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Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, February 28, 2005

"A Viagem de Théo"de Catherine Clément (ASA)

Tradução de Maria do Rosário Mendes


O sincretismo religioso numa viagem à volta ao mundo ao mais puro estilo de Júlio Verne, com a tecnologia e mentalidade comtemporâneas


Théo é um inteligentíssimo e belo adolescente afectado por uma estranha doença que o está a debilitar progressivamente e à qual os médicos não conseguem fazer frente.

Quando parece não haver mais nada a fazer, surge a Tia Marthe, uma milionária excêntrica de carácter céptico e espírito cáustico, viajadíssima…

…que propõe aos pais de Théo, como último recurso, uma viagem à volta do mundo, numa demanda por uma cura alternativa à medicina ocidental, para o sobrinho.

Trata-se, nada mais, nada menos, de uma viagem espiritual ao mundo das religiões, visto que o mal que afecta Théo não parece ser de origem física…

“A Viagem de Théo” é um périplo à volta do mundo, cujo objectivo reside na procura do auto-conhecimento através do contacto com os outros povos, cada qual com a sua forma específica de lidar quer com o sagrado, quer com a doença.

Para tal, a Tia Marthe far-se-à acompanhar dos “informadores” devidamente credenciados na matéria em cada uma das etapas da referida viagem, tal como o faria o mais experiente dos antropólogos.

Mas a viagem de Théo implica, também, uma viagem introspectiva isto é, ao interior de si mesmo, ajudado pelos amigos que vai conquistando em Jerusalém, Cairo, Luxor, Roma, Deli, Benaresh, Darjeeling, Djakarta, Tóquio, Quioto, Moscovo, Istambul, Dakar, Casamansa, Baía, Nova Iorque, Praga até chegar a Delfos, terra dos seus antepassados gregos.

É exactamente na Grécia e no lado grego da sua família que se encontra a raiz e a solução do problema de Théo. A viagem será, para ele, um exercício mental executado segundo o molde de um vídeo-jogo, no qual são fornecidas pistas acerca da etapa seguinte que ele terá de decifrar com a ajuda da Pítia fatou a sua amiga-oráculo. Um estabelecer da ponte entre as suas raízes culturais gregas e a actualidade.

As personagens fascinam pelo conteúdo de informação e conhecimentos com que dotam o leitor de informação relevante acerca da sua própria cultura. A forma de transmissão destes conhecimentos é concretizada através do diálogo destas com Théo que, armado da audácia característica da sua extrema juventude, faz toda a espécie de perguntas, mesmo que politicamente incorrectas, às quais os seus informadores” respondem com toda a paciência e delicadeza do mundo…

Isto porque Théo é um jovem cuja beleza, melancolia e sede de conhecimento despertam, instantaneamente, o afecto e a simpatia de todos os que, com ele, travam conhecimento, apesar da sua impertinência.

Já a Tia Marthe (provavelmente a personagem com a qual a Autora mais se identifica) chama a atenção pelo seu cepticismo religioso que combina maravilhosamente com um humanismo agnóstico.

O diálogo destas duas personagens com os restantes intervenientes lembra, um pouco, as personagens Iblis e Lillith em “Jesus na Fogueira”, também da autoria de Catherine Clément.

Théo pode, assim, ser identificado com o lindíssimo anjo rebelde Iblis (ou Lúcifer) e a Tia Marthe com a indomável Lillith, a primeira mulher de Adão, segundo a tradição judaica do Talmude.

“A Viagem de Théo” é o caminho utilizado pela Autora para esclarecer as questões da metafísica e que muito se assemelha àquele utilizado por Sócrates na hermenêutica (estudo e interpretação dos textos sagrados) - o método interrogativo partindo do pressuposto “só sei que nada sei” , neste caso, da absoluta ignorância de Théo em matéria religiosa.

O objectivo último desta viagem parece ser não só o de tornar Théo, mas também os leitores – que participam silenciosamente no seu diálogo interrogativo – em cidadãos do mundo – como Théo em Delfos –, cohabitantes da mesma aldeia global, respeitando as diferentes formas de relacionar e reaproximar os dois mundos – o físico e o espiritual ou metafísico.

Um livro escrito num estilo acessível, mas cuidado e com o cunho estético pessoal de Catherine Clément, fazendo lembrar o “Filme Falado” de Manuel Oliveira.

Imperdível para quem ousar comer do fruto da árvore do conhecimento sem temer ser expulso do Paraíso…


Cláudia de Sousa Dias

"Budapeste" de Chico Buarque (Dom Quixote)



“Budapeste” é um romance de reminiscências, marcado pelo diálogo interno de um intovertidíssimo “autor-sombra”que escreve livros para que escritores sem talento, assumam a autoria das suas obras e possam, consequentemente, brilhar pela sua pseudo-criatividade.

O autor anónimo, José Costa, é uma personagem que escreve narcisicamente e que se deleita com a sua própria escrita, quase com uma espécie de auto-erotismo que o faz negligenciar as pessoas mais próximas que gravitam à sua volta.

Contudo, a verdadeira paixão de José Costa é a língua e a literatura húngaras que o levam a viajar para Budapeste na esperança de conseguir a integração no hermético círculo cultural da cidade.

Budapeste seduz o cidadão de Ipanema pela tradição, beleza, história e pela aura de mistério que a envolve como uma neblina.

A impenetrabilidade do idioma e a frieza algo xenófoba do povo magiar, fazem sofrer o carioca de Ipanema de meia-idade, criando-lhe gigantescas dificuldades de integração, devido à segregação dos autóctones face àqueles que não aprendem o idioma nacional na perfeição.

Cansado da vida fácil e do glamour artificial da quentíssima Cidade Maravilhosa, José acaba por sucumbir à atracção pela cidade da Europa de Leste, pela língua e seus dialectos, pela sua poesia incarnados em Kriska, a sua musa e veículo de inserção na cultura dos magiares.

No final, assistimos a uma inversão de papéis, o homem-sombra torna-se estrela de um livro que não escreveu…

Nada pode ser perfeito…

“Budapeste” é um romance contemporâneo que parece ter sido inspirado num conto do dinamarquês Hans-Christian Andersen intitulado nada mais nada menos que “A Sombra”, no qual o protagonista perde, no final, a sua identidade tornando-se a sombra da sua própria sombra.

Em “Budapeste” assistimos ao diluir da identidade do narrador em relação à personagem do livro que ele teria escrito mas que, na realidade, não foi concebido por ele…

Um livro de prosa densa, nada fácil, de pensamento algo tortuoso, no qual domina uma personagem não só narcísica, mas algo esquizóide que, independentemente da sociedade em que se move, da maior ou menor compreensão do idioma com o qual se comunica, revela uma enorme dificuldade em estabelecer relações de amizade ou amor.

Chico Buarque constrói, em”Budapeste”, uma personagem incapaz de um afecto genuíno porque permanentemente imerso no vórtice da sua actividade intelectual que o absorve totalmente. Daí uma prosa quase que exclusivamente racional, praticamente desprovida de emoções.

Desconcertante.

Um verdadeiro quebra-cabeças.


Cláudia de Sousa Dias

"O Aprendiz de Cabalista"de Cesar Vidal (Ésquilo)



Amor, traição e morte: os três principais ingredientes de um romance histórico que poderia ser adaptado para o cinema ou teatro


Este livro é um romance histórico, passado em plena Europa dos Descobrimentos, cuja narrativa se inicia em Itália de 1525, durante o reinado do imperador Carlos V. que ordena a prisão do rabino Hayim Cordovero, um erudito, profundo conhecedor não só da Torah e do Talmude, mas também da alquimia e dos segredos da Cabala.

Interrogado pela Inquisição começa, então, a contar a história da sua vida.

É desta forma que entramos no romance propriamente dito recuando, cerca de três décadas e meia, até ao reinado dos Reis Católicos, mais propriamente, à altura dos acontecimentos que originaram a publicação do édito de expulsão dos judeus das terras de Aragão e Castela.

Cordovero revive, até ao mais ínfimo detalhe, a forma como foi conduzido, para não dizer manipulado, o julgamento de Yucé Franco recordando, simultaneamente, todo o ambiente social de franca hostilidade da população autóctone face aos judeus, esmiuçando motivos, dissecando emoções colectivas, procurando explicação na questão do social, do individual, da conjuntura económica.

Mas, para o então jovem Cordovero toda a explicação lógica parece insuficiente.

Até surgir alguém que lança uma hipótese diferente, ousada e que se insere nas raízes culturais e místicas do povo semita, fortemente inculcadas no inconsciente colectivo do mesmo e, sobretudo na mente extremamente sensível de Hayim Cordovero.

Segue-se o recordar da dor da perda, do exílio aliado à angústia da instabilidade de um judeu errante, num êxodo europeu através da França, Alemanha e que termina com a prisão em Itália.

E é durante esse êxodo, que desenvolve a aquisição do conhecimento, que compreende que os Goyim (não judeus) não são todos iguais.

E que conhece o amor.

Um amor que eclipsa tudo o mais: preceitos religiosos, morais, culturais…uma afeição que se sobrepõe a todos os outros afectos…

A felicidade suprema tem, contudo, um preço. A Divindade, ciumenta, não tolera um amor que A relega para um segundo plano, nem a sociedade perdoa uma ventura tão perfeita quanto indiferente à infelicidade alheia, implicando a violação de todas as normas do código ético então em vigor.

A mão invisível do Destino abate-se, impiedosa, sobre as personagens num final trágico, inesperado e de grande intensidade dramática.

Nesta obra, os leitores travam conhecimento com o humanismo de Reuchlin através do debate filosófico entre o judeu e o reformista precursor de Lutero.

Mas também se torna perceptível o gérmen do anti-semitismo germânico então latente e que se manifestaria, de uma forma catastrófica, quatro séculos mais tarde.

