo desenvolvimento em espiral, seguindo um padrão sequencial como no crescimento das plantas (lembram-se da sequência Fibonacci?)…

Porque “escrever é secar desertos (síntese evidenciada pela caricatura das situações ou personagens) com o único fundamento da chuva”. Ou seja, a Mudança.

Uma utopia que vale a pena perseguir.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, May 22, 2007

“Filhos e Amantes” de D.H. Lawrence (Dom Quixote)


Esta edição, publicada pela Dom Quixote em 1994, reproduz integralmente o manuscrito final deixado pelo Autor, incluindo as revisões finais, feitas pelo próprio Lawrence.

Anteriormente, as versões que chegavam às nossas mãos baseavam-se unicamente naquela que tinha sido publicada pela primeira vez, em 1913, reduzida em mais de cem páginas e abusivamente censurada pelo editor, cujo sentido de pudor excessivo, aliado ao sentido comercial que ditava as normas de publicação na época o levaram a efectuar cortes que retiraram grande parte da qualidade à obra destituindo-a inclusive do sentido ou intenção original do autor: o retrato de uma família que sofre as consequências de um casamento disfuncional e consequente repercussão no crescimento e desenvolvimento dos filhos. Uma redução drástica do capítulo que descreve a juventude de William, o filho mais velho de Mrs. Morel, faz com que o plural, utilizado no título da obra deixe, praticamente de fazer sentido.

As dificuldades financeiras de Lawrence impuseram, na altura, a aceitação das condições do editor.

O livro Filhos e Amantes reveste-se de um carácter autobiográfico, numa homenagem à mãe do Autor, ao reproduzir as divergências, conflitos e crises conjugais por que passaram os pais de Lawrence – um mineiro e “uma mulher de grandes ambições” (nota do editor) – a experiência do primeiro emprego, numa fábrica de artigos ortopédicos, o amor absoluto e incondicional pela mãe, a par de uma identificação total na forma de pensar, e no ódio dirigido à figura paterna – uma projecção perfeita do complexo de Édipo de complexo de Jocasta.

D.H. Lawrence pretendia introduzir um tipo de escrita que rompesse radicalmente com a forma de escrever tradicional na época, dotando os seus romances de uma profundidade psicológica nunca antes vista. Nota-se a influência da escola psicanalítica – o modelo teórico de Freud e Jung – e da escola behaviourista na construção do carácter de Paul, a personagem central. Há também, na vida amorosa desta personagem, algumas semelhanças com o percurso do Autor que, tal como Paul, se apaixona por uma mulher casada.

O Casamento dos Morel

O desenvolvimento do romance propriamente dito é construído a partir do casamento disfuncional do casal Morel, cuja incompatibilidade de caracteres reside numa total falta de afinidades. Após o esfriar da paixão inicial, motivada por uma forte atracção pela diferença, a ausência de uma base comum é agravada por educações opostas, que se manifestam numa escala de valores e prioridades que os tornam incompatíveis, levando o casamento a entrar em declínio.

A pulsão que impele Mrs. Morel a um esforço de aperfeiçoamento contínuo, a par da valorização do trabalho e da instrução, entra em choque com o temperamento bon vivant do marido, cujo brilho e ousadia iniciais tanto a atraíram. Na realidade, cada qual tenta moldar o outro à sua própria forma de ser, desencadeando reacções negativas de parte a parte, gerando os clássicos problemas de violência doméstica, alcoolismo, bem como todo o tipo de agressividade, tanto física como psicológica.

Nesta fase do romance, Lawrence toca num ponto interessante para a época – início do século XX – a vulnerabilidade da situação da Mulher, que ele projecta na figura da mãe/Mrs.Morel, a qual só não se divorcia para não ficar numa situação de indigência.

A insidiosa insatisfação do marido – Walter Morel – motivada pela austeridade e alguma altivez da esposa levam-no a procurar outras companhias e distracções: um peddy-papper diário pelas tabernas das redondezas. O egoísmo e desejo de domínio frustrado – pela capacidade intelectual da mulher – de Morel pai, fazem despoletar reacções violentas. Ao mesmo tempo, o mineiro tenta convencer-se não ser, na realidade, ele o culpado da violência que desfere na mulher, facto que o impede de mudar.

Consequentemente, Mrs. Morel acaba por transferir o afecto do marido para os filhos, quase amantes, ao mesmo tempo que entra em competição de forma inconsciente, com as respectivas namoradas, num quase que excesso de zelo e ciúme que, pela sua dimensão quase patológica, se pode classificar de complexo de Jocasta.

William, o primeiro filho

De uma forma geral, a vida de Mrs. Morel passa a ser orientada por uma luta contínua por uma vida melhor para os filhos, ao apostar fortemente na sua instrução com vista a uma ascensão social pela dedicação ao trabalho.

