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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, October 26, 2009

“O Apocalipse dos Trabalhadores” de Valter Hugo Mãe (Quidnovi)




Num registo totalmente diverso do mundo medieval, povoado de expressões a lembrar a linguagem arcaica de épocas remotas em “o romance de baltazar serapião”, Valter Hugo Mãe revela-nos, neste seu Apocalipse… o mundo das trabalhadoras domésticas no interior do País e, simultaneamente, as dificuldades com que se deparam os imigrantes, vindos dos antigos países ditos “do Leste”(de acordo com a divisão ideológica da Europa no período da Guerra Fria) em Portugal. Com este livro, Valter Hugo Mãe permite que nos deslumbremos com a nostalgia, que nos é revelada pela sua forma de olhar os relacionamentos a partir da uma visão do amor numa franja da sociedade onde a existência é muito precária. Onde segundo o Autor, “no quotidiano está sempre presente o sentimento de perda, efectiva ou eminente.


Um dos aspectos mais cativantes do livro, é a referência a uma vida inteligível ou pelo menos espiritual, após a morte, com capacidade de pensar e raciocinar dotada de sentido de humor, sentido crítico e até, de algum veneno.


No discurso post- mortem de Maria da Graça, estão presente sob a forma de alegoria, uma virulenta crítica social, face à forma como as crenças são inculcadas pelas instituições, na mente do cidadão comum. Segundo o autor: “Era preciso muita lata para deus existir. Só deus foi incapaz de criar felicidade no mundo. Deus, a Cinderela e os Dragões estão extintos”.


A ideia de precariedade é, também, reforçada com a presença da morte, no romance, com o falecimento do Senhor Ferreira, o que irá despoletar toda a tragédia.


Valter Hugo Mãe é, também, um Autor a quem assusta a ideia do fascismo bem como a existência de algum saudosismo relativamente à época em que vigorava em Portugal um regime totalitário. Daí, também, a descrição em O Apocalipse dos Trabalhadores do mundo a que foram submetidos durante muito tempo, os trabalhadores na Ucrânia e que procuram, hoje em dia, Portugal, para eles “o país das flores”, em alusão à Revolução dos Cravos. Um país onde se faz uma revolução que é, sobretudo, poética, sem derramamento de sangue. A imigração é, simultaneamente, uma oportunidade para escapar a uma existência onde a precariedade é ainda maior e onde o fantasma da fome assombrou, durante demasiado tempo, a vida de muitas famílias. Trata-se de um encontro entre pessoas de origens diferentes, habituadas a níveis diferentes de precariedade.


O livro deveria ser, inicialmente, chamado de A Morte dos Tolos. A opção por este título deve-se à intenção de facultar uma compreensão mais imediata da temática do livro, apesar da perda de alguma da beleza poética do título inicial, mais em consonância com o estilo e o discurso, presente na prosa do Autor nesta obra.


A trama


Ao entrarmos nas estórias que se desenvolvem em paralelo neste romance, deparamo-nos, em primeiro lugar, com a aparente leveza dos diálogos entre Maria da Graça e Quitéria, cujos diálogos, apesar de se referirem aos mais triviais assuntos do quotidiano, abarcam o mais profundo do sentido da vida dos seres humanos.


Os amores controversos entre Maria da Graça e o Sr. Ferreira, do qual temos, de início, temos alguma dificuldade em descortinar a afeição por detrás daquilo que parece ser uma exibição de poder de um dos lados e interesse económico do outro. No entanto, vamo-nos apercebendo de uma forma gradual, da crescente admiração de Maria da Graça pelo patrão e da preocupação deste relativamente ao futuro da empregada.


Da mesma forma evolui o romance entre Quitéria, amiga de Maria da Graça, e o imigrante ucraniano Andryi que começa por ser apenas uma relação física mas de onde parte a afeição que surge com a convivência.


Em ambos os casos, é perceptível que a precariedade laboral condiciona a vida afectiva das pessoas, sobretudo no caso da protagonista, Maria da Graça, que chega a afirmar, no início, na altura em que envenena a sopa do marido com lixívia para que a indisposição deste a liberte da obrigação de ter relações sexuais com este, que “ o amor é para quem não tem nada que fazer”. A precariedade financeira condiciona muitas vezes a possibilidade de um divórcio e abertura de novo caminhos na busca dos afectos.


