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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, May 30, 2006

“As Sobredotadas” de Luísa Monteiro (Guizos)

As Sobredotadas é um texto dramático de uma escritora famalicense que reside actualmente no Algarve, onde dirige um grupo de teatro – os Guizos. Um projecto que, para além das artes cénicas, engloba também a literatura e as artes plásticas.

A peça
As Sobredotadas foi encenada em palco, causando grande impacto no público.

O texto aborda a problemática das crianças sobredotadas e do desempenho. Trata-se de saber se os resultados demonstrados provêm do potencial genético ou da submissão a um treino intensivo e incansável no que toca ao desenvolvimento de competências artísticas ou intelectuais. O resultado, na maior parte dos casos, manifesta-se com as consequências dramáticas de este tipo de crianças não chegar a vivenciar a infância.

As Sobredotadas é uma dramatização de um caso real, passado em Espanha nos anos trinta, envolvendo duas mulheres extraordinariamente inteligentes – mãe e filha – mas com uma relação disfuncional – as divergências ideológicas entre ambas levaram a mãe a assassinar a filha de dezoito anos.

A jovem Hildegart era, na altura da sua morte, licenciada em Direito e Medicina e preparava-se para estudar Letras e Filosofia. Ficou célebre pelos seus tratados sobre sexualidade e as suas teorias filosóficas são debatidas em universidades de diversos países.

Relativamente a Aurora – a mãe – estamos perante alguém com uma séria distorção da personalidade – mais propriamente, uma perturbação narcísica da personalidade – aliada a uma incapacidade manifesta de se vincular afectivamente a alguém. A sua relação com Hildegart – na peça, Hildegarda – é unicamente baseada num sentimento de posse: Aurora considera-se proprietária da filha. De facto, encara-a mesmo como uma criação\obra sua. Hildegarda é um mero instrumento de satisfação da sua vaidade enquanto a vê como um prolongamento de si própria. Aurora identifica-se como uma divindade criadora – “Eu sou a Aurora dos novos seres que hão-de vir”. Ela aspira ao movimento eugénico de aperfeiçoamento para a humanidade e considera-se uma reprodutora /moldadora de seres perfeitos.

Há algo de nazi em Aurora, tanto em termos ideológicos como na postura e até na forma como se veste (fato saia e casaco cinzento, de aspecto militar, como as guardas femininas dos campos de concentração nazis).

Por outro lado, sente necessidade de destruir a sua obra quando se apercebe que esta não corresponde àquilo que idealizou, insistindo em seguir o próprio caminho ideológico. Esta insubmissão, rebeldia despoletam em Aurora o desejo de lançar a filha para o abismo da morte, à semelhança do que acontece na Bíblia com o autoritário e omnipotente Jahveh e Lúcifer – o filho rebelde que tenta ultrapassar o pai. A Bíblia é, aliás uma das principais fontes de inspiração da Autora.

O carácter de Aurora é composto ou construído de acordo com os seguintes traços de personalidade: frieza, prepotência, tirania, autoritarismo e, sobretudo, megalomania. Aurora comanda a vida da filha em todos os aspectos sem lhe deixar margem de manobra, recorrendo, muitas vezes, à mais eficaz técnica de persuasão: a chantagem emocional. Em suma, Aurora personifica o conjunto das atitudes de uma personalidade narcísica com alguns traços de paranóia. Isto aparece explícito na cena XIV – “A menina não sai do meu âmbito ocular” e “Pensas que não sei que andas a conspirar para me matar?!”.

Hildegarda, por seu lado, mostra ser uma jovem que, para além de inteligente, isto é, com um enorme potencial de aprendizagem e capacidade de raciocínio, é uma pessoa extremamente metódica e aplicada. Hildegarda possui, apesar de tudo, laivos de criatividade, pois reserva sempre um “cantinho” da mente para dar largas à fantasia ao imaginar-se num local completamente diferente, um espaço aberto rodeado pela natureza – como sugere a música primaveril na peça – onde pode dar livre curso ao pensamento e às emoções.

Esta é a parte do seu ser que contém aquela dose de rebeldia que lhe permite afastar-se da mãe: enquanto que Hildegarda é criativa, Aurora é cartesiana. No entanto, a auto-estima da jovem é atrofiada pela falta de afecto.

