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Sunday, September 14, 2008

"Olhos de Cão azul" de Gabriel García Márquez (Dom Quixote)


Apesar da escolha do título, aparentemente lírico, Olhos de Cão Azul, esta colectânea de contos de Gabo escrita na sua juventude, mais precisamente entre os anos de 1947 e 1955, traz à luz do dia o lado mais sombrio deste autor de origem colombiana: um lado depressivo, uma atracção pelo mórbido e pelo macabro a lembrar tempos difíceis, anteriormente à sua consagração como escritor, aos quais não estão alheias algumas perdas e privações.

A Morte e os seus múltiplos rostos, assim como a existência do “outro lado”, a teoria da metempsicose, são os temas principais, abordados ao longo da obra, num discurso que lembra, por vezes, a “voz” de Edgar Allan Poe ou Franz Kafka e a célebre A Metamorfose.
Olhos de Cão Azul marca, assim, a fase inicial da carreira de GGM parecendo, de alguma forma, situá-lo no limbo entre o gótico e o romantismo mas onde se notam já as marcas características do realismo mágico: o inverosímil no quotidiano, marcado pela presença do absurdo e por aquilo que não parece ter uma explicação racional, um lirismo, patente, neste caso principalmente, no comportamento e na componente emocional do imaginário das personagens femininas. Uma característica que se torna particularmente notória nos dois últimos contos, embora também, já bastante presente na estória que dá nome à colectânea Olhos de Cão Azul.

Todas estas pequenas estórias estão agrupadas segundo uma ordem cronológica, havendo entre elas, uma sequência, melhor dizendo, um fio condutor, apesar de poderem ser lidas separadamente. Estão, na sua maior parte acopladas duas a duas, excepto as de 1950 – cinco ao todo – a de 1951 – apenas uma, independente e isolada das restantes, mesmo no tocante ao tema e à personagens que a protagonizam. E depois, a de 1954 e a de 1955, as quais se podem associar por tratarem uma visão complementar da mesma estória.

Cada grupo de estórias contém duas faces da mesma moeda – no caso das que datam do ano de 1950 podem ser encaradas como as cinco faces de um pentágono, uma vez quie existem vários aspectos que as aproximam.

As estórias

O conteúdo temático das estórias de Olhos de Cão Azul exibe as cores da melancolia e de uma certa desesperança à qual não é alheia a nostalgia relativa a um período de felicidade que se cristalizou no passado – a primeira infância a lembrar um pouco o cenário sombrio de alguns contos de Tatiana Tolstoi, cujos contornos se diluem e alteram nas brumas do tempo obrigando à sua recriação. Esta tónica sombria é ,no entanto, temperada por uma exuberância discursiva tipicamente sul-americana, condicionada pelo clima luxuriante, pela fauna e pela flora.

Os primeiros dois contos – 1947 – intitulados de A Terceira Resignação e Eva está dentro do seu Gato falam da morte de um jovem. O primeiro, trata de uma vida, mantida artificialmente, com a ajuda da tecnologia. Uma vida vegetativa que tenta prolongar uma infância feliz, interrompida de forma brusca. No segundo, a figura central é uma mãe que enlouquece após a morte – desta vez definitiva, do filho. Apercebemo-nos que se trata das mesmas personagens cujo desenvolvimento é contado a partir do olhar de personagens e tempos diferentes.

Há, nestes dois contos, uma fractura relativamente ao mundo “real” e ao “outro” – o das sombras, o reino do Hades. Trata-se da temática da metempsicose tão ao gosto dos clássicos como Platão, Sócrates e, também, de Kafka, mais propriamente em A Metamorfose, uma das obras que mais perturbou García Marquez na sua juventude.

De 1948 fazem parte Tubal-Caín inventa uma Estrela e A Outra Costela da Morte. Trata-se de uma estória de dois gémeos onde a morte de um deles é contada, na primeira versão, pelo ponto de vista do morto – o testemunho da sua própria agonia – e, no segundo, pela voz daquele que lhe sobrevive cuja alegria é manchada pela dor da perda, que se agregam à solidão e ao remorso por ter sobrevivido.

No primeiro caso, temos um sentimento omnipresente de paranóia despoletada pela vertigem seguida da ressaca da cocaína que culmina num suicídio. No segundo encontramos alguém que ainda está na posse da sanidade mental mas que receia, também, entrar no vórtice da esquizofrenia pelo facto de possuir os mesmos genes que o irmão, do qual de ora a vante só conseguirá observar o rosto do outro lado do espelho.

