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Friday, January 10, 2014

“Caravaggio” de Cristopher Peachment (Temas & Debates)




Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn


A carreira de Christopher Peachment divide-se por várias área distintas, que vão desde o Teatro, onde trabalhou como contra-regras (London Royal Court), pelo Jornalismo, tendo-se tornado crítico de arte, com incursões pelo cinema (como crítico) e, claro está, pela Literatura (romancista). Foi editor no Departamento de Artes no The Times. Vive, actualmente, em Hoxton, Londres, tendo já escrito dois romances:Caravaggio – a novel (em português, apenas Caravaggio) e The Green and the Gold. Contribuiu, durante um largo período com a crónica Diary of a Sex friend na Erotic Review, com uma espécie de sátira sobre o comