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Thursday, March 19, 2015

“Fome" – Flanzine nº6


Não. Não tem nada a ver com os Hunger Games. Mas, aqui, aborda-se todos os tipos de “fome”.


Para este número da Revista, o editor, João Pedro Azul, seleccionou uma lista de autores novos, alguns ainda embrionários, cada um deles convidado por um participante dos números anteriores, alguns não totalmente desconhecidos mas já com larga experiência nestas lides embora com escassas publicações e outros ainda a dar os primeiros passos na escrita literária.

João Pedro Azul é o único que esteve presente em todos os outros números anteriores, como autor ou editor, decide, neste número, evocar no editorial a figura de um pai pragmático, profundamente ligado à terra e às sensações físicas, à problemática de se ser ou não capaz de viver e sobreviver alimentando-se de...literatura. Talvez um dos motivos pelos quais haja tão pouca gente, já não digo a escrever mas pelo menos a ler, seja a ideia preconcebida de que a literatura não é "alimento", cuja consequência directa é o pouco valor que se dá no nosso país à cultura em geral e à literatura em particular.

Das ilustrações da Flanzine da “Fome” destacamos a “eloquência” visual da figura de Daniel Bessa na qual um humano de gravatinha florida e faca e garfo em punho se prepara para trinchar, esquartejar um porquinho-mealheiro. Ou a provocadora ilustração de Liliana Lourenço com um empregado de mesa vestido a rigor de gravata “papillon” a servir a uma família de pé descalço restos doe um contentor do lixo. Ou a “untitled” de Mara Castilho, espacio-temporalmente localizada na Bósnia Herzegovina de 2003, exibindo os contorno de uma figura feminina, uma estátua, decapitada, caída sobre escombros. À volta tudo lixo, desperdícios, manjar dos deuses para necrófagos. O símbolo de uma Europa em ruínas, derrotada pela fome, consequência da guerra.  Um "Coração Esfomeado" de Liliana Rodrigues exibe o principal músculo do corpo humano com a parte inferior apresentar irregularidades cromáticas fazendo-o assemelhar-se a um tórax no qual sobressaem umas costelas que parecem estar em vias de rasgar a pele. “Os Apetites”, poema de Ricardo Marques ilustrado por Alex Gozblau, são representados pela sombra de uns talheres deixados ao acaso sobre uma superfície plana que se supõe ser uma mesa. Leonor de Almeida prefere mostrar-nos “O Prato do Dia” para executivos engravatados, intitulado “Português com Larica”, onde se pode ver uma figura humana servida num prato, enrolada como uma pescadinha de rabo-na-boca, em cima de uma toalha quadriculada, na qual repousam umas mãos e a ponta de uma gravata preta de alguém que se prepara para uma degustação de...um português, já sem cuecas nem tanga, prestes a ser engolido por alguém que parece ser um executivo apreciador do produto típico da “tasquinha” que é Portugal. Jaime Raposo, autor da ilustração “A Cadeia” optou pela apresentação irónico-satírica da cadeia alimentar em que se apoia a sociedade de consumo: um ursinho “fofinho”, com corpo de abutre, prepara-se para beber as ideias de Carl Jung, os seus estereótipos para melhor conseguir rotular e depois manipular o seu semelhante de forma a alcançar os seus objectivos; Jung, que alimenta as suas ideias e teorias através das palavras dos seus pacientes, que são o cadinho onde se cozinha o bem e o mal; a avidez do lucro simbolizado pela menorah (aqui o judeu leva com a marreta do estereótipo clássico) de quem manda nas finanças do planeta alimentam (com dinheiro) o consumidor que, por sua vez é sugado pelo abutre. Já a ilustração de Susana Carvalhinho dá vida a uma mulher sedutora, cuja solidão esconde a fome de afecto. A máscara e todo o aparato de sedução que surgem na imagem servem para ocultar o peso da solidão. Vítor Mingacho pinta as hiper-calorias de uma sociedade industrializada e a sua pesadíssima pegada ecológica. Já o frenesim de comer está eloquentemente inscrito nas expressões vorazes da ilustração de Alexandra Belo. A figura de Inês Magalhães apresenta a imagem de algo híbrido que tanto pode ser um molusco a mover-se em meio aquático como um legume num jardim. Ivo Hoogveld mostra o homem no centro do seu universo como o último ser da cadeia alimentar, sobrepondo-se-lhe e, ao mesmo tempo, diluindo-se nela. Na solidão de um quarto exíguo de onde se destaca a desolação das paredes nuas, está incorporada uma mulher sem rosto, despersonalizada portanto, tetricamente iluminada por uma lâmpada eléctrica. A lâmpada conduz o olhar para uma mesa sem toalha, em segundo plano, em cima da qual está um prato vazio e um copo com água. A fome repousa sobre a mesa. André Chiote utiliza a imagem de um gato e o seu negativo,ou o seu inverso, para inverter também o pensamento inicial que utiliza na metáfora “rato no estômago” que, no discurso oral, simboliza a fome, para escarnecer de um ser que comeu “gato por lebre”.