De 1949, surgem mais dois contos a falar da temática da morte na juventude em Diálogo de Espelhos e Amargura para três Sonâmbulos. Trata-se de dois contos que são o prolongamento dos dois anteriores, de 1948. O primeiro, relata uma viagem na barca de Caronte do irmão falecido por outro irmão sobrevivente – que continua a enxergá-lo vivo do outro lado do espelho ao contemplar o próprio rosto enquanto faz a barba. A vida chama-o, no entanto, lá de fora, pela necessidade continuar a fazer as compras na mercearia, os males do mundo que entram pelas janelas e pelas frinchas como vindos da caixa de Pandora que é o Mundo e que o impelem, obrigam a viver…
No segundo, ocorre a transformação da mãe, mas desta vez, vista de fora, isto é vista pelos olhos daqueles que com ela convivem - os dois irmãos sobreviventes – e observam a progressiva queda no abismo da loucura a partir do momento em que afirma “Não volto a sorrir”.

1950 é um ano particularmente profícuo no que respeita à produção de contos de García Márquez: Natanael faz uma Visita, Olhos de Cão Azul, A Mulher que chegava às seis, A Noite dos Alcaravões e Alguém desarruma estas Rosas.

São cinco contos, independentes uns dos outros, detentores de particular beleza onde passamos a amar as personagens pela sua fragilidade.

O primeiro, emerge do centro de um torvelinho a envolver quatro ventos cruzados que rodeiam Natanael, o qual trava um diálogo casual com um engraxador que nunca consegue emitir uma opinião acerca de seja o que for. Tal como a jovem que o destino coloca diante de si. Indecisa, de uma indiferença prosaica, uma apatia que a impossibilita de qualquer diálogo aproximativo. Uma mulher de afectos estéreis que não sabe amar. Que apenas se preocupa com o quotidiano doméstico. Tal como os engraxadores que apenas se preocupam em dar lustro aos sapatos. Superficial. A concentração no lado material da vida onde a ausência de diálogo no relacionamento levaria à morte desse mesmo relacionamento.

Olhos de Cão Azul é o conto sobre uma jovem de “olhar fugidio e líquido” que atrai o narrador de uma forma irresistível, como a chama azulada de uma vela ligeiramente matizada de cinza, a que chama de Olhos de Cão Azul. Trata-se de uma comovente história de uma fixação.
Sedução.
Beleza.
Mistério.
Magnetismo.
Um olhar cinza-pálido.
Azulado.
Quase prata.
Olhos de Cão Azul é o sonho hipnótico, sonhado a duas vozes e partilhados por duas mentes.
Um sonho que se evapora com o despertar…

A terceira estória desta secção, A Mulher que chegava às seis, fala de um amor incondicional – no fundo, a temática comum a todas as estórias da obra, que se prolonga quase sempre para além da morte.

A Noite dos Alcaravões, dá à luz o drama da vida de três cegos que a quem estas aves arrancaram os olhos (alegoria à perversão dos regimes totalitários?). Tal como as harpias, os alcaravões castigaram três homens que a partir da malfadada noite em que bebiam cerveja enquanto conversavam na esplanada (após um eventual recolher obrigatório) já só conseguem amar, ver e imaginar o corpo de uma mulher pelo olfacto...

Alguém desarruma estas Rosas - vermelhas e brancas – cultivadas pela jovem envelhecida que com elas ornamenta a campa do amigo de infância. Todos os Domingos há alguém que desarruma, misteriosamente, as rosas do altar votivo, sempre que ela se aliena do mundo terreno, numa espécie de sonho acordado…

Em 1951 há apenas uma pequena estória a sair da pena de García Márquez: Nabo, o Negro que fez esperar os Anjos. Mais propriamente o anjo da Morte que deveria tê-lo levado após o acidente com o cavalo, que o deixa a viver no limbo entre este mundo e o outro. Os anjos chamam-no para tocar no coro mas Nabo fá-los esperar dois anos – período em que esteve inconsciente.

Depois a lesão cerebral prologa-lhe a vida por mais quinze com visível decréscimo das faculdades mentais. Mas o facto de a razão se encontrar afectada não o impede de se devotar a uma causa: colocar a Música no quarto da Menina…que nunca cresce.

