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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, March 31, 2014

“Deusas Ex-Machina” de Alberto Pimenta (Teorema)




A obra de Alberto Pimenta estende-se pela poesia, prosa e ensaio, formando um vasto conjunto que, ainda assim, é muitíssimo pouco divulgado em Portugal. Leccionou Português em Heidelberg, contratado pelo Governo, em 1960. No entanto, mediante a oposição por ele manifestada face ao regime fascista foi demitido em 1963 passando a ser, a partir dessa data, contratado directamente por aquela Universidade alemã onde ficou a trabalhar até 1977, altura em que decide então regressar a Portugal. A sua obra poética foi reunida num único volume em 1990, mas a partir dessa data produziu já mais de uma vintena de volumes inéditos de poesia. Na prosa, é um pouco menos prolífico, mas mesmo assim destacou-se em 1977 com o volume Discurso sobre o Filho-da-puta, editado pela Teorema e traduzido para a Língua italiana e para o Castelhano.

Na categoria de ensaio, da obra deste Autor destacam-se O Silêncio dos Poetas lançado originalmente no ano de 1978, em Itália, e publicado em Portugal em 2003, numa edição revista e ampliada. A obra A Magia que tira os Pecados do Mundo foi classificada como anti-platónica, dividindo-se em vinte e duas partes, cada qual correspondendo a uma figura do tarot para falar de mitos e arquétipos na Literatura.
Alberto Pimenta ocupa, dentre os autores europeus contemporâneos, uma posição considerada de vanguarda, devido ao carácter crítico e insubordinado da sua escrita. Mas a partir da década de 1990,a temática presente na sua obra passa a referir-se maioritariamente a fenómenos relacionados com a globalização, parodiando ora discursos publicitários ou relacionados com a internet, como é o caso de Ainda há muito para fazer, ou sobre as consequências da guerra do Kosovo e as fragilidades da União Europeia. Em 2005 lança Marthya de Abel Hamid segundo Alberto Pimenta, um volume de poesia, onde alude à invasão do Iraque pelos EUA.

Devido sobretudo ao carácter experimental da sua obra e também às suas temáticas preferenciais, onde o inconformismo chega a raiar a insubordinação, Alberto Pimenta tornou-se um Autor polémico, gerando controvérsia dentro do meio académico português. Actualmente, é professor aposentado na Universidade Nova de Lisboa.


Deusas Ex-Machina de que hoje aqui falamos é um livro heterogéneo que assume a forma de crónica, diário ou relato. É composto por três obras do Autor, reunidas num único volume e que tinham si anteriormente publicadas como: As Quatro Estações (1984); Primeira Parte da Divina Multi(Co)Média (1991); e Reflexão do caos (1997). Nesta obra conjunta destacam-se o sarcasmo, a lucidez e, claro, o omnipresente discurso inconformista que caracteriza a prosa de Alberto Pimenta.

Nesta edição, as três narrativas apresentam, no entanto títulos diferentes. A primeira, “Deusas ex-Machina”, que dá também título ao livro, é introduzida com um texto absolutamente provocatório, descrevendo o quotidiano – e o pensamento! - de um feto dentro do útero materno. O discurso neste trecho em surge-nos como uma voz distinta das restantes que compõem a narrativa, apresentando-se em itálico, de forma a criar o contraste com a outra voz narrativa para assim tornar mais perceptível a alternância entre os narradores.