Na poesia, a revista reúne vários estilos, desde a cantiga de escárnio e maldizer, num poema de inspiração marcadamente popular como a de Artur Gonçalves - “A Tua Fome” - ou a ironia de José Luís Costa" (Mais um para a Galeria)", ao estilo erótico de Eliana Bernardes “Palavra ao Homem Kirsch”, um dos melhores poemas da revista, juntamente com o “Banco Alimentar” de Catarina Nunes de Almeida a falar de uma inominada esperança, que a si própria e de si própria se alimenta. Os “Apetites” de Ricardo Marques tipificam as diferentes espécies de Fome e os diversos tipos de saciedade.
O poema de Susana Carvalhinho que acompanha a respectiva ilustração é um dos mais românticos da revista, tal como o eloquente poema de protesto/intervenção de José Anjos “Construção” a soar como uma marcha, ou como as trombetas de Jericó, desconstruindo a mentira, a mitificação e a mistificação. Enquanto isso, Diana Pimentel transforma o desejo em metáfora, metáfora essa que é, ao mesmo tempo, universal e telúrica.

Em relação aos contos e narrativas da antologia da “Fome” há várias surpresas. A primeira é logo a de Manuel da Silva Ramos a relatar a mirabolante estratégia de sobrevivência de um imigrante vindo de Moçambique, Emílio Pretor, uma aventura erótico-satírica a lembrar os desconcertantes “Contos Eróticos” de Alberto Moravia. Ou então a beleza da narrativa de Filipa Martins para contar a saga de uma família de “Bairro-Chinelo” na qual, ao jogar com os deícticos, num texto narrado na primeira pessoa, traça o auto-retrato de cada membro da família e a perspectiva que cada um tem dos demais e de que forma o fosso entre eles se vai alargando com a passagem do tempo. No centro está a figura feminina que alimenta a todos e põe o pão na mesa.

Miguel Bonneville dá a voz a uma rainha decapitada por ter escarnecido da Fome alheia em “Brioche”, num discurso cheio de drama e nostalgia.

Sara Castello Branco, indo beber a inspiração a FMI de José Mário Branco, traça uma narrativa de crítica social e política em “Quem cala e come dos cravos morre”, naquilo que chama de “bafo de descontentamento”, para apresentar um discurso de protesto, incitando à luta por melhores condições de vida. Sempre contra a Fome.

Isabela Figueiredo não sendo totalmente desconhecida, através do blogue “omeumundoperfeito”, e autora de “Caderno de Memórias Coloniais”, fala de fome e dietas, aproveitando para invocar a memória do pai, arrancando do passado uma relação de camaradagem entre pai e filha na infância, expressa num diálogo entre iguais.

O penúltimo texto em prosa nesta revista é uma tradução de Liliana Martins, a partir da língua norueguesa de “Fome” de Knut Hamsum, num estilo elegante, a partir de cujo excerto dá vontade de comprar o livro.

Por último, Pedro Teixeira Neves no mais belo texto da revista, duríssimo, “um prego na memória”, fala de duas mulheres que se passeiam por entre a miséria e a morte como dois espectros, alimentando-se delas.

O tema da revista é duro. Mas a literatura engloba o belo e o horrendo, a dor, a paixão, o sublime, o infame, a bondade e o cinismo. Os autores que aqui se incluem sabem-no. E cumprem aqui a missão de o demonstrar. Contra a fome física
e aquela vinda da pobreza espiritual, que grassa hoje em todas as sociedades. Contra a surdez do coração, a cegueira da mente, exorta-se aqui à guerra contra a fome de solidariedade.