Inicialmente é William quem obtém o lugar de destaque. Belo como um viking, inteligente, amante da vida e dos prazeres, o jovem primogénito dos Morel é ambicioso. O desejo de enriquecer e, simultaneamente, de possuir uma mulher que desperte a inveja nos outros homens acaba por sobrecarregá-lo, dispersando a sua atenção. A debilitação progressiva, fruto do excesso de trabalho, acaba por minar a sua resistência física.

Em relação a Lilly, a deslumbrante namorada de William, é incapaz de ofuscar o brilho e a inteligência de Mrs. Morel, devido à sua frivolidade.

Paul

Enquanto William é um jovem forte, activo e alegre que chama a atenção para onde quer que vá, Paul é fisicamente frágil. E também depressivo, ao ostentar uma espécie de tristeza, dir-se-ia que congénita, e que lhe dá um ar discreto e apagado. O olhar é no entanto, atento, perscrutador, absorvendo tudo aquilo em que se detém.

Para William, culto, dinâmico, de inteligência rápida e activa, o factor económico é a mola que impulsiona tanto as suas actividades profissionais como a construção da rede de contactos pessoal. Dir-se-ia inspirado pelo deus Hermes.

Já Paul tem uma personalidade mais reflexiva, contemplativa, que se exprime numa vocação artística que tem de conjugar com um emprego numa actividade que não aprecia muito, mas à qual tem de se adaptar para sobreviver, tal como Lawrence, no princípio da carreira, um postura que faz com que se aproxime do arquétipo do deus Apolo.

Paul, a mãe e as mulheres

A relação de Paul com as mulheres difere um pouco da sua relação com as pessoas em geral. Sendo, normalmente, uma pessoa sociável, sem dificuldades em estabelecer laços de camaradagem com os colegas de trabalho ou com os rudes irmãos de Miriam, até à rica e culta Miss Jordan – a filha do patrão, que aprecia, incentiva, apoia a sua veia artística –, Paul é alguém socialmente adaptável.

Culto como o irmão, Paul desenvolve, ainda, um certo agnosticismo que se traduz numa mente pragmática, de acentuado espírito crítico a que se junta um certo positivismo científico que fazem dele uma pessoa fora do seu tempo.

Paul Morel é a incarnação da mentalidade do meio intelectual dos anos 10, que se consolida dissemina e desenvolve nas duas décadas seguintes. É no inicio do séculoXX que se assiste às primeiras transformações sociais como resultado do movimento da sufragistas da cepa de Virginia Woolf, na luta pela defesa dos direitos das mulheres e da igualdade de oportunidades no trabalho. È, também, nesta época que se verifica o boom de um considerável número de mulheres ligadas às artes, desde Sarah Bernhardt, Virginia Woolf, Camille Claudel e, cerca de década e meia mais tarde, Georgia O’Keef, Tamara Lempicka e Frida Kahlo.

No que toca ao amor, para Paul as coisas ficam um pouco mais complicadas. Principalmente porque, para ele, a mãe é sempre superior a todas as mulheres. Não tem rival. Tanto na beleza como na inteligência. Os dois filhos mais velhos habituam-se, desde o berço, a terem os pensamentos peneirados pelo crivo da mãe que demonstra ser, em diversos momentos da narrativa, uma excelente psicóloga, sobretudo quando se trata de avaliar as namoradas dos filhos.

Com Miriam, Paul vive a experiência do primeiro amor, um amor adolescente. Miriam é inteligente, mas pouco perspicaz e pouco atenta às necessidades dos outros, em geral. É dura, agarrada a convenções, sem chama. É também muito pouco sociável, o oposto de Paul. Moldada por uma educação castradora, onde a mãe excerce uma forte influência, Miriam tem uma vida quase que conventual: «...sempre se vira privada de uma vida normal pelo seu próprio fervor religioso, que fazia o mundo parecer-lhe um jardim de convento onde, o pecado e o conhecimento, ou não existiam, ou eram, pelo contrário, algo de cruel e frio».
Por influência da mãe, Miriam desenvolve um temperamento submisso, que faz emergir a irascibilidade de Paul. Por outro lado, ao entregar-se a Paul, Miriam fá-lo como uma espécie de sacrifício, levando-o a autodesprezar-se e ao esfriar da paixão. Miriam é a casta Diana ou a Arthemis dos Gregos.
Ela é, além de tudo, preconceituosa, sobretudo na forma como rotula as pessoas. Uma característica manifesta no desdém mostrado para com a insubmissa e feminista irmã Agathe, a professora primária que não tolera o comportamento rude dos irmãos, a que classifica de mundana. E também para com Clara, a quem considera inferior a si própria, apesar de ser sua amiga.