O narrador principal desta primeira parte deste Deusas Ex-Machina encontra-se a viajar a bordo de um avião onde conversa com outro passageiro (aliás, ao longo de todo o livro, nas três narrativas há sempre a ideia de movimento, de mudança de espaço geográfico bem como troca de confidências com um ouvinte de ocasião, apesar de o interlocutor, na segunda parte, não ser um completo estranho para o narrador, como iremos adiante verificar). O tema de conversa é um acontecimento insólito, presenciado pelo Locutor-narrador, que narra ao companheiro de bordo uma história bizarra, acerca da qual não se sabe muito bem se se trata de um acontecimento real, da percepção distorcida de um facto ou um sonho. O conteúdo onírico da narrativa capta o ouvinte-alocutário, companheiro de viagem, o qual regista tudo, como se de um psiquiatra de tratasse e estivesse com um utente numa sessão de psicoterapia. O discurso é todo ele conduzido, pelo ouvinte que adquire, por vezes, a posição de locutor para fazer pequenas intervenções no sentido de orientar a conversa e o rumo da narrativa como numa sessão de psicanálise informal. O discurso produzido pelo locutor principal pode ser perfeitamente o resultado um delírio, motivado por um estado de consciência que foi alterado por acção química ou pelo sono. Daí o teor surrealista do discurso principal, contraditório, por vezes absurdo onde habita o nonsense, cheio de elementos de cariz sexual, com evidente ligação a Freud e a Jung, no tocante aos arquétipos que são introduzidos no texto sob a forma de alegoria. Por exemplo, a figura arquetípica da Mãe, a representar a Deusa Gea, é mostrada comoforçadamente passiva na sua espera em ser fecundada. Toda a cena relatada pelo passageiro é uma alegoria à repressão da sexualidade feminina, típica da cultura judaico-cristã – note-se que a mulher está com os pulsos amarrados à mesa enquanto é possuída ( em sonho?) pelo protagonista, apresentando-se rodeada de toda a casta de instrumentos e utensílios que oprimem a figura feminina. O teor algo sado-maso da do cenário contudo aproxima-se do ambiente criado por Angela Carter no romance As Infernais Máquinas de Desejo do Dr. Hoffmann e também dos escritores do Surrealismo, onde esta protagonista feminina de Pimenta nos aparece como detentora de façanhas sexuais pouco credíveis ou exequíveis. A narrativa, de conteúdo inequivocamente dialógico, com interferências ocasionais de uma terceira voz, normalmente a hospedeira, a qual surge como uma voz disruptiva, proporcionando à narrativa um ritmo mais sincopado, quebrando a monotonia de uma fala demasiado longa e permitindo, simultaneamente, uma série de faits-divers. O teor da narrativa chega a tornar-se incómodo, sobretudo para o leitor feminino, nesta primeira parte, uma vez que põe em cena vários elementos culturais heterogéneos ao fundir elementos da mitologia greco-latina com a tradição judaico-cristã, mas sempre com cheiro a sangue e tortura ginofóbica. Alberto Pimenta coloca em evidência neste “Deusas Ex-Machina” algumas questões incómodas como o papel da Igreja no exercício da dominância masculina, relacionado com o desejo atávico de controlo do erotismo feminino, de forma a que este, no estranho sonho do protagonista, acaba por se transfigurar numa espécie de síndrome de Estocolmo, ao exprimir a forma masoquista do desejo verbalizado de auto-mutilação. O narrador principal desta primeira parte de Deusas Ex-Machina assume o papel de uma espécie de Ovídio mas cujas descrições são revestidas de um humor ultra-negro, cruas, cirúrgicas, tal como as minuciosas operações de tortura especificamente dirigidas a mulheres a mando de um qualquer Torquemada.

A segunda parte adquire nesta edição o nome de “Só Plágios” e é talvez a mais complexa dos três relatos que compõem este volume, devido à constante mudança da localização espácio-temporal ao longo de toda a narrativa. Nela, damo-nos conta da mudança abrupta do discurso logo no primeiro parágrafo, criando um forte contraste com a primeira parte. Aqui a escrita assemelha-se à estrutura de um diário, apesar da subversão completa da ordem temporal. Isto é, os registos não estão organizados de forma linear, em termos cronológicos, sendo que é frequente que as datas de entrada demonstrarem vários avanços e recuos no tempo. Este tempo da narrativa oscila entre 1937 e 1996, coincidindo, na sua maior parte com o período em que o Autor lecciona em Heidelberg até ao regresso a Portugal. A intenção do Autor será a de estabelecer um paralelismo entre diferentes momentos históricos ao longo doa últimos cinquenta anos que antecedem a data de 1996 e em diversos pontos da Europa tais como Portugal, Itália e Alemanha sempre numa óptica comparativa, abarcando o período que Alberto Pimenta leccionou na Alemanha, o regresso a Portugal com algumas incursões por Itália entretanto.

