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Tuesday, November 30, 2010

"Mariana" de Manuela Monteiro (Quasi)


Mariana é uma adorável colectânea de contos da escritora famalicense Manuela Monteiro, ex-professora de português, que agora se dedica inteiramente à escrita. Inclui quatro pequenos contos que relatam, numa linguagem poética e cheia de ternura, vários momentos da vida e à qual a autora apelida de "o meu livro de afectos".

Ao percorrermos as páginas do conto inicial que dá nome ao livro, deparamo-nos com o cenário idílico do ambiente académico de Coimbra, nos anos 50, que ilustra a turbulência interior do universo afectivo de uma jovem estudante de letras de onde se salienta a expressão do direito à diferença e a ânsia de liberdade de escolha, um traço de personalidade em comum com o carácter insubmisso da autora.

" Mariana" é uma lindíssima narrativa que permite ao leitor reviver a intensidade de um primeiro amor ao qual se mistura o romantismo dos ideais da Revolução Francesa - Liberté, Egalité, Fraternité.

O nome Mariana também não é escolhido por acaso. No texto, transparece a ideia de ter sido precisamente inspirado em "Marianne" o símbolo da República Francesa, devido à preferência da protagonista face a autores desta mesma nacionalidade. Este conto é detentor, para além de uma forte riqueza emocional, de uma aura de secretismo, sobretudo quando se refere ao grupo que se reune "à mesa do canto esquerdo do bar da faculdade", na qual, muitas vezes, a linguagem cifrada dos seus membros faz lembrar um pouco a atmosfera do de um livro de espionagem devido às actividades dos membros do referido grupo que actuam clandestinamente, enquanto conspiram contra o regime totaslitário.

Um pormenor de beleza extraordinária é a introdução, no início de cada capítulo, de um extracto de "o Cântico dos Cânticos", o mais poético dos textos bíblicos, de que a autora se serve para ilustrar a intensidade telúrica do amor e a beleza perfeita do amor entre Mariana e Miguel, marcado pela tragédia, o preço pago pela audácia.

Em "O Avô" a autora recupera a infância perdida expressa nas cores, sabores, perfumes e nos momentos únicos de uma idade dourada e cristalizada no tempo. Uma viagem ao Hades para recuperar um ente querido à semelhança do mito de Orfeu e Euridice.

Em "O Menino" estamos perante um refúgio idílico que representa, mais uma vez, a idade de oiro de uma criança à volta da qual todos se empenham em criar "um paraíso" no qual ela é protegida face às adversidades, evitando os desgostos que elas próprias sofreram na tentativa de lhe proporcionar um crescimento saudável, sem traumas. Edénico. Daí o tecto abobadado no quarto da criança pintado com anjos a velarem pela tranquilidade do seu sono.

Por último, "A Avó" reflecte já a fase madura da vida de alguém que cuja existência foi dedicada a adquirir sabedoria e a transmiti-la às gerações vindouras. É precisamente o que faz esta avó moderna, culta, ao seu neto a quem chama de "passarinho" que corre para ela depois da aulas "com as asas abertas".

Este conto tem a particularidade de proporcionar-nos aos leitores que por ele se deixam fascinar, o reconhecimento de alguns lugares mais característicos como: a Escola Primária, a casa na qual vive um velha senhora com muitos gatos, as grades verdes da escola, o lago em frente à Igreja...

Uma história que tem, tal como a primeira, a intenção de explicar às gerações vindouras a carga idealista da palavra liberdade, personificada, desta vez, pelo símbolo da pomba com as asas abertas tal como o "passarinho" a "voar" para fora da sala de aula em direcção ao espaço aberto onde pode brincar (quase) sem restrições e perpetuar a lembrança de Marianne/ Mariana.

Para manter vivo um mito sem idade e um sonho intemporal. O retrato de uma época de crença no futuro e de esperança. Uma realidade bem diversa da dos dias de hoje.



Cláudia de Sousa Dias

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Wednesday, November 24, 2010

“O Nariz” de Nicolai Gógól (Assírio & Alvim)


Oriundo de uma família aristocrática, Nicolai Gógól foi, durante muitos anos, funcionário público e, também, historiador e professor. A escrita de “O Nariz” insere-se na fase de maior consciência política da sua carreira literária. Trata-se de uma sátira onde o autor denuncia algumas contradições e falhas do sistema social assente no Imperialismo Russo e na máquina burocrática do Estado, ao ilustrar situações onde se faz notar a corrupção do funcionalismo público a vários níveis, os subornos, as chantagens e a censura.

O Autor, no entanto, após ver censurada a sua obra “Almas Mortas” é assolado por uma grave depressão, procurando refúgio no misticismo religioso. Os períodos depressivos acabam por tornar-se cada vez mais longos e condicionar-lhe fortemente a escrita. Por último, o Autor revestir-se-á de uma profunda religiosidade, observando rigorosos jejuns e penitências, colocando em risco a própria sobrevivência levando-o a sucumbir à morte, após um longo período de agonia e delírio.

Esta edição, da Assírio & Alvim, inclui o prefácio de Vladimir Nabokov, o qual destaca o apoio de Pushkin a Gógól, que lhe publica “O Nariz” na revista da qual era editor. Nabokov era da opinião de que este conto faria parte da “fase mais crítica e oposicionista do jovem Gógól em que a crítica e a sátira sociais suplantam o misticismo latente no Autor.”

Gógól tinha a perfeita noção do quanto era vigiado, um facto que, a opinião de Nabokov, se repercute na estrutura interna do conto, sendo notório que o Autor assume,não raro, uma atitude de autocensura, a qual enfatiza, paradoxalmete, a ironia das situações expostas, pautando-se por uma notória acidez no discurso.

Para o Autor de “Lolita”, este conto de Gógól oscila entre o trivial (o quotidiano das primeiras cenas ) e o absurdo (o passeio do nariz solitário pelas ruas da cidade). Trata-se de dois extremos do mesmo continuum a partir dos quais o Autor esboça a acção a acção através da técnica do contraponto, conferindo dinamismo à narrativa ao fazê-la oscilar entre a realidade e o imaginário, ou inverosímil, a que junta a sátira para realçar, de forma caricatural, a hipocrisia, a venalidade ou a mesquinhez das personagens, sobretudo nas cenas que descrevem o exercício da autoridade policial em situação de incontornável abuso de poder.

Pode-se considerar ainda Nicolai Gógól um precursor, tal como Lewis Carrol, do surrealismo na literatura, pelo cruzamento do plano onírico com a realidade.

Vladimir Nabokov explica o protagonismo atribuído por Gógól a esta parte da anatomia humana: “uma técnica literária, própria do humor bruto carnavalesco em geral e das piadas russas em particular (…). É preciso ter em conta que o nariz, por si só, desde sempre lhe pareceu algo cómico (aliás como a qualquer russo), algo à parte, não pertencendo bem ao seu proprietário, e ao mesmo tempo (aqui tenho de fazer uma concessão aos freudistas), algo de exclusiva e notoriamente viril”.

A presente edição inclui os episódios suprimidos pela Censura Imperial, aquando da sua primeira publicação, na revista dirigida por Pushkin.

O Conto – Estrutura e Personagens

Gógól começa por descrever a ocorrência de um facto insólito, no quotidiano de uma família humilde a viver na cidade, pessoas que vivem modestamente, numa casa relativamente confortável para os padrões da época, mas sem dúvida pobres. A casa é, na realidade o único indicador que o coloca acima do limiar da pobreza, uma vez que o orçamento doméstico não parece ser suficiente para se fazer uma vida desafogada. Ou uma refeição completa. Muito menos para uma despensa bem fornecida. A dieta da família é frugal: a contenção de despesas obriga os dois protagonistas a sacrificarem o estômago, tendo de optar entre beber café e comer pão com cebolas ao pequeno almoço.

Praskóvia Ossipovna e Ivan Iakovlevitch são pessoas honestas mas de carácter tempestuoso e rude. A carência também não ajuda a adoçar os gestos e as palavras. Algumas reacções de Ossipovna revestem-se de alguma agressividade que não deixam de ter o seu lado cómico, sobretudo no momento em que Iakovlevitc encontra um nariz humano num pão confeccionado pela mulher.

A discussão estala mas, nela, estão subjacentes os fantasmas do Medo e da Fome que afectam as massas populares e o descontentamento que irá abalar as estruturas daquele país, alguns anos mais tarde…

Iakovlevitch é um artífice judeu. Barbeiro. Gógól coloca em evidência o facto de as classes trabalhadoras russas recorrerem ao álcool para suprirem a falta de aquecimento e enfrentarem o rigoroso inverno russo. Uma dependência que nos é apresentada como um factor cultural, potenciado por condições climáticas, mas associado sobretudo a determinados estratos sociais. O Autor ironiza, também, com o preconceito generalizado que levava a sociedade de então a classificar os artífices plebeus como bêbados incorrigíveis, sendo que o álcool, grande aliado da preguiça, e não a pobreza explicava o desmazelo de um homem que tratava de aprimorar a toilette dos outros.