No entanto, Miriam representa um papel importante na vida de Paul. Ela é a responsável pelo desenvolvimento do discernimento, do espírito crítico e da dúvida.
Da mãe, Paul recebe o estímulo e a autoconfiança para produzir e desenvolver a sua arte, mas Miriam é a sua tomada de consciência do curso desse desenvolvimento.

Ambas competem, no entanto, pelo afecto de Paul. Para a mãe, Miriam é uma «daquelas que suga a alma de um homem até ele ficar vazio».

Por sua vez, Miriam é extremamente possessiva e sufocante «Quando estavam acompanhados por outras pessoas ele parecia não lhe pertencer (...) só se sentia reviver quando ele vinha ao seu encontro, sem esse outro eu de casta inferior». Miriam apaixona-se pela faceta de artista de Paul, pelo seu lado solitário, que o leva a isolar-se e a concentrar-se no seu trabalho, inspirado, sobretudo, na Natureza, a única amiga de Miriam.

Paul sabe que Miriam detém a melhor parte de si. O problema reside na sua incapacidade de aceitar o restante. Paul ama, na realidade, Miriam mas vê-a como uma balança desequilibrada devido à falta de confiança em si mesma.

Clara, a rival de Miriam, é uma mulher sensual e misteriosa, apesar de egoísta e pouco humana.

Ligada ao movimento sufragista na defesa dos direitos das mulheres, Clara mostra-se desdenhosa para com os homens – o que, por si só, chama a atenção de Paul. Por outro lado, sente-se superior em relação às outras mulheres, nomeadamente às colegas de trabalho.

É uma mulher extremamente centrada em si mesma, que faz as suas escolhas somente em função do seu bem-estar. Clara é de origem humilde, casada com um homem belo mas rude, possessivo e autoritário.

Para Paul, Clara e a projecção do ideal de beleza feminina que agrada ao seu lado artístico – uma Vénus de Milo, alta, de cabelo castanho-dourado, olhos esverdeados, pele de textura lisa de uma morna tonalidade dourada. E é, tal como Vénus, casada com um ferreiro, um rude Vulcano. E que decide tomar como amante um homem de extrema sensibilidade como Apolo, o deus das artes, o senhor da luz.

O apurado sentido estético deste Apolo/ Paul, sente-se inequivocamente atraído pela beleza física e sensualidade primitiva desta Vénus /Clara.

Ao ser apresentada à família, Clara mostra-se suficientemente inteligente para não entrar em competição com Ms. Morel. A sua capacidade de interagir com a família sem se impor e sem usar de subserviência facilita-lhe a integração.

No entanto, nota-se, desde o início, que a relação entre Clara e Paul não tem futuro. É uma relação baseada exclusivamente na atracção física e nas carências momentâneas de cada um.

Paul acha Clara misteriosa e reservada. Uma mulher em quem não confia, uma vez que só se dá a conhecer superficialmente.

Paul «(…) por vezes, apanhava-a a olhar para ele à sucapa, com um olhar sombrio, quase furtivo e inquiridor, que o deixava inquieto». «Os seus olhos encontravam-se muitas vezes mas, nessas alturas, estavam como que velados, nada mostrando…» (vide pag. 372).
Tal como Miriam, Clara não aceita Paul tal como ele é: quer mudá-lo para se sentir segura. Este é um relacionamento que acaba por apresentar quase as mesmas fissuras do anterior – a insegurança do elemento feminino.

O complexo de inferioridade de Clara e o seu desejo de domínio fazem com que ela não suporte a frieza objectiva de um olhar crítico sobre si mesma.

«Clara fitou o amante de perto. Havia nele qualquer coisa que ela detestava, uma certa atitude crítica e desprendida em relação a ela, uma frieza que fazia a sua alma de mulher endurecer».

Para Paul «Não era ela quem conseguia aquietar-lhe a alma. Ele quisera que ela fosse algo que ela jamais poderia ser».

Esse algo seria uma espécie de guia espiritual e afectivo como Mrs. Morel – uma espécie de Deméter fundida em Athena. Esse é o elemento que falta a Clara.

A doença da mãe é o golpe fatal que acaba por dar o tiro de misericórdia no romance. Paul deixa de dar atenção a Clara concentrando-se apenas na doença e tratamento da mãe. A doença de Mrs. Morel acaba por afectar o quotidiano não de Paul mas de todos os filhos: Annie (para casa de quem vai viver na fase mais dura do tratamento) e do próprio Arthur – o belo e marcial filho mais novo. A mãe foi o esteio emocional e o porto seguro durante toda a infância e juventude dos jovens Morel que, já na idade adulta, carregam ainda as cicatrizes do casamento disfuncional dos pais: «…guardavam um recanto de ansiedade dentro dos seus corações e uma tristeza nos olhos que conservaram durante toda a vida».

Paul é o mais afectado. O sofrimento da mãe dilacera-o e gera-lhe um destrutivo sentimento de angústia e de impotência.

Por outro lado, a dor desperta em Paul o lado generoso da sua personalidade, já implícito nas cores que coloca nas suas telas. E na solidariedade demonstrada para com o marido de Clara, ajudando-o a sair do abismo. Uma forma de compensar o sentimento de inutilidade por não ter conseguido salvar a mãe.

No final, apercebemo-nos que nem Miriam nem Clara eram capazes de se aperceberem do ser humano escondido atrás da aparente frivolidade de Paul.

O sentimento de desamparo predomina a par da esperança. Ou desesperança.

Todos os caminhos estão em aberto.

Mas a escolha é feita no meio da total solidão.


A Escrita de Lawrence em Filhos e Amantes

A adjectivação utilizada pelo Autor origina alguns dos mais belos momentos do romance está, quase sempre, relacionada com o elemento Fogo – «incandescente», «ardente», «clarão» -, no início do romance; Lawrence aplica alguns desses adjectivos a Morel Pai, cujo brilho explica a atracção de Mrs Morel por alguém tão diferente de si mesma.

São, igualmente, utilizadas tonalidades como o vermelho, o carmim, o laranja e o dourado, também relacionadas com o mesmo elemento. Trata-se do elemento mais primitivo e imprevisível, directamente ligado à paixão. Porque a paixão é aquilo que move tanto o Autor como o protagonista.

Os momentos descritivos estão directamente ligados à actividade artística desenvolvida por Paul – a pintura – pela profusão de sensações visuais, com o predomínio das já referidas quentes, as tonalidades do Fogo, denunciando um temperamento marcadamente sensual.

«O crepúsculo envolveu-os como fumo, não conseguindo, todavia, extinguir o fulgor das rosas».

Nesse mesmo entardecer, Paul transfere para a paisagem aquilo que sente por Miriam:

« – As nuvens estão a arder

Ou, já na voz do narrador:

«O ouro abrasou-se de vermelho, como a dor no auge da intensidade e logo o escarlate passou a rosa e o rosa a carmim, até a paixão esmorecer (…) e o mundo inteiro se tornar cinzento-escuro».

A descrição da cena debaixo da cerejeira com Miriam é de uma acentuadíssima conotação erótica, denunciando o violento desejo sexual de Paul, onde as cerejas são conotadas com os órgãos genitais que se escondem por debaixo das folhas a fazerem lembrar saias (vide pag.399).

O mesmo acontece quando Paul vai passear com Clara, à beira-rio, num caminho íngreme e escorregadio, numa evidente alusão à vagina de Clara:

«O caminho, vermelho e molhado, pegajoso devido às folhas caídas, subia pela margem íngreme por entre a relva».

Apesar de o Autor omitir o acto sexual propriamente dito, todo ele está contido, nas palavras aplicadas sobretudo a elementos vegetais e paisagísticos por razões relacionadas com a censura. E também com a estética.

«Quando ela se levantou, ele viu as raízes negras e molhadas das faias salpicadas de uma miríade de pétalas de cravo escarlates, como pétalas de sangue. E do peito dela, jorravam mais pétalas vermelhas às golfadas, escorrendo pelo vestido até aos pés.»

Também está patente o desejo de uma nova vida, de um estágio superior de satisfação na pág. 488 onde vemos o oceano ligado ao sol-nascente como máxima expressão de liberdade e de acesso a novos mundos, novas formas de conhecimento e mistérios por desvendar.

«O oceano era uma faixa negra, debruada a branco. O carmim crestava-se de laranja, o laranja em ouro-velho e o sol subia no horizonte em dourado fulgor, lançando sobre as ondas jorros de fogo que batiam nelas e saltavam, como se alguém, ao caminhar, entornasse golfadas de luz do balde que transportava.»


Uma obra recheada de beleza, sofrimento, amor e morte.

A história de uma alma apaixonada pela vida.

Onde se canta o amor para além das grilhetas da posse.

Sublime.


Cláudia de Sousa Dias

Saturday, May 12, 2007

“Em Directo do Calvário” (O Evangelho segundo Gore Vidal) de Gore Vidal (Dom Quixote)


Uma vez que a obra em questão não se trata de um ensaio, o subtítulo deixa-nos, por si só, adivinhar o tema como sendo uma sátira social, onde se cruzam e comparam valores e estruturas socio-económicas entre duas épocas cronologicamente separadas por dois milénios de distância no tempo, se é que ele existe...

A revista
Newsweek considerou Em directo do Calvário como

«A mais escandalosa novela de Vidal…uma sistemática subversão de todos os valores excepto, evidentemente, o da inteligência, o da perspicácia e o da imaginação».