A pergunta contida na epígrafe desta narrativa prepara o leitor para o tema principal contido neste texto: o protagonista que é também o narrador regressa ao seu país de origem - Portugal, neste caso – deixando evidente uma profunda desilusão pelo facto de lhe parecer que os anos passam em vão para o País, onde tudo parecer permanecer igual, independentemente da evolução tecnológica ou da mudança de regime político.

Que estou eu a fazer aqui de novo?

Aqui” e de “de novo” são dois modalizadores: o primeiro, de espaço e, simultaneamente de tempo, indicador de proximidade, é o local onde se encontra o narrador-locutor no momento em que conta a história; “de novo”, implica um regresso, uma repetição algo que acontece de forma recorrente mas à qual está subjacente a ideia de ausência de mudança, como se esse lugar de regresso fosse um charco de água estagnada. As referências temporais após o ano de 1977 – ano que marca o regresso de AP a Portugal – dão-nos uma descrição do país que atesta isso mesmo e que o Autor evidencia, quase sempre, de forma caricatural. O objectivo é o de exprimir o choque e a indignação pela constatação do atraso do País face àqueles que são considerados “desenvolvidos” na Europa Ocidental. O Autor, pela voz do narrador visa, sobretudo, atingir o primitivismo da mentalidade, a rudeza e a falta de civismo mas, acima de tudo a desconfiança acerca daquilo que se desconhece. Ou seja traça o retrato ou, se calhar, a caricatura de um povo habituado a viver no medo. Subjugado.


«Entrei pela fronteira de Bragança. Tudo vazio. Esperava-nos um guarda-fiscal no meio da estrada, de pernas muito abertas, virado para o nosso lado. Quando chegámos, a cinco ou seis metros, escarrou.

Ora bem, ai está uma coisa que os animais não sabem fazer, à excepção do lama, segundo parece.»


Na equiparação do guarda-fiscal ao lama está implícito um violento sarcasmo, dentro do qual se inscreve um profundo desprezo e repúdio pelo hábito, frequentemente observado em Portugal, de cuspir para o chão.

Mais adiante prossegue:

«Na praça central de Bragança, oitenta ou noventa homens, encostados a toda a volta, quase todos de pau na mão e samarra pelas costas.

Aí está outra coisa que os animais não usam, a não ser ao natural e no corpo todo.


(…)

Ao passar por Coimbra, uma bicha de cerca de cinquenta metros, estendia pelo passeio a sua fronteira ao Parque.

Outra coisa que só os animais de circo conseguem e com dificuldade. E muito treino, claro.

Na aldeia onde parámos, em visita a pessoas da minha família, o amigo que vinha comigo foi dar um passeio a pé.

Quem o encontrava, perguntava-lhe quem era e o que fazia ali: queria a resposta.

Exigia. Ameaçava com o olhar.

Os animais cheiram-se, claro.»


De entre as várias situações aqui descritas, o Autor recorre a várias estratégias discursivas: na primeira descreve um comportamento individual que o choca por estar diante de uma figura de autoridade que enverga uma farda e da qual ele não espera tal comportamento tão pouco civilizado, mas que se assemelha antes a uma besta de carga, habituada a viver em locais inóspitos e inacessíveis. Aqui a dimensão antropológica do homo lusitanus é integrada numa dimensão mais ampla, a etologia, já que o homem é, ele também, um animal que, encontrando-se a viver num meio marcadamente hostil (o país sofrera dez anos com a guerra colonial e saíra, dois anos antes, de uma revolução da qual só por acaso, não foi derramado sangue), ameaçador, próprio de uma sociedade fechada, sente-se ainda dominado pela lembrança recente de um regime autoritário. Daí a comparação aos animais circenses, amestrados e sem vontade própria, no comentário acerca das filas (bichas) intermináveis em Coimbra, e da desconfiança, própria de animais selvagens face a um estranho ou estrangeiro que lhes invada o território.