Iván Iakovlevitch, como qualquer verdadeiro artífice russo, era um bêbado…”

(…)

“embora todos os dias rapasse os queixos dos outros , o dele tinha sempre a barba por fazer. A casaca de Ivan (…) era malhada; ou seja, era de cor preta, mas toda às listas amarelas e cinzentas; a gola, ensebada, e em vez de três botões, pendiam-lhe as linhas.”

Por outro lado, a manifesta antipatia que se estabelece entre o barbeiro e o Major Kovaliov, assessor de uma colégio de raparigas, deve-se à extrema vaidade e arrogância de um homem que julga ser dono do mundo e dos que nele habitam, no qual residem, ainda, restos de mentalidade feudal.

Kovaliov é um homem tão detestável para Iakovlevitch, a quem não suporta, sobretudo pela extrema vaidade exibida ao exigir o tratamento por “Major” – antiga função que desempenhou num cargo anterior. Um facto que acabará por despoletar, supostamente, o desejo secreto do barbeiro em arrancar-lhe o nariz, quase trincado por Iakovlevitch, ao aparecer-lhe, sem se saber como, no meio do pão. A antipatia entre ambas as personagens é evidente:

Era grande cínico, Ivan Iakovlevitch, pois quando durante a rasoura, o assessor do colégio Kovaliov lhe observava: ‘As tuas mãos, Ivan Iakovlevitch, tresandam sempre!’

(…)

E Ivan Iakovlevitch, após uma pitada de rapé, ensaboava-lhe, por vingança, as faces e debaixo do Ariz e detrás da orelha, e debaixo do queixo, numa palavra, por todo o lado, onde lhe apetecia, ensaboava” (…).

O “Major” Kovaliov goza de uma confortável posição social, ao contrário do seu antagonista. É assessor de um colégio feminino e detentor de influência considerável na corte. Sabe fazer-se valer da sua posição na hierarquia social de forma a obter favores sexuais de jovens belas mas em situação socioeconómica vulnerável. Gosta de exibir o seu estaturto, apresentando vários anéis de sinete como insígnias de poder.

A descrição das suíças do major é feita, também, a pensar em dotá-lo de um aspecto a tender para o ridículo e para a vulgaridade:

Tinha umas suíças das do género que ainda hoje é possível encontrar entre os agrimensores de província e de distrito, os arquitectos e os médicos militares e ainda entre os detentores de vários cargos policiais”.

Estas suíças de que fala o narrador estão associadas a uma determinada classe emergente, que atinge cargos de relativa importância mas não sabe exactamente como lidar com a mudança de estatuto social de que beneficiaram.

Assim, o Autor decidiu exagerar os traços normalmente associados a um dado tipo social de forma a punir, pelo uso do ridículo, uma categoria social a que estão associados determinados tipos de abusos. Escolhe, para tal, um personagem tão enfatuado que apetece mesmo dar-lhe uma lição, fazendo-o perder …“o nariz.”O nariz, que é apenas a tendência de apontar com aquela parte anatómica, para o céu ou para a terra, conforme o grau de autoconfiança, surge aqui como símbolo de estatuto social, de que o Major se vê subitamente privado. O nariz representa a sua vaidade masculina (tal como o pénis para os freudianos) e o aprumo, a forma como se mostra aos outros. Tal perda irá obrigar a personagem a uma demanda em busca do ego perdido. A perda do nariz e os esforços para o recuperar acabam por fazer vir ao de cima o carácter mais venal de Kovaliov.

O aspecto mais insólito desta estória de Gógól é o facto o nariz (ou a atitude) adquirir vida própria (agora entrando no plano onírico e simbólico) e tornar-se ele próprio uma personagem animada, gerando toda uma intriga palaciana à sua volta.

O comissário recebeu Kovaliov bastante secamente e declarou que a hora após o almoço não era hora para instrução do processo, que a própria natureza estabelecera que após a refeição era de toda a conveniência repousar (…) que a um homem probo jamais arrancariam o nariz e que havia por esse mundo fora muitos majores que nem roupa interior decente tinham e a circularem por todo o género de locais depravação.”

Perante tal atitude, Kovaliov chega até a suspeitar de bruxaria…Até ao dia em que lhe anunciam ter encontrado o tão desejado nariz, colocando o suspeito Iván Iakovlevitch a ferros.

A história não fica por aqui. Perdida a imagem, é preciso que esta volte a aderir, que a antiga atitude volte a ter a credibilidade de outrora. E o que acontece é que precisamente o antigo “nariz” não adere à velha cara. Trata-se sem dúvida de uma metáfora: o nariz é a máscara social que não adere ao mesmo rosto ao qual está associado um passado, ou às palavras que não coincidem com as atitudes e por isso não são credíveis.

O saltar do plano real para o plano onírico e vice-versa é o truque utilizado pelo Autor para conferir ao conto alguma verosimilhança e, simultaneamente, lançar alguns virotes a determinadas categorias sociais, desmascarando as contradições a que se sujeita o ser humano durante ao estado de vigília.

Neste caso, o absurdo serve de bitola para por revelar as lacunas de um determinado sistema social e, ao mesmo tempo, para estimular o espírito crítico dos seus leitores.

Uma obra, de facto, temível…para quem tiver a consciência pesada.

Cláudia de Sousa Dias

Monday, November 08, 2010

“2666” de Roberto Bolaño (Quetzal) "Livro I - A parte dos Críticos"


Best- seller amplamente premiado 2666 seria, por vontade do Autor, publicado em cinco volumes , editados separadamente, com a periodicidade de um ano.

2666 foi publicado após a sua morte, em 2004. 2666 focupou os seus últimos cinco anos de vida. O livro foi publicado postumamente aclamação e profusamente premiado gerando, no entanto, grande discussão sobre as intenções finais do autor.

Ao longo de mais de 1.100 páginas, o romance é dividido em cinco "partes", quatro e meia das quais estavam terminadas antes da morte de Bolaño. Focada numa ainda não reolvida e recorrente série de homicídios na Ciudad Juárez (Santa Teresa no romance), o apocalíptico 2666 mostra o horror do século XX através de um vasto número de personagens, centrados na figura reservada do escritor alemão Benno von Archimboldi acerca do qual quatro críticos literários tentamd escobrir o paradeiro.

Em Março de 2009, o jornal inglês The Guardian trouxe a informação de que uma parte adicional acerca do romance, a parte VI, a qual foi achada por pesquisadores junto ao espólio literário de Roberto Bolaño.
Contrariando a vontade do Autor, os editores entenderam, do ponto de vista do marketing e da rentabilidade, reunir os cinco livros conhecidos até à data da primeira publicação, num único volume, apesar de se tratarem, na realidade , de cinco romances diferentes com alguns pontos em comum, os quais passaremos a esmiuçar nas páginas que se seguem.



O cenário onde decorre a acção do primeiro volume de 2666 é a Europa da última década do século XX até aos primeiros anos do século seguinte. A questão central parece ser o fascínio pela obra de um misterioso escritor alemão, Benno von Archimboldi, cuja identidade só é desvendada e explorada no último volume. A reserva e a qualidade da obra do escritor alemão criado por Bolaño acabam por congregar a atenção de quatro críticos literários especialistas em língua e cultura germânica, os quais se reúnem periodicamente em vários locais da Europa, onde dão largas a um fervor literário, quase religioso, em conferências e terútlias, públicas e privadas, seguindo a pista do escritor-mistério, escorregadio como uma enguia e com o qual ninguém, excepto talvez a editora – a Sra. Bubis –, parece jamais ter trocado uma única palavra.
Paralelamente à Literatura, à Escrita e à Crítica Literária, surge o universo emocional das personagens, as quais estabelecem entre si relações pouco convencionais, marcadas pelos impulsos ditados pela emotividade, pelo desejo ou pela pulsão erótica.



As afinidades que se estabelecem entre os quatro colegas, tendem a dissipar qualquer espécie de emoção destrutiva entre eles, tais como ódio, ciúme, inveja ou qualquer tipo de rivalidades mesquinhas.