Dados biográficos:

Gore Vidal nasceu em 1925 e escreveu o seu primeiro romance quando se encontrava no estrangeiro, aquando da Segunda Guerra Mundial. Contava, então, dezanove anos.

Escreveu vários romances que se tornaram best-sellers ao longo de quatro décadas. Foi activista político, candidato pelo Partido Democrata na região norte do estado de Nova Iorque, onde obteve mais votos do que qualquer outro democrata em mais de meio século.

Durante o último quartel do século XX, abraçou a tarefa de contar a história dos estados Unidos, através das experiências vividas por uma família (Nota do Editor).

Fortemente elogiado por nomes como Gabriel García Márquez ou Ítalo Calvino, Gore Vidal obtém, ainda, em 1982, o Prémio Nacional de Crítica Literária, com a seguinte menção: «A tradição norte-americana do saber independente, motivado pela curiosidade é mantida viva pelo espírito e pelo grande poder de expressão do cristianismo em Gore Vidal».

A trama

Num extraordinário golpe de ousadia e um nível de criatividade impensável e sem precedentes, Gore Vidal transporta os leitores de Em Directo do Calvário para uma alucinante viagem no tempo, utilizando o método do teletransporte até ao século primeiro da era Cristã – época da fundação do cristianismo na Europa.

A possibilidade de colocar alguém que vive no dealbar do terceiro milénio, período crucial, que se manifesta num ponto de viragem da História não só em termos geopolíticos, mas também no âmbito do desenvolvimento tecnológico e científico que permitem alterar, de forma significativa, o passado e o presente. O que se repercute no futuro, acabando por desencadear consequências devastadoras – por exemplo, um vírus no computador que começa a efectuar alterações e a destruir os evangelhos e a alterar a História.

O protagonista é um produtor de uma importante cadeia de televisão norte-americana que pretende transmitir a crucificação em directo do Calvário.

Mas, ao efectuar a regressão a uma época passada, ele começa por contactar, juntamente com a sua equipe técnica, o apóstolo Paulo e o seu discípulo Timóteo, que viveram alguns anos depois da ocorrência da Crucificação propriamente dita e que mantêm uma relação, no mínimo, inusitada. Timóteo, de aspecto helénico e beleza alexandrina, não deixa ninguém indiferente, apesar do materialismo sibarita que rege a sua conduta, mesmo após abraçar, nomeado por Paulo, a sua função de bispo cristão. Já Paulo é o calculismo em pessoa que gere os donativos à Igreja com o talento para a usura de um típico banqueiro judeu.

A que se junta o seu talento como orador e capacidades histriónicas para conseguir angariar novos fiéis, a fazer lembrar alguns líderes evangélicos dos nossos dias...

O sentido crítico, a pertinência da análise comparativa da política, da economia e do tecido social, de duas civilizações tão díspares como as de Roma e da Judeia, conferem um novo olhar, uma nova perspectiva, impregnada de um realismo nu e cru, quase que forçam a uma visão mais ampla do desenvolvimento da História da Europa e do Médio Oriente, ao longo dos dois últimos milénios.

A luta pelas audiências entre duas cadeias de televisão através da disputa pela exclusividade da filmagem de Em Directo do Calvário, leva à tentação irresistível de interferir no curso do rio da História e alterar, de forma radical, o rumo dos acontecimentos…

A cena do jardim de Getsémani adquire, então contornos impensáveis, de uma audácia sem limites, onde a principal personagem dos Evangelhos revela algumas facetas completamente desconhecidas da sua personalidade…

A verdade é forjada por um Lúcifer, vindo da nossa era, de forma a lançar a confusão, a dissimulação e a distorção dos factos, ao construir uma verdade aparente, apoteótica, dissimulada à velocidade da luz através de uma pequena caixa quadrada: a televisão.

O resultado reflecte-se no desaparecimento dos documentos originais e na alteração dos textos devido a um vírus informático, colocado propositadamente por alguém com intenções obscuras, na unidade central de processamento de uma rede de computadores. As consequências mais imediatas são a insegurança crescente no planeta, em pleno século XXI, pela alimentação constante de posições extremistas a antagónicas entre duas formas opostas de estar no mundo: o laicismo e a teocracia.

Em Directo do Calvário acaba por ser, na realidade, uma fortíssima crítica implícita ao Partido Republicano e ao apoio dos EUA ao sionismo que, por vezes, leva à tomada de decisões políticas que aumentam a clivagem entre Oriente e Ocidente, colocando em risco a segurança do Planeta.

A análise de Vidal é fria, crua e sem qualquer apego a valores civilizacionais. A escrita é marcadamente irónica, terrena, cheia de sarcasmo, de uma virilidade destituída de devaneios e conflitos existenciais, denotando uma mente de espírito prático, sem vestígios de ambição de atingir a perfeição espiritual.