A diferença de personalidade, como já foi dito, transparece até na forma de apresentação exterior. Enquanto que o vestuário de Aurora faz lembrar um uniforme militar, Hilddegarda exibe laços amarelos, a fazer lembrar borboletas, nas tranças. O amarelo é uma cor solar, quente, transmissora de energia, remetendo para o Verão. Ao contrário do cinzento que faz lembrar a esterilidade e a gélida desolação das paisagens do Inverno.

Esterilidade que se reflecte até na forma como escolheu o pai para Hildegarda: um mero reprodutor ou dador de esperma, escolhido a dedo apenas pelas qualidades físicas.
Quanto à socialização da filha, Aurora modela-a com base no modelo simplista watsoniano de Estímulo-resposta ou prémio-castigo reduzindo-a à categoria de ratinho de laboratório ou tratando-a como o canídeo de Pavlov. “Toma lá a banana. Mas não a mereces. Dou-ta porque gosto de ti.” Manifesta-lhe constantemente um falso afecto de forma a fazê-la sentir-se devedora.

A mente cartesiana de Aurora não lhe permite gostar de crianças nem aceitar a sua forma de pensamento divergente como, por exemplo, dar diferentes utilizações ao mesmo objecto.

O extremo racionalismo de Aurora com a sua acentuada idolatria à deusa Razão tem origem num complexo de inferioridade pelo facto de ser mulher e pela manifesta dificuldade em aceitar a sua feminilidade. Além disso, rejeita qualquer tipo de manifestação emocional por considerar este tipo de expressão como sinal de fraqueza ou típico dos seres inferiores.

Aurora quer construir o ser perfeito. A obra de arte em forma de mulher. Mas desumanizada.
Hildegarda é o oposto. Mais, ambas as personagens incarnam dois esterótipos perfeitamente antagónicos: uma é a personificação do Mal e a outra o símbolo da naïfté, que faz tudo para agradar mas não consegue. Ambas as personagens estão estilizadas, tal como nos contos de fadas ou nas histórias bíblicas. A principal diferença ideológica que traduz esta dicotomia reside no facto de Aurora considerar que “A liberdade está na grandeza do saber” – princípio que remete para as teorias raciais da história e para a superioridade de certas “raças” susceptíveis de criar “civilização” e dominar outras culturas – enquanto que Hilde defende que “A grandeza está na liberdade”, isto é que sem livre pensamento não há criatividade nem evolução.

Aurora é uma típica filha do patriarcado, daí o querer subtrair a sua feminilidade. Tal como a Athena da mitologia que teve de se manter assexuada e preservar a sua virgindade para manter o prestígio junto do pai Zeus, que fez com que os mortais acreditassem ter ela saído directamente da sua cabeça já mulher e armada de elmo, escudo e lança.

Hilde, por seu turno identifica-se mais com Afrodite, uma divindade mais antiga, primária, mais próxima dos mortais pela predisposição para apaixonar-se e ficar vinculada a alguém. Afrodite é também uma divindade à qual os outros deuses têm muita dificuldade em controlar. E é precisamente aquela que é responsável pelo sentido estético nos humanos, qualidade que está directamente ligada às artes e à criatividade. Tal como Hilde.

Num sonho, Hildegarda, aparece de cabelos soltos, vestida de cambraia amarela, flores amarelas na cabeça e descalça, dança enquanto faz bolas de sabão: trata-se de uma visão onírica de libertação e da explosão da feminilidade da jovem na cena VI. A materialização dos piores receios de Aurora.

Logo a seguir, Hilde é menstruada – facto biológico que faz com que Aurora se sinta traída pelas razões que já foram referidas.

Uma das características clássicas do texto dramático é a presença de indícios e presságios. Em As Sobredotadas, o indício mais evidente é aquele em que Hildegarda prevê a própria morte (cena XVII). Mais tarde, numa situação extrema, o facto de a mãe não lhe permitir manifestar o seu verdadeiro EU faz com que Hilde lhe peça que a destrua. É a sua única possibilidade de libertação.


A Autora pela voz de Hilde, salienta que os filhos, quando considerados como obra ou propriedade dos pais, são submetidos à extrema violência de uma relação doentia que esconde um sentimento maligno de posse, “disfarçado de amor sacrificado”. Algo que é confirmado pelo facto de Aurora achar o seu acto final – a sua solução final – algo de heróico que a coloca acima do resto da humanidade.

Uma obra pertinente acerca de um dos problemas da sociedade dos nossos dias.

A vaidade parental em ter filhos acima da média.

Muitas vezes uma violação de um dos principais direitos da criança.