Mas parte da acção de “Só Plágios” situa-se também em Itália. O narrador fala – em várias entradas deste mais do que atípico diário ou, se assim o quisermos chamar, compilação de relatos de viagens –, com um sujeito que se percebe ser crítico de arte e a quem chama Zezzos. Num destes relatos, ambos os interlocutores encetam um diálogo, ao longo do qual trocam impressões sobre a evolução do conceito de Arte ao longo do século XX e dos diversos movimentos estéticos que perpassaram ao longo das décadas, de onde se depreende que o crítico italiano crê ser a arte contemporânea uma espécie de depuração, em alguns casos, ou amplificação em outros, da obra de artistas de épocas anteriores, que define como uma “duplicação original”, um termo aparentemente contraditório, mas que esconde em si uma acutilante ironia face a um aparente esvaziar de ideias e criatividade estilística, que entende encontrar em muitos artistas contemporâneos. A data de 1978 descreve uma viagem a Itália, na qual o narrador se encontra com o crítico de arte.

1978: Para Zezzos, os lemas da crítica italiana eram três: se o ignorarmos, ele não dura muito. Depois: tudo o que ele diz já foi feito doutra maneira. E ainda: dentro do género, os mais autênticos ainda foram os primeiros.

Zezzos conhecia relativamente bem Portugal. Não estaria a confundir?De resto a máxima é sua:

no jardim à beira-mar; um ébrio
conduz outros ébrios
eles não se apercebem, claro está”.

Neste excerto, Alberto Pimenta usa Zezzos não apenas para descrever a atitude dos críticos italianos face à inovação artística e à emergência de novos nomes no campo das artes, mas dá também a entender que o mesmo se passa em Portugal, ao usar a pergunta retórica com valor de afirmação: “Não estaria (Zezzos) a confundir?” A limitação a três formas de receber um novo artista no meio por parte dos críticos italianos (e se calhar pelos portugueses) que é apontada por Zezzos parece contudo denunciar um certo distanciamento desta postura de grande conservadorismo e aversão à mudança. A adopção desta atitude descrita por Zezzos acerca da postura dos críticos italianos é por eles justificada para evitar o esvaziamento de conteúdo nas Artes, desde a Literatura ao Cinema e às Artes Plásticas. No entanto a forma irónica como ambos os interlocutores se lhes referem, dá a entender que o narrador principal se distancia deste tipo de posicionamento.

No ano de 1996, o narrador alguns anos já a viver em Portugal, parece notar uma ligeira estagnação no País a contrariar os anos imediatamente anteriores ao longo dos quais parece ter havido expansão e crescimento:

«1996: Aos chegar aos doze sustenidos e doze bemóis, partindo do dó em direcções opostas, as escalas encontram-se no mesmo dó

Nesta metáfora, Alberto Pimenta usa a sua personagem para chamar a atenção para o perigo de, após algumas (poucas) décadas de democracia, o risco do País vir a cair na armadilha que pode levá-lo à ditadura.


Só Plágios e Traições” é o título da terceira parte do livro na qual se dá uma espécie de fusão entre as situações ocorridas na primeira e na segunda parte. A acção desenrola-se novamente em viagem, mas desta vez de comboio. E, tal como na primeira parte, temos dois interlocutores: o narrador principal e o narrador que é citado pelo anterior, o qual está presente nas três narrativas. O narrador empírico, isto é, aquele que é citado pelo narrador principal e com o qual entabula o diálogo no comboio, é um completo desconhecido. Ambos os viajantes nunca se viram antes, mas trocam confidências. A voz do narrador principal é distinguida graficamente pelo recurso ao itálico, actuando como uma voz em “off” num estúdio ou como ponto ou mesmo didascália numa peça teatral. Mal trocam algumas palavras o companheiro de viagem passa então a “despejar” uma impressionante verborreia, captada pelo interlocutor que, mais uma vez se coloca numa posição semelhante à de um psicanalista, deixando o “paciente” divagar sobre os temas que lhe são mais próximos ou que o preocupam, limitando-se o narrador principal – que se apaga da cena durante a maior parte do tempo – a incentivar o seu interlocutor a falar:


«O Comboio saiu de Campanhã e, passado pouco tempo, o homem que jazia no banco à minha frente disse: 'Isto já não é o que era.'»