Maria da Graça e Quitéria são mulheres terrenas, autênticos rochedos humanos como são as varinas de Vila do Conde – a terra onde habita o Autor –, mas a viver em Bragança. Aliás, a própria Maria da Graça é mulher de um pescador, Augusto, que passa largos meses em alto-mar, visitando-a de longe a longe. Enquanto isso, Maria da Graça trabalha em casa do Senhor Ferreira, o qual abusa sexualmente dela. No entanto, aquela deixa-se fascinar pela sua erudição, uma vez que é o patrão quem lhe dá a conhecer um mundo maravilhoso até então, para ela, desconhecido: o universo da Beleza e da Arte. É pela mão do Senhor Ferreira que Maria da Graça contacta com a profundidade obscura das notas do Requiem de Mozart, com os contrastes dados pelos jogos de luz e sombra nas pinceladas de Goya ou dos nostálgicos e amargos versos de Rilke.


Maria da Graça odeia cada vez mais o marido e, embora não o queira matar, envenena-o aos poucos, colocando-lhe lixívia na sopa como forma de se vingar da existência de tédio que lhe proporciona. Na cama, inclusive.


Quitéria, a amiga e confidente, também empregada de limpeza, tem um amante. Ucraniano, jovem e belo: o Andryi. Este mantém-se, inicialmente, reservado, pouco interessado nas mulheres portuguesas, de constituição atarracada, escuras e gordas. No entanto, acaba por se afeiçoar a Quitéria, quase vinte anos mais velha, pela dedicação que esta lhe vota.


O enfoque dado à imigração vinda dos países de leste vem trazer uma lufada de ar fresco ao panorama da literatura portuguesa que raramente explora esta temática, salvo honrosas excepções como Luísa Monteiro ou Maria Velho da Costa. Valter Hugo Mãe traz um pouco de luz acerca de determinado período da história, vivido na Ucrânia durante o século vinte, assolado pela forme naquele país.


O Apocalipse dos Trabalhadores é, na realidade, um fresco que envolve as classes socialmente menos favorecidas em Portugal: um autêntico quadro social isento de considerações moralistas ou moralizantes.


Maria da Graça, por exemplo, não se importa de envenenar gradualmente o marido. Fá-lo sem ponta de remorso. Não se coíbe, também, de insultar o Senhor Ferreira quando este não está presente, apesar de a fascinar. Sente-se, no entanto, diminuída face à erudição do homem a quem admira.


Quitéria, por seu lado, extorque dinheiro às famílias dos mortos, cobrado 50 euros por sessão, como carpideira, “salário de médico”, obtido à custa da exploração da dor alheia.
Os vestígios da consciência surgem por via do remorso, tema já abordado em no anterior romance de Valter Hugo Mãe, o remorso de baltazar serapião. O mesmo remorso está patente nos pesadelos de Maria da Graça que se debate, às portas do Paraíso, em acesa discussão com S. Pedro, que lhe nega a entrada e o pedido para visitar o Senhor Ferreira.


A cena que se desenrola à entrada do Paraíso constitui uma alegoria ao mercado que se gera à volta das crenças individuais e das necessidades espirituais de cada um. São Pedro é-nos apresentado como um velho rabugento (à semelhança de muitos sacerdotes farisaicos), um burocrata, cuja missão é a de dificultar a entrada para o Paraíso ou o aceso à felicidade. Assume uma postura impávida e serena, de uma indiferença total aos vendilhões diante da porta que dá acesso ao céu, os quais tentam arrecadar os últimos cobres aos moribundos, tentando-os com recordações terrenas do mundo material.


Para Maria da Graça, cuja vida deixou de fazer sentido depois da partida do Senhor Ferreira, a morte a apresenta-se como o único caminho para ir em busca do amor e deixar para trás toda uma existência medíocre.


As marcas de detergentes como recurso de estilo para descrição de um universo muito particular


A referência constante a marcas de detergentes e lixívias no texto de O Apocalipse dos Trabalhadores, acaba por sublinhar uma das principais características das mulheres portuguesas das classes trabalhadoras: a preocupação com as limpezas e o asseio das casas., num ambiente em que a reputação das mulheres está espelhada no brilho dos móveis e dos espelhos ou no rutilar dos copos, cristalinos ou não. E no caso de empregadas domésticas como Maria da Graça e Quitéria, o mundo dos detergentes é, de facto, o seu universo. O mesmo universo cujos limites Maria da Graça consegue transpor os limites com o homem a quem ama, e com o qual descobre que não veio ao mundo unicamente para ser mulher-a-dias. A partir de então apercebe-se que a mulher não tem apenas funções higiénicas ou anti-sépticas, do arranjo do espaço doméstico e do trabalho caseiro. De certa forma, pode-se considerar O Apocalipse dos Trabalhadores como mais um romance defensor dos direitos das mulheres de Valter Hugo Mãe.