O direito a ser criança.

Apenas e só.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, May 18, 2006

“O Horto da minha Amada” de Alfredo Bryce Echenique (Dom Quixote)


O Horto da minha Amada é uma divertida sátira social visando a alta sociedade limenha dos anos cinquenta, onde se critica o preconceito e a hipocrisia das elites conservadoras. Um romance contado num estilo reflexivo, cheio de meandros e apartes que são autênticas cutiladas sociais. O humor corrosivo de Echenique e a linguagem brejeira, isenta de vulgaridade, tornam a obra muito apetecível de ler, aliviando a pesada construção frásica a la Saramago.

A trama de O Horto da minha Amada gira à volta do adolescente Carlitos Alegre, um jovem estudante que aspira a entrar na Faculdade de Medicina, oriundo de uma das mais tradicionais famílias da alta sociedade de Lima. Carlitos trava conhecimento com dois personagens burlescos – os gémeos Céspedes – dois alpinistas sociais, provenientes de uma família nobre e arruinada que o Autor, de uma forma mordaz, coloca a viver na Rua da Amargura, um bairro que já foi residencial, mas que se encontra em estado adiantado de degradação.

Algumas das cenas mais divertidas da obra têm precisamente a ver com estes dois personagens, principalmente com as complicadas manobras de que se servem para ingressar na alta sociedade à caça de uma rica herdeira de boas famílias. O ridículo de que são revestidas as suas atitudes é enfatizado pelas tentativas patéticas de mostrarem aquilo que não são e sobretudo aquilo que não têm.

E a porta de entrada de que, descaradamente, se servem é a ingenuidade de Carlitos Alegre. Brilhante nos estudos, com uma excelente capacidade dedutiva, criativo e possuidor de uma fértil imaginação, à qual se junta uma extraordinária tendência para associar ideias, Carlitos é, em relação aos aspectos mais práticos da vida, extremamente distraído. E, por isso mesmo, um alvo fácil para os dois oportunistas que o utilizam, sem quaisquer pruridos em relação à ética – palavra que parece não figurar nos seus dicionários –, nos seus esquemas.

A boçalidade dos gémeos, conjugada com uma presunção sem limites, oferece um amplo leque de situações hilariantes. À infindável lista de gaffes perpetradas pelos gémeos, soma-se o sarcasmo mordaz do Autor cuja linguagem faz, por vezes, lembrar as cantigas de escárnio e maldizer. Duas características que tornam o romance especialmente apetitoso para o leitor minimamente dotado de sentido de humor e capacidade crítica.

Por outro lado, Carlitos Alegre, filho do conceituadíssimo Doutor Alegre, conhece a bela e sensual Natalia de Larrea, uma mulher de físico apenas equiparável ao de Ava Gardner. Milionária, com uma árvore genealógica que ascende até aos primeiros colonizadores do Perú, a jovem, trintona e divorciada, é cobiçadíssima inclusive pelas mais altas figuras da política e da alta-finança. Que não lhe perdoam o terem sido preteridas por um adolescente. Para cúmulo, existe uma diferença de idades de cerca de quinze anos entre os dois, o que é mais do que motivo para escandalizar as mentalidades mais conservadoras e puritanas da cidade. Tudo isto despoleta uma avalanche de tentativas de boicote ao romance, vindas de várias frentes: pretendentes rejeitados, família, amigos e conhecidos que não aceitam a exposição de uma situação, no seu entender, aberrante.

Natalia passa a ser vista como uma mulher fatal, corruptora de menores e, por isso, voltada ao ostracismo pela hipocrisia de quem pretende exibir uma aparência impoluta (apenas a aparência…). De forma que, aos dois amantes, nada mais resta do que refugiarem-se no horto de Natalia, uma casa de campo afastada da cidade, onde podem dar largas à fantasia e livre expressão aos seus afectos.

No horto, o casal conta com a cumplicidade dos caseiros – um casal de italianos imigrados no Perú – e do sisudo Molina, o motorista de ar aristocrático e de aspecto nórdico, quase tão invejado pelos irmãos Céspedes como a limousine que conduz. A protecção de Molina, sempre que ajuda Carlitos a sair das complicadas tramas em que o envolvem os gémeos Céspedes, juntamente com o seu humor britânico e a acidez do seu sentido crítico, tornam-no num personagem especialmente simpático do ponto de vista do leitor.