A intolerância dos outros não lhe diminuiu a vontade de viver, agarrando-se ao mais pequeno pretexto para continuar a habitar o mundo terreno…

Os últimos dois contos, apesar de escritos em anos diferentes, em 1954, Um homem chega debaixo da chuva e 1955, Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo, são versões do mesmo fenómeno que se complementam.

A chuva torrencial e a épica enxurrada vinda dos Andes são o fenómeno que liga as duas estórias. A chuva cujo cenário é completado pela visita de um forasteiro, uma jovem que espera, a Solidão, profunda e inevitável, a clausura das paredes de uma casa e o isolamento provocado pela cheia são os ingredientes que compõem as duas últimas estórias de Olhos de Cão azul e de onde emerge a base para o mais notório romance do Autor: Cem Anos de Solidão.

O canto melancólico da chuva é como que um canal de comunicação que traz as vozes de outras paisagens, do passado e do presente. É, portanto, a chuva que desvenda a temática fundamental, o fio de condutor da obra. A chuva traz a lembrança das vozes que se perderam no Tempo. Ursula, uma das principais personagens femininas de Cem Anos de Solidão (onde também figura o coronel Aureliano Buendía que é referido no texto) é, aqui, a jovem que espera e ouve as vozes dos fantasmas do passado, vindas do céu e contidas nas gotas da chuva…

Também a Isabel de Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo faz parte do mesmo romance posterior a Olhos de Cão Azul. Trata-se de uma personagem utiliza o pretexto da magnitude das cheias andinas para fazer uma viagem introspectiva, associando o fenómeno natural a um ciclo de renovação – “porque a chuva dava uma nova vida ao alecrim e ao nardo”. Mas a magnitude da monção, após um verão de sete meses infernalmente secos, assume a dimensão trágica de uma catástrofe, semelhante a um terramoto ou um tsunami com a consequente perda esmagadora de haveres e vidas humanas…

Morte, devastação, isolamento…Solidão. E a chuva que convida ao alheamento , à melancolia e à desesperança, trazida por uma humidade tropical opressiva, que retira as forças e a vontade de agir à população explicam a morbilidade como sendo um traço geral da personalidade colectiva da população sul-americana – semelhante ao aroma da goiaba a apodrecer como afirma o Autor em O Aroma da Goiaba, em entrevista a Plínio Apuleyo Mendoza.
Apatia e paralisia, despoletadas pelo efeito narcótico do clima tropical, sobretudo pelas chuvas torrenciais que despoletam um intenso desejo de antecipação e um sentimento de impotência humana pela impossibilidade de condicionar o clima dos trópicos.

Apesar de o último conto desta bela e intrigante colectânea datar de 1955, esta só viria a ser publicada em1974, após a consagração do Autor como romancista.

Poder-se-á dizer que Olhos de Cão Azul será o lado oculto, lunar, de García Márquez.

O olhar doloroso da solidão – soledad, que é, também, o mais próximo que existe em castelhano da palavra saudade – que entra na alma …

…como a chuva.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, September 04, 2008

"A Loucura do Rei Marco" de Clara Dupont-Monod (Difel)


Clara Dupont- Monod nasceu em Paris, no ano de 1973, é licenciada em Literatura Moderna pela Universidade da Sorbonne. Escreveu crónicas e artigos relacionados com a Cultura e Temas da Actualidade para a revista Cosmopolitan e para a Marianne. Actualmente, colabora na revista DS, na secção cultural Créations e, também, no jornal L´Événement du Jeudi. A Loucura do Rei Marco é o seu segundo romance.

Baseado na lenda constituída a partir da paixão de Tristão e Isolda, em plena época medieval, A Loucura do Rei Marco é um romance – monólogo que se debruça exclusivamente sobre a paixão do marido traído pela esposa de beleza mítica, filha do Rei da Irlanda, com o sobrinho e filho adoptivo do monarca.
O Rei Marco é contemporâneo e, simultaneamente, vassalo do Rei Artur – rei supremo de toda a Bretanha que chefia os pequenos reinos da Grande Ilha, coordenando a defesa das ameaças exteriores, tais como os Vikings e os Normandos. Entre estes pequenos reinos encontra-se a Cornualha, em cuja fortaleza, Tintagel, reside o protagonista e narrador da trama. O tom da narrativa é marcado pelo discurso obsessivo e egoísta de um monarca de tendência absolutista, temeroso de ser suplantado por alguém mais carismático: Tristão. O jovem veado que ameaça arrebatar a liderança do velho Rei –Veado, segundo o imaginário da mitologia celta.