A tonalidade do discurso narrativo, nesta primeira parte, engloba vários géneros literários como a crónica, a narrativa ou o ensaio que se encaixam no romance propriamente dito e aproximam o Autor dos seus colega espanhóis Enrique Vila-Matas e Javier Marías os quais são mencionados pelo narrador durante as suas divagações literárias.
O narrador principal, heterodiegético, dedica-se a olhar analiticamente as personagens, disseca-as como se estas fossem animais de laboratório, um pouco ao estilo de Orwell em 1984: como se também este narrador proviesse de um futuro longínquo (o ano de 2666, o qual contem em si o número da Besta que figura no livro do Apocalipse ou Revelação da Bíblia) logo, exterior aos acontecimentos presentes. A partir daqui, imagina-se que no século XXVII a possibilidade de entrar no cérebro humano seja uma realidade e a omnisciência e omnividência relativamente ao pensamento Humano se torne diabolicamente divina: o acesso ao pensamento humano poderia servir, por exemplo, para controlar a criminalidade, mas seria paradoxalmente monstruoso os seres humanos viverem em permanente autocensura, com medo inclusive de pensar, com medo de criticar, com medo de desobedecer, mesmo que só em pensamento.



As referências literárias são mais do que muitas ao longo deste primeiro volume, embora abundem também no quinto, são mencionadas, sobretudo pelos críticos archimboldianos, figuras do universo literário como Göethe, Hölderlin, José Cela, William James, Heine, Unamuno, Günter Grass, Stevenson, Borges, Bulgakov, Döblin...Além dos já mencionados, Marías e Vila-Matas. Com estes dois últimos em particular, Roberto Bolaño partilha a melancolia do primeiro e o humor corrosivo, ácido, lembrando Fellini mas tingido pelo spleen, de Baudelaire e pelo pessimismo de Moravia.


Roberto Bolaño tal como Saramago, reproduz nalguns trechos o caótico rumo do pensamento, semelhante aos volteios de uma montanha russa ou a uma viagem espacial à velocidade da luz, por vezes com períodos de quase seis páginas, onde o pensamento sofre inflexões quase sem pausas recorrendo somente à vírgula, ao travessão e ao sinal de “dois pontos”, evitando cuidadosamente o “ponto final”, características que transformam a narrativa num discurso trepidante, aparentemente caótico, de uma rapidez doentia, a exigir um fôlego de baleia a quem se dispuser a ler aquele trecho em voz alta.



O Autor recorre, frequentemente, à ironia,temperada com um pouquinho de malícia a tender, por vezes, para a maledicência, dando um toque deliciosamente perverso ao texto.


e os homens que estavam ao redor da mesa - o secretário do presidente da Câmara, um senhor que se dedicava à venda de peixe em salmoura, um velho professor que adormecia de vez em quando, até quando empunhava o garfo...


Ou então:



Foram recebidos pelo director editorial, um tipo magro, mais espigado do que alto, de uns setenta anos chamado Schnell (rápido, em alemão), embora fosse mais para o lento.



Entrando em alguns aspectos concretos da narrativa, a forma como o Autor compara a morfologia das personagens com as letras do alfabeto não deixa de ser hilariante – ver final da pág. 39 – ao referir-se a Archimboldi e ao seu editor, Bubis: o primeiro, alto e magro como a letra “l”; o segundo, baixote e gordinho como a letra “e”.


A presença ubíqua da senhora Bubis em eventos sociais, envolvendo os mais proeminentes escritores alemães do último século é-nos dada pela descrição da galeria de fotos na editora, um indicio de que aquela personagem será o elo de ligação entre passado e presente, podendo ser uma das vias que levem à pista de Archimboldi. Uma ligação da qual só conheceremos os peso e a extensão também no último volume, altura e que a narrativa sofre uma regressão, recuando até ao início do século XX, para explicar a personalidade de Archimboldi.



Quanto à primeira parte, esta dedica-se quase que exclusivamente às peripécias dos quatro críticos literários no Velho e no Novo Mundo. Estas quatro personagens representam a Europa e a cultura europeia da UE. Mais propriamente a União Europeia multicultural – mas dentro do território europeu – sofisticada, educada, culta, higiénica, e, supostamente, com poucos tabus sexuais. Em suma, civilizada. Porque se falarmos de tabus sociais e de abertura ao exterior, o caso muda de figura. Facto que é confirmado pela brutal agressão ao taxista paquistanês nas ruas de Londres pelos pseudo liberais e pseudo progressistas Pelletier e Espinoza, respectivamente o crítico germanista Francês e o Espanhol.



Neste volume, surgem ainda alguns indícios ou pistas explicativas do tema principal que preenche o terceiro volume, A Parte dos Crimes. O autor recorre, para isso aos arquétipos vindos da mitologia clássica: os homens maltratam as mulheres em quase todas as épocas históricas porque temem a submissão sexual. Por essa mesma razão, fazem o mesmo que Perseu a Medusa, isto é, matam sem olhar, ou sem olhar directamente as vítimas, melhor dizendo, sem reconhecer a vítima como pessoa. E fazem-no na esperança de que, após o acto, que se repete até ao infinito, de encontrar um dia o “verdadeiro amor” - a longínqua Andrómeda, tão distante dos homens, na sua pequenez, quanto a Galáxia com o mesmo nome se encontra em relação à Via Láctea. A ideia é lançada por um estudante britânico, durante a breve estadia dos quatro críticos em terras de Sua Majestade onde assistem a uma conferência sobre literatura germânica em Londres. Mais tarde verificar-se-á que o episódio referido pelo estudante relativo à Mitologia, se repete no Estado de Sonora e na Cidade de santa Teresa, no norte do México, junto à fronteira com os Estados Unidos, local para onde convergem todas as personagens no final de cada um dos cinco volumes de 2666.



Durante a breve estadia em Inglaterra, os quatro críticos parecem reencontrar o rasto de Archimboldi, fazendo crer que este se encontra no México, precisamente em Sonora. A deslocação dos protagonistas Europeus para aquele país coloca-os em contacto com o Professor Amalfitano, o perito local em literatura germânica, que será o protagonista do segundo volume e co-protagonista no terceiro, ocupando ainda uma posição marginal no quarto volume.



Amalfitano é um Académico de origem chilena – tal como o Autor – mas de ascendência italiana a viver no Norte do México. Dá aulas na Universidade de santa Teresa, cidade do Estado de Sonora, onde parece haver uma tendência exagerada para a ocorrerem de crimes sexuais de especial violência. Amalfitano parece ser a personagem que mais se aproxima do perfil psicológico do Autor da obra tanto pela misantropia quanto pela paixão pela literatura. Mais tarde o Autor projectará as mesmas características no protagonista do quinto volume.
Oespaço onde decorre a segunda parte da acção deste primeiro volume – o deserto de Sonora, junto à fronteira do México com o Arizona -, é comparado a um jardim petrificado – mais uma alusão à Górgona e aos acontecimentos que se desenrolam na região: é o cenário onde no tempo presente, acontece o horror.



Com Amalfitano, os três dos quatro estudiosos europeus portam-se como autênticos snobes, em virtude da posição periférica em relação à Europa do sítio que este escolhe para viver.
“A primeira impressão que os críticos tiveram de Amalfitano foi bastante má, perfeitamente de acordo com a mediocridade do lugar, só que o lugar, a extensa cidade no deserto, podia ser visto como uma coisa típica, uma coisa cheia de cor local, mais uma provada riqueza muitas vezes atroz da paisagem humana, enquanto Amalfitano só podia ser visto como um náufrago, um tipo descuidadamente vestido, um professor inexistente, de uma universidade inexistente, o soldado raso de uma batalha perdida contra a barbárie (…) um melancólico professor de filosofia a pastar no seu campo, o lombo de uma besta caprichosa e infantilóide que tinha engolido Heidegger de uma só vez, no pressuposto de que se Heidegger tivesse tido o azar de nascer numa fronteira mexicano-norteamericana.”



O aspecto onírico na escrita de Roberto Bolaño vem ao de cima no episódio que descreve a presença dos críticos europeus em Sonora – Santa Teresa. Os sonhos são inquietantes e recorrentes. Os diálogos internos de Pelletier, Espinoza e Lyz Norton reflectem o ambiente opressivo que paira na cidade como uma opaca neblina de gás tóxico. Pelletier sonha constantemente com um detalhe que o incomoda especialmente: um buraco na sanita, ou melhor a sanita quebrada, à qual falta um pedaço e ninguém no hotel parece estar interessado em reparar. Tal como não parece haver ninguém interessado em desvendar os crimes que ocorrem na cidade. A população parece sofrer do mesmo tipo de lassidão ou indiferença crónica que o gerente do hotel em relação à sanita quebrada, isto é, sem se importar que a “merda” se espelhe pelo pavimento, mas em relação aos crimes que ocorrem a conta-gotas, mostrando uma passividade anormal face ao aumento do crime, do medo e da insegurança que se espalham e entram até mesmo dentro das casas particulares. A metáfora da sanita adquire aqui um carácter alegórico, lembrando um quadro de Magritte. Trata-se de um objecto simbólico que adquire proporções muito maiores às do objecto real, de forma a aproximar-se da magnitude da indiferença quer da população local quer das instituições responsáveis.