Cláudia de Sousa Dias

09-02.2015

Wednesday, March 11, 2015

“Modernista”- Antologia de Artigos da Revista Modernista (FCSH- UNL)



Organização de Teresa Rita Lopes

Este número da Modernista reúne uma selecção dos melhores artigos que permitem conhecer o contexto em que é produzida a obra de Fernando Pessoa, relacionando-a com os factos históricos, os aspectos biográficos do Autor, a ligação com os seus contemporâneos e a relação com os seus pares, o seu trabalho como editor e influência noutras gerações de “modernistas”.

A revista divide-se várias secções, ou melhor dizendo, núcleos como lhe chama Teresa Rita Lopes (TRL). O primeiro é inteiramente dedicado a José Coelho Pacheco e à desconcertante (ou nem tanto) descoberta de que este não é um heterónimo de Pessoa mas sim um escritor de carne e osso, colaborador da Revista Orpheu e e de outros projectos editoriais com Fernando Pessoa. Do processo e métodos utilizados na investigação, sobressai o trabalho de identificação, datação e autenticação do espólio do Autor (que implicou um autêntico trabalho de detective pela equipa de investigadores da UNL, conduzida por Teresa Rita Lopes) que é realçado na Revista, com particular relevância para a colaboração de Ana Rita Palmeirim, neta de José Coelho Pacheco, responsável pela descoberta da faceta de poeta do avô.

A segunda secção da Revista trata da ligação entre as actividades de produção literária, jornalística e editorial de Fernando Pessoa, no período durante o qual o Poeta residiu em terras algarvias, e das suas raízes familiares naquela região.

A terceira parte, “Diálogos com Pessoa” é composta por ensaios de literatura comparada, analisando a influência da obra de Fernando Pessoa na produção literária de outros autores. A quarta secção intitula-se “Modernistas” e consiste na análise da obra de alguns autores do movimento modernista, não apenas em Portugal, mas também fora do país, sobretudo no Brasil e na Grécia.

A quinta secção, a maior da revista, intitula-se “Sobre Pessoa” e é composta por ensaios vários sobre os mais diversos aspectos da obra pessoana. Na sexta secção são expostos alguns textos em poesia e prosa contemporâneas, dentro da estética modernista.

A seguir, no sétimo núcleo de textos, é-nos apresentada uma recensão sobre um dos mais conhecidos textos pessoanos e, por último, no oitavo núcleo, as várias reacções à obra de Cavalcanti Filho: Fernando Pessoa – uma quase autobiografia. Todos eles contendo um discurso apaixonado, uns de forma mais contida e outra mais exuberante. Deixo-vos para já com a fina ironia de TRL no editorial desta Revista antes de avançar para os detalhes do conteúdo de cada núcleo:

«Declaração Preliminar: esta não é mais uma revista académica, das que os académicos inventam para marcar pontos nas suas académicas carreiras. Tem a vocação e a pretensão de ser um livro a valer.

É obra, sim, de estudiosos, que até podem ser académicos, nada tenho contra, eu que, tenho levado a vida a declarar-me professora-investigadora militante.

Mas os estudos que aqui foram escolhidos, entre os que têm sido e serão editados on-line na Modernista por um trio que teve apenas em vista trazer novas achegas aos estudos pessoanos, em particular, e modernistas, em geral.

Os dois dossiers com que o livro abre marcarão data porque fixam duas revelações muito importantes para estes estudos: Coelho Pacheco existiu, sim senhor!, não é heterónimo nem sub-heterónimo de Pessoa nem nada do que lhe têm chamado mas uma pessoa a valer, um jovem escritor que Pessoa admitiu numa revista que previu, Europa, e realizou, Orpheu. Da sua pessoa e do seu talento será dada circunstanciada notícia.

O outro dossier também desmente outra ideia feita e transmitida há muito, de que a empresa Íbis de Pessoa, nascida do seu anseio de ser um “criador de cultura”, dela se servindo para dar a conhecer os clássicos de todos os tempos – não chegou, afinal, a trabalhar. Mais do que dar a conhecer as actividades que esta empresa teve, revela-nos este dossier a profunda ligação de pessoa a Tavira, cidade natal de Álvaro de Campos, e à família de judeus maçons, que aí viveram e conspiraram contra a monarquia.

Também os outros artigos se dispõem por núcleos para não aparecerem como informações ou elucubrações dispersas, constituindo, cada um deles, uma reflexão que desejamos fecunda, sobre o assunto explorado.
Melhor do que eu, eles dirão do empenho e entusiasmo com que nos dedicámos a esta tarefa.»

Teresa Rita Lopes


Passemos então a uma breve análise dos vários núcleos de artigos desta edição da Modernista.

1. O primeiro núcleo, dedicado a José Coelho Pacheco (JCP), até agora tido como heterónimo de Fernando Pessoa, ilustra com precisão a minúcia de um trabalho de investigação científica na área das Humanidades que mais parece um trabalho de “detective”, dada a necessidade imperiosa de investigação histórico-biográfica, análise documental e cruzamento de informação proveniente de várias fontes – que permitiu descobrir a vida “dupla” de um empresário que possuía uma faceta semi-secreta de escritor –, que lhe está subjacente. Tendo JCP colaborado com Fernando Pessoa nos projectos das revistas Europa e Orpheu e, ao mesmo tempo, contribuído com textos da sua própria autoria, o poeta JCP não fez grande alarido desta sua faceta ligada à escrita e às letras junto da sua família.

Na interdição deste número da Modernista, referindo-se a JCP, Teresa Rita Lopes descreve a forma como surgiu o interesse da sua equipa de investigação desta figura tida até aqui como um heterónimo de Pessoa e de como lhe chegaram às mãos as primeiras pistas acerca da verdadeira identidade de Coelho Pacheco. Este tema é aflorado na introdução deste número da Revista e desenvolvido nos dois artigos seguintes, do primeiro núcleo. O primeiro deles, intitulado “O seu a seu dono” é também da autoria de TRL. O tom do discurso é, aparentemente, informal, dado que o locutor dirige-se directamente ao leitor, encetando com ele um diálogo imaginário e antecipando-se-lhe, aproximando o discurso que seria à partida académico, de um discurso epistolar. A fundamentar esta espécie de "depoimento" acerca da investigação TRL junta-lhe uma bateria de provas documentais que incluem fotografias, excertos de cartas, manuscritos e dactiloscritos, poemas onde se pode comparar letras, estilos, temáticas e semânticas de ambos os poetas.

Uma das investigadoras que fazia parte da equipa de TRL é Ana Rita Palmeirim (ARP), neta de Coelho Pacheco, a qual possuía um espólio substancial de escritos do avô guardados em casa, dentro de numa mala. ARP é autora da peça “Encontros inesperados na rota de José Coelho Pacheco” onde descreve a odisseia que foi identificar, classificar e autenticar os documentos da referida mala do avô. ARP é também autora da peça “Para além d'outro oceano” na qual alude ao poema escrito pelo avô, ao mesmo tempo que identifica outros escritos como sendo da autoria de JCP. Assina ainda, em co-autoria com TRL o artigo “José Coelho Pacheco e a poesia de inspiração popular” e explora as várias influências literárias na escrita do Poeta, juntando por fim uma mini-selecção de textos do seu avô na peça “Páginas de José Coelho Pacheco” com o qual fecha este primeiro dossier da Revista.

2. O segundo dossier intitula-se “Pessoa e os Algarves” e inicia com uma peça que descreve a metodologia usada na investigação de TRL intitulado “Pessoa empresário da Íbis, 'criador de anarquias' e de civilização' ” provando a existência da empresa, ao contrário do que se pensava. A sustentar tal tese, juntaram-lhe factos históricos que a contextualizam, presentes em provas documentais. A efemeridade deste projecto prendeu-se sobretudo com os condicionalismos histórico-económicos da época a envolver constrangimentos políticos e demográficos que não eram de todo favoráveis ao desenvolvimento e consolidação de um projecto tão progressista. O segundo artigo deste dossier, em jeito de adenda, é também de TRL e intitula-se “Ainda a propósito da empresa Íbis”, acrescentando ao anterior novos elementos trazidos por ARP do seu espólio familiar. 