Portugal é um Cão Rafeiro


Numa impressionante alegoria, o Autor, num golpe de ousadia nunca antes visto, caracteriza o país na figura de um animal aparentemente insignificante, a que quase ninguém dá importância, mas que consegue sobreviver no meio de grandes dificuldades. Um país que revela a grandeza no meio da mais pura e reles insignificância.


A personagem Portugal, um cão cujo nome é atribuído pelo Sr. Ferreira, num rasgo de humor, abundantemente regado com o vinagre da ironia. Portugal é, assim, um cão que passa completamente despercebido, olhado com desprezo pela maioria dos seus pares – os janotas ricos - tal como o nosso País é, muitas vezes visto pelos parceiros da U.E (basta ver os termos com que Berlusconi se refere a Portugal, quando pretende desculpar a própria conduta). Assim em O Apocalipse dos Trabalhadores Portugal é o cão (ou o país) submisso, obediente mas manhoso, sensível e …impotente. Segundo o narrador: “ um rectângulo castanho, pulguento e…imprestável.” Um retrato impiedoso em relação ao nível de desenvolvimento, capacidades e mentalidade de um povo que se mantém, alegre e despreocupadamente, feliz na mediocridade.


O Apocalipse dos Trabalhadores vem, assim, confirmar o talento e o brilhantismo de um Autor, considerado por José Saramago como “um tsunami” na literatura portuguesa contemporânea, de humor displicentemente negro, que ao sintetizar a personalidade colectiva de um povo na figura de um rafeiro reflecte, por si só, a marca da genialidade.


Cláudia de Sousa Dias

Sunday, October 18, 2009

“A Idade da Inocência” de Edith Wharton (Europa América)



Edith Jones, Wharton pelo casamento, nasce em 1862 em Nova Iorque, no seio de uma sãs famílias mais tradicionais e abastadas da Costa Leste. Educada na Europa, movimenta-se dentro do círculo das elites de ambos os continentes, no ambiente restrito da aristocracia e da alta burguesia financeira, deparando-se com o desafio imposto pela sua personalidade anti-convencional em vencer os preconceitos típicos de uma sociedade ultra-conservadora para fazer aquilo de que mais gosta: escrever e publicar.
Aos 23 anos casa com o banqueiro Edward Robin Wharton, de quem se divorcia vinte e oito anos depois.
A sua primeira publicação de sucesso data de 1902 com
The Valley of Decision. Antes tinha escrito The Touchstone (1900). No entanto, o primeiro grande romance só é publicado em 1905, coincidindo com a época do divórcio, cuja temática incide numa virulenta crítica à alta sociedade norte-americana.

O pendor realista está muito presente na obra desta autora, de espírito inconformista, o que se evidencia sobretudo em Ethan Frome (1911) a enfatizar a luta individual face à pressões sociais orientadoras da conduta; e, também, em The Custom of the Country de 1913. Mas é com A Idade da Inocência que em 1921 obtém o Prémio Pulitzer e o reconhecimento internacional como escritora. Contou, também, com o apoio incondicional de um grande amigo, o escritor Henry James, nome que dispensa apresentações.

Edith Wharton passa a viver em Paris, a partir de 1907 e, em 1915, é condecorada com a Legião de Honra Francesa pelo auxílio prestado a refugiados de guerra. Virá a falecer em França, na localidade de Saint-Brice-sous-Fôret, em 1936.


A trama de A Idade da Inocência gira à volta de um triângulo amoroso composto por Newland Archer, advogado, oriundo de uma família abastada, gestor das propriedades do vasto clã que inclui a própria família e a da mulher. As suas inclinações afectivas colocam-no num dilema que opõe o seu carinho por May – a jovem com quem parece destinado a casar-se e que perece reunir todos os atributos considerados válidos e que a tornam elegível para esposa de alguém com os pergaminhos de Newland – à paixão que nutre pela Condessa Olenska que, após passar uma longa temporada na Europa regressa, divorciada e com modos afrancesados, a remeter levemente para a licenciosidade da corte de Versailles no tempo do Rei-Sol.