Na frase citada pelo narrador principal (L1) reproduzindo a fala do seu companheiro de viagem (L2), está implícita uma critica social e política, a qual é clarificada nos parágrafos seguintes. A estratégia desta alternância a duas vozes é usada como forma de apagamento enunciativo permitindo quer ao Autor quer ao locutor beneficiar de um certo distanciamento do ponto de vista que é apresentado no livro de forma a não pressionar o leitor a aderir à posição apresentada pela personagem. O distanciamento de L1 que se limita a citar o seu interlocutor, permite ao leitor apreciar os factos por si, adquirindo o seu discurso maior credibilidade confere ao narrador principal.

Alberto Pimenta pode ser considerado, para muitos, um autor incómodo, por obrigar o leitor a pensar “fora da caixa” ou pelo estilo provocatório ou ainda quando tenta implodir alguns tabus relacionados com a sexualidade ou determinados estereótipos.

O que só vem reforçar ainda mais a pertinência da leitura deste e de outros livros do Autor.


01.08.2013- 09.02.2014

Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, March 05, 2014

“Domingo no Corpo” de Aurelino Costa (Deriva)

Esta é uma Poética de poesia de fruição, que trata da indolência das tarde dominicais e portadora do vírus do inconformismo, que nasce da reflexão, do pensamento, da observação do Outro nos seus rituais do quotidiano, em interacção com o seu semelhante e todos os elemento anímicos e inertes que rodeiam o sujeito poético.



Serão aqui explorados e cruzados vários olhares incidentes sobre a poesia, simultaneamente bucólica e litoral, de Aurelino Costa onde encontramos os ecos do lirismo contemplativo Álvaro de Campos e da provocação e onirismo de Mário Cesariny, que se repercutem num ócio dominical que se instala no corpo, permitindo ao Poeta ser permeável a todo um mundo de impressões sensoriais. Onde o sentimento interno de revolta cria um forte contraste com a imutabilidade permanente do meio onde se sai a voz que dá a voz às palavras do Poeta e que constitui o seu campo de observação, no dia consagrado ao descanso, ao lazer, à paragem, quer vocacionada para a fruição quer para a reflexão.



as tardes de domingo (…)



sair de casa (…)



e voltar a ela, sem vontade de fazer nada.
(…)



e adormeço assim num silêncio quente



gosto de não existir neste tempo.



(…)



eu não entendo nada.



talvez, por isso, pareça



poesia.






Porque a Poesia pode não ser para entender , mas apenas para sentir, para fruir, privilegiando a sensação, numa óptica, epicurista.



Para a crítica literária Armandina Maia, a poesia de Aurelino Costa é simplesmente “poesia no corpo”, que «nasce de contradições nunca resolvidas: o passado/ presente que o devora e o futuro perigosamente enlouquecido que o rodeia...» Também no tocante à construção da imagem do ideal feminino, a mesma Autora identifica na poesia de Aurelino Costa trechos sobre mulheres, as quais “ realizam a proeza de existirem, rasgando todos os impérios para defenderem as suas crias, os seus mortos”. Dentro desta perspectiva podemos dizer que sobressai, sem margem para dúvidas, o dramático poema As Mulheres de Luto, pela gigantesca capacidade evocativa da imagética face ao drama quotidiano das mulheres poveiras da famílias dos pescadores, pela tragicidade nela contida que confere à poesia de Aurelino a beleza dramática dos antigos poemas Áticos.