Roberto Bolaño retrata a realidade social daquela região com extrema dureza, apesar de, nesta fase,se limitar a recorrer ao simbolismo típico dos surrealistas para mostrar como até mesmo aqueles visitantes estrangeiros que têm a atenção concentrada apenas em si próprios e na possibilidade de brilhar, se apercebem de que “algo está mal mas não se sabe exactamente o quê”. É por essa razão que o sonho de Pelletier é sempre envolto em sangue (morte) e “merda” (corrupção). Trata-se de uma metáfora social que aponta para um paroxismo de violência latente como é o número de assassínios ocorridos na periferia daquela cidade.
Já Espinosa sonha com o deserto envolto numa luminosidade de um amarelo doentio, a lembrar o amarelo desesperado dos quadros de Frida Kahlo; um sonho polvilhado de misteriosos sussurros, onde o som da palavra “liberdade” parece escapar, entrecortado por murmúrios confusos.



Também o desconforto de Lyz Norton a crítica britânica se faz sentir sob a forma de sonhos. Esta vê-se um quarto de hotel reflectida em dois espelhos em simultâneo, onde parece observar o seu “eu” de fora, daí decorrendo a desagradável sensação de não se reconhecer a si mesma a que se junta o desconforto de se sentir observada e de ser incapaz de identificar o que se passa de errado com a atmosfera da cidade.



O episódio culmina com o regresso de Elizabeth ao conforto europeu e à reconfortante presença de Morini, o crítico italiano cuja saúde frágil o impede de se reunir aos colegas em Sonora. O pesadelo de Elizabeth faz lembrar um conto de Edgar Allan Poe ou um romance de Stephen King.



Para colocar a questão da liberdade na escrita versus a necessidade de subsistência do escritor que não escreve para as massas, Roberto Bolaño empenha-se em comparar o tipo social do intelectual mexicano e o europeu, isto é, entre aquele que se preocupa com a escrita em si e aquele cuja principal fonte de preocupação é a sobreviver. O primeiro, o sul americano, tem a sobrevivência assegurada porque, regra geral, vive de um emprego público, tendo apenas de se preocupar com a criatividade. Por outro lado, o Estado vigia-o de perto. O segundo tem de viver à própria custa, comendo o produto de empregos subalternos, delapidando uma herança ou os rendimentos do cônjuge a viver uma situação mais estável, a menos que pertença ao grupo restrito que trabalha no meio editorial. Da liberdade de expressão na escrita, condicionada pelo controlo estatal no primeiro caso, e da precariedade decorrente de uma sobrevivência na maior parte das vezes incerta no segundo, o escritor europeu situa-se dentro de um sistema neo-liberal, onde o aquele que não escreve com o fim exclusivo de ganhar dinheiro só abrande uma pequena fatia do mercado, só o pode fazer a título parcial, gastando a maior parte do seu tempo útil a executar um trabalho remunerado que nada tem a ver com a actividade intelectual ou com a criatividade, o que faz dele um escritor tão ou mais condicionado do que o escritor sul-americano, que trabalha para o Estado, mas ao qual o mesmo Estado não incomoda muito.


Mas ao Autor não escapa o facto de que a dependência do escritor face a um organismo estatal lhe possa distorcer a visão da realidade e de o escritor se refugiar no próprio mundo vendo apenas o que deseja ver:



Da boca da mina continuavam a sair rugidos e os intelectuais seguem-nos interpretando mal.



O Reitor Negrette, chefe de Amalfitano, desempenha o papel de anfitrião dos visitantes europeus, será uma peça de ligação importante na terceira parte, uma vez que é parente do chefe da polícia local que investiga os crimes.



No final da primeira parte ou do Livro I é descrito o cenário da cidade e a paisagem social do território onde decorrem os crimes. Os bairros pobres e, também o quadrante norte, onde se ergue o parque industrial que reúne as fábricas onde trabalham os habitantes da zona menos favorecida da cidade: as “maquiladoras”, compostas essencialmente por mão-de-obra feminina.
O ambiente opressivo associado ao medo latente e generalizado que se instala na cidade, parece emanar de disparidades socioeconómicas que se tornam chocantes:



Viram, nos extremos de Santa Teresa, bandos de urubus negros, vigilantes, caminhando em campos ermos, pássaros a que aqui chamam de gallinazos e também de zopilotes e que não eram mais do que urubus pequenos e necrófagos. Onde havia urubus (…)não havia outros pássaros.



E a terminar a alegoria:



O céu, ao entardecer, parecia uma flor carnívora.



Elizabeth Nortonregressa à Europa antes dos outros dois críticos, Pelletier e Espinoza, que ficam durante mais alguns dias a afogar o seu pedantismo (e dor de corno), na noite de Santa Teresa. Aproveitam para dar uma escapadela até ao outro lado da fronteira, o Arizona, e ouvem, pela primeira vez um relato sobre os assassínios das mulheres de Sonora.

Uma característica que, à primeira vista, nos parece desconcertante a princípio é a alternância dos discursos e planos narrativos, dando a ideia de simultaneidade, tal como acontece no cinema. Os factos sucedem-se com rapidez e o tempo, condensado, permite ao leitor aperceber-se da velocidade a que se dão os acontecimentos enquanto é lida carta de Elizabeth Norton pelos seus destinatários.



Lyz refere na carta a imagem do pintor enlouquecido que decide cortar a mão – episódio que será desenvolvido na segunda parte, e que acaba por se ligar, de forma indirecta indirecta no destino de Amalfitano.



Os críticos longe de conseguirem o seu objectivo inicial, partem com a sensação de missão incumprida, sem terem desvendado o mistério de Archimboldi.

CSD

“2666" de Roberto Bolaño (Quetzal) ~"Livro II - A parte de Amalfitano”




O segundo volume da saga, diz respeito ao passado do professor Amalfitano, antes de estabelecer residência em Santa Teresa, onde se instala definitivamente, com a filha. Daqui, o episódio que mais nos prende a atenção é aquele que aponta a diferença no tratamento alfandegário a que são sujeitas as pessoas oriundas do espaço exterior à União Europeia, sobretudo quando provém de países em vias de desenvolvimento. A narração do tratamento diferenciado a que são submetidos Rosa – cidadã europeia, porque filha de mãe espanhola – e de Amalfitano – não europeu, de naturalidade chilena, apesar da ascendência italiana – é gritante. É como se estivéssemos em Roma, onde os Romanos da cidade de Rómulo e Remo são considerados cidadãos; e os romanos livres, mas nascidos em outras cidades na Península Itálica tinham estatuto de cidadãos de segunda. Ou então, como na Grécia de Sócrates e Aristóteles, onde se distinguiam Atenienses de Metecos (cidadão da periferia). Ou porque não, os primeiros indícios de um novo III Reich onde os cidadãos da UE seriam os Atenienses, ou Romanos de primeira e os restantes simples metecos, ou humanos de categoria inferior a fazer jus às mais do que refutadas teorias raciais da história que fizeram furor no último quartel do século XIX até á década dourada do poderio nazi?



Senão vejam:



Rosa tinha sete anos e era espanhola. Amalfitano tinha cinquenta e era chileno. (…) Rosa passava as alfândegas pela porta dos cidadãos comunitários e Amalfitano pela porta reservada aos não comunitários. Rosa perdeu-se e Amalfitano demorou meia hora a encontrá-la. À vezes os guardas viam Rosa e perguntavam-lhe se ela viajava sozinha ou se alguém a esperava à saída. Rosa respondia que viajava com o pai, que era sul-americano, e que tinha de esperá-lo ali mesmo. Uma vez revistaram a mala de Rosa pois suspeitaram que o pai podia passar drogas a coberto da inocência e da nacionalidade da filha. Mas Amalfitano nunca tinha traficado drogas nem armas.



A xenofobia europeia observada “de fora”por um cidadão sul-americano parece adquirir contornos preocupantes, devido à semelhança com políticas fascizantes do passado, ainda gravado a ferro e fogo nas gerações mais seniores. Tudo começa a partir do momento em que um cidadão estrangeiro, sem qualquer ligação com o mundo do crime, é considerado culpado até prova em contrário.