“O Aprendiz de Cabalista” é um romance de prosa acessível, linear, de carácter analítico embora, por vezes especulativo, resvalando, esporadicamente, numa tónica um pouco sentimentalista.

A busca de uma explicação para o inexplicável, porque parte integrante da natureza humana. Egoísmo/Altruísmo, Bem e Mal são as duas faces da mesma moeda, arquétipos opostos que coexistem em maior ou menor proporção na alma humana, desde o início dos tempos.

O livro poderia ser considerado banal, uma vez que o tema não é, de forma alguma original, se não fosse o sentimento de angústia e suspense, em crescendo, à medida que nos vamos aproximando dos últimos parágrafos, nos quais o cenário vai, progressivamente, sendo invadido por uma aura de fatalidade, à maneira das tragédias clássicas.

Catártico.


Cláudia de Sousa Dias

"O Bosque dos pigmeus" de Isabel Allende (Difel)

Tradução de Maria Helena Pitta

O primeiro volume da trilogia "As Memórias da Águia e do Jaguar" é a estreia de Isabel Allende na literatura juvenil parte de uma história dramática onde a instabilidade do ambiente familiar em casa do jovem Alexander Cold, motivada pela doença que afecta a mãe, obriga a que este tenha que ficar temporariamente sob a tutela de uma excêntrica avó.

Não se trata, de facto, de uma avó tradicional. Andarilha e de espírito indomável, a avó de Alex é uma consagrada antropóloga, e viagem permanente - ou quase - pela regiões mais remotas do globo.

Deta vez, irá arrasta o neto até ao coração da selva amazónica com o objectivo de estudar a cultura de uma tribo quase desaparecida e descobrir a origem de uma estranha criatura semi-humana que tem o hábito de dilacerar os intrusos.

O jovem Alexander participará, juntamente com a avó e os restantes elementos que integram uma equipa da International Geographic, numa série de aventuras que incluem a descoberta de espécies fantásticas, o contacto com o misticismo da cultura tribal dum povo que vive na mais perfeita simbiose com o seu meio ambiente, a descoberta de novos focos de afectividade e até a possibilidade de encontrar um tratamento alternativo para a doença que desencadeou o drama familiar do protagonista.

Allende mostra-nos, de forma brilhante, como as mais básicas pulsões do inconsciente humano - as paixões e os desejos - podem desencadear o conflito que torna, muitas vezes, impossível a coexistência de duas civilizações diferentes.

Neste romance, a Autora, originária do Chile foge um pouco ao seu estilo habitual, conseguindo cativar a atenção do público adolescente aliando graças a uma prosa acessível mas simultaneamente mais madura, linguagem cuidada e conceitos mais de ajustados à evolução do panorama das ciências antropológicas, juntando o verosímil ao maravilhoso, através da conjugação de temas que dominam a actualidade - como a ecologia, a cobiça, o racismo, a luta pelo poder. Estes elementos são condimentados com a fantasia que povoa o imaginário da autora e delicia os mais novos, conferindo a esta obra uma candura irresistível, dotada daquela magia que seduz o público de todas as idades.







A sequela de "A Cidade dos Deuses Selvagens", como segundo volume da trilogia "AS Memórias da Águia e do Jaguar" vem mitigar a sensação de algo que ficou "inacabado"quando chegamos ao último parágrafo do referido romance desta autora sul-americana.


Em "O Reino do Dragão de Ouro" conseguimos ficar a par de alguns aspectos que ficaram por concluir no volume anterior entre os quais: a vitória na primeira fase da luta contra a doença que afectou a mãe de Alexander e o reencontro do jovem com Nádia, a sua amiga de terras de Vera Cruz.

Os dois jovens são, mais uma vez, recrutados pela excêntrica avó Kate, antropóloga e jornalista da revista "International Geographic", para mais uma viagem de investigação a um dos locais mais inacessíveis do planeta: o minúsculo reino do Dragão de Ouro no coração dos Himalaias.

Desta vez, para além de se depararem novamente com a possibilidade de conviverem com uma forma de civilização totalmente diferente daquela onde nasceram sua, os dois adolescentes terão de suportar as dificuldades de um dos climas e relevos mais adversos do globo, sobretudo para quem está habituado a zonas mais temperadas como Alexander ou mesmo tropicais como Nádia.

O livro cativa o leitor pelo facto de oferecer, de uma forma bastante acessível, a possibilidade de comparar culturas diferentes e observar a forma como estas podem coexistir sem que haja propriamente choque de culturas. Este surge quando, de um dos lados ou de ambos, nasce a ambição desmedida e o desrespeito pela vida humana. Nesta linha de pensamento, tomamos contacto, através do lama Tensing, com a filosofia do budismo que encarna os valores da compaixão, do respeito pela natureza, pela vida e pela paz.

Neta obra, à semelhança do volume anterior, há também espaço para a fantasia que se traduz na exploração da lenda do Vale do Yeti (O Abominável Homem das Neves) e do Dragão de Ouro, a estátua milenar da sabedoria que protege o pequeno reino escondido entre os picos da cordilheira mais alta do mundo.

Esta série, destinada a um público sem idade, conclui-se com o volume seguinte.





“O Bosque dos Pigmeus” é o último volume da trilogia intitulada "As memórias da Águia e do Jaguar " que inclui também os títulos “A cidade dos deuses selvagens” e “O Reino do Dragão de Ouro”.

Desta vez, a acção passa-se no coração da selva africana algures entre o Quénia e o Ruanda, território fértil em conflitos étnicos, onde um grupo de guerrilheiros submete a tribo dos bantos e o pequeno povo da floresta: os pigmeus.

Os guerreiros dominam a população pelo medo, principalmente por fazerem acreditar possuir poderes sobrenaturais, o que implica mais uma missão (quase) impossível a ser levada a cabo por Nádia e Alexander. Que encarnam, respectivamente, o espírito da Águia e do Jaguar – os seus animais totémicos – em mais uma das atribuladas viagens da avó Kate – antropóloga e escritora ao serviço da revista International Geographic.

Neste terceiro volume, Allende explora, de uma forma acessível ao público adolescente, padrões de cultura, crenças e rituais de algumas tribos africanas, tais como: o casamento, o tratamento dos mortos, ritos de passagem, rituais de guerra, de voodu, de magia branca e negra, o mercado, vestuário…Trata-se de um caleidoscópio de cores, sons, etnias e de grande conteúdo para os apaixonados pela antropologia.

Para além disso, “O Bosque dos Pigmeus” é uma crítica velada aos regimes tirânicos e uma denúncia à ambição desenfreada daqueles que se servem dos mais frágeis para enriquecer rapidamente. A Autora chama a atenção, através do olhar crítico da avó Kate, para as atitudes etnocêntricas e de relativismo cultural da civilização do ocidente face às outras culturas, com o objectivo de sensibilizar as camadas etárias mais jovens para o respeito pelas outras culturas.

O misticismo típico de Isabel Allende, está patente na hipersensibilidade de Alex e Nádia e na relação destes com o seu respectivo animal totémico (influência do xamanismo dos índios americanos) que lhes possibilita estabelecer o contacto por via telepática com algumas das personagens dos volumes anteriores mesmo que localizadas em outros continentes ou que já não estejam entre os vivos! Afinal a magia é indissociável da literatura de Isabel Allende…que conjuga o animismo africano, com o xamanismo dos ameríndios e o budismo do oriente num sincretismo de crenças, personificando a coexistência pacífica dos povos baseada no respeito mútuo e mesmo na troca de elementos culturais…o triunfo do interculturalismo.

Mas enquanto que em “A cidade dos deuses selvagens” o drama é a tónica dominante, em “O reino do dragão de ouro” predomina a incrível sensação de adrenalina e perigo constante num ambiente eternamente agreste (sobretudo para a brasileira Nádia), n’ “O bosque dos pigmeus” sobressai a nota cómica pela presença de situações caricatas e altamente hilariantes como é o caso do episódio com o elefante ou a aterragem no meio da selva por uma extravagante piloto africana.

As personagens principais têm, por sua vez, uma faceta altamente cómica, primando pela excentricidade de hábitos e comportamentos:

- a avó Kate, antropóloga irreverente, de espírito cáustico, mal-humorada, fumadora de cachimbo e grande apreciadora de vodka;

- Angie Niderera, a exótica e exuberantíssima, piloto africana, insubmissa e protagonista de algumas de algumas das mais hilariantes cenas da obra;

- o irmão Fernando, missionário católico, obstinado, precipita o grupo na aventura no coração da selva;

- Maurice Membelé, chefe guerreiro e religioso explora bantos e pigmeus, para viver do contrabando.

O ritmo da narrativa é galopante num estilo corrido, sem muitas pausas, de grande riqueza de imagem o que possibilita a visualização do ambiente e das situações.

Uma obra pedagógica para quem gosta de conhecer outras culturas.

Uma trilogia que é um marco, na carreira da Autora.


Uma estreia brilhante no campo da literatura juvenil.



Cláudia de Sousa Dias

"Aves de Rapina" Wilbur Smith (Ulisseia)

Tradução de Francisco Silva Pereira




“Aves de Rapina” é um romance de aventuras passado no séc.XVII que nos desvenda os mistérios da costa oriental africana e Médio Oriente. Um autêntico diário de bordo que irá, com certeza, seduzir os apaixonados pela arte de marear.

O virtuosismo de Wilbur Smith, num romance como este, consiste em relatar, com precisão cirúrgica, o quotidiano dos navegadores da época dos descobrimentos e a capacidade de adaptação humana em superar as limitações da tecnologia da época. Estas limitações traduzem-se na arte de navegar por mares ainda pouco conhecidos, com os ainda primitivos instrumentos de orientação que possibilitavam o cálculo rudimentar da latitude e da longitude.

A trama desenvolve-se num ambiente político de guerra entre a Holanda e a Inglaterra pelo domínio das rotas que garantem o monopólio do comércio das especiarias, numa altura em que se começa a observar o início do declínio da hegemonia portuguesa.