As Mulheres de Luto



as mulheres de luto soltam
saias
não se compadecem
com brilhos subalternos



mascam a sardinha e o sargaço
não temem os ventos aspirais dos cérebros
mal dos velhos
em quilhas e madeiras secas de vis sacodem
a côdea,



não cospem ou latejam acenos
nas malgas sobre os joelhos
entornam os caldos de solda



Vão longe os beijos
inscritos nos cascos



cortados olhares secos



a remos o roliço
da língua



mulheres de sem retorno



mar



praças



ancas e lanternas em gamelas
apregoares de lesmas e têmperas enlatadas
volvem agora em oásis.



uma inscrição na testa derrama óleos.



Daqui sobressai a altivez e insubmissão ao Destino, à Fatalidade, nestas mulheres que permanecem no seu posto como estacas e às quais se atracam os barcos dos seus homens, mas também o seu estoicismo, a que se junta uma incomensurável capacidade de resistência ao sofrimento, que não deixa de as marcar de forma indelével. No mesmo poema, está também presente a contenção da dor até ao último momento, quando a morte ronda, no ritual da extrema unção, onde é silenciada a dor da memória dos que nunca chegam a regressar.



No geral, a poesia de Aurelino surge-nos como representativa de um caos aparente, um conjunto de impressões e sensações que são nada mais do que a reacção aos estímulos daquilo que rodeia o Poeta. Trata-se de uma Poesia, sensorial, como já foi aqui salientado, frequentemente revestida de uma sensualidade telúrica, por retratar uma vida que emana da terra, da natureza que mesmo domesticada na aparência, conserva sempre o seu lado selvagem e indomável.



Para Armandina Maia, este aspecto encontra-se patente numa constante dicotomia entre caos e ordem: um caos a partir do qual o Poeta reconstrói ou reorganiza ciclicamente o mundo num trabalho incessante, como o de Sísifo, no sentido de recuperar “a pureza das coisas originárias e a crueza que quase sempre as acompanha”, como podemos ver nos versos que se seguem:



o dissolver



ultimou insaciável a encomenda
o meu futuro é a morte



em girândola fosca piscou argonauta e saltarico.






Ou ainda:






O Fim acomete-se às sombras



sábias e fátuas as mãos prolongam uma fé intemporal



marcam a focagem dos templos



órgãos param nas veias, fuligem
estonteante e melancólica sobre a leva



hospitalizada a mancha escurece, a cama branca deita-se
ombros de esposa delicada



branca, muito branca, a espera brota
janela deste santuário opaco



aguardo que me leves, com fruto, ave
no mais leve, derramar



deixo a figueira, os gatos, um cão
folhas brancas, do dormitório
esta pedra



sem saber se a voz que escuto é luz ou trevas
contemplando as ardósias e o desenho no chão.



A tranquilidade do ambiente rural surge, no entanto, como o contraponto da rebeldia e tumulto do Corpo . Este é sacralizado, numa profana eucaristia dominical, através do vocativo “amen-se” que se cruza com o assentimento, rendição do final de toda e qualquer oração cristã, amen, a significar “assim seja”. Mas neste caso ao une-se à partícula do pronome clítico da terceira pessoa do plural para adquirir a forma imperativa do verbo amar: um acto que assume também ele, a forma de uma rendição, mas perante a insubmissão do Desejo, o qual se torna, ele próprio sagrado, porque vital para os homens e mulheres. Trata-se de uma homenagem ao Corpo, no eterno dualismo da submissão/insubmissão amorosa do amor erótico, do corpo que obedece apenas à sua própria vontade quando se rende ao Outro:



Lesões incompatíveis com a vida



se me amas
dependura o umbigo na saia



lúcifer reluz de tanta beleza
maculada em teus seios de virgem
feroz e atenta.