Archer é, também, um jovem de espírito inconformista – mas só em privado – que é sufocado pelo apertadíssimo espartilho das normas de conduta social, num meio onde a aparência de verticalidade e uma reputação sem mácula é tudo o que conta para a preservação do prestígio social desejável para se ser um modelo de conduta, invejado e imitado pelos demais. O equilíbrio precário entre impulsos e desejos a necessidade de submissão às convenções associados ao medo de se ser marginalizado levam Archer ao dilema existencial no qual reside o motor de desenvolvimento da narrativa.
May, a jovem com quem Archer é por todos os que o rodeiam subtilmente pressionado a casar, tem todas as qualidades que é suposto reunir uma jovem esposa de um advogado em início de carreira. Muito jovem, inexperiente, amante do exercício físico intenso, May não partilha do entusiasmo de Newland Archer pelas artes plásticas, arquitectura e paixão pelas letras. Talvez por a família da própria May ser de índole essencialmente pragmática, com os interesses centrados exclusivamente nos negócios e na vida social, os Weelland não conseguem interessar-se por actividades do foro intelectual senão superficialmente. A forma como May foi educada teve como prioridade o apego excessivo às convenções, o que cria algumas dificuldades no que respeita à conciliação das próprias afinidades com as de Archer. May é uma mulher inteligente mas frívola, com capacidade para amar mas a quem a educação revestiu de uma camada de gelo de tal forma espessa que se torna impossível de derreter. May tem sempre o gesto e o tom de voz certo para cada ocasião, tendo também desenvolvido a capacidade de colorir uma contrariedade ou censura com um sorriso ou uma frase apaziguadora. No entanto, esta característica acabará por fazer dela uma pessoa dissimulada e incapaz de enfrentar as situações, preferindo optar pela manipulação.

Ellen Olenska, legalmente casada com um aristocrata europeu reside em Paris. Prima de May, foi educada pela irreverente tia Medora Manson e pela maliciosa e condescendente Avó Catherine, as quais ajudaram a moldar uma personalidade tão inconformista quanto a de Archer. Após escandalizar a ultra-conservadora elite da costa este nova-iorquina, ao debutar com um vestido de cetim preto. Casa-se com um nobre da Europa do Leste, mudando-se para o Velho Continente, onde vive durante largos anos, numa atmosfera de luxo rendilhado de boémia, mas onde é respeitada. O fracasso do casamento com um marido de personalidade autocrática, além de dissipador, leva-a a regressar ao ninho da família de origem em busca de refúgio. Ao chegar, depara-se com a muralha das convenções. Todos parecem estranhar a sua maneira de vestir, ao olhar desconfiadas a figura da Condessa, desta vez num vestido de corte império, totalmente deslocada da figura estilizada das damas do início da belle époque, que olham com receio os seus modos exuberantes, recheados de estrangeirismos. No entanto, o principal motivo de receio é que a nódoa que constitui o estigma social altamente pejorativo de “mulher divorciada”, possa macular, de alguma forma, a aparência impoluta da imagem moral da família Weelland-Archer. O que mais abominam é a publicidade negativa que possa ser associada a um escândalo de ordem sentimental. Por isso, não é de estranhar que seja precisamente a família mais próxima a recear a presença da condessa Olenska. Sobretudo pela possibilidade de esta desviar a atenção de Archer relativamente à noiva. Por outro lado, temem a possibilidade de os seus pares lhe virarem as costas, recusando-se a sentar à mesa com uma mulher “transviada”. Na realidade, a maior parte dos convidados para o jantar de boas vindas a Olenska declina o convite. Para isso, será necessário recorrer aos Van der Luyden, o casal mais idolatrado e inacessível da Costa. O controlo social é apertadíssimo contando, para tal, com a minúcia que raia a mesquinhez dos árbitros das elegâncias, peritos em mexericos, como Sillerton Jackson que se entretém a apontar as supostas falhas dos outros de forma a desviar a atenção da própria conduta.


Olenska gosta de quebrar convenções a cada momento, apesar dos esforços para não o fazer – tanto na forma de vestir como na conduta em sociedade como, por exemplo, ao falar com homens, nem sempre bem conceituados no que toca a respeitabilidade com as mulheres, a qualquer altura do dia, independentemente do estado civil.
No entanto, a superioridade do carácter de Olenska destaca-se pela coerência com que ultrapassa convenções sem se sujeitar aos convencionalismos impostos pela opinião pública acerca de si própria. Sobretudo a de quem a não conhece directamente, a ela e às circunstâncias em que toma determinadas atitudes.

Quando Mrs Beaufort cai em desgraça, devido à imprudência do marido nos negócios, a solidariedade de Olenska para com a prima é de uma coragem a toda a prova, ao contraria a atitude dos seus pares, que decidem votar o casal ao ostracismo, mediante um imprudente lance financeiro. Defendem, também, que uma escolha mal calculada deve ser mantida indefinidamente.


Perante isto, Olenska escolhe desde cedo, viver de acordo com as próprias regras e ser ela própria a seleccionar as suas amizades. Primeiro, num contexto social onde lhe é permitido fazê-lo, como a Paris da viragem do século XIX para o século XX, onde conquista o prestígio social por mérito próprio, depois junto da família de origem, após o divórcio e, por último, novamente em Paris. Outro aspecto que faz com que Olenska se destaque da tribo a que pertence tem a ver com o estratagema “airoso”, dotado de falsa solidariedade, com que esta se tenta livrar dela, como o elemento incómodo, fazendo questão de sempre se afirmar como dona do seu próprio nariz e fazer o que muito bem entende. A própria família Van der Luyden, idolatrada pela mesma tribo como o protótipo da perfeição, acaba por ajudar a família de Ellen e May na altura de se livrarem daquela por a considerarem uma ameaça ao casamento de May. Para tal, organizam-lhe um jantar de despedida como se a homenageassem. Nesse momento, Ellen Olenska apercebe-se que todos a tomam por amante de Archer. Na realidade este chega, por duas vezes, a pensar em abandonar a cidade e traçar um plano de vida em comum com Olenska. Mas acaba sempre por ceder às pressões familiares, quer antes quer depois do casamento.

No epílogo, percebemos o lento processo de mudança, a marcar o comportamento das gerações seguintes, numa perspectiva optimista que transparece no discurso da Autora. Nos mais velhos, as atitudes e inibições solidificadas durante tantos anos, tendem a persistir. Só os jovens se movimentam segundo outras premissas. Assim se explica a atitude passiva de Archer numa altura em que poderia ter invertido o rumo das vidas de ambos, deixando-se levar pela inércia e comodismo. Atitude que transporta consigo, ao longo de toda a vida, passadas cerca de duas décadas. Isto porque a acção do tempo colabora no sentido da erodir a vontade e a iniciativa. Trata-se de uma das ideias mais importantes que a Autora pretende transmitir: Archer, após analisar todo o leque de oportunidades perdidas, apercebe-se de que viveu uma felicidade a meia haste, sem usufruir de todo o seu potencial.


Nesta fase da vida, Archer observa o comportamento dos jovens da geração a que pertencem os seus próprios filhos e de May, nos anos vinte do novo século, cuja mentalidade revolucionária favorece o afrouxamento das convenções, tal como acontece no vestuário, onde é abolido o espartilho e as saias começam a deixar ver as pernas.


Também nesta altura as fronteiras entre as classes sociais parecem ter ficado mais permeáveis, permitindo por exemplo, o fechar de olhos relativamente à origem de algumas fortunas. A mudança geracional ocorrida nos E.U.A., neste curto espaço de tempo, acompanha a evolução tecnológica, com a introdução e a disseminação do uso do telefone, as viagens mais rápidas. Tudo factores que aproximam a pessoas e agem como facilitadores da interacção social no sentido de permitirem ultrapassar algumas barreiras, desmantelar alguns preconceitos e desvalorizar estereótipos.


No entanto, a mensagem mais importante do romance é aquela que é introduzida por Ellen Olenska quando se refere à figura da Górgona que, ao contrário da lenda, não transforma propriamente os homens - ou as mulheres – em pedra. Apenas os endurece, no sentido em que “seca as lágrimas”. É a perda da inocência, onde o homem ganha, em troca, a resistência ao sofrimento. Ambos - inocência e sofrimento - se desintegram, devassados pela fria luz da realidade.


Onde o preço a pagar será, talvez, as emoções, doravante petrificadas…

Cláudia de Sousa Dias

Thursday, October 08, 2009

“Terna é a Noite” de Scott.Fitzgerald (Relógio d’Água)


Imagem: quadro de Tamara de Lempicka que serviu de base à capa do livro editado pela Relógio d'Água em 1991

Escrito nos anos trinta, Terna é a Noite possui uma faceta autobiográfica bastante vincada: findo o casamento com Zelda, Fitzgerald solitário, refugia-se no álcool e na memória de um casamento cheio de convulsões devido, em grande parte, à doença da esposa, afectada pela esquizofrenia.


A temática de Terna é a Noite é rica e envolvente porque dotada de verosimilhança, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento e amadurecimento das relações conjugais, ao incidir abarcando a convivência quotidiana com uma doente de esquizofrenia e, também, no contacto com as consequências de situações de abuso sexual, pedofilia, nas máscaras subjacentes ao desempenho dos papéis sociais aos quais corresponde determinado estatuto, na ligação do alcoolismo ao stress e à frustração de expectativas e ambições e sobretudo ao delicado relacionamento que se estabelece entre um médico e uma doente, quando estas duas categorias de pessoas se tornam um casal.