Este é um romance no qual temos de ter em conta que o autor, sendo britânico e tendo feito, durante muitos anos, carreira no exército da Coroa ao serviço do Império, irá relatar os acontecimentos pelo ponto de vista dos corsários ingleses ao serviço de Sua Majestade, o Rei Charles II.

Desta forma, são profusamente descritas as tácticas de guerra de então, o uso do equipamento, a arte de bem esgrimir, cujos passos Smith dá a conhecer com o preciosismo de um virtuoso. Aliás, a caça e a guerra são duas das suas maiores paixões, presentes em todas as suas obras, como podemos observar na sua espectacular trilogia do Egipto: “O Sétimo Papiro”, “O Deus do Rio” e “O Mago”.

Aventura e fantasia são os ingredientes deste romance histórico que junta factos verídicos (a guerra entre a Holanda e a Inglaterra e a actividade corsária) com ficção
(o encontro com o mítico reino do Prestes João, guardião do Tabernáculo e do Santo Graal).

O romance é composto por personagens arquetípicas, divididas entre heróis e vilões. O Bem e o Mal sem nuances intermédias.

E, tal como em todas as suas obras, é, mais uma vez, inevitável a presença de uma loira perversa, de olhar felino e “nádegas como ovos de avestruz”- a grande vilã e protagonista das cenas mais escaldantes que recheiam os romances de Smith. Em contraste com a beleza exótica da moreníssima anglo-timorense - com a fisionomia típica das heroínas de Smith - que com ela, irá disputar o amor do protagonista, o belo corsário Hal Courtney.

Uma história light, mas divertida, para ser lida como quem vê um filme de aventuras ao estilo de “A Ilha das Cabeças Cortadas” ou “Os Piratas das Caraíbas”.

Possuidor de uma escrita objectiva, com muita acção e cenas com um nível de adrenalina impróprio para cardíacos, obriga o leitor a virar as páginas a um ritmo galopante, pode, por isso, considerar-se um livro de “fácil digestão”, pela pouca profundidade psicológica das personagens e da ausência de grandes análises histórico-políticas.


Um livro que pode perfeitamente ser vocacionado para o público adolescente.


Ideal para despertar o vício da leitura.




Cláudia de Sousa Dias

"Equador" de Miguel Sousa Tavares (Oficina do Livro)




Um dos melhores romances publicados em Portugal no ano de 2003

Luís Bernardo é um jovem empresário lisboeta, no início do sec.XX. Dotado de visão estratégica, facilmente se apercebe que as potências estrangeiras tentam, sob a capa de um “humanismo hipócrita”, eliminar a concorrência dos produtores portugueses de cacau, alegando o uso ilegal do trabalho escravo…e incentivando o boicote à compra do cacau S. Tomense…

Mas a realidade não é diferente da dos outros países colonizadores…Luís Bernardo escreve um artigo a denunciar a situação…

… e é convidado pelo próprio Rei D. Carlos a ocupar o lugar de governador das ilhas de S. Tomé e Príncipe durante três anos, sendo-lhe atribuída a missão de averiguar se há ou não trabalho escravo na referida colónia e convencer o cônsul inglês de que o trabalho escravo em Portugal já faz parte do passado.

Neste seu primeiro romance, Miguel Sousa Tavares deixa transparecer, na sua escrita neutra, objectiva no relato dos factos, a influência do jornalismo; e do Direito, pelo rigor, precisão e eficácia típicos de um jurista, patentes quer na investigação relativamente às condições de trabalho dos negros, quer na condução do interrogatório feito às testemunhas pelo mesmo personagem, numa brilhante prestação forense.

Ao lermos “Equador” temos, em muitos momentos da narrativa, a sensação de estarmos a ler as notícias da época ou a “ouvir” um noticiário televisivo.

Outra das grandes vantagens de “Equador” é a de colocar alguns pontos nos ii, em alguns episódios mais recentes da nossa história, nomeadamente: a descolonização, a relação entre colonizadores e colonizados, a implantação da república – feita com base num golpe de estado, numa época em que ainda não havia eleições livres - a relação de Portugal com outros países colonizadores, supostamente nossos aliados, a situação económica interna na época em questão e respectivas relações económicas internacionais. Mas sobretudo, a mentalidade das classes dirigentes da altura, como travão ao desenvolvimento económico pela falta de visão em perceber e acompanhar o ritmo da evolução da História da Humanidade…e evitar a decadência...

Tudo isto é colocado em evidência de uma forma extremamente pertinente e clara em “Equador” através das atitudes das personagens, numa brilhante análise histórica, político-jurídica e social como, aliás, Miguel Sousa Tavares já nos habituou como mediador em debates televisivos, como entrevistador ou cronista.

O paralelismo da situação económico-política de há um século atrás com a actualidade é mais do que evidente, sobretudo no que respeita ao panorama internacional – uma vez que o comportamento de algumas das principais potências económicas no início do sec. XX tem-se mostrado constante até à actualidade, como é o caso da Inglaterra.

Quanto ao romance propriamente dito, Miguel Sousa Tavares esmerou-se na construção das personagens Luís Bernardo – inteligente, culto, de visão estratégica, sedutor e solitário, um outsider na sociedade lisboeta de então, onde se destaca pela diferença, colocando-se um século adiante dos seus pares.

Está, apesar de tudo, mais próximo de David, o cônsul inglês, pelas ideias, cultura e forma de estar.

David é um autêntico camaleão, um cidadão do mundo, com a capacidade de se adaptar a qualquer lugar ou circunstância, inteligentíssimo, empreendedor, fleumático e totalmente devotado à sua mulher, Ann.

Por sua vez, Ann é uma personagem esfíngica, extremamente bela, culta e viajada, diferente de todas as outras mulheres que povoam o quotidiano de Luís Bernardo…

Os dados estão lançados para a erupção de um emocionante romance ao mais puro estilo de Eça de Queiroz.

Este é um livro intenso, profundamente sensorial, onde se sente o pulsar da vida em cada folha de árvore, em cada gota de chuva, em cada grão de areia das magníficas praias de S.Tomé…

Na descrição do clima, da paisagem, dos sons, dos cheiros, transpira uma sensualidade telúrica que lateja em cada palavra…

Um livro onde idealismo e realidade chocam frontalmente numa guerra entre razão ou dever e emoção ou vontade.

Uma estreia brilhante.

Um estrondoso sucesso editorial.

Merecido.


Cláudia de Sousa Dias

"Equilíbrios Pontuados" Jorge Reis-Sá (Edição de Autor)



Esta é uma edição limitada, cuja raridade a transforma, automaticamente numa mais-valia, de um dos mais pungentes livros de prosa poética publicados em 2004.

"Equilíbrios Pontuados" é um lindíssimo livro de narrativas onde, na primeira parte, intitulada "Por ser Preciso" (texto ao qual foi atribuído o Prémio Barbosa du Bocage), está impressa a dor da perda de alguém que é a bússola que norteia a existência do narrador.

A Dor e o Gelo, o Frio implacável do Inverno estão omnipresentes como autêntico presságio de Morte. Natal é época de gelo na Europa. O frio instala-se como uma garra queimando a pele, roendo os ossos e invade todos os cantos de uma casa tal como a Morte invade lentamente um corpo minado pela doença.

O branco nevado da capa do livro, em contraste com com a negrura carbonizada das letras - cor que é partilhada com o grafismo da árvore de Natal, isolada na brancura de uma desolação gelada.

Na segunda parte, cujo título dá o nome ao livro, são imortalizados alguns dos mais belos momentos de uma felicidade dourada, plena de nostalgia, que faz repercutir as cordas da emoção como alguns dos mais belos acordes se de uma guitarra portuguesa se tratasse...A pontuação de equilíbrio nas memórias povoadas de saudade...

A terceira parte - "Matéria dos Sentidos" é composta por episódios que marcaram o quotidiano do narrador de forma indelével.

Um livro com a qualidade literária a que Jorge Reis Sá já nos habituou e que fala da beleza de todas as emoções aliadas à memória que constitui a história da nossa vida, sem esquecer o humor - "Langor" e "Sexta -feira".

Uma lindíssima prenda de Natal que o Autor quis oferecer àqueles que amam a literatura.

Obrigada Jorge!

Cláudia

"A Montanha da Lua" de Manuela Monteiro (Campo das Letras)




“A Montanha da Lua” é um livro que contém cinco deliciosas histórias contadas num estilo poético, com intenções pedagógicas ao público jovem do 2º e 3º ciclos.



No dia da apresentação do livro, o Professor Vasco Moreira, dirigindo-se às centenas de crianças presentes no lançamento, frisou que Manuela Monteiro "foi uma princesa à qual foi destinada a missão de leccionar e que, com a reforma se transformou numa fada com o objectivo de não deixar a magia morrer através de livros que seduzem e palavras que enfeitiçam", apelidando “A Montanha da Lua” de “jóia literária”.

O livro foi ilustrado pela jovem Inês de Oliveira, uma ilustradora de estilo apresentativo e não representativo, motivo pelo qual, o corpete da sereia Ondina e os vestidos das fadas diferem daqueles descritos no texto.

As imagens são lindíssimas, apresentando uma espectacular técnica de trabalhar as sombras e os volumes, cores suaves, formas "fofinhas" que atraem os olhares e que nos convidam a levar o livro para casa.

Falando dos contos propriamente ditos, “Safira, a Borboleta Azul” é aquilo que Manuela chama de “a sua história ecológica, a sua história verde”. É um divertido conto que poderia ser contado em verso pois, praticamente, todo ele rima quando lido em voz alta e pretende passar a mensagem de conservação da natureza e o respeito pela vida animal.

“ A Montanha da Lua”, a história que dá título ao livro, é a da coragem de João Alegre e da sua audácia, persistência, em superar todos os obstáculos da inóspita montanha que separa a Cidade da Alegria da Cidade da Solidão.