Vidal utiliza abundantemente o vernáculo na escrita, com a intenção de desferir uma estocada definitiva no véu da ignorância nas massas ideologicamente dependentes de gurus que lançam o conflito com o único objectivo de dividir para reinar.

O cinismo nihilista aplicado à Antiguidade, com o qual o Autor constrói a caracterização de personagens como Nero, Petroneo, Timóteo ou Paulo só se pode comparar com a forma virulenta com que tece as suas críticas à sociedade mediatizada dos tempos modernos.

Um romance onde a inteligência, o pensamento critico e, nas entrelinhas, a moderação ideológica, são os deuses supremos a serem colocados no pedestal do templo que é o cérebro humano, de forma a tornar possível a coexistência a nível global.

Um livro apelativo, porque estimulante do pensamento, da capacidade de raciocínio da Dúvida.

Incómodo por chocar com os mais profundos dogmas e ideias pré-concebidas.

E, por isso, de leitura compulsiva e indispensável aos amantes do saber.


Cláudia de Sousa Dias


Cláudia Sousa Dias

Saturday, May 05, 2007

“A Última Tentação de Cristo” de Nikos Kazantzakis (Rocco; Círculo de Leitores)


«A minha maior dor e a origem de todas as minhas alegrias e tristezas tem sido, desde a minha juventude, a incessante e implacável luta entre o espírito e a carne.

Existem, dentro de mim, as secretas e imemoriais forças do Demónio, humano e pré-humano; também moram dentro de mim, as forças humanas e pré-humanas, de Deus - e a minha alma é a arena onde se encontraram e combateram estes dois exércitos.

(…) Todo o homem participa da natureza divina tanto no seu espírito como na sua carne. É essa a razão porque o mistério de Cristo não é, simplesmente, um mistério em relação a um credo específico: é universal.


Este livro não é uma biografia; é a confissão de todo o homem que luta. Ao publicá-lo eu cumpri o meu dever; o dever de uma pessoa que muito lutou e a quem a vida trouxe muitas amarguras e muitas esperanças. Estou certo que todo o homem livre que ler este livro, tão cheio de amor (…) há-de, mais do que nunca, amar a Cristo».

Nikos Kazantzakis


Ao escolher este livro, juntamente com o filme de Scorcese, para apresentar a segunda sessão do Cineliterário, no passado dia 24 de Abril de 2007, no Auditório da Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, pensei na proximidade da data de comemoração da Páscoa, ocorrida poucas semanas antes, a juntar à pertinência das novas descobertas arqueológicas que vêm expor a dimensão humana da figura central do cristianismo. Uma faceta que é largamente explorada no romance de NK, em meados dos século XX.

Mas, ao reler a obra, cerca de quinze anos após a sua reedição em Portugal pelo Círculo de Leitores – uma versão reduzida, lapidada por alguns cortes, na altura em que era exibido o filme de Scorcese nas principais salas de cinema do País –, reparei que se trata de um hino à liberdade de expressão, acção e pensamento. E, por isso, uma obra mais do que adequada para ser apresentada na véspera do 25 de Abril. A obra de -um escritor que viu o seu livro censurado, colocado no Índex.

Um romance que lhe valeu a excomunhão.

A dimensão psicológica

A construção da dimensão psicológica da personagem Jesus Cristo o este dualismo presente na mente do Autor, que atribui ao seu Cristo uma estrutura mental inspirada no modelo de Carl Jung e na respectiva Teoria dos Arquétipos, ou seja, acerca da dualidade da alma humana, onde o Bem e o Mal, a Verdade e a Mentira, a Luz e as Trevas em conflito permanente. Consequentemente, nenhum ser humano conseguirá possuir uma estrutura mental representada por um arquétipo – modelo ou forma – puro. Nem mesmo o próprio Cristo.


Da mesma forma, estão também presentes na estrutura mental do Cristo kazantzakiano, o modelo de estruturação dos diferentes níveis de consciência de Freud o conflito entre o princípio do prazer e (id) e o princípio da realidade (ego) e também do dever, representado pela pressão social ( super-ego) de cuja máxima expressão é o zelota Judas Iscariotes.

Desta forma, mergulhamos na mente de um Cristo torturado pelo conflito entre a matéria e o espírito, no qual o trauma desencadeado pelo recalcamento leva, logo no primeiro capítulo, a que tenha uma série de sinistros sonhos que, em tudo fazem lembrar O Inferno de Dante – um escritor que exerceu bastante influência em Kazantzakis – ou um quadro do pintor alemão Hyeronimous Bosch.

É aqui que reside a semente que será o móbil da sua conduta futura à medida que vão moldando as suas convicções e objectivos: a transformação progressiva da matéria (carne) em espírito, fusão com a Divindade. Uma postura que o coloca muito próximo do Budismo (Buda é outra das grandes figuras inspiradoras do Autor).