As disparidades e as contradições do sistema não se ficam por aqui: a mãe de Rosa, de origem espanhola e personalidade controversa e instável indicia, desde logo, um percurso de vida recheado de dificuldades, agravado por uma irresistível atracção pelo abismo. Lola mostra ser uma mulher com graves dificuldades de adaptação e integração social, cujas escolhas a impedem de levar uma vida estável, de forma a cuidar e educar uma criança. É por estas razões que Rosa crescerá com o pai, o intelectual sul-americano ao qual o Estado, apesar de se tratar de um país em vias de desenvolvimento, concede valor suficiente para lhe garantir a subsistência. O percurso de Amalfitano liga-se ao de Lola por um período muito breve. A separação torna-se inevitável e Amalfitano mergulha numa solidão crónica, dissipada apenas pela presença da filha e uma ligação amorosa, embora sem compromisso, com uma colega de trabalho. Amalfitano é aquilo que Vila-Matas define como “máquina solteira”, isto é, aquele celibatário convicto que menciona nos seus romances sobre intelectuais e a inspiração e criatividade na escrita, marcada pela desilusão de um quotidiano com poucas expectativas. No romance de Bolaño, os dois membros do casal libertam-se um do outro para viverem cada qual à sua maneira, já que são duas personalidades demasiado individualistas a gerir o quotidiano de forma diametralmente oposta: enquanto que, para Amalfitano,são imprecindíveios a estabilidade económica e a tranquilidade no quotidiano as quais se associam ao amor às letras e ao ensino; para Lola, a vida é aventura, errância. Mais: Lola é alguém que constrói a própria realidade. Edifica na própria mente um mundo à sua medida e ao qual a maior parte das pessoas não tem acesso, tal como na visita realizada ao hospital psiquiátrico em Barcelona, onde à procura de algo que nunca teve a mais leve expressão da realidade.



A narração da história de Lola é uma narrativa secundária à qual temos acesso apenas e só através das cartas que Amalfitano vai recebendo esporadicamente da ex-mulher. Trata-se portanto de uma estória contada na primeira pessoa onde se pode observar o ponto de vista pessoal da personagem e apreciar até que ponto de manifestam as distorções da realidade por ela operadas. Amalfitano e Lola têm, também, formas diametralmente opostas de projectarem o que sentem. Amalfitano fá-lo através da escrita ensaística: é um filósofo dotado de pensamento analítico, crítico, racional. Lola é, pelo contrário, toda ela, sentimento, paixão, formatada para se tornar poeta ou romancista, característica que se manifesta através de actos apaixonados e irreflectidos, numa escrita caótica porque emocional por excelência.



Amalfitano é um pensador. Racional, lógico, mas deixando espaço para o imprevisto fruto do acaso ou da conjugação dos elementos externos à sua pessoa. A título de exemplo desta sua faceta é sintomática a colocação do tratado de geometria no estendal da roupa, ao sabor dos elementos, de forma a sublinhar esta característica da sua mente: Amalfitano está vocacionado para formular raciocínios, elaborar pressupostos, efectuar ligações analógicas, esquemas dedutivos – processos mentais usados tanto em geometria como em análise literária. Coloca, no entanto, a sua racionalidade ao sabor do vento da inspiração.



Amalfitano é natural do Chile, embora de ascendência napolitana. O pai não se coibe de mencionar que a corrupção instaurada no Chile e na América do Sul em geral, tem como paradigma a realização de acordos que estão na base das vitórias desportivas. Fala dos pugilistas como pessoas que se vendem a quem der mais, descurando o profissionalismo em detrimento do dinheiro. Opinião que o filho extrapola para o México, sobretudo na cidade de Santa Teresa, apesar de consciente que o país onde nasceu o pai é, também, o berço da Camorra.



Rosa representa o Universo dos jovens que, no México, crescem protegidos pelo estatuto social da família e, em geral, livres de privações, situando-se na classe média alta. O mesmo não se passa nas classes menos favorecidas onde as mulheres são meros instrumentos postos ao serviço do homem, encarado como o chefe de família.



Por outro lado, a noite em Santa Teresa torna-se perigosa para as mulheres, mesmo aquelas que não frequentam bares, discotecas ou casas de alterne, poiso de traficantes, proxenetas e prostitutas de luxo. Por vezes, mesmo a caminho do trabalho na fábrica, a exercer a profissão de jornalista ou até mesmo em simples passeio turístico, o perigo espreita.



Mas mesmo para jovens como Rosa parece ser fácil, através de companhias consideradas de “boas famílias” ou simplesmente detentoras de trabalho aparentemente respeitável, que escondem ligações ao crime organizado, envolvendo comércio de estupefacientes e tráfico humano, executadas na sombra, poderem ser colocadas em situações “de risco”.



De facto, o terror vai-se acumulando na mente de Amalfitano, à medida que a filha cresce e interage socialmente. Este apercebe-se que a jovem escolhe as amizades de forma completamente aleatória, ou baseada nas aparências. Amalfitano está intranquilo mesmo sabendo que a maior parte das vítimas de violação e assassínio naquela cidade são de outros bairros.



Roberto Bolaño foca, neste Livro II, a importância das companhias como factor propiciador ao contacto com meios duvidosos e elementos que norteiam a conduta pela perseguição de objectivos superficiais. Sem esquecer a pintura de uma quase infinita panóplia de nuances de corrupção endémica nas instituições a coberto de uma moral hipócrita, abrangendo políticos, polícias, magistrados e mesmo alguns pseudo-intelectuais.



Bolaño volta a recorrer, nesta segunda parte de 2666, à alternância de planos de acção: de um lado, a leitura imbuída de ironia e algum sarcasmo, de uma obra medíocre, sem criatividade nem espírito crítico, cujo autor excreta uma obra que peca essencialmente pela falta de rigor científico. Trata-se de um autor institucionalizado e ligado a uma determinada facção política. Do outro lado, temos os comentários deliciosamente cáusticos, quase anedóticos o narrador que vai tecendo relativamente ao comportamento dos convidados, durante um jantar em casa do reitor Negrette. Para rematar, desmantela de forma quase lúdica, embora não sem uma pontinha de perversidade, o modelo teórico do ensaísta tão aclamado, de forma brilhante e irrefutável.



Em relação ao tema dos crimes e das mortes violentas que afectam as mulheres da cidade, o autor dá a entender, nas entrelinhas, que só um trabalho de equipa envolvendo vários organismos competentes e equipados com pessoas do calibre de Amalfitano, que privilegiam o brio profissional acima dos privilégios, será capaz de destrinçar o emaranhadíssimo novelo relacionados com o ginocídio que decorre no estado de Sonora.



Durante o já mencionado jantar em casa do Reitor Negrette, na primeira parte, são-nos já dados alguns vislumbres daquilo que se passa por detrás das aparências. O autor fornece pequenas peças do puzzlle. Mas só os cinco livros no seu conjunto nos dão a visão global do problema.



O principal móbil destes assassínios, antecedidos de violação, parece residir no factor cultural e na forma como se distribuem os papéis dentro de uma família nuclear ou mesmo nas relações entre os géneros mesmo que não constituam um casal. E, daí, se extrapola para a forma como se estrutura a sociedade em si, o peso do papel da mulher fora do espaço doméstico, as profissões que desempenha, o reconhecimento social, a valorização do trabalho feminino e as condições em que este ocorre. De tudo isto, resulta a impunidade daquele género de crimes. Sobretudo quando os seus autores são figuras de tal forma ligadas ao poder que se tornam intocáveis. Durante outro jantar em que participa Amalfitano é particularmente notório o desprezo latente dos jovens mimados, filhos de pais bem colocados no aparelho de Estado, face às pessoas dos bairros pobres. Sobretudo - no diálogo entabulado entre o Amalfitano e Marco António Guerra, na página 266, da presente edição, pela forma como este se refere às empregadas da “maquiladoras”, de onde saem a maior parte das vítimas dos crimes.



A parte de Amalfitano termina com uma breve reflexão, adoptando um tom descontraído sobre as consequências do desmoronar do sistema económico comunista e dos valores a ele associados, descrevendo o comportamento de Boris Ieltsin, digno e uma ópera buffa. Ou de uma sátira:


Escuta as minhas palavras com atenção, camarada. Vou explicar-te qual é a terceira perna da mesa humana.



(…)



A vida é oferta e procura ou procura e oferta; tudo se limita a isso, mas assim não se pode viver. É necessária uma terceira perna para que a mesa não caia na lixeira da história, que por sua vez está sempre a desmoronar-se na lixeira do vazio. A expressão é esta: oferta + procura +magia. E o que é a magia? Magia é épica, e também é sexo e numa forma dionisíaca é fogo.”



(…)~



Seguidamente , tirava a garrafa de vodka da algibeira e dizia:
- Creio que está na hora de beber um copinho
.”


Amalfitano é talvez a personagem mais importante do romance, a par de Archimboldi. São dois heróis em tempos diferentes, mas com a mesma consciência humanista. Neste trecho, o autor está a criticar os sistemas excessivamente racionais que se pautam por números, estatísticas, cálculos entre perdas e lucros, tentando dizer que a alma humana é bastante mais do que isso, servindo-se para tal, de uma figura da história recente, emprenhando-se em frisar que tem de haver espaço para o sonho e para um ideal de justiça. Sobretudo de justiça social. Isso é o fogo, a épica de que fala este Ieltsin burlesco.