“Ondina, a Sereia” é um conto que poderia ser de Andersen (Hans-Chistian)
ou Andresen (Sophia de M. B.). O primeiro pela presença pungente da Dor; a segunda pela profusão de elementos marinhos mencionados no texto, fazendo lembrar a escrita da lindíssima e recentemente falecida Sophia. Esta é a história do sonho na qual se procura a reconciliação entre o mundo materialista dos homens e o mundo das sereias que personifica o plano do ideal, da criatividade, das emoções, do Belo e do Sublime. O adjuvante será o pintor que fará o papel de psicólogo que impede o estiolar dos sonhos recalcados. Porque com a morte das sereias os seres humanos também acabariam por estiolar.

“ A princesa Marina” é a história de uma princesa rebelde com um “rosto de rosa de Maio”, cuja ambição é a de derrubar as barreiras de comunicação e, simultaneamente, melhorar as condições de vida dos habitantes do seu reino.

“ A Fadazinha da Avenida" é o conto mais pungente de Manuela Monteiro. É a sua história da Dor e da Esperança. Nela, vemos descrita a Avenida Narciso Ferreira (em Famalicão), sob o pseudónimo de Avenida da Liberdade, os seus habitantes e a casinha onde habitam as fadas que correm o risco de ficar sem emprego, tendo por isso que emigrar. Até que uma dia…

Mas para saberem mais terão de ler a história!…

As histórias de infanto-juvenis de Manuela Monteiro, para além de ricas em vocabulário e estilo, obrigam a ler nas entrelinhas para encontrarmos o seu significado latente. São também extremamente pedagógicas contribuindo para a construção da personalidade dos mais novos, transmitindo a importância de valores como a amizade, a solidariedade, o amor, o respeito pela natureza, o civismo…

Contos onde a referência ao isolamento e ensimesmamento é uma constante, tal como no lindíssimo romance de Gabriel García Marquez “Cem anos de Solidão”, onde só é preciso um toque da varinha mágica de uma fada, princesa ou sereia, ou da coragem de um menino, para que ela desapareça.

São histórias onde a cor da Alegria triunfa sobre o cinzentismo da Solidão.

Onde não há montanha que não possa ser escalada.

Mesmo que seja tão alta como a Lua.


Cláudia de Sousa Dias

"A Lei do Amor"de Laura Esquível (ASA)






Uma mensagem de paz e amor, com um espectacular CD a ilustrar os momentos mais dramáticos do texto.


Este é um livro completo e repleto de sensações visuais e auditivas. "A Lei do Amor" é o romance mais excêntrico de Laura Esquível.



Trata-se da história de uma jovem que, ao longo de várias vidas, irá tentar encontrar a sua alma gémea, que conseguirá como resultado de um longo aperfeiçoamento pessoal.



A trama, em si, pode ser considerada um autêntico conto de fadas para adultos, onde figuram anjos e demónios, como adjuvantes e oponentes das duas figuras protagonistas.



Esta é uma "fábula do futuro", como refere o editor, que relata os encontros e desencontros, amores e desamores das diferentes personagens, ao longo de várias vidas, durante as quais tentam corrigir os erros das existências anteriores com o objectivo de restabelecer a ordem, o equilíbrio, obedecendo à Lei do Amor (ou lei do Karma) que rege o Universo.



Este conto para adultos foi imaginado numa altura em que ainda não tinham sido inventados, ou pelo menos divulgados os telemóveis, ou a Internet. Torna-se, por isso, interessante observar as divergências entre a evolução tecnológica ocorrida nos últimos anos e aquela que é imaginada pela autora ao longo dos próximos dois séculos!



O estilo da escrita de Laura Esquível é, nesta obra, revestido de um condimentadíssimo sentido de humor tipicamente sul-americano - que já encontrámos em autores como Isabel Allende, Gabriel García Márquez ou Jorge Amado - temperado com uma boa dose de romantismo, optimismo e uma candura irresistível.



"A Lei do Amor" pretende ser uma sessão de psicanálise que, através da hipnose, possibilita a regressão da protagonista a épocas passadas, numa tentativa de avaliar os seus erros relativamente à forma de interagir, permitindo também aos leitores averiguar a quebra da Lei do Amor quanto à coexistência das diferentes civilizações no passado e fazer uma projecção relativamente ao futuro.



Através deste método, as personagens terão a oportunidade de poder colmatar as suas faltas restabelecendo uma nova ordem mundial, baseada na coexistência pacífica e no direito à diferença.



O prémio para a realização deste equilíbrio é o Amor na sua forma mais perfeita e brilhantemente ilustrada no apoteótico final, com a ária do final da ópera "Turandot" de Puccini como pano de fundo.



Um romance que tem a particularidade de ser ilustrado com algumas cenas em banda desenhada que são acompanhadas pelas músicas do CD que a ele vem agregado. Este inclui algumas das mais belas árias de Puccini para os momentos mais dramáticos e algumas canções populares mexicanas, interpretadas pela sensualíssima voz de Liliana Felipe.



Um conto que alia um extraordinário poder de imaginação a uma lindíssima mensagem de Amor muito adequada à quadra do Natal ou ao Dia dos Namorados.



Para oferecer a quem mais se gosta.



Cláudia de Sousa Dias

"Algumas letras" de Adriana Calcanhoto (Quasi)





Quando o fenómeno chamado Adriana Calcanhoto surgiu no cenário da música popular brasileira no final dos anos 80, a cantora, então uma ilustre desconhecida, foi saudada como a nova Elis Regina.

Gaúcha, tal como Elis, Adriana nasceu em Porto Alegre em 03 de Outubro de 1965. Foi descoberta quando cantava numa churrascaria.

Seis anos depois com quatro discos publicados, Adriana consolidou-se como uma das maiores intérpretes da actualidade e, também, como uma compositora de altíssimo nível que brinca com as palavras da mesma forma que brinca com o seu público. Adriana prestou tributo a Elis Regina, mas optou por ser ela própria.

No prefácio de “Algumas Letras” - uma publicação das Quasi Edições que inclui a maior parte dos seus poemas, alguns deles “musicados” outros não, acompanhados de um conjunto de não menos expressivas fotografias da cantora – Adriana refere que:

“Todas as letras seleccionadas neste livro foram esboçadas sempre na guitarra, nunca no papel. Só depois inauguradas como canção. Trabalhei cada uma em seus acabamentos como versos; aí experimentei acentos, transferi pesos de uma sílaba para outra, inseri brancos, cantei, deixei decantar, abandonei, retomei, incorporei acasos em profusão. Sempre atrás de rima ou sílaba mais sintética. Ou mais sonora. Ou mais confusa.

Aqui reunidas as que não rasguei. Sem as suas músicas. Cruas, nuas.”

A poesia de Adriana pode - apesar de ter nascido num país ao qual associamos, geralmente, o Verão - ser considerada poesia "de Inverno", isto é, intimista, que canta o desamor, a lembrança, a saudade e a melancolia como em “Vambora” e “Mais Feliz” até mesmo num poema como “Calor” no qual estão presentes todos os elementos físicos do Verão como o céu turquesa, o calor em extremo, a claridade intensa do Estio. Canções deliciosas cantadas numa cálida, suave e luminosa voz de sol de Inverno.

Na sua poesia são incluídos os elementos característicos da cultura brasileira como em “Parangolé Pamplona”, “Os Cariocas” e”Vamos comer Caetano”.

A poesia de intervenção é, também abordada por Adriana Calcanhoto em poemas como “Tons”, “Cidade Partida” e “Esquadros”, nas quais a poeta-compositora denuncia as desigualdades sociais num país de fortíssimos contrastes relativamente às clivagens sociais e indicadores de qualidade de vida, particularmente sentidos quer nos grandes centros urbanos, quer em diferentes zonas geográficas como o Norte e o Sul do País .

Adriana, tal como afirma no prefácio, brinca com as sílabas, parte as palavras, altera-lhes o sentido, cria interessantíssimos trocadilhos, joga com as repetições para fazer realçar uma determinada ideia em poesias depuradas até ao extremo – (de)cantadas – como facilmente nos apercebemos num poema como “O Surfista”, extremamente rico, apesar da extrema simplicidade, cuja última estrofe faz lembrar o ruído das ondas espumosas (leia-se afrodisíacas, pois Aphrodite em grego significa, precisamente, nascida da espuma…) a desfazerem-se na areia…

Poesia de Inverno numa paleta de cores estivais para oferecer neste Natal…

Em livro ou em Cd.

Ou porque não nas duas formas?


Cláudia de Sousa Dias

"Red Shoes" de Paulo Castro (Quasi)




As desordens afectivas na adolescência, a descoberta da sensualidade, o conflito inadaptação\integração.

“Red Shoes” é um livro que serve de legenda ao espectáculo com o mesmo nome encenado por Paulo Brandão. O texto, da autoria do psicanalista Paulo Castro, explora a temática do Desejo, no qual os pés surgem como fetiche, zona erógena por excelência e, a partir dos quais, é gerada toda a paleta de fantasias eróticas da protagonista.

Para Paulo Castro, o livro é o espelho daquilo que Paulo Brandão tentou mostrar em palco através da poesia-corpo em movimento de Joana Nossa.

O autor – a quem foi encomendado o texto por Paulo Brandão para servir de “legenda” ao espectáculo cénico – habituado a lidar com os problemas inerentes à adolescência, coloca em destaque a relevância dos primeiros 15 anos de vida na construção da personalidade e, principalmente, os transtornos afectivos típicos desta faixa etária tais como:

- o narcisismo;
- a descoberta da sexualidade
- a síndrome da adolescência

Este último traduz-se na alternância entre fases maníacas e depressivas que, segundo o parecer clínico do autor, não pode ser classificado de hipomania ou transtorno afectivo bipolar, precisamente por estarmos a falar de uma adolescente. Trata-se somente da angústia típica do crescimento, numa faixa etária em que os contornos da sexualidade se estão a definire, na qual, está a ser construída a orientação sexual do indivíduo. Sexualidade que é, inicialmente, narcísica, isto é, orientada exclusivamente para o próprio indivíduo durante a qual irá encontrar própria forma de canalizar a sua própria líbido.