Segura-me a mão e beija-me o tornozelo
num acepipe amargo, tanto cheiro a lava



ou esconde-me o peito num calcetar de godo
na noite do montemor



inundada de mosto
bosta e ferro



ouço
o teu olhar



num re_dor



o murmúrio canta_bilis



Neste caso, cabe ao Eros perverso na sua perfeita desobediência e exigência da rendição do Outro, a tarefa de reorganizar o caos de que falava a crítica literária Armandina Maia. Um caos criando pela sociedade que interfere directamente na vida do indivíduo e na livre expressão dos amores. A essa interferência opõe-se o impulso despoletado pela teluricidade desse dia dominical, durante o qual o Homem é livre para se dedicar ao prazer e ao ócio, tal como se vê nos versos que se seguem:




Angelica Lidell debruça-se sobre a pança veterinária



(…)


em vésperas ladeiam as tardes e fecundam a púrpura massa do pão 
que há nos olhos 
prestam-se a sentir enxaquecas violáceas de tudo o que lateja em
suas fontes magras



desde a preguiça à lata despejam sussurros sulcando
a pança veterinária e inquestionável
sobre o solo quente das asas em lábios de ponche
endoidecendo os anjos.



(…)



Encontramos também uma espécie de panteísmo na poesia de Aurelino Costa que se faz notar em alguns poemas como:



O dia de hoje!



Onde o absurdo perpassa pela alegoria a simbolizar um país onde se instala uma espécie de anomia que leva à subversão de todo um sistema social que caminha para a entropia, resultando na perversão de todo o cenário:



cenouras nas árvores
lustram as várzeas



bezerros lusófonos pastam
pedras ensaiam a imprecisão das cinzas



quando, sacro orvalho?



Secam feéricas as bentas
poejos de mel gotejam flácidos a desbulhar



O poema opõe-se à ambição desmedida de alguns castra o sonhos de progresso de muitos, daí a menção das cenouras nas árvores (as árvores não são o lugar das cenouras, que ocupam um lugar para o qual não foram talhadas), o ramo onde estão instaladas as cenouras que não são frutos mas bolbos, onde estão empoleiradas é o seu bezerro de ouro. Trata-se de uma posição que não lhe pertence mas que lhe dá visibilidade escapando às suas verdadeiras funções – armazenar água para alimentar a planta ou alimentar toupeiras, por exemplo. A desorganização das estruturas prossegue no poema, onde é substituída uma ordem funcional por outra completamente disfuncional a troco de uma posição mais vantajosa – para as cenouras. E só para elas. Já a repetição anafórica do verso quando, sacro orvalho?, aponta para um desejo, uma esperança na inflexão da tendência de um Inverno cujo gelo queima os rebentos e da ânsia pela tepidez húmida do orvalho primaveril que liberta os rebentos do gelo (ou do Mal para o qual a palavra sacro funciona como antídoto), que tudo queima e impede o crescimento. A pergunta retórica posta no final do poema não deixa margem para dúvidas, revelando o inconformismo de uma alma inquieta:



onde dispo o sonho?



Jogos semânticos, elementos humanos e paisagísticos, meteorologias encrostadas



No livro Domingo no Corpo a paisagem aparece-nos fustigada pela nortada poveira, a qual serve de instrumento para exprimir a ironia do Poeta como se vê nos versos de é comovente a tua poesia. Naquele poema, o sujeito de enunciação estabelece um diálogo consigo mesmo ou com uma audiência imaginária, pois antecipa o que o seu interlocutor poderá contra-argumentar, naquilo que parece ser um exercício metadiscursivo de distanciamento e autocrítica.


O elemento “fome” é aqui, também, introduzido como o resultado da carência de alimento do espírito embora se apresente com uma acepção aparentemente denotativa, como se se tratasse de uma dor física e implacável, a partir da qual o sujeito empírico que dá a voz ao poema o faça com a voz do cataclismo, da tempestade que ameaça instalar o caos para causar a instabilidade, instituindo a destruição total para depois reconstruir a partir do zero, num exercício experimental vindo a partir de uma omnipotente entidade superior de rosto desconhecido, que faz implodir, de forma inexorável, a sociedade de consumo. Vejam o poema:


mar ingente os hipermercados
bocas de fome as embalagens
as luzes que tremem são teus olhos
incapazes de (a)pagar a electricidade.