Segue-se “Novos dados para a História do futurismo em Portugal” de Patrícia de Jesus Palma , investigadora da UNL-FCSH, que se dedica ao estudo da “cultura literária em espaço periférico” (Algarve 1820-1920), para relacionar a génese da imprensa regional mais iconoclasta do Algarve, inserindo-a também no respectivo contexto histórico-político que envolve a apologia do anarquismo, num tempo em que movimentos deste cariz surgiam um pouco por toda a Europa, mas que, ironicamente, se aproximam perigosamente do discurso fascista como se vê no recorte do jornal inserido na página 116. Ali figuram nomes como Joaquim Ribeiro de Carvalho e Júlio Dantas. Este artigo servirá de apoio àquele que se lhe segue e que é, mais uma vez da autoria de TRL, que colabora massivamente nestes dois primeiros núcleos, intitulado “Pessoa e os Algarves: d' O Povo Algarvio ao Heraldo de Faro, passando pelo de Tavira”. A autora desenvolve o artigo provando a ligação de Pessoa à imprensa algarvia, a sua sólida experiência editorial e as suas raízes familiares em Tavira. O discurso de TRL assemelha-se, aqui, ao dos romances policiais, mas com um tom muito pouco convencional e bastante iconoclasta para se dirigir ao leitor como se prestasse um depoimento.

3. O terceiro núcleo de artigos intitula-se “Diálogos com Pessoa”. Abre com o trabalho de Dora Nunes Gago: “Jorge de Sena, discípulo de Pessoa ou de António Machado? Ecos dos modelos literários modernistas na obra seniana”. Nele são extraídos os modelos de referência de Jorge de Sena , que se fazem notar na sua obra “Ecos Pessoanos”, apesar de Sena sofrer também a influência das “Brisas Poéticas de Espanha”, patentes na sua (de Sena) admiração pelo trabalho de Machado.

Maria João Serrado, em “Pessoa, Rui Nunes e a Pátria: um diálogo improvável”, executa um ousado exercício de literatura comparada ao usar o romance “Quem da Pátria sai, de si mesmo escapa” e o poema “A Mensagem” como os dois pólos onde se apoia para o desenvolver o contraponto da ideia do romancista de que “a pátria entendida como o local de onde se parte para melhor se poder regressar” confrontando-a com o poema de Pessoa e o seu heroicismo épico: “Nunca Rui Nunes e Fernando Pessoa estiveram em tão grande desacordo?” Segundo Serrado, tal não é impossível:

«...o romancista acentua os interesses materialistas que sustentam a expansão ultramarina e que não parecem ser conciliáveis com a ideia do Quinto Império português da “Mensagem”. Contudo, as afinidades entre os dois textos começam a notar-se quando o tema deixa de ser os descobrimentos e passa a ser o sofrimento causado pela perda. Aí, o romancista incorpora o discurso do poeta na sua prosa, e com o qual estrutura e fundamenta o próprio discurso.»

Teresa Rita Lopes contribui também com textos da sua Autoria para este núcleo de artigos, embora muito menos que nos dois anteriores. Neste terceiro dossier, TRL é autora do artigo “Álvaro de Campos entrevista (Sentir/ler tudo de todas as maneiras)". A questão principal que lhe está subjacente é a relação dialógica entre os vários heterónimos e entre estes e o ortónimo de Pessoa assim como as conversas ficcionadas entre todos eles e outros autores seus contemporâneos.

4. O quarto núcleo intitulado “Modernistas” inclui um artigo de Anabela Almeida sobre Cecília Meirelles: “A arte de amar é é exatamente a de ser poeta: cartas de Cecília Meireles a Armando Côrtes-Rodrigues” para contextualizar a correspondência da poeta brasileira em ligação a outros poetas do Modernismo Português, em geral, e a Côrte-Rodrigues, em particular, devido à raízes micaelenses de Meireles, de onde era natural a sua avó Jacinta.

O segundo artigo deste núcleo leva-nos à Grécia Modernista e a aflorar a poesia de Kóstas Uránis, através do artigo de José António Costa: “Kóstas Uránis e a cultura portuguesa dos anos '20: algumas reflexões”. Uránis traduziu uma quantidade significativa de obras de autores portugueses para grego moderno, mas a sua obra não está limitada à tradução: ele próprio foi autor, fortemente ligado ao movimento do simbolismo francês e ao decadentismo que, na Grécia, adquire a designação de esteticismo, com influencia de neo-simbolistas e neo-românticos como Rimbaud e Mallarmé.
A ligação de Uránis aos autores portugueses é, contudo, muito forte. Além de traduzir Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Ferreira de Castro entre outros. Uránis mediou a sua disseminação na Grécia como faz questão de realçar o autor deste artigo:

«... foi meu propósito, nesta breve exposição, sublinhar o facto de Uránis, ao abordar os poetas portugueses, propor um diálogo em as duas culturas (a neo-helénica e a portuguesa) apresentando-nos em específicos modos de ler, uma forma de crítica cultural: paisagens interiores, topografias líricas e poéticas, 'afinidades colectivas'»


5. O Quinto núcleo, chama-se “Sobre Pessoa” e é o mais longo da revista. Contém uma apreciável selecção de artigos vários sobre a obra pessoana.

O primeiro, em Língua Francesa, “La Lisbonne sensible de Soares et Campos” é de Aníbal Frias que opõe a ruralidade e o lirismo alusivo à vida campestre de Álvaro de Campos à matéria poética da prosa urbana de Bernardo Soares imersa no tédio do quotidiano na capital Lusa. O autor defende que a escrita fragmentária de Soares tem muito mais afinidades com a poesia lírica de Campos do que se poderia pensar à partida.

Outro artigo escrito na língua de Voltaire e Camus é “L'Univers imaginaire de Fernando Pessoa: hetéronymie ou rêverie?” de Albertina Ruivo, que explora a fonte de criatividade e o universo imaginário do Poeta desde a infância, ao passo que Nuno Hipólito analisa a relação do sujeito poético, quer heterónimo quer ortónimo de Pessoa com Ofélia, em “Álvaro, Fernando e Ofélia: actores na heteronímia da Paixão – Pessoa apaixonado: um epifenómeno heteronímico”, artigo desenvolvido a partir de um episódio do programa “Conversas Vadias” de Agostinho da Silva no qual o filósofo perguntava retoricamente, isto é, afirmava, que “o drama de Fernando Pessoa terá sido escrever sobre o que não viveu”, subentendendo-se que seu romance com Ofélia, seria pura efabulação. Simultaneamente, Nuno Hipólito explora a relação dialógica contida nos sonetos de Álvaro de Campos, referindo-se ao seu ortónimo e à relação deste com Ofélia, chegando o próprio Fernando Pessoa a ser tratado por Álvaro de Campos no seu discurso como se este fosse seu heterónimo e não o contrário.

Maria do Céu Estibeira trata “Da leitura de Milton e Whitman à estética de Álvaro de Campos” para para aí identificar várias relações de intertextualidade, envolvendo estes dois autores anglófonos e a obra pessoana, que se inscreve no discurso dialógico do poeta.

Manuela Nogueira apresenta o seu ponto de vista da obra do autor no artigo “Álvaro de Campos – A Tempestade à procura do Cais” para contextualizar os aspectos mais biográficos da sua obra, sobretudo os que se prendem com as relações familiares, a remeter para a publicação de TRL, “Pessoa por conhecer”, bem como a relação de Pessoa com outros escritores portugueses seus contemporâneos, através da sua actividade como crítico literário.

Ana Raquel Barão Roque identifica a ligação entre a ficção e a crítica em Pessoa no artigo “Crítica ficcional ou a ficção da crítica no universo da heteronímia pessoana” para mostrar como o Poeta era também um crítico notável, mas com algo de peculiar: as suas análises literárias eram muitas vezes animadas por “personae” criadas por si, as quais comentavam a obra dos seus pares enquanto os heterónimos de Pessoa comentavam obras de autores reais, inclusive do próprio ortónimo de Pessoa, seu próprio criador.

Luís Miguel Rosa Dias e Maria do Sameiro Barroso são autores de “Fernando Pessoa, loucura, mito e mistificação da realidade” onde desconstroem o mito da relação entre criatividade e loucura.

Maria João Serrado traça “Retratos polémicos de Fernando: imagens do impossível – Pintura de Michael Barret com Campos no horizonte”, partindo da ideia de que Pessoa afirmava que “a Obra de Arte visa fixar o que só aparentemente é passageiro”. A autora explora a interligação semiótica de Barret e a poesia de Pessoa realçando o seguinte: “As leituras que terá feito da obra pessoana levaram Barret a rever-se no sentimento de incompreensão que perpassa os textos de Pessoa”. Ao analisar a forma como são feitos os seus desdobramentos de personalidade, expressos na heteronímia e diversas personalidades literárias um dos mais polémicos retratos de Pessoa efectuados por Barret é uma pintura de cariz surrealista, na qual o Poeta surge androginizado, com o corpo feminino da Vénus de Milo e sem braços, trabalho a que o pintor nomeia de “Binómio de Newton”. Outro será aquele que se apresenta como uma imagem híbrida entre a figura de Pessoa e a de Camões. As ligações entre a Poesia e a História ou a Literatura e as Artes são subtis mas claras, como vai demonstrando a autora ao longo do artigo.