A primeira parte do romance passa-se na Riviera Francesa em 1925, onde o casal Diver vive rodeado de uma atmosfera de luxo e trava conhecimento com um elemento que acaba por ser o catalisador que irá precipitar o fim da relação - a jovem actriz Rosemary Hoyt. Aliás, nesta fase, a narrativa chega-nos, precisamente, pelo olhar de Rosemary, que recorda a forma idílica como conheceu o casal, alguns anos depois de os factos acontecerem.

O segundo abalo na relação dos dois protagonistas é precipitado pelo aparecimento de Tommy Braban, o milionário arrogante e algo exibicionista, que dará o golpe definitivo no casamento de ambos.


A primeira parte serve assim para dar a conhecer o cenário onde decorre a parte principal da acção – numa pequena povoação à beira-mar de Cannes - e apresentar as personagens e a forma como se articulam, definindo a orientação do desenvolvimento da estória.


Personagens

Assim, Nicole Warren Diver é uma jovem de vinte e quatro anos, que domina a praia defronte do hotel onde está hospedada, no apogeu da sua beleza: “…estatura alta e imponente, semelhante a uma estátua de Rodin, feições correctas, boca discreta”.


Nicole é extremamente rica, herdeira de uma das maiores fortunas dos Estados Unidos. Tem, ainda, uma personalidade esfíngica que magnetiza aqueles que a rodeiam. No entanto, quem convive diariamente com Nicole apercebe-se de seu temperamento inseguro e do raciocínio desorganizado: “Acolá existia um poço cuja cobertura estava sempre molhada e escorregadia, mesmo nos dias mais quentes. Nicole (…) gostava de ser activa, embora às vezes desse a impressão de indolência que era ao mesmo tempo estática e evocativa. Resultava isto de conhecer vários mundos e não acreditar em nenhum deles e assim, conservava-se silenciosa, compartilhando a sua urbanidade com uma exactidão que se aproximava da mesquinhez.”


A raiz desta personalidade reside num facto ocorrido nos primeiros anos da adolescência cujas consequências são a perda de confiança em elementos do sexo masculino. Confiança que é, aos poucos, reconquistada com a ajuda de Dick, conceituado psicólogo que exerce actividade na prestigiada clínica Suíça onde se conhecem vindo a casar alguns poucos anos depois.


A narradora Rosemary Hoyt começa por ser uma adolescente fortemente influenciada e manipulada pela mãe, a qual utiliza a beleza da filha como capital, investindo com a frieza de um agente de marketing na carreira da filha como actriz. Elsie, a mãe de Rosemary, “…casou duas vezes e o seu estoicismo bem-humorado não fizera mais do que aprofundar-se (…) e qualquer deles deixara um património que Elsie empregara na educação da filha (…) cultivava na rapariga um idealismo que ao presente a levava a ver o mundo pelos olhos da mãe (…). (…) Nutria prudente desconfiança por tudo o que fosse trivial, vulgar; contudo, o inesperado êxito da filha no cinema aconselhou a senhora Speers a achar oportuno conduzi-la a sentimentos afectivos: não lhe desagradava que o idealismo forte, exigente e inquieto de Rosemary se concentrasse em algo que não fosse ela mesma”. Mrs. Speers educa, portanto, Rosemary para que possa garantir a própria independência e fazer sempre aquilo que tem vontade: "Eduquei-te para o trabalho e não propriamente para casar (…) joga todos os recursos. Aconteça o que acontecer não serás prejudicada porque estás economicamente garantida”. Mais tarde, o segundo narrador, faz a ligação desta forma de pensar ao verdadeiro temperamento da jovem ao reflectir que apesar de moldada pela mãe: “ O seu fundo real tem muito de irlandês: romântico e ilógico”.


Rosemary, nos primeiros dias da estadia na Riviera, começa por se entediar. A calma e a tranquilidade do lugar, feito para umas férias pachorrentas, não se adequa ao seu impulso adolescente para a aventura e diversão. Rosemary achava a vida em França vazia e antiquada. Até conhecer os Divers.


Dick Diver, o marido de Nicole é um psiquiatra completamente integrado no mundo científico e académico da Europa, tendo publicado vários livros, inspirados na corrente psicanalítica que na época era considerada de vanguarda. Conhece Nicole Warren, durante o internamento desta, no hospital onde trabalha conjuntamente com o Dr. Dömller, seu amigo e mentor. Dick acaba por apaixonar-se pela jovem, sendo que não é o responsável directo pelo tratamento desta, cuja terapia está, na realidade, a cargo do colega.


Um dos momentos mais importantes de toda a narrativa é a cena que incluiu o diálogo entre o pai de Nicole e o médico desta, o Dr. Dömller, onde o Autor consegue imprimir, num primor de subtileza, a verdadeira personalidade do pai da jovem, camuflada nas entrelinhas: trata-se de um ser vaidoso e egocêntrico, excessivamente preocupado com a imagem e o estatuto e por isso dado a atitudes de pendor hipócrita.