O foco de preocupação dos cinco volumes de 2666 acaba sempre por desembocar em Sonora , lugar onde convergem todas as personagens principais, apesar de a acção do primeiro e do último livros decorrer, na sua maior parte, na Europa. Mas todos acabam por desembarcar no ground zero da cidade onde decorrem os assassínios, unindo assim o destino da História e a própria condição Humana.

CSD

“2666 de Roberto Bolaño (Quetzal) "Livro III - A Parte de Fate"




Desta vez, o papel central é atribuído a um jornalista norte-americano, encarregue de fazer a cobertura de um acontecimento desportivo de grande importância para a população do bairro de Harlem, Detroit. Mas cedo Fate se esquece do combate de boxe, protagonizado pelo pugilista negro sobre o qual deve incidir a matéria e interessa-se pelos crimes, envolvendo uma assustadoramente elevada taxa de assassínios acompanhados de violação daquela pequena cidade no Norte do México. O desejo de ver publicado o resultado das investigações é-lhe, no entanto, dificultado por um motivo surpreendente: a revista para a qual escreve destina-se ao público afro-americano e as mulheres assassinadas são, na sua maioria, mexicanas.




As primeiras frases desta terceira parte de 2666 colocam imediatamente o leitor, mais uma vez, em contacto com o pensamento caótico do protagonista no qual predomina a ideia de morte e a sua chegada, súbita e inesperada, como se fosse uma partida do destino (Fate, em inglês). A chegada da Morte é como um cataclismo que lhe leva repentinamente a mãe e uma vizinha, deixando-o como que absorto, anestesiado devido ao choque, o que faz pensar que Bolaño projectava de forma subtil e indirecta o drama pelo qual estava a passar e que se pode detectar nas entrelinhas: a doença e subsequente alteração no quotidiano e na relação com as pessoas mais chegadas.




Mas após o choque inicial, a atmosfera sombria das primeiras cenas desta terceira parte vai-se atenuando e o protagonista acaba por adoptar uma atitude estóica e enfrentar a mudança de hábitos e cenário como um desafio.




O trabalho atribuído a Fate, no Norte do México, é encarado por este como uma terapia. Chegado ao local, tenta conciliar a reportagem com a investigação criminal e a escrita a que se junta uma pitada de romance, uma atracção sexual inesperada e contida pela reserva do jornalista. Ao chegar ao México, Fate entra em contacto com o Professor Amalfitano e a filha, continuando de algum modo a história do volume anterior. Mas não sem antes se dedicar à investigação daquele país e fazer uma espécie de “cura espiritual”. Uma das cenas de maior importância neste volume e mesmo da obra na sua totalidade é a do sermão do pastor evangélico cuja acutilância denuncia uma vontade de ferro e sólidas convicções, apesar de expressas sob a forma de veludo posto nas palavras e na tonalidade da voz. O pastor que realiza o serviço fúnebre da mãe de Fate, apesar de se dirigir à população afro-americana de Harlem fala de temas universais que ultrapassam em muito a população daquele bairro. De valores profundamente enraizados no humanismo de pendor socialista, o Reverendo não hesita em apontar algumas chagas sociais que afectam principalmente as sociedades urbanas, criando acentuados contrastes e incomensuráveis disparidades económicas. No discurso do sacerdote evangélico estão contidas cinco palavras-chave ou directrizes que tenta incutir na mente dos seus fiéis. São, também, cinco as palavras-chave à volta das quais se desenvolve o romance: perigo (criminalidade, insegurança), dinheiro (corrupção), comida (subsistência); estudo (literacia) e utilidade (desenvolvimento sustentável).




Em Santa Teresa, Oscar Fate sentirá o cheiro do perigo que paira no ar como uma nuvem de gás tóxico. O dinheiro e a distribuição assimétrica da riqueza bem como a falta de solidariedade entre as classes sociais, a exuberância da comida local mexicana, em contraste com a pobreza local, servem de pretexto para aproximar algumas das figuras centrais do romance. Tudo conspira para que Fate escreva algo que interessa de sobremaneira à população local e sirva também de denúncia como uma das maiores violações dos direitos humanos no Ocidente.
A tudo isto junta-se a colaboração com peritos em investigação científica e criminal credenciados para tentar descortinar a fronteira entre o reino das aparências ou das sombras e vislumbrar, ainda que minimamente, as cores da realidade. Toda a narrativa parece apontar para o primado do conhecimento como contraponto à ignorância e, assim, separar o trigo do joio e dar o nome as coisas: discernir, classificar, avaliar e, por fim, julgar.




A metáfora das estrelas, usada pelo sacerdote em Harlem, pouco antes da viagem de Fate - e, mais tarde, na quinta parte, na história de Archimboldi – remete para Platão e para a alegoria da caverna quando se sugere que “a proximidade do Sol ilumina mas também ofusca”, dando a entender que quanto mais nos aproximamos da Verdade, menos vemos e maior se torna o risco de sermos por ela destruídos.




Isto porque segundo algumas das personagens com quem contracena Fate durante as suas investigações acreditam, quea maioria dos criminosos da História esteve sempre integrada nas estruturas do poder, acabando regra geral, por serem olhados como um mal necessário por aqueles que estão “de fora” e não lhes conseguem fazer frente.




Esta será a acepção negativa do utilitarismo relacionado com a última das cinco palavras chave do sacerdote afro-americano. A segunda acepção da palavra utilidade tem a ver com aquela que não se vê no imediato, mas apenas no longo prazo. Trata-se da crença de que a capacidade para avaliar a utilidade de algo a longo prazo só pode ser dada por algo como a cultura, o conhecimento, o oposto da ignorância – isto é, em franca ligação com o quarto item do quinteto de directrizes do sacerdote evangélico de cariz socrático-platónico, com um toque do pragmatismo aristotélico. O pastor chega, inclusive, a enfatizar a importância da literatura e do conhecimento como motor do desenvolvimento humano e do homem como ser social.No entender do pastor, a cultura confere sentido crítico e capacidade de discernimento. Essa é a sua verdadeira utilidade.




Antes da partida para o México e em entrevista a um ancião que seria o último membro do PC americano, Fate depara-se com um frágil octogenário fiel admirador de Karl Marx e acérrimo crítico de Estaline. Um homem culto, profundamente humanista, que não se enquadra em sociedades predadoras, lúcido e despojado.




Já em viagem, Fate interessa-se pelas questões que rodeiam a natureza do crime e do criminoso, pelos métodos de investigação criminal, em diálogo com um antigo membro do FBI reformado, discorrendo sobre arquétipos e tipologias dos diferentes crimes, sobre a imutabilidade da natureza humana desde as mais antigas civilizações...diálogos reflexivos que servem de base para explicar o sucedido em Sonora. Segundo o ex agente, a criminalidade não teria aumentado nos últimos séculos, mas teria apenas passado a ser mais notificada devido à imprensa e aos media, passando a chegar a todo o lado. (vide pág 310/311). E os mexicanos parecem, segundo o mesmo investigador, fechar ou insistir em fechar os olhos à realidade que os circunda.
O detective, ainda em conversa com Fate, é da opinião que aquela sociedade está fora da sociedade, todos, absolutamente todos são como os antigos artistas de circo.




E que os crimes tem assinaturas diferentes.







(…)




aquela cidade parece pujante , parece progredir de alguma maneira, mas o melhor que podiam fazer era sair uma noite para o deserto e atravessar a fronteira, todos




Ao chegar a santa Teresa, Fate toma contacto com um colega de profissão e fica impressionado com a indiferença, o desprezo, da opinião pública face às vítimas confirmando a opinião do colega.
Ao encontrar-se, por acaso, com Amalfitano e Rosa, Fate apercebe-se de que esta é uma adolescente que se expõe, sem se aperceber, a situações de perigo devido ao carácter de algumas pessoas com quem convive. E, também, de que nenhuma mulher jovem ou bela está a salvo naquela cidade. Fate está consciente, ao frequentar a noite em Santa Teresa, quão fácil é para uma adolescente desde sempre protegida pelo meio familiar rodear-se de amizades duvidosas e ser arrastada para o submundo onde a morte espreita.




É com um sentimento de aviltante surpresa que se apercebe também mentalidade local através das ultrajantes anedotas que circulam nos bares e nos cafés sobre as mulheres e o lugar que lhes destinam naquele tipo de sociedade: da cama para o fogão e vice-versa.

Uma vida independente para uma mulher parece ser, ali, a maior das utopias. Ou aberrações.