Luísa Monteiro traz-nos um artigo no qual explora uma dimensão ainda muito pouco analisada na obra de Fernando Pessoa no artigo intitulado “As mulheres no teatro pessoano”. Segundo a autora, a centralidade dos papéis femininos no género literário era ainda muito marginal na época do Modernismo Português, tendo atingido esta centralidade feminina no drama o seu auge alguns séculos antes, com Gil Vicente. Mas relativamente às figuras femininas nos dramas de Pessoa LM argumenta que:

«As mulheres pessoanas não sustentam qualquer discurso de época e assumem a ruptura com a estética aristotélica – que decretara a incapacidade de actuação das mulheres as quais, expulsas da cena ao longo dos séculos e inviabilizadas na vida pública, foram substituídas pelos homens, que representavam, através de máscaras, os seus desejos, os seus pecados e os seus poderes...»

LM faz ver que Pessoa, como dramaturgo é um desvelador de faces da mulher, não daquelas que derivam de uma Eva primordial e cândida, mas antes de uma Lillith ancestral, uma bruxa condenada pela sua transgressão. Um arquétipo assente numa figura feminina que pauta pela insubmissão e que, ao mesmo tempo, reclama um estatuto intelectual. Segundo a Autora, o teatro pessoano está cheio destas mulheres que pensam, falam de “liberdade” e se assumem como criadoras, logo, transgressoras. Seguindo esta linha de raciocínio, a personagem “Salomé” diz que “as mulheres são o privilégio dos caminhos”. Por fim, a autora do artigo destaca ainda a forma como esta faceta subversiva na obra de Pessoa é realçada por Jorge de Sena que chama a atenção para esta faceta no discurso que Pessoa que surge na correspondência deste com J.G. Simões, aludindo a Lady Macbeth de Shakespeare. Assim, a título de exemplo, na dramaturgia pessoana as personagens “Maria” e “Salomé” representam arquétipos opostos: a candura e a subversão.
LM prossegue a análise das várias figuras femininas do teatro pessoano, na secção do artigo a que denomina de “As inomináveis”, isto é, arquétipos femininos representados por nomes ou categorias genéricas, tais como “As Veladoras” ou então, simplesmente, por letras.

Por último, e a finalizar este núcleo temático, é explorada a questão do misticismo em Fernando Pessoa por Carla Gago no artigo “O Modernismo e o Pré-Científico: Ocultismo, espiritismo e Ciências do Psiquismo Humano em Fernando Pessoa”. Daqui predomina a imagem do poeta como a de um homem multifacetado, cosmopolita e profundamente envolvivo no movimento literário da vanguarda de então. A autora destaca a atracção de Pessoa pelo oculto, que se estende não só à astrologia mas também à maçonaria e aos rituais dos rosa-cruzes, tema que absorvia os modernistas da Europa, ocupando um lugar central nas mesas de debates e discussões intelectuais. O artigo de CG inclui também uma série de documentos da época que apresenta nesta publicação, enriquecendo o artigo.

Assim finaliza o quinto núcleo, o mais longo da revista sobre os múltiplos aspectos da obra pessoana. Os dois núcleos que se seguem são bastante mais breves.

6. O sexto núcleo, “Ficções” é composto por textos de Autores contemporâneos, inéditos, relacionados com o Modernismo ou com autores Modernistas. O primeiro, “Carro verde ou...”é de Joaquim Carvalho que o dedica a Almada Negreiros e estabelece uma relação dialógica com um dos seus poemas. “Para um estudo pessoano” de Ricardo Marques é outro poema, mas cujo discurso remete para a obra de Ricardo Reis. Este núcleo finaliza com uma bela peça em prosa ficcional onde é construído um encontro imaginário entre o narrador-locutor e Fernando Pessoa. Escreveu José Xavier e o texto chama-se “Lui et Moi”.

7. O sétimo núcleo é constituído por um único artigo, da autoria de Donzília Filipe: «Marcas da poesia de Fernando Pessoa na obra 'O Melhor do Mundo são as Crianças' », livro da autoria de Manuela Nogueira. Filipe relaciona o papel da infância na obra de Pessoa com a de Manuela Nogueira, sobrinha do Poeta. No artigo, são realçadas não apenas as intertextualidades na obra de ambos, mas sobretudo a forma como os respectivos discursos se interceptam no universo das respectivas infâncias.