No entanto, para as mentes mais conservadoras, habituadas ao Cristo dos Evangelhos e à imagem transmitida por Hollywood de um ser angélico, perfeito e de conduta irrepreensível, o livro poderá constituir um choque – sobretudo nos primeiros capítulos, em virtude da personalidade algo esquizóide, dominada por alucinações visuais e auditivas e uma sensação permanente de medo/terror pânico, devido à sensação constante de estar a ser perseguido. Este é um dos aspectos do romance que desencadeou algumas reacções negativas por parte das facções mais conservadoras do cristianismo.

Personagens

Nenhuma das personagens de A Última Tentação de Cristo está caracterizada da forma tradicional. A começar pelos dois protagonistas: Jesus e Judas Iscariotes. Assistimos a uma quase que inversão total de papéis onde Judas é a personalidade dominante: o zelota o que exorta à guerra e á luta pela libertação de Israel das garras da Águia Romana; Judas e Barrabás pertencem à mesma facção fundamentalista, ao conceber deus como israelita e Israel como “o povo eleito”,não havendo, no coração de Jeová ou na Lei de Moisés, ligar para o gentio, mesmo convertido. Nota-se uma intenção, senão expansionista, pelo menos um desejo de hegemonia da raça judaica em relação aos outros povos, o que desencadeia, necessariamente, um choque de culturas ou, neste caso, entre civilizações. Sobretudo em relação àquela que, na época referida, está em plena fase de expansão e disseminação da sua própria cultura: Roma.

Judas e Barrabás, como zelotas convictos, pretendem a expulsão do Romanos, que sobrecarregam os descendentes de Abraão com impostos.

Jesus, por seu lado, tem uma personalidade mutável, ou seja, não é uma personagem plana, transformando-se, à medida que a trama se desenvolve: desde a brandura inicial, ao professar o Amor – que o aproxima de Sidhartha ou Gandhi – à personagem rude, aguerrida, que regressa temperada pelo fogo após o período de retiro no deserto – um homem irascível, dado a acessos de fúria, que movimenta multidões. Atitudes que o colocam na mira da fúria vingadora dos fariseus ao mesmo tempo que despertam o receio de César. Aqui, a conduta de Jesus aproxima-se, um pouco, da do profeta Maomé, cuja exortação à luta pela liberdade e contra a exploração do capital, os zelotas confundem com guerra santa.

Quanto aos restantes apóstolos, todos, com excepção de Judas, ocupam posições periféricas. Pedro personifica o Medo, impulso que o obriga a agarrar-se a tudo o que é sólido, a procurar refúgio; André, a fidelidade; João, a doçura. Mas um dos principais golpes de audácia do Autor tem a ver com a encenação da falsa traição, que se traduz no acordo secreto entre Jesus e Judas, que decidem, em conjunto, simular uma divergência para cumprir um plano: um sacrifício cujo objectivo será o de chamar a atenção das massas face ao domínio Romano e à ditadura exercida pelos sacerdotes fariseus. N.K. converte, desta forma, o maior vilão da história num herói incompreendido. Outra das farpas apontadas à religião institucionalizada, contidas no livro, têm a ver com a forma como foram, provavelmente, escritos os evangelhos: Mateus, encarregue de registar os factos tal e qual como aconteceram “esquece-se”, por vezes, de mencionar alguns detalhes. E, por vezes, acrescenta alguns pormenores, com o objectivo de dotar os seus escritos de um pouco de “colorido” de forma a poder maravilhar os ouvintes e cativá-los mais facilmente – uma questão de marketing. – por exemplo: o milagre do “caminhar sobre as águas” tratar-se, na realidade, de um sonho de Pedro. Quando Mateus é confrontado e acusado por Cristo de escrever mentiras, este justifica-se afirmando, simplesmente, que é o Anjo quem lhe segreda as palavras que deve escrever...

Um episódio que pode muito bem ter inspirado Salman Rushdie ao escrever Os Versículos Satânicos...

Também alvo de forte polémica é o confronto com Paulo, que ocorre durante o sonho enviado por Lúcifer, durante a fracção de segundos que em que se dá o desmaio de Jesus, pouco antes de morrer. No sonho, é Paulo quem incentiva a execução de Madalena – o primeiro grande amor de Jesus e sua primeira esposa durante o referido sonho – , por esta representar aquilo que ele tem de humano. O confronto entre os dois é brutal. Mas é Paulo quem vence e quem acaba por dar à humanidade o Messias de que necessita...aquele que lhes dá a esperança de uma vida melhor, mesmo que depois da morte...Para ele Verdade e Mentira, tornam-se irrelevantes, mediante a necessidade social de um super-homem divinizado. Ou de um deus incarnado num homem. Mais uma vez, a influência do budismo através da teoria da reencarnação que aparece nas entrelinhas, com algumas modificações...do budismo, o Autor retira, também, o animismo, isto é, a crença de que todos os seres vivos possuem uma alma.