CSD

"2666" de Roberto Bolaño (Quetzal)“ "Livro IV - A Parte dos Crimes”




“A Parte dos Crimes

O holocausto que envolve os homicídios de mais de trezentas mulheres, decorridos num período de poucos anos, é esmiuçado aqui, na quarta parte da saga. Os assassínios, antecedidos de violação com requintes de sadismo, vão ocorrendo a conta gotas mas de forma sistemática. A narração é feita sob a forma de dossier criminal, assemelhando-se a um conjunto de relatórios de um Instituto de Medicina Legal ou de um departamento de Anatomia Forense, compilados e arquivados na Divisão dos Crimes Sexuais da entidade que, no México, equivale à Polícia Judiciária.



A Parte dos Crimes é de um relato frio a fazer jus ao discurso típico de um médico forense. O objectivo deste segmento da saga 2666 é o de, em primeiro lugar, mostrar a imensidão dos crimes perpetrados naquele lugar ou a magnitude do seu prolongamento no tempo e respectivo grau de violência. À medida que progredimos na leitura, apercebemo-nos facilmente de que os crimes não podem, todos eles, ser cometidos pela mesma pessoa – não só pela quantidade de ocorrências, pela “assinatura” ou tipo de marcas deixadas nas vítimas (que permite logo identificar criminosos diferentes) mas sobretudo pelo facto de, alguns deles, ficarem esclarecidos (porque apanhados em flagrante ou confessarem) e os crimes do mesmo género continuarem a ocorrer.



O leque de mulheres assassinadas é, também, muito variado. São em regra, belas ou atraentes mas com idade que vão desde os dez anos até rondar os quarenta, raramente ultrapassando aquela faixa etária, como o caso em que o assassino apanhado após ter violado e morto a mãe por vingança declarando tê-lo feito “para que ela aprenda”. A violação naquele contexto cultural parece ser, muitas vezes mais um acto de punição do que motivada pelo desejo ou a luxúria. É uma espécie de vingança. Noutros casos parece ser apenas uma espécie de desporto. O móbil do crime parece diferenciar os assassinos consoante as classes sociais. No caso daqueles que são oriundos das classes abastadas manifesta-me mais como uma afirmação de poder.



Na realidade, as estatísticas parecem confirmar o facto de que o número de mulheres violadas naquela região é muito superior ao das mulheres cuja morte é o resultado da violação.
As mulheres violadas em série e posteriormente assassinadas são, em regra mortas para que os assassinos de mantenham na sombra e possam perpetrar novos crimes. Em santa Teresa, a maior parte das mulheres violadas e assassinadas são de origem humilde e trabalham nas “maquiladoras". Fazem turnos, saem muitas vezes do trabalho de madrugada, horas antes do alvorecer, percorrem largas distâncias a pé desde o local de trabalho até à residência. Em suma: estão expostas a vários factores de risco, numa das zonas de maior violência social do Globo.

Mas entre as vítimas, há também aquelas que exercem a chamada “prostituição de luxo” ou então as que são recrutadas à força para trabalharem como escravas sexuais, pressionadas pelos cartéis das máfias locais ligadas ao tráfico humano e ao narcotráfico e cujo lideres estão ligados ao poder local e à Grande Indústria das…"maquiladoras”.



No final da quarta parte da saga, o Autor dá a entender que a forma de debelar um problema tão complexo terá de envolver uma equipa multidisciplinar, proveniente dos vários órgãos competentes, liderada por uma entidade externa, independente, a que se junta um considerável esforço que dependeria da vontade política do Estado e do interesse massivo da população, sobretudo masculina, de que as coisas mudem. Ao chegar ao final desta quarta parte, ficámos com a sensação que o Autor apenas quis dar um vislumbre, da realidade, isto é, da imensidão do inferno e do paroxismo que pode atingir a maldade humana. O protagonismo de algumas personagens que aparentam adquirir um peso considerável na resolução da trama parece como que diluir-se no final, sucumbindo à própria impotência, fruto da ausência de um esforço colectivo. no sentido de colaborar na operacionalização dos mecanismos de mudança.
Os últimos parágrafos apontam para uma coligação do forças encarregue de descobrir uma solução para o caso a qual terá, diante de si, um caminho pedregoso, cheio de espinhos, e com uma multiplicidade de obstáculos. A estória termina em aberto com um ponto de interrogarão onde está implícita uma réstia de esperança…






CSD

“2666” de Roberto Bolaño - Livro V - “A parte de Archimboldi”



A quinta parte da saga acaba por ligar algumas pontas soltas em relação aos romances anteriores. Isto é, vai buscar a história do personagem que é o móbil de acção dos protagonistas do primeiro volume, o qual também desperta o interesse de Amalfitano, cuja atenção é, a dada altura, voltada para as questões locais da cidade que escolhe para viver.


Para recuperar a história de Archimboldi, o Autor faz uma regressão à transição do século XIX para o século XX, numa Alemanha rural, onde se começa por contextualizar o ambiente social, económico, histórico e cultural onde nasce o escritor. Prossegue com o relato da infância e antecedentes familiares, assim como alguns dos aspectos mais bizarros das suas origens: a deficiência física da mãe a que se junta a mutilação de guerra do pai, sequela da participação de Herr Reiter na Primeira Grande Guerra do século XX. Alguns aspectos interessantes da mentalidade local e, sobretudo, familiar podem ter marcado a infância de Archimboldi e estar relacionados com o rumo dos acontecimentos históricos: por exemplo, a convicção do pai de Archimboldi, de que os homens de pequena estatura são alvos mais difíceis do que os titãs com mais de 1.90 metros de altura. Roberto Bolaño dá, assim, a entender ter sido a obsessão pela eugenia e a preocupação dos exército alemão em seleccionar os melhores espćimens com melhor condição física um dos factores que contribuíram para o dizimar do exercito alemão durante as duas grandes guerras.



Outro factor interessante deste último romance do Autor é o apurado sentido de humor na voz de um narrador, não participante e omnisciente, como se a “voz” do Autor se projectasse na personagem e se rindo-se de si próprio ao relatar a infância do jovem Hans Reiter, mais tarde Benno von Archimboldi. Primeiro, o aspecto físico bizarro, “semelhante a uma alga”, depois o comportamento que se pode considerar excêntrico e algo misantropo em relação àquilo que sria comum nas crianças daquela comunidade: a obsessão pelo mar e pela vida abaixo da linha da água, que tem como consequência um tardio desenvolvimento linguístico, devido à falta de interacção social.



Outro aspecto que traduz o refinado sentido de humor de Roberto Bolaño e a invulgar mestria literária com que utiliza a toponímia local a sintetizar as características pelas quais são conhecidos os habitantes de cada aldeia: a Aldeia das Mulheres, a Aldeia dos Porcos, a Aldeia dos Sapateiros e assim por diante. Esta particularidade acaba, muitas vezes, por adquirir uma conotação anedótica ao mesmo tempo que cria um contraste interessante e abismal face ao volume anterior.



A Hans Reiter, tal como previa o pai, a estatura gigantesca parece ter facilitado o ter sido alvejado em plena batalha e precipitado a sua saída do teatro de guerra mas, por outro lado, granjeia-lhe a admiração entre os pares do exército. Mas ao aspecto ariano, que tanto impressiona os chefes militares e as mulheres românticas, junta-se um carácter introspectivo e tenaz, uma vontade férrea, um forte sentido de independência e pensamento crítico. Hans não se limita a acatar ordens. Possui convicções. E um sentido de justiça que não deixa margens ao conformismo. O humor de Bolaño torna-se corrosivo ao descrever, do ponto de vista prussiano, os vários tipos sociais europeus, quase todos equiparados a suínos – todos diferentes, todos iguais, mas todos suínos – excepto os Prussianos, os únicos europeus de classe A (vide página 737).



A história de Reiter/Archimboldi é, no período entre as duas grandes guerras, relatada do ponto de vista de um observador não participante ao qual nada escapa, um pouco como acontece os volumes anteriores. O tom caricatural e simultaneamente introspectivo do discurso aproxima este narrador de Günter Grass, escritor germânico da sua preferência. Exemplo disso é o episódio protagonizado por Reiter /Archimboldi e o lunático Vögel (pássaro), enquanto que a ternura que coloca nas palavras ao descrever os sentimentos do jovem Reiter pela irmã, Lotte, o aproxima do melancólico e nostálgico Alberto Moravia.