No texto, encontramos também a fragmentação ou o desdobramento da personalidade, o afastamento do real, e o binómio inadaptação\integração com a referência ao Outro (simbolizado pelo espelho), ao suicídio (cena da banheira) e à auto-mutilação (lâminas de berbear).

O único ponto de contacto, tanto na peça como no texto, com o conto de Andersen com o mesmo nome, é a vaidade da protagonista durante a fase dos sapatos vermelhos – a fase da construção e definição dos contornos da sexualidade.

Durante a entrevista ao Jornal Cidade Hoje, Paulo Castro não deixou, contudo, de frisar que esta obra é apenas uma fotografia da personalidade da protagonista num dado momento da sua existência, enquanto que a vida propriamente dita, “é um filme acelerado, de lógica cartesiana duvidosa (António Damásio), mas pleno de desejo (Lacan), que se desenvolve em espiral”.

“É um momento na vida onde vamos encontrar despersonalização, desrealização, com todas as alterações da vivência do EU que isso implica”.

Daí decorre a ilustração de alguns quadros de psicose causados pela angústia do crescimento e a necessidade de afirmação do EU e do direito à diferença.

Na peça, os sapatos vermelhos, representam a multiplicidade de opções sexuais o que pressupõe uma fase durante a qual a orientação sexual é indefinida e as opções são infinitas – isto implica que a adolescente vá, durante este período, descobrir a forma de direccionar a líbido, finda a qual, irá proceder à sua própria escolha.

Os sapatos negros são, já, os desejos adultos como resultado da transformação ocorrida na fase anterior.

A referência ao Outro, que aparece no texto e que é representada, na peça, pelo espelho é um conceito de Lacan, do qual o autor se aproveita livremente, “sem qualquer responsabilidade teórica, através de um texto literário, sem preocupações académicas, pois não se trata de um compêndio de psicanálise”.

“O Outro é aquele que nos observa e que nos define quer pelo olhar (expressão facial), quer pela linguagem (verbal) e que é traduzido num discurso social de aceitação\reprovação de existência imaginária".

Todo o indivíduo é detentor, em primeiro lugar, da sua auto-imagem ou auto-conceito que tenta reproduzir para o outro recorrendo ao símbolo (através do qual representamos para os outros aquilo que pensamos de nós próprios – forma de vestir, linguagem utilizada, etc.). E entre estas duas noções está o Real – o imutável (ser homem ou mulher, com uma determinada idade cronológica…).

O Outro, em Red Shoes, representa a influência da sociedade no EU.

Para Paulo Brandão, o autor do posfácio do livro “é mais fácil construir um espectáculo do que falar verbalmente sobre o tema”, preferindo, indubitavelmente a linguagem do palco.

Na opinião do encenador, a adolescente retratada nada tem a ver com a Condessa Bathory (uma figura maldita da época medieval à semelhança do Conde Drácula de Coppola), à qual é comparada no prefácio de Jorge Reis Sá (o que só faz salientar a polissemia do texto, que tal como toda a obra de arte é aberta e, por isso sujeita a múltiplas interpretações) - o editor e autor do prefácio, J. Reis-Sá, estabelece uma analogia entre a cena da banheira da peça e o banho em sangue virginal como ritual de beleza da maléfica aristocrata que assim conservava a juventude.

A adolescente protagonizada por Joana Nossa, é multifacetada e é explorada em palco, nas suas múltiplas facetas: a infantil, a perversa, a generosa, a sensual, a imagética, a enérgica, a contida, a mágica, a malabarista, a construcionista…

O espectáculo e o livro são duas metades da mesma laranja, uma vez que o primeiro ilustra o segundo à semelhança de um filme mudo, no qual o texto literário funciona como legenda.

No entanto, o texto revela-se um elemento precioso para entender alguns transtornos afectivos da adolescência pois fornece-nos pistas indispensáveis à descodificação de alguns comportamentos que poderão parecer, à primeira vista, excêntricos.

Indispensável para pais e para professores.

Interessante para os profissionais da psicologia.

Obrigatório em qualquer biblioteca particular (e não só).
Não perca.

Cláudia de Sousa Dias

"Jesus na Fogueira" Catherine Clément (ASA)

Tradução do francês por Isabel St. Aubyn



A versão agnóstica dos Evangelhos, pela filósofa judia, num livro bomba-relógio que faz parecer "O Código DaVinci" uma historinha para crianças!

Catherine Clement é uma consagrada escritora e ensaísta judia radicada emFrança. Licenciada em Filosofia e Ciências Humanas na prestigiadaUniversidade da Sorbonne, guarda, nas suas memórias da infância, a marca indelével do desaparecimento de vários membros da sua família em Auschwitz.

Talvez, por isso, a sua personalidade assente nos pilares de um refinado espírito crítico e de análise, na busca contínua do porquê das coisas na procura de uma explicação racional para aquilo que, para o comum dos mortais, não tem explicação, numa luta contínua contra a ingenuidade da crença dogmática e da demagogia.

A fé é-lhe sepultada em Auschwitz juntamente com a sua família.

Daí o sua aversão em relação aos "führers" carismáticos que levam as multidões à histeria.

Daí a sua repugnância relativamente a líderes religiosos, fundamentalistas, sequiosos de poder, presentes em todos os credos: judeus farisaicos (aqueles que mais interesse tinham na morte de Cristo), "ayatollahs" muçulmanos e todo o tipo de fundamentalismo cristão que tente suprimir as outras culturas ou religiões.

São, talvez, estas as motivações que levam a romântica Catherine Clément, autora de romances históricos baseados em algumas das mais belas Histórias de amor do último milénio ("A Senhora", "Por Amor da Índia", "A ValsaInacabada" e "O Último Encontro) a elaborar, desta vez, um romance de cariz filosófico - na senda do já conhecido " A Rameira do Diabo", também da sua autoria.

A Autora aventura-se, agora, no campo da metafísica, construindo uma versão agnóstica dos Evangelhos. Catherine transporta-nos para uma viagem no tempo, fazendo-nos recuar dois milénios para "aterrar" na Palestina ocupada, então, pelos Romanos.

Estes vêem-se a braços com a rebeldia dos judeus que fazem tudo para preservar a sua cultura, tradições e religião, aguardando a chegada do Messias que os liberte do opressor romano que, além de sangrá-los com impostos, impõe arrogante e gradualmente, a sua própria cultura, os seus deuses, a sua gastronomia (nem sempre conforme as ultra-restritas normas judaicas), a sua língua, as suas instituições...

A extrema ousadia de Catherine, neste mais que polémico romance, não se limita a encontrar uma explicação racional para todas as situações que a Bíblia descreve como sendo milagres. Apresenta-nos, para além disso, um Cristo sobredotado, viajadíssimo, com conhecimentos de tratamento de desarranjos emocionais por hipnose, meditação, versado nas artes de yoga, com capacidade para entrar voluntariamente em catalepsia e com vastos conhecimentos em medicina.

Pessoa de carácter impulsivo, irascível, com uma generosa dose de rebeldia sem, contudo, partilhar do fanatismo dos zelotas, Cristo constitui um ultraje e uma séria ameaça ao poder dos fariseus.

Genial, embora um pouco surrealista, a hipótese lançada por Catherine acerca do modo como Cristo possa ter sobrevivido à crucificação. O único ponto onde a autora não consegue ser totalmente convincente reside na explicação da cura completa, ou quase, das feridas causadas pelos pregos.

Mas a ousadia da autora não se fica por aqui. Catherine questiona a própria existência de Deus e do Diabo. A narrativa é iniciada pela voz de uma mulher que facilmente podemos identificar com a própria Catherine e que, numa cidade algures no continente indiano, encontra um atraente e misterioso euroasiático, detentor de um conhecimento invulgara cerca das diferentes civilizações.

Tai, o sábio asiático, assumirá a identidade do Génio Maligno que lança aDúvida e Catherine, o espírito que duvida. Os dois vão identificar-se, respectivamente, com Lúcifer (simboliza a subversão) e Lillith(mulher-anjo-demónio que foi a primeira mulher de Adão, segundo a tradição judaicado Talmude), que irão contar a versão ateia da vida de Jesus...

Este é um livro provocador. Cujo objectivo é inquietar os espíritos. Mas quenos ajuda a pensar com um pouco de autonomia.

Porque só assim é possível o crescimento. Só assim se ultrapassa a infância do homem. E isto é válido tanto para cristãos como para muçulmanos, budistas ou ateus.

Podemos estar a ler heresia pura. Mas nada que Freud ou Nietsche não tenham já pensado antes de Catherine.

Felizmente, este livro foi escrito já no final do séc.XX. O que significa que o Jesus de Catherine não arderá na fogueira ateada pelos pobres de espírito.

Porque escrever implica sempre imaginar e construir, ou reconstruir, na maior parte das vezes. E obriga a elaborar hipóteses para preencher lacunas.

Porque sem liberdade de pensamento, não há criação.


Cláudia de Sousa Dias

Saturday, February 26, 2005

"Filmes Proibidos" Bruna Lombardi (Quasi)






A tentação do abismo num cenário de transição para a última década doséc.XX, coincidente com o final da Guerra Fria.




"Filmes Proibidos" vem mostrar-nos um lado de Bruna Lombardi pouco conhecido pela maior parte dos portugueses. Aqueles que estão habituados a vê-la apenas como um rosto das novelas ou do cinema brasileiro, deparam-se com uma escritora de talento, consagradíssima no Brasil, tanto no campo da poesia como na prosa.




O livro fala de uma mulher, sócia de uma produtora de cinema alternativo, que se dedica, também, à publicidade para sobreviver e financiar os seus projectos mais ousados.