O diálogo entre o médico e o pai de Nicole desenvolve-se de uma forma inteligente e perspicaz. Um combate do qual Warren sai irremediavelmente derrotado, posto a nu olhar aquilino de Dömmler. Nas falas de ambos os interlocutores, o leitor mais atento poderá encontrar as falhas, as contradições as incongruências, as mentiras, que constroem a máscara exibida por uma sociedade pelo suposto perfeito cavalheiro que é, na verdade, um sujeito perito em esconder-se atrás de uma aparência irrepreensível e de um estatuto intocável.


Dick é, no entanto um homem que, apesar de liberal tem uma educação marcadamente conservadora: no início, sente-se desconfortável face à disparidade causada pela abissal diferença no que respeita à sua situação económica e a de Nicole. Por outro lado, a atitude demonstrada em relação aos negros assume um carácter paternalista, sobretudo na cena em que trata a cunhada de Mary, de origem indonésia, como criada. O preconceito em relação aos homossexuais espelha, também, a crença em voga na época, que preconizava toda e qualquer manifestação fora do contexto heterossexual como uma doença.


O desgaste acumulado pela necessidade de exercer a profissão de médico vinte e quatro horas por dia, fruto da doença da mulher acabará por minar-lhe o equilíbrio psíquico e ajudá-lo a precipitar-se no abismo da dependência do álcool, que usa como anestésico emocional.


Dick, visto por Rosemary


Para a jovem, “Dick Diver constituía uma aventura notável: acreditava-se que fazia concessões especiais a cada um, consoante a sua originalidade, oculta sob compromissos antigos (…) abria-lhes a porta do seu divertido mundo. Enquanto se entregassem por completo, Dick só se interessava por torná-los felizes, mas ao primeiro dealbar da dúvida, ele evaporava-se-lhes à vista, deixando pouca recordação comunicável do que dissera ou fizera.”


O casamento dos Divers e a relação com Rosemary


O casal Diver (“os mergulhadores” que passavam a vida na praia durante a estadia na Riviera) conhece Rosemary em Junho de 1925 na atmosfera de luxo e ócio da Riviera francesa, onde os turistas milionários passam as tardes preguiçosamente entre a praia e o hotel.
Dick sente-se, durante algum tempo, atraído pela extrema beleza e juventude de Rosemary. Esta, por sua vez, deixa-se deslumbrar pela maturidade e refinamento do médico/ psiquiatra o impudor paradoxalmente misturado com a candura adolescente com que se declara a Dick desarmam-no perante a paixão fulminante demonstrada pela jovem.


Inicialmente, a juventude de Rosemary constitui uma lufada de ar fresco em comparação com a personalidade instável de Nicole. Uma vantagem que vai, gradualmente, perdendo à medida que entra na idade adulta e que se vai aperfeiçoando na carreira de actriz, tornando-se frívola à medida que as suas formas vão ganhando contornos mais roliços.. enquanto isso Nicole conserva a figura esbelta da juventude e vai, gradualmente também, afirmando a própria personalidade, à medida que adquire segurança, caminhando no sentido da superação da doença.


Nicole apercebe-se quase instantaneamente da atracção de Rosemary por Dick, os olhares, suspiros, postura, etc…


A situação do casamento de ambos é descrita pelo poema declamado por Lanier, filho do casal. Trata-se de uma provocação do autor, ao colocar uns versos aparentemente inocentes na boca de uma criança que deixam, subliminarmente, transparecer frases de elevada conotação erótica a ilustrar a relação do casal sem que, aparentemente ninguém se aperceba.


O Rival


Tommy Braban entra, logo no início do romance em acesa competição com Dick, com o objectivo de cativar a atenção de Nicole, desvalorizando o marido, Tommy não duvida nem por um momento de que sairá vencedor. Comporta-se como um verdadeiro militar, utiliza o pensamento estratégico, um César nascido para o triunfo, que no entanto adopta uma atitude descaradamente chauvinista em relação às classes sociais mais humildes, não as considerando como pessoas e ao olhá-las como a cidadãos de segunda categoria. É como é o caso da opinião que exprime quando lhe perguntam se não tem curiosidade em saber o que se passa na cabeça dos criados referindo-se-lhes como "…mentes velhas, fragmentos de loiça, pontas de lápis…”, a que se junta um ódio vincado ao mundo onde está implantado o regime comunista. Apesar de tudo, Nicole insiste em vê-lo como um herói, apesar da sua arrogância. Porque a ela sim, trata-a como a uma igual. Braban é alguém que não está constantemente a analisá-la ou a interpretar as suas atitudes como faz o marido, levando-a a condicionar o comportamento e a agir consoante expectativas que não são a s suas.