O design do nada nas palmas o silêncio
que fazem no verde, código verde?
Oficiar avés na ladainha dos preços?

(…)


Mas também se adivinha o implodir do consumismo desenfreado na contradição expressa no poema que se segue, onde o jogo dicotómico entre a inconsciência da descrença por parte do eu colectivo e o pressentimento adivinhado pelo Eu poético, que antecipa a tragédia, tal como Cassandra:




a senda da terra




a senda da terra
desfeita e espectral
abre a sua boca...


assim vai, de lua em lua
pelas manhãs de sábado
ao hipermercado....


traz carrinhos de mão
que circulam por um euro
dóceis
dão a impressão
que vão para uma festa de aniversário...




Mas por vezes a crueza da realidade invade o poema impregnando-se nas paredes brancas (ou páginas?) onde se percebe que a fome já mata:


nas paredes brancas




nas paredes brancas
poderia ser um atentado


uma mão tingida de falta de cor apertava
um lenço sem nada
por detrás do filho endomingo
uma gata com cio lambe-lhe o dedo


apontou os fósforos e levou-os à boca: cinco cabecinhas vermelhas, divisas


curado, orou à santa:


milagre senhor!, a minha boca arde!


(…)


O poema da página 39, pedras com mãos de homens que morreram é dos mais emotivos de todo o volume. O canto do Poeta, às mãos dos homens que trabalham a pedra e constroem as suas casas, é a valorização da obra que estes legam para a posteridade. Deste prisma, o trabalho do pedreiro e o trabalho do poeta, que lapida o verso como quem corta a pedra, aproximam-se e irmanam-se.


Na poesia de Domingo no Corpo os ritmos da vida, das estações, das marés vai-se desenrolando, independente da actividade humana, seguindo o seu caminho apesar dela. Livre. Onde o corpo do Homem, também livre durante o seu descanso dominical, ao invés de se sobrepor à natureza, colocando-se como seu adversário, funde-se com ela, incrusta-se na paisagem natural, como as lapas nos rochedos poveiros:


Sob delírio


sob delírio a barca
a língua e o calvário


deixa que poisem as aves
e amanheça o fermentar das claves
as asas apavonam os ventos


e as maçãs açucaram martelos


O livro termina com o desejo de recolhimento do Poeta, com a expressão da vontade em fechar uma porta, proteger-se e esperar a bonança de dias melhores.


A escrita de Domingo no Corpo pode ser vista tal como frisa Alexandre Teixeira Mendes como propulsionada pelo desassossego do Poeta. Este, actua como difusor de quadros/imagens onde “cada poema é um retrato onde se inscreve uma poética assente no compromisso entre purificação/depuração erótica, conversação e iniciação passional no empirismo da pulsão erótica do corpo” (ATM, 2013). O mesmo corpo que, na perspectiva deste Autor comporta ainda uma quase que insuportável “tensão entre elementos sagrados e profanos”, a que se junta a oposição contrastiva da natureza tendo como contraponto a sociedade de consumo:
“...em Aurelino Costa, defrontamo-nos com os nossos actuais descontentamentos (…) o fetichismo do dinheiro e da mercadoria”(ATM, 2013)


Domingo no Corpo é pois, o resultado de um trabalho de projecção, da transposição da voz e dos impulsos da Psyche do Poeta que todos os dias vê o mar mas que está profundamente ligado à terra, para o universo linguístico-discursivo que permite a partilha das imagens que se desenrolam diante de si como se de um conjunto de instantâneos – ou de curtas metragens se tratasse. Uma obra que convoca o esteta - o homem cultural, voltado para as coisas do espírito – e o homem carnal, na sua vertente animal, profundamente ligado à vida de uma pequena cidade junto ao mar mas que conserva ainda o seu elemento rural nas sua zonas mais periféricas, à terra, que se casa com os restantes elementos, água, vento, fogo. Uma obra que é o retrato da condição humana, do Homem como ser eternamente dividido entre o mundo do pensamento e o das sensações.




29-07-2013-25-01-2014
Cláudia de Sousa Dias