Trata-se de uma personagem cuja descrição física não nos é desvendada mas sugerida, pois torna-se facilmente perceptível que estamos perante uma figura feminina detentora de um grande carisma e magnetismo sexual - características que partilha com a própria autora.




O discurso é narrado na primeira pessoa - embora o romance não possa ser considerado, de forma alguma, autobiográfico - percebendo-se, facilmente, a projecção do constante monólogo interior da escritora no fio condutor que orienta o pensamento da personagem.




A prosa de "Filmes Proibidos" transpira uma forte carga erótica, despida de falsos pudores. A protagonista e narradora é, contudo, extremamente cotundente quando expõe os aspectos mais pitorescos das restantes personagens e, sobretudo, meticulosamente crítica e exigente em relação a si própria.




Bruna Lombardi recorre, frequentemente, à sátira e à ironia para relatar o lado burlesco quer das personagens quer das situações.




O estilo é coloquial, muito próximo do discurso oral, recheado de interjeições típicas do português do Brasil, de algum calão e muitos diálogos entremeados com períodos de descrição e narrativa nos quais temos a oportunidade de "ouvir" um pouco a voz poética da actriz-escritora.


Bruna Lombardi explora, através da sua personagem, a possibilidade de se fazer a escolha errada relativamente aos afectos, mas permitindo ao ser humano o acesso ao conhecimento do outro lado da vida, aquele de que todos têm medo - o terreno pantanoso do desconhecido que é, por isso mesmo, imprevisível e incontrolável.




É um romance que fala da tentação de explorar o Inferno dos afectos instáveis, contudo possuidores da intensidade que não se encontra naquilo que é politicamente correcto.


E que leva a pensar que, por vezes, é necessário sair do Éden para conhecer a realidade à qual teimamos, muitas vezes, em fechar os olhos.




Impõe-se, depois, a necessidade de reunir as forças necessárias para encontrar o caminho de volta. A cura está no regresso ao equilíbrio. À embriaguez do Samsara segue-se a paz do Nirvana no qual está contida a realidade por inteiro.




Um livro que, apesar de extremamente acessível, está longe de ser considerado superficial, quer pelo realismo, quer pela vasta cultura que transparece no texto da Autora, quer, ainda, pela profundidade psicológica das personagens e pertinência dos temas abordados.



Supreendente e viciante desde a primeira até à última página.




Cláudia de Sousa Dias

Thursday, February 24, 2005

"Jaya" Gita Mehta (Ulisseia)





O abismo cultural entre a "Índia real" e a Índia britânica através do olhar de uma princesa do reino de Rajputan.


Baseando-se nos depoimentos de um número considerável de mulheres oriundas das mais antigas famílias reais indianas, Gita Mehta compõe uma interessantíssima personagem central de um belíssimo romance histórico que abarca toda a primeira metade do século XX, coincidente com o processo histórico que levou à independência da Índia e à desagregação do Império Britânico.

A ideia surgiu-lhe a partir de uma frase de Mahatma Gandhi que afirmava que "Quem quiser conhecer bem a Índia, terá de estudar as aldeias e as mulheres indianas."

Por isso, em "Jaya", temos a oportunidade temos a oportunidade de olhar para dentro de uma zenana (harém indiano) e de nos introduzirmos um pouco no seu misterioso e secreto (do ponto de vista ocidental) quotidiano permitindo-nos conhecer em profundidade as classes dirigentes da altura.

A autora, tendo nascido em 1943, Nova Deli, filha de um membro proeminente de um dos grupos que se batiam pela independência da Índia e que veio, mais tarde a tornar-se um dos líderes políticos do estado oriental de Orissa, estudou na Índia e no Reino Unido.

Fortemente impregnada destas duas culturas, tal como a sua personagem "Jaya", a sua escrita é extremamente forte, dando largas ao seu sentido crítico, especialmente quando coloca em evidência a prepotência dos colonizadores e o seu ostensivo desdém pelos costumes, tradições e gentes da Índia, Mehta não poupa ninguém desde o vice-rei ao primeiro-ministro Winston Churchill.

A princesa Jaya, sendo uma personagem de ficção revela, contudo, um carácter extremamente verosímil e sobretudo pragmático pois é composta por uma mistura de traços de personalidade de várias mulheres da realeza indiana para além de assumir algumas facetas da própria autora, como por exemplo: o facto de estar marcada pela herança cultural milenar transmitida pelos seus antepassados e a instrução de cariz ocidental adquirida através da tutoria dos seus preceptores britânicos ou, simplesmente anglófilos.

Jaya nasce numa família tradicional, mas ao casar com um príncipe de um reino vizinho é compelida a rejeitar a sua própria cultura e a ocidentalizar-se.

O dilema de Jaya será, consequentemente, o de conseguir integrar-se, ser aceite e respeitada quer na Índia Britânica quer na metrópole onde é vista como uma "Vénus negra".

Mas Jaya só conseguirá ter total autonomia e liberdade de acção quando assumir a posição de regente do reino após a morte do marido.

Entretanto, sopram os ventos de mudança, decorridas duas guerras à escala mundial, na qual a Jóia da Coroa do Império teve de tomar parte activa - por imposição do governo da Metrópole - findas as quais, as finanças do reino se encontram simplesmente esgotadas.

A revolução impõe-se a necessidade de reconhecer a independência do continente indiano sob o domínio britânico já não pode ser ignorada.

O Império desagrega-se e com ele a maior parte dos regimes políticos dos reinos indianos incluindo Sirpur onde reina Jaya e onde, a partir de agora se irão realizar eleições livres. Uma nova esperança de autonomia para as mulheres indianas?

Um belíssimo pedaço da história do século XX. Para analisar e ajudar-nos a entender a complexa realidade de um continente que continua a seduzir e a inspirar a humanidade.


Cláudia de Sousa Dias

"O Último Encontro" Catherine Clément (ASA)

Tradução do Francês de Sara de St. Claire e Maria do Rosário Mendes

Uma história contada a três vozes onde duas mulheres se digladiam até ao último fôlego, pelo amor do filosofo ao serviço do regime nazi no seu leito de morte - o polémico Martin Heidegger - naquela que foi uma das mais belas histórias de amor do século XX.

Tendo já habituado o seu público a romances de extrema beleza, marcados poramores impossíveis, como em "A Senhora", "A Valsa Inacabada" e "Por amor da Índia", Catherine Clément apresenta-nos, desta vez, uma história de amor que se sobrepõe a todas as correntes ideológicas vigentes na época, tal como a águia que sobrevoa as nuvens planando sobre as colunas de ar ascendentes.

Catherine conta-nos o desenrolar de uma paixão que obrigou Martin Heidegger a ignorar as convenções religiosas da cultura cristã, que sanciona o adultério, e as imposições do regime nazi, que não só proíbiam como puniam implacavelmente as ligações afectivas entre arianos e judeus.

Da mesma forma, a lindíssima e misteriosa Hannah Arendt, uma intelectual brilhante que, pouco antes do deflagrar da segunda grande guerra, apaixonou-se pelo seu professor de filosofia, católico luterano e associado ao partido nazi, arriscando-se à censura da comunidade judaica a que pertencia.

Nesta obra , Catherine Clément explora, de uma forma pouco ortodoxa, os dois arquétipos inconciliáveis da esposa e da amante, as míticas Eva e Lillith incarnadas em Elfriede - a esposa ariana de loiríssimos cabelos, cristalinos e azulíssimos olhos, acérrima defensora do partido de Hitler, empenhadíssima na recuperação da nação alemã no período entre as duas grandes guerras, esposa e mãe perfeita, a viga mestra que suporta o lar onde reside Martin Heidegger, a guardiã da paz do filósofo.

E Hannah, a moreníssima estudante judia, errante, apátrida, dotada de uma inteligência invulgar, que simboliza o Oriente grego para o filósofo. Que, tal como a mulher-demónio Lillith, vem abalar a paz de espírito de Martin , como o ventode Leste.

Catherine Clément explora, a partir do discurso destas duas mulheres, as diferenças abissais de carácter entre as duas figuras femininas, cujo único ponto em comum foi o de terem amado o filósofo, caído em desgraça após a vitória dos Aliados.

Martin Heidegger é-nos apresentado no seu leito de morte, em estado de coma,mas não totalmente inconsciente, atormentado por sonhos\pesadelos onde as memórias se sucedem num vórtice interminável quase que à velocidade da luz e atormentado pela impiedosa disputa que as suas duas mulheres insistem em prolongar até ao seu último suspiro.

O seu estado de semi-consciência permite-lhe ter uma vaga percepção de tudo aquilo que passa à sua volta. À medida que se aproximam os derradeiros momentos da sua vida, diluem-se as fronteiras entre passado e presente, confundem-se os pensamentos que se sucedem a uma velocidade suicida.

Tenta, desesperadamente, escapar à decadência - isto é, à maldição de ficar aprisionado num dado momento da história, sem acompanhar a evolução dostempos.

Mas o tempo engole-o.

E o seu afecto dividido dilacera-o.

Esta é uma história contada a três vozes, onde podemos testemunhar o pragmatismo, o extremo o sentido de dever e o espantoso grau de possessividade no discurso de Elfriede. Ao qual se contrapõe o cosmopolitismo, a efervescência e a passionalidade e um acutilante sentido de ironia em Hannah e as perigosas oscilações de ritmos na "voz" de Heidegger num discurso, ora de uma tranquilidade nostálgica, ora de uma turbulência de tufão do Pacífico, numa tentativa desesperada de escapar ao abraço da Morte.

Catherine Clément oferece, mais uma vez, ao seu público uma história de um sublime amor proibido, entre duas almas que são como duas chamas que ardem em campos opostos.

Entre duas pessoas que significam duas formas de estar na sociedade irremediavelmente antagónicas: o nazi e a judia.

Um romance dolorosamente belo.