8. Por fim, temos o oitavo e último núcleo de artigos desta Revista: “A reacção crítica à obra de Cavalcanti, Fernando Pessoa – uma quase autobiografia

Teresa Rita Lopes volta a intervir em força neste dossier, no qual "arrasa" o autor brasileiro, num discurso de argumentação implacável, desmontando conceitos, destruindo afirmações peremptórias, apontando falhas, imprecisões, incongruências, sobretudo em relação ao conceito de “heterônimo” defendido por Cavalcanti, contrapondo o conteúdo do livro com argumentos científicos e dados biográficos para invalidar vestígios apresentados pelo autor como autênticos na peça “Sobre uma biografia que não o chega a ser”, uma peça que parodia o título de Cavalcanti.

Manuela Nogueira, sobrinha de Fernando Pessoa, é autora do artigo que se segue, onde faz uma avaliação crítica num tom bastante mais ameno do que o utilizado no discurso de TRL. Não deixa, contudo, de frisar a importância de o fazer apenas por considerar fundamental não deixar margem para distorções "graves" não só acerca da obra mas também da vida privada do poeta ao confrontar a obra que ainda assim apelida de “delirante” confrontando-a com o extremo rigor e método utilizado na biografia sobre o seu tio, da autoria de João Gaspar Simões, para sublinhar a importância da contextualização histórica e do recurso a provas documentais devidamente validadas.

Outro sobrinho do poeta Luís Miguel Rosa Dias reage através do recurso à sátira em forma de poema de escárnio e maldizer. O principal alvo de Rosa Dias, para além do próprio Cavalcanti é o destaque dado pelos meios de comunicação social, a um livro que, a crer nas suas palavras, terá tanta qualidade quanto a (sombria) obra de E.L. James, na construção de uma imagem que será antes a caricatura do poeta que é seu tio. O seu discurso inflamado poderá, no entanto, causar o efeito contrário no leitor e levá-lo a ler o livro quanto mais não seja por curiosidade ou pelo gosto por uma boa (?) sátira.

Ricardo Zenith opta antes por explorar as incongruências na obra de Cavalcanti a propósito dos amores de Fernando e Ofélia na peça “Ofélia e Fernando, o amor em tempos ecrológicos”. Desta vez parodia-se utilizando um título de uma obra de Gabriel García Márquez (O amor nos tempos de cólera).

António Quadros decide também atacar a questão dos “heterônimos” e daquilo que Cavalcanti considera ser um “heterônimo” em “A verdadeira história de Eliezar Kamenevsky".

A intervenção de Anabela Almeida marca o penúltimo artigo da Revista, em mais uma peça na qual a nota dominante do discurso é a ironia, “O engenheiro doente”, embora já sem a acidez corrosiva de Luís Miguel Rosa Dias, A. Almeida, ao perceber que, apesar do título, na obra em questão, Cavalcanti tivera efectivamente a pretensão de ter escrito uma biografia de Pessoa, sublinha dois aspectos que mostram o carácter inequivocamente erróneo deste fim numa obra como esta: o local de nascimento de Côrtes-Rodrigues, foi efectivamente em Vila Franca do Campo (Açores) e não em Vila do Conde (Litoral Norte de Portugal, Distrito do Porto) como é mencionado na obra, deixando o remoque em como o autor hoje em dia não dará certamente pela diferença da troca toponímica (por já ter falecido). Outro aspecto que Almeida considera uma distorção grave é a afirmação de que a “Violante” que Pessoa identifica como a amada de Camões se trata realmente da poeta renascentista Violante de Cisneyros, facto que não está de todo provado como pretende afirmar Cavalcanti.

Por último, Ana Rita Palmeirim, a neta de José Coelho Pacheco fecha o número da Revista com a recensão “Equívocos e mal-entendidos” para esclarecer definitivamente a autoria dos poemas do seu avô, explicando como ocorreram os erros de identidade que apareceram no livro do autor brasileiro.

Assim a Revista Modernista nesta antologia de artigos sobre Fernando Pessoa apresenta-se, pela variedade temática como altamente recomendável para quem quiser compreender a fundo a obra do autor de A Mensagem e O Livro do Desassossego.

Cláudia de Sousa Dias
28.02.2015