Os Americanos vistos por um Socialista Europeu


Das diferenças ideológicas nasce o confronto entre Tommy Braban e o Casal McKisko. Trata-se de um par algo pedante constituído por um escritor que pretende ascender à categoria de Joyce, sem nunca o conseguir, refugiando-se no álcool, sem nunca ultrapassar a fronteira de mediocridade, juntamente com a esposa, Violet, a fazer coro com ele.


McKisko e Braban, entram em conflito, uma vez que o escritor sente dificuldade em aceitar a imposição de alguém a cuja obtusidade o coloca numa categoria inferior a si próprio.


“ … perante um homem que lhe parecia obtuso e a quem não reconhecia superioridade preferia concluir que Braban era o produto de uma mundo arcaico e, como tal, desprovido de valor. O contacto de McKisko com as classes privilegiadas da América impressionara-o contra o pretensiosismo destas…” Braban é obviamente incluído nesta categoria.


Terna é a Noite


As noites na Riviera são suaves, amenas, ternas. De uma tepidez que confere ao cenário todo um clima propenso à sedução e ao romance.


Um sortilégio que envolve todas as personagens cujos defeitos contrastam com o esplendor do cenário. O autor utiliza, aqui, a ironia para sublinhar determinadas atitudes das personagens sobretudo nos aspectos mais torpes. O lixo emocional disposto e exposto, sobre um fundo de luxo, beleza e glamour:


Envolvera-os a magia daquele sul quente e suave: a noite de garras de veludo; o marulho distante e fantástico do mediterrâneo”.


Uma personagem que parece ser recorrente em Fitzgerald é a do artista que se afunda numa espiral de auto destruição. Neste romance é-lhe atribuído o nome de Abe North, o músico suicida, alcoolizado, personagem idêntica a ao pianista que frequentava a mansão de Jay Gatsby em “O Grande Gatsby”.

As origens Sociais da principais figuras femininas de “Terna é a Noite


No romance “Terna é a Noite” observamos que o trunfo de cada uma das figuras femininas que aí intervêm depende da linhagem e de efectuarem ou não um bom casamento. Nicole é neta de um capitalista americano e de um aristocrata de origem germânica , o Conde Lippe Weissenfeld . No entanto, transita de um casamento com um psicólogo onde se começa a notar a decadência profissional e pessoal para uma união com um portento, protótipo de macho bem sucedido. Mary North esposa de Abe, o músico suicida e depois, de um príncipe oriental é filha de um operário por um lado e descendente do presidente Tyler por outro. O seu estatuto muda radicalmente após o segundo casamento. Já Rosemary, proveniente da baixa burguesia e acidentalmente catapultada para o estrelato, mediante a própria beleza e o calculismo da mãe. É a única que tenta fugir ao enquadramento tradicional nos estereótipos clássicos que são normalmente atribuídos às mulheres: o de esposa e o de cortesã, sem haver lugar ao meio termo ou a uma categoria alternativa. O percurso de Rosemary segue o caminho em direcção à autonomia, dentro do mundo artístico. Corre, no entanto, o risco de vier a ser utilizada pela poderosa máquina do marketing da Meca do cinema que tende cada vez mais a empurrá-la para a segunda categoria.


Há várias considerações de carácter social que são referenciadas no texto como por exemplo, as oscilações de humor, tipicamente anglo saxónicas, em Paris, principalmente no que toca aos americanos. O autor explica, também, o crescimento do capitalismo a partir do desenvolvimento das necessidades ou capricho dos ricos a partir de uma ida às compras de Nicole.
É prestado também o tributo à amizade como o afecto mais duradouro porque despromovida de interesse ou desejo de posse: “…ao contrário dos amantes, não possuíam passado ; aos contrário dos esposos não possuíam futuro”, referindo-se particularmente à relação de Abe North e Nicole.


Outra referência de particular importância é o facto de aos negros ser-lhes vedada a entrada em hotéis de luxo na Paris e na Riviera do período entre as duas grandes guerras.

Terna é a Noite é, por isso, um maravilhoso fresco que expõe o retrato social de um tipo de elite que marcou uma época: a alta sociedade da era do jazz nos países anglo-saxónicos, que se movimentam dentro e fora do seu país, nem sempre como um peixe dentro de água, e que se destacam pela vulnerabilidade emocional e debilidade que traz a marca da sua queda, na viragem da década.

Cláudia de Sousa dias