Que nos fala de um amor de uma beleza impossível.

Feito à medida de seres superiores.

Como Martin e Hannah.


Cláudia de Sousa Dias

"Zona Xis" Urbano Tavares Rodrigues (Quasi)




A fronteira entre a luz e as trevas, numa impressionante conjugação entre poesia, arquitectura e fotografia crindo uma ponto de convergência entre estas três áreas


Estamos, mais uma vez, perante um tesouro literário de qualidade indiscutivelmente superior a que a Quasi já nos habituou.

Nesta “Zona Xis”, a poesia de Urbano Tavares Rodrigues aparece, à primeira vista, quase como uma legenda do excelente trabalho de fotografia de Joel Moniz.

A justaposição da poesia ou, neste caso, da prosa poética, vem multiplicar as significações possíveis a atribuir a estas duas formas de arte que, por si só, já são polissémicas, ou seja, possibilitam uma multiplicidade de interpretações.

Nas imagens, encontramos uma beleza fria, incorporada num impressionante jogo de luz e sombra que permite esculpir volumes gradativamente numa escala de cinzentos – esta cor impera destacando-se pelo seu carácter de tonalidade intermédia, fronteiriça, remetendo para o título do livro.

É também frequente o contraste entre ângulos agudos e obtusos linhas que se interceptam bruscamente, linhas paralelas que só se encontram no infinito ou falsas perspectivas criadas pelo contraste claro/escuro. Tal como por vezes, acontece com os seres humanos.

Podemos também distinguir o poderoso contraste entre estilos arquitectónicos justapostos – a beleza clássica do passado e o minimalismo do presente.

O poeta, por seu lado, começa por falar de “casas fantasmais e quase sem janelas” sugerindo a ideia de ausência de luz e de vida. De facto, a cor que é inexistente em todas as fotografias, está, também, ausente em quase todos os textos-legenda. Quando é referida fala-se apenas de cores nocturnas ou espectrais como os azuis, o fumo, a prata, o luar sugerindo fortemente o spleen Beaudelairiano.

Urbano Tavares Rodrigues fala, igualmente, do crepúsculo como uma zona fronteiriça entre a vigília e o sono, entre a vida e a morte da alma como “jardins anoitecendo”.

A luz solar tem um lugar de destaque. Em diversos trechos a luz que jorra da clarabóia nas fotografias de Joel Moniz é identificada com a “lâmpada” ou “candelabro oriental” cujo feixe ilumina as paredes (ou as consciências) lisas e nuas, conduzindo o olhar, mostrando o Caminho à anima humana.

A luz é, na poesia de Urbano Tavares Rodrigues, o símbolo da liberdade de expressão que se opõe às trevas que a prisão, as grades, o medo e o peso opressivo da escuridão potenciam o amordaçar das consciências pela “ditadura do silêncio”.

A luz é também sinónimo de amor. Um amor cuja perfeição foi cristalizada algures no passado (o vidro está também presente nas fotografias de Joel), mumificado em saudade.

O mar – o azul que não se vê mas que está para lá das dunas e montanhas (obstáculos) – é o regresso ao estado líquido, como no ventre materno. O que sugere, talvez, a esperança de um recomeço de uma vida para além da morte. Ou o reencontro do amor após uma separação forçada. Ou até a morte como libertação ou passaporte para a liberdade como ilustra “ o remate em cruz de uma cúpula” com a imensidão celeste como pano de fundo na página adjacente.

As forças parecem, contudo, esgotar-se antes de atingir a praia – o limiar da Zona Xis.
O tempo e o vento da Mudança fazem desmoronar as falsas perspectivas – pps 36 e 37.

Quando nos aproximamos do final, os textos deixam de ser acompanhados por fotografias. Na última delas vemos, inclusive o predomínio do branco em relação aos tons sombrios apesar da desolação da paisagem invernal – um sinal de convalescença?

O poeta começa então a referir laivos que cores diurnas - “o amarelo martirizado dos estames” -, que começam a impor a sua presença dolorosa - “as feridas interiores a sararem no tumulto do casarão amarelo (amarelo - desespero), “folhas doentes (amarelas) dos tamarindos” ou “ o teu sorriso mais violeta (sombrio) que carmim”.
Nos últimos trechos a vida e o amor caminham de mãos dadas .

O luar espectral dilui-se e é substituído pela omnipresença do azul libertador, portador da paz, da serenidade e do bem-estar.

Sublime.


Cláudia de Sousa Dias

"O Afinador de Pianos" de Daniel Mason (ASA)

Tradução de Isabel Alves

O casamento perfeito entre a Palavra e a Música cujo resultado se reflecte numa criação literária com uma qualidade estética incomparável

Edgar Drake vive uma existência tranquila em Londres, com um casamento estável, sem filhos e com algumas dificuldades económicas.

Completamente apaixonado pelo seu trabalho - a afinação de pianos -, passa a maior parte do tempo na sua oficina, submerso em ferramentas e rodeado por"esqueletos" de pianos, quando não tem de se deslocar a casa dos clientes para trabalhar.

Um dia, recebe uma proposta irresistível do Ministério de Guerra, convidando-o a deslocar-se até à Birmânia afim de reparar um piano raríssimo.

Drake nãotem como recusar, apesar de esta decisão alterar por completo todos os aspectos da sua vida.Vai então sujeitar-se a uma longa e atribulada viagem transcontinental que consiste num dos mais belos trechos do romance descrito por Drake, nas suas cartas à esposa, Katherine, mostrando-lhe, extasiado, a mudança do clima, da paisagem, dos costumes, das gentes.

Chegando ao seu destino - uma remota localidade na Birmânia Oriental - ascoisas começam a complicar-se : conflitos diplomáticos entre colonizadores e olonizados, assaltos de tribos autóctones de salteadores e/ou guerrilheiros...Mas o major-médico Anthony Carroll é um importante elemento na mediação daquilo que parece ser um conflito intercultural num local "onde os deuses desfrutam a música e onde um piano pode ser usado para rezar".

O major Carroll é, por um lado, uma personagem muito sui generis que desenvolve uma forma de comunicação muito especial e uma proximidade bastante invulgar com os povos dos estados Shan, onde o conflito se encontra latente. Um homem diferente, que não parece ter a pretensão de "educar" as populações indígenas preocupando-se, ao invés, em respeitar os seus costumes e crenças.

Edgar Drake conhece também Khin Myo, uma bela, exótica e enigmática mulher daBirmânia. Entre eles desenvolve-se uma relação situada, algures, no limiar entre a amizade e o amor, pois ambos têm compromissos com outras pessoas.

Khin Mio é, desta forma, uma ninfa Calypso na companhia da qual este Ulisses britânico irá prologar a sua estada em terras do Extremo Oriente antes deregressar à sua Ítaca, onde o espera a sua Penélope/Katherine.Mas não se adivinha fácil o regresso às sombrias terras britânicas, com o sol da Birmânia no pensamento.

A música está sempre presente ao longo de todo o romance, não só pela constante referência a instrumentos musicais, ferramentas e processos de afinação, como também pela contínua associação de melodias e sons da natureza aos aspectos visuais da paisagem criando quadros sublimes. O que confere ao texto uma beleza etérea, quase sobrenatural.

O final é totalmente inesperado, aberto.

O drama instala-se e é deixado ao leitor imaginar o futuro das personagens.

"O Afinador de Pianos" é uma viagem de uma beleza indescritível ao Extremo Oriente onde a Música impera como símbolo do Belo como valor absoluto e onde desempenha o papel de mediadora da Paz.

Cláudia de Sousa Dias

"Na Corda Bamba" de Joanne Harris (ASA)


Tradução de Teresa Curvelo

A celebérrima autora dos best-sellers "Chocolate", "Cinco Quartos de Laranja", "Vinho Mágico" e "A Praia Roubada", leva-nos, desta vez, a efectuar uma viagem no tempo. Mais propriamente à França do séc. XVII.

Neste romance, J.H. conta-nos a história de uma jovem actriz e equilibrista que integra um grupo de saltimbancos. As circunstâncias obrigam-na fugir e a refugiar-se, incógnita, num convento para escapar a uma acusação de bruxaria.

Lá, encontra, durante cinco anos, a paz e a segurança que lhe permitem criar a filha.

Mas a morte da idosa abadessa, Mère Marie, coincide com a chegada de Guy LeMerle - uma sinistra figura do passado da ex-Donzela Alada, agora disfarçado de Père Colombin - que irá moldar a personalidade da nova abadessa: uma pré-adolescente, arrogante mas totalmente vulnerável, oriunda de uma família nobre e corrupta.

Os dois protagonistas - O Melro e a Donzela Alada - vão digladiar-se durante toda a trama, brilhantemente arquitectada pela autora, num impressionante jogo de poder.

Guy LeMerle, que representa para a Donzela Alada a sua "ave de mau agoiro"é, na verdade, um homem extremamente perigoso. Demagogo, manipulador, joga com as fragilidades emocionais das ingénuas religiosas que habitam o, até então, pacífico convento.

Uma ave maléfica que semeia a intriga, gera o conflito, espalha o medo, usando o poder de sugestão. Excelente actor, jogador exímio, fascinado pelo perigo, gosta de viver a vida "na corda bamba". Cínico até à medula, é motivado por um único desejo: a vingança. Para tal, não olha a meios para atingir os seus fins.

LeMerle é um perfeito Lúcifer, perversamente sedutor, incapaz de qualquer manifestação genuína de afecto e,por isso mesmo, facilmente induz o seu rebanho de dóceis religiosas a comportarem-se como deseja.

A tranquilidade paradisíaca do convento transforma-se num Inferno de desconfiança onde prolifera a mesquinhez, a delação e a calúnia.

Em contrapartida, a Donzela Alada é a única que pode apreciar condignamente as capacidades histriónicas deste melro perverso.