A origem do drama emerge da fama da beleza perfeita – à qual é atribuída uma aura quase que sobrenatural da jovem Isolda –, então adolescente. Um carisma que atravessa fronteiras, cruza os mares e se espalha pela Europa, até às soalheiras terras hispânicas.
O Rei da Cornualha decide, então, desposar a jovem sem mesmo a conhecer, motivado pelo instinto que leva um homem a possuir um objecto que os outros invejam. Envia então, o sobrinho, filho da irmã, em missão especial para entabular negociações no sentido de trazer Isolda para a Cornualha casando-a com o por procuração, ainda em casa do pai.

Marco está tão crente na inquestionabilidde do próprio poder assim como na fidelidade absoluta do sobrinho e respectiva submissão ao seu estatuto de rei, assente na convicção de que tudo lhe é devido, que ignora a extrema beleza e carisma de Tristão cuja idade é, além do mais, compatível com a de Isolda e no impacto que possa exercer no coração da jovem.
Tudo parece conspirar para que os dois se apaixonem e só o monarca parece não se aperceber do facto. A paixão entre os dois não podia deixar de ser fulminante e imediata, eclipsando o sentimento de lealdade e amor filial…

Há no entanto, em Tristão, um conflito interior que se percebe em todas as suas atitudes visíveis nas entrelinhas do discurso de teor indiscutivelmente maníaco do Rei Marco. Até mesmo quando Tristão contrai matrimónio com uma donzela de inquestionáveis semelhanças físicas com Isolda, mas a quem está longe de amar. Percebe-se facilmente as intenções do jovem ao colocar uma barreira entre si próprio e a Rainha da Cornualha. Tristão opta, por castrar a própria paixão, num acto de submissão à autoridade patriarcal, incarnada na pessoa do Rei, sentindo-se como que dominado por um sentimento de dever e lealdade a um droît du seigneur, socialmente instituído e inquestionável, ao qual agrega um ubíquo sentimento de culpa, que lhe censura o impulso de desejar a mulher do tio.

Isolda mostra-se por seu turno, uma mulher submissa e, poder-se-á dizer, fraca, porque incapaz de fazer valer a própria vontade, face aos dois reis que decidem o seu destino sem a consultar. Isolda foi educada para obedecer, o que se verifica logo no início quando aceita sem protestar, casar com Tristão que substituía o Tio, durante a cerimónia, havendo mesmo quem afirmasse, na altura, que este teria também tomado o lugar do Rei no leito da jovem esposa, durante a viagem…

Face a este contexto, não é de espantar que tenhamos uma Isolda aparentemente fria, indiferente, que Marco não hesita em classificar de hipócrita e falsa: Isolda não tem, praticamente, outra opção senão desdobrar-se e levar uma vida dupla, isto é, recalcar o que sente e exibir uma máscara a tempo inteiro no sentido de desempenhar o papel de Rainha.

No discurso do rei, cujo monólogo abrange as cerca de 160 páginas do romance, está omnipresente o sentimento de posse, acompanhado de uma imensa vaidade, um narcisismo que se mistura com deslumbramento, ódio, desejo de maltratar e punir, um cocktail de emoções violentas que visa substituir a atitude de indiferença pela dor, a qual confirmaria o domínio face ao objecto desejado.

Na realidade, nas emoções subjacentes a este romance de Clara Dupont-Monod podemos encontrar a raiz da maior parte dos casos de maus tratos a mulheres onde a figura feminina é tratada como um objecto ou propriedade do elemento masculino, uma mercadoria rara a qual se adquire, exibe e usufrui, não como uma pessoa com vontade e desejos próprios.

O final só poderia ser trágico, uma vez que os condicionalismos sociais de uma época histórica que constitui o auge da repressão da sexualidade e autonomia femininas no Ocidente, jamais poderiam permitir um desfecho diferente.

A Loucura do rei Marco faculta-nos uma oportunidade única para admirar a beleza da palavra da autora, projectada no discurso de um homem doente, que acaba por perder o domínio de si mesmo e até mesmo a própria identidade, ao encontrar, por uma vez na vida, algo que o poder e o dinheiro não lhe podem dar: o amor de uma mulher com “corpo de vento, de galdéria, de rainha esquecida, de criança doente”.

Um vórtice passional onde Amor e Morte se digladiam até à dissolução final.


Cláudia de Sousa Dias