O mesmo se passa com a ternurenta mulher-criança Melanie Smith cuja amizade com Carlitos Alegre vai, progressivamente, aumentando à medida que a trama progride. É graças a Mélanie que nos apercebemos que a paixão de Carlitos e Natalia é de tal forma absorvente que quase impede qualquer outro tipo de contacto social. E é, também, através da candura da ruivinha aristocrata anglo-peruana que tomamos consciência da falta de uma companhia da mesma idade com o mesmo tipo de linguagem e interesses na vida de Carlitos Alegre.

E é neste aspecto que tomamos consciência do significado idiomático da expressão castelhana “levar alguém ao horto” com o significado de levar alguém para a cama usando de artifícios ou manipulação. A paixão de Natalia começa a atingir laivos de obsessão, levando-a a isolar Carlitos de toda e qualquer companhia. Primeiro, levando-o para o horto e, depois, para o estrangeiro, onde dependerá somente dela. Com o passar dos anos, a paixão de Carlitos e Natalia vai-se degradando progressivamente. O sentimento de posse e ciúme obsessivo tornará insuportável a vida a dois, à medida que as características negativas da personalidade de Natalia vão ficando cada vez mais vincadas.

No final, predomina o despeito e o desamor, tornando o caminho da relação irreversível.
A grande mais valia do romance está em mostrar que a personalidade não é algo de estático e que, ao longo da vida, há traços que se salientam em detrimento de outros que acabam por ficar em segundo plano, pela interacção com o meio. E, neste caso, o meio molda a personalidade de Natalia. Além de sofrer a rejeição social, Natália recusa-se a aceitar a inevitabilidade do seu próprio envelhecimento e, muito menos, ver-se preterida por outra mulher a quem considera muito menos bela do que ela própria.

Aos gémeos Céspedes, porém, está reservado um final à sua medida: conseguem, em parte, lograr os seus objectivos mas, apesar de tudo o tiro sai-lhes pela culatra. Encontram as respectivas almas gémeas mas, a escalada social não é exactamente aquilo que esperavam...

O grande objectivo do Autor é o de frisar é a convicção de que, a mediocridade, por mais que se empenhe, nunca consegue atingir o topo porque não só não possui o potencial, como também selecciona os métodos errados para atingir os seus objectivos.

O final mostra o idealismo e o optimismo de alguém que acredita fortemente na meritocracia, ou seja, no triunfo dos melhores, sem cair, contudo, na ingenuidade de descurar a influência do meio social no que respeita ao acesso à educação e à abertura das portas do sucesso profissional.

Em relação à abordagem do romance entre Carlitos e Natália há dois pontos de vista que podem ser observados: em primeiro lugar, o ponto de vista do “outro”, isto é a forma como a sociedade o encara e, para tal, o Autor serve-se de uma epígrafe de Barnave, para introduzir a linha de orientação em que se irá desenvolver o romance – Voila donc le miracle de votre civilization! De l’amour vous avez fait une affaire ordinaire - ; em segundo lugar, o ponto de vista dos dois protagonistas, isto é, a cegueira, a loucura da paixão voraz que quase que os esvazia de conteúdo em relação a todos os outros aspectos da vida e que Echenique ilustra com uma citação de Stendhal – La duchesse se jeta au cou de Fabrice, et tomba dans un évanouissement qui dura une heure et donna des craintes d’abord pour sa vie, et ensuite pour sa raison.

O estilo de Alfredo Bryce Echenique coloca em destaque uma acentuada veia humorística, com um colorido muito particular, mas e certa forma aparentado com o do escritor galego Gonzalo Torrente Ballester, ao evidenciar a ironia fina com que chicoteia alguns tipos sociais – entremeada com apartes que correspondem à voz do narrador dentro da própria narrativa, dotando-a de um discurso reflexivo, aparentemente caótico, cheio de meandros, mas extremamente divertido. Onde o preciosismo dos detalhes é levado ao extremo. Por vezes a inspiração vem também de Stendhal – Il n’y a d’originalité et de verité que dans les details

Apesar de a estrutura formal na escrita de Echenique se assemelhar um pouco à de Saramago – por vezes um período chega a ocupar uma página inteira – o humor corrosivo do Autor faz com que as páginas se virem compulsivamente na volúpia, refinada até ao extremo da arte da maledicência.

Para quem gostar de rir e brincar com as situações do quotidiano.

Para os amantes do bom gosto, o mais elevado expoente na escrita de escárnio e maldizer.


Cláudia de Sousa Dias