Juliette é uma mulher racional, bastante mais instruída do que as suas companheiras, mas possui, alguns pontos fracos: o seu cabelo ruivo aliado aos conhecimentos acerca das propriedades químicas das plantas e à capacidade de ler oTarot colocam-na, facilmente, face à possibilidade de ser conotada como bruxa -envenenadora.

Para não falar da sua filha Fleur - instrumento que o Melro não hesita em utilizar para silenciá-la.

Apesar de tudo, Juliette revela-se uma jogadora à altura, pois é a única que está apta a lidar com as mesmas armas do seu ex-amante.

Este pode, de longe, considerar-se o melhor livro de Joanne Harris até hoje escrito, ultrapassando até o seu delicioso "Chocolate", não só pela complexidade do carácter das várias personagens que figuram no romance, mas sobretudo pela suprema qualidade literária do texto, que ilustra de maneira muito vívida a complexidade da natureza humana.

E, principalmente, pela construção de uma personagem que pode ser considerada como o maior vilão conhecido, ultrapassando mesmo um Iago do "Othello" ou o detestável Scarpia da "Tosca", pela capacidade de usar da mentira, da dissimulação, das meias-verdades, pela periculosidade da sua maligna sedução.

Um vilão assustadoramente real.

Sem o lirismo das obras anteriores, "Na Corda Bamba"conserva alguns traços em comum com as mesmas, nomeadamente, a espantosa força de carácter e lucidez, típicas das suas heroínas, em Juliette.

O final é alucinante, um verdadeiro vórtice de emoções, oscilando ao ritmo próprio de uma montanha russa.

É especialmente interessante a alternância de discurso entre os dois protagonistas. Os capítulos narrados pelo Melro são assinalados com a pinta de espadas - símbolo do masculino, representa a lança ou o falo -, em contraste com os capítulos narrados pela Donzela Alada, Juliette, identificados pela pinta de copas - símbolo do feminino que pretende representar o cálice ou o útero.

Um impressionante jogo de equilibrismo no qual o último a cair é quem triunfa.

A eterna luta entre oBem e o Mal.

Entre a Mulher e a Serpente.

Quem será o vencedor?

Se é que a luta tem um fim...


Cláudia de Sousa Dias

"Biologia do Homem" Jorge Reis Sá (Quasi)



Estamos perante mais um lindíssimo livro lançado pelas Quasi Edições cujo lançamento contou com a mais valia da lindíssima voz de Mafalda Veiga.

Esta obra do jovem autor e editor famalicense é um misto de poesia e prosa poética na qual se nota, no aspecto formal, a nítida influência da romântica e nostálgica escrita de Maria do Rosário Pedreira, mas cuja temática reflecte a sensibilidade única de Jorge Reis-Sá.

“Biologia do Homem” é, sobretudo, um livro de memórias. “Todo o poema é memória” (pag. 33). Na primeira parte intitulada “Caminho de Candeeira” o autor reconstrói os momentos felizes de uma infância dourada, edénica, a qual é narrada com uma precisão quase cinematográfica, mostrando cenas do dia-a-dia, rituais em família, a solidez da Amizade gerada na infância, os lugares das brincadeiras infantis, a Escola e o despertar do prazer da aquisição do conhecimento.

Mas também a omnipresença indelével, como uma profunda cicatriz no tórax, do primeiro contacto com a Morte.

E claro, como não podia deixar de ser a referência ao primeiro amor e à sua estreitíssima ligação com a poesia como faz questão de mostrar nos poemas “A definição do Amor” (pág.29) e “Get Real” (pag30) onde afirma, respectivamente, que “Todo o poema é amor” e que “O primeiro amor é sempre anterior às letras, à escrita do primeiro verso”. E só os verdadeiros poetas sabem o quanto existe de verdade nestas duas afirmações.

A poesia de Jorge Reis-Sá é memória viva, dolorosa ou feliz, impregnada, por vezes de melancolia ou do gosto amargo da ausência como no poema “A Morte Continuada”. Poemas que narram uma existência feliz, estival, mas que por vezes são invadidos pela gélida nortada que anuncia a chegada do frio traduzindo-se em versos que apunhalam a alma de quem os lê como no “Poema ao Filho” (pag.17), no já citado “Morte Continuada”e, sobretudo, no último verso de “Pela Manhã o Pão” – poemas de Amor e Morte.

Na segunda parte do livro – “Força de Coriolis” -, o poeta utiliza esta expressão que é normalmente atribuída a um fenómeno físico, mas cujo significado, em linguagem poética, pode traduzir-se numa revolução do quotidiano que obriga a uma reestruturação completa de uma forma de vida tal como a Força de Coriolis que, após a passagem da linha do Equador, obriga a água em redemoinho a correr em sentido contrário. Ou, já agora, a direcção do vento após a passagem do olho do furacão.

Nesta segunda parte, Jorge Reis-Sá presta homenagem às pessoas mais importantes da sua vida: a mãe, e esposa, os amigos mais próximos, as pessoas que mais admira.

É a parte da sua autobiografia que corresponde à vida de jovem adulto que vai desde as memórias do tempo da faculdade à concretização dos seus sonhos de realização pessoal, passando pela descoberta do amor adulto, intenso e completo como nos poemas “Poderia dizer-te” (pag 37) e “O quarto da Morta” (pag 40), este último com a presença das aves consagradas à deusa Afrodite. Dois textos de prosa poética que poderiam facilmente ser considerados duas lindíssimas cartas de amor.

A poesia de Jorge reflecte também a sua vastíssima cultura, um ecletismo que abrange não só a literatura, mas também a música, o cinema e as restantes Artes do Espectáculo.

“Biologia do Homem” é o livro em que o poeta desnuda a sua alma para entrar em contacto consigo próprio e com as suas raízes à imagem e semelhança da criança cujo corpo nu repousa em total contacto com a natureza na lindíssima fotografia da capa. Um livro que apela à ecologia da alma humana e à integração no seu respectivo ecossistema natural: os afectos. O regresso às origens.

Um livro no qual abundam a criatividade e o talento mas que é, acima de tudo, autêntico.

Belo e autêntico.



Cláudia de Sousa Dias

"O Impressionista" Hari Kunzru (ASA)


Tradução de Isabel Alves

O esbater dos contornos da identidade, numa sociedade e época em que o racismo e a xenofobia implicam necessidade de integração e adaptação e, consequentemente, a perda da própria personalidade

O Impressionista" é um romance cuja acção se inicia na Índia Britânica dos anos 20.

Pran Nath, a personagem principal, é um adolescente mimado, oriundo de uma das mais prestigiadas castas da Índia: os Brâmanes (sacerdotes ou intelectuais). Mas a sua origem tem uma mácula: a da bastardia.

De repente, as suas características físicas - típicas de um ariano - passam a ser objecto de suspeita por parte dos seus conterrâneos e parentes, ávidos da fortuna do jovem.

O desmascarar das suas origens leva-o à expulsão da sua casta transformando-o num Pária - num excluído social - o que vai obrigá-lo a uma mudança de identidade.

As circunstâncias levam-no a assumir o papel de rapariga e a fazer parte de uma sinistra teia que integra uma complicada rede de tráfico humano envolvendomuitas das mais poderosas figuras do Governo Britânico na Índia.

Para preservar a sua identidade sexual, Pran Nath tem de agarrar a oportunidade de fuga logo que esta se lhe depara.

Mais uma vez, muda de nome passando à aprendizagem da sua "anglicização", absorvendo os hábitos e a cultura Britânicos - processo que se completará após a emigração para a metrópole e a usurpação da identidade de um conhecido seu que morre tragicamente.

Em Londres, veste perfeitamente a máscara do típico estudante inglês. Contudo, basta-lhe a mudança de ambiente para se sentir novamente desenquadrado desencadeando, mais uma vez, a necessidade camaleónica de se transfigurar para se confundir com a paisagem social que o rodeia.

"O Impressionista" é um romance cujo tema central é a despersonalização. Os contornos do EU esbatem-se, tal como os contornos numa pintura impressionista, deixando de haver, praticamente, diferença entre a verdadeira personalidade do protagonista e as máscaras que ele utiliza para sobreviver.

O EGO dilui-se.

Hari Kunzru, cujo "O Impressionista" foi considerado pelo jornal "The Observer" como "o melhor primeiro romance britânico de 2002," é detentor de uma escrita fria, implacável, de um realismo acutilante combinado com um humor tipicamente britânico, minucioso até ao extremo nos detalhes que levam a uma evocação perfeita das sensações e a uma nítida visualização de todos os ambientes descritos, o que cria um forte contraste com o título do livro.

Este autor anglo-indiano define, com olhar de lince, os choques culturais entre duas sociedades aparentemente antagónicas, mas cujo racismo exacerbado não permite que seres "híbridos" se enquadrem em qualquer uma delas e muito menos que possam adquirir prestígio social.

O simples facto de um indivíduo possuir os genes de duas etnias diferentes, com fenótipos tão díspares é, tanto na Índia como na Inglaterra da primeira metade do Séc. XX, um estigma de degradação e inferioridade moral congénita.

Através da descrição dos ambientes sociais, Kunzru foca a violência e maustratos a crianças, permitida dentro do meio familiar, o tráfico e utilização de crianças como brinquedos sexuais em bordéis especializados, a hipocrisia e frivolidade da alta sociedade no Império britânico.

Estamos perante um autor que, apesar de ser extremamente crítico, consegue abster-se da tentação de mencionar qualquer tipo de juízo de valor deixando ao leitor a tarefa de efectuar a sua própria avaliação.

O livro é valorizado pela apresentação, no final, de um glossário que explica o significado dos termos menos conhecidos da língua local largamente utilizados na Índia Britânica.

Um romance que, quer pela sua semelhança com acontecimentos que envolveram algumas das mais prestigiadas figuras públicas em Portugal nos últimos tempos, quer pela relevância a nível da compreensão da política internacional da actualidade, não conseguirá deixar ninguém indiferente.

Cláudia de Sousa Dias