Influências Ideológicas

A pincelada do marxismo/leninismo está aqui presente nas entrelinhas quando analisamos as motivações das personagens. O Autor foi, durante alguns anos, influenciado por esta corrente ideológica – até aos anos 30 - , embora, na altura em que escreveu o romance, já se tivesse afastado dos regimes socialistas de inspiração bolchevique. O socialismo em A última Tentação de Cristo está presente na homenagem que faz ao homem simples e às necessidades das classes trabalhadoras.

Neste aspecto, o Autor identifica-se, nitidamente, com o estandarte ideológico levado a cabo por Cristo há mais de dois mil anos. Nikos Kazantzakis experimentou o idílio da vida doméstica de casado, versus a necessidade que o impelia para a luta por um ideal: a libertação da Grécia, face à ocupação turca no início do século XX. O Autor levou também durante algum tempo, uma vida ascética, retirado num convento, nas montanhas na Grécia – o mosteiro de que fala na obra situa-se, realmente, na Grécia, transpondo a experiência passada no território grego para a Palestina.

Está também patente a influência de Nietzsche, sobretudo na construção da personagem Jesus Cristo. A edificação de um super-homem, cujo principal móbil de actuação se prende com a libertação das grilhetas não só ideológicas, mas também sociais, políticas e económicas. Também no aspecto mais intimista, o Cristo de Kazantzakis procura libertar-se de tudo aquilo que lhe limita a liberdade de acção. O prazer, o medo da dor, o medo da morte. Para ele só o homem que não tem nada a perder é que poderá usufruir da liberdade absoluta: “livre é o homem que não tem nada a perder, não importando se esta liberdade absoluta é ou não uma utopia.

Por último, a figura de Odisseu, o Ulisses de Homero, serve também de inspiração para a construção de um Cristo cujo cuja necessidade de peregrinação é tão imperiosa como a mão invisível que empurra o vento do deserto, andarilho e incompatível com a vida sedentária.

A última Tentação sofrida por Jesus, já crucificado, dá-se segundos antes da sua morte, num sonho enviado por Satanás, durante o qual, Cristo, tem a oportunidade de viver a vida que deixou para trás, de usufruir daquilo que não escolheu, guiado pela mão de um lindíssimo, cândido e luminosíssimo Anjo da Guarda...Mas, ao regressar à realidade, o Super-Homem ou Homem Divinizado de inspiração Nietzschiana congratula-se pela escolha que fez: a luta contra a tentação do caminho mais fácil e o abraçar a oposição a toda e qualquer forma de tirania...

A linguagem

A linguagem poética de N.K. transforma A Última Tentação de Cristo num tesouro literário de rara beleza, uma jóia lapidada pelo uso do grego demótico , isto é, num dialecto usado pelos camponeses do interior, cuja riqueza e pluralidade de significações se perde um pouco com a tradução. Salvam-se, sobretudo, na tradução para a língua portuguesa, as metáforas utilizadas, a beleza da adjectivação, embora grande parte das sinestesias utilizadas desapareçam com a passagem para o português (nota do editor).

A carga alegórica e simbólica atribuída às aves que são mencionadas no texto – desde o corvo à andorinha, passando pelo rouxinóis e pela pomba têm tanto de bíblico como de encanto poético nas personificações utilizadas.

Apesar de explorar a origem de alguns traços culturais emanados da tradição judaica, a escrita de Kazantzakis é marcadamente helénica, como podemos verificar pela constantes referências a Caronte (o barqueiro que transporta os mortos para o Hades através do rio Estige) e ao Hades (o deus dos Infernos, na mitologia Grega).

Por todas estas razões, torna-se pertinente a aquisição de um exemplar desta tentação literária para a biblioteca privada de todos os que privilegiam o espírito crítico e a liberdade de expressão e pensamento.

Sobretudo pela intemporalidade do tema tratado e pela possibilidade de transpormos a trama para a realidade actual.

Se estabelecermos uma analogia poderemos chegar à conclusão de que, hoje,
Roma tem outro nome assim como os zelotas. E que o risco de uma nova diáspora e consequente alteração radical de todo o mapa geopolítico subjacente a uma nova ordem mundial pode ser desencadeada por essas circunstâncias, assim como o regresso de uma nova Idade das Trevas.
Algo que pode fazer pensar o habitante deste planeta, em pleno século XXI, tendo em conta os facto ocorridos durante os primeiros séculos do Anno Domini...

Um livro que não deixa ninguém indiferente e onde a beleza a audácia são a palavra de ordem.

E onde o pensamento tem asas.

Como a pomba.

Ou as andorinhas.


Cláudia de Sousa Dias