A ironia de que já falamos e que está a cada passo impressa no discurso do narrador reveste, de forma genial, o processo tentacular de disseminação da propaganda nazi entre as duas guerras e, sobretudo, durante a Grande Depressão dos anos trinta, feita porta a porta, recrutando jovens adolescentes para as suas fileiras usando a demagogia dos pregadores. Seguindo esta linha de pensamento, o Autor pretende realçar o empobrecimento cultural das classes dominantes alemãs que deixam os livros morrer, esquecidos nas estantes, fechados a sete chaves para não se estragarem. Ou para não serem lidos – pensamento que vai de encontro ao discurso do Reverendo em A Parte de Fate.
Este é o ambiente vivido em casa do barão von Zumpe, durante a infância de Reiter, onde a mãe trabalhava, na casa senhorial. Dos aposentos dos serviçais, Reiter assiste às festas orgíacas da jovem baronesa e aproxima-se da ovelha negra da família, o escritor Hugo Halder, um dos seus principais mentores. Halder desperta em Reiter o interesse pela leitura e pela cultura dando-lhe a ler os livros que o vão, gradualmente, conquistando: autores clássicos alemães e, também, estrangeiros. Mas ao entrar na idade adulta, Reiter muda novamente de cenário, indo viver para a cidade onde se torna um trabalhador estudante e, em muitos aspectos, autodidacta.




A chegada da Guerra e o destacamento para a Frente do Leste fazem-no perder de vista o amigo. Reencontra a Baronesa em circunstâncias inverosímeis, em várias ocasiões ao longo da vida. A jovem herdeira Von Zumpe é um verdadeiro camaleão: oriunda de uma elite, tanto borboleteia por entre os oficiais das SS e da Wehrmacht, atravessando a guerra como uma nuvem e à qual escapando incólume e sem se comprometer, como se torna na esposa de um milionário judeu no pós-guerra, dono de uma editora da qual se tornará sócia-gerente.
A temática da morte é uma constante nesta saga, sobretudo nos dois últimos volumes. Neste, a primeira alusão está patente na primeira história de amor vivida por Archimboldi, a fazer lembrar o romantismo de Göethe, pela poeta Ingeborg, que traz em si, já, o estigma da doença que se vai progressivamente agravando e culmina num final dramático, tal como a estória de Amalfitano e Lola na segunda parte.





À ideia da morte, está ligada a simbologia do gelo, assim como a da luz aparente das estrelas que já não existem,facto já referido pelo sacerdote em “A Parte de Fate”, aludindo paulatinamente à brevidade da vida e à traição suprema que é a inevitabilidade da morte. A mesma alusão dá-se, também , num banquete na Roménia onde estão presentes vários oficiais das SS e da Wehrmacht, a baronesa e o General Romeno seu amante, fazendo lembrar o banquete de Thaïs de Anatole France. Aqui, discute-se um pouco de tudo, desde as possíveis origens do Conde Drácula ou Vlad, o Empalador, o qual poderia quase ser equiparado a Hitler e seus acólitos, pelo frenesim de morte que o acompanha.



O discurso do narrador revela , nalgumas divagações, sobretudo a propósito do estado de Ingeborg, uma crescente preocupação do autor com o “estar doente” ou “estado de doença”, do ser-se doente crónico e, por último, terminal, facto a que, muitas vezes, não consegue evitar aludir.



O primeiro elo de ligação com o sucedido em Sonora, quase seis décadas mais tarde, vem a lume no local onde é referenciado um pintor alemão cujo trabalho era então considerado pelas “autoridades”na matéria, como “arte degenerada”, retratando uma grande quantidade de mulheres mortas, um holocausto retratado pelo pai de Hugo Halder, Conrad, a anteceder o horror dos campos de concentração nazis e o acontecido no Norte do México como fazendo parte do lado mais terrível da natureza humana.



A guerra segue o seu curso com Reiter ainda integrado na frente do leste Europeu, onde nos é descrita a beleza gélida dos rios – Reiter continua atraído pelo meio aquático – cuja descrição proporciona um interessante contraste com o barulho atroador do teatro de guerra, assombrado pelo fogo, pelas cinzas e pelo fumo, deixando atrás de si um rasto de destruição e morte. O Autor chama a atenção para o indescritível fragor da batalha que acompanha o stress permanente dos soldados, para o espectáculo traumático da guerra e para pusilanimidade de alguns líderes, que na realidade não o são.



Um ponto de viragem essencial na trama tem a ver com a consolidação das convicções de Reiter/ Archimboldi, é a estadia forçada após um ferimento, na casa abandonada de um escritor judeu, entretanto desaparecido. Lá, encontra o diário com as memórias do dono da casa. A leitura permite-lhe estabelecer de imediato uma grande empatia com o autor daquele manuscrito, estabelecendo-se, a partir de então, como que um diálogo interno entre o leitor e o texto. É assim que Hans Reiter toma contacto com o outro lado da guerra, isto é, com aqueles a quem o “seu” exército pretende erradicar do território pertencente ao domínio alemão. O escritor judeu desencadeia em Reiter uma revolução ideológica que lhe desperta a curiosidade para a leitura dos “escritores proibidos”, referenciados no mesmo caderno.



As consequências não se fazem esperar. Daqui só pode nascer um sentimento de repúdio perante a manifesta ausência de sentido crítico num povo e pela omnipresença de uma servil e cega obediência às normas, mesmo que irracionais ou desumanas. Kant, Hegel, Feuerbach, Pascal sopram-lhe ao ouvido quando toma a decisão emocional de ajustar contas com o funcionário que mandou executar um contingente de judeus, despachando-os para o campo onde viriam a ser exterminados, apenas por uma questão logística: manter aquelas pessoas na localidade seria demasiado trabalhoso e dispendioso - note-se que o funcionário não recebeu uma ordem, preferiu optar pela solução mais fácil e ficar “bem visto” pelas instâncias superiores.


A parte de Archimboldi faz as delícias dos germanistas que podem desfolhar, ao longo do volume, uma mini-história da literatura germânica, desde o Romantismo até ao final do primeiro quartel do século XX.
Ansky, o autor do caderno fala, também ele, de doença e morte, de um sentimento desolador de impotência face ao desejo imperioso de viver, face à forma cínica como a morte põe cobro a todas os sonhos eliminando, de forma escarninha, toda e qualquer forma de desigualdade.
Exemplo disso, é o fim do garboso General Popescu, amante inexcedível, mas de uma completa nulidade militar, um poltrão numa situação de emergência. Um vampiro neutralizado pelos próprios soldados como se fosse o próprio Vlad, o pior dos monstros.



O narrador, através de Reiter, alude frequentemente à cultura azteca, sobretudo na questão dos sacrifícios humanos e na adoração masoquista e inconsciente de deuses sedentos de sangue a que compara a submissão do povo alemão à tirania de Hitler.



Ao iniciar a sua actividade como escritor, já no pós-guerra, Hans Reiter decide mudar de identidade ou ocultá-la debaixo de um nome camuflagem: Benno – como Benito Juárez, revolucionário do México – e Archimboldi, em homenagem ao talento do pintor italiano Giuseppe Arcimboldo, perito na construção da imagem de figuras antropomórficas, compostas apenas por legumes e frutos onde a percepção se altera consoante a perspectiva: o todo (o homem) ou as partes (o fruto).



Tal como Arcimboldo, Hans muda, também, a forma de olhar e interpretar a realidade, a qual adquire uma configuração completamente diversa, quando relacionada com a teoria do modelo psicológico da gestalt (forma, configuração, em alemão). Mas a história de Benno von Archimboldi é a história de como nasce um escritor. Ou de como alguém se torna escritor., isto é, o resultado de um conjunto de experiências vividas mais o conhecimento adquirido através da leitura.



Já acerca da relação entre fama e literatura, tanto para o Autor como para personagem, não há dúvidas: trata-se de uma relação de inimizade ou de franca oposição, uma vez que, para ambos, esta parece ser redutora, por se cimentar no arrivismo, no equívoco, ou na mentira.



Hitler era famoso. Göering era famoso. A pessoas que ele amava não eram famosas mas cobriam certas necessidades. Döblin (Alfred) era o seu consolo. Ansky era a sua força. Ingeborg era a sua alegria. O desaparecido Hugo Halder era a leveza da sua vida.



Quando Archimboldi decide publicar o primeiro romance, acaba por terum reencontro inesperado, que irá precipitar o lançamento dos seus livros no mercado editorial; e um segundo que o levará ao México e ao local de acção dos outros volumes num final que parece apontar – ou não – para um cruzamento com a trajectória das personagens dos volumes anteriores.


O romance 2666 é uma obra literária nitidamente inspirada no pintor renacenascentista, acerca da qual hoje se pode pensar, de acordo com a teoria da gestalt, que os pormenores se diluem na perspectiva mais generalista que é a forma. E, no caso de 2666, o lixo da história é decomposto, apodrecido e deteriorado pela passagem do Tempo e pela dissipação da consciência de que natureza fundamental da alma humana não muda.



Cláudia de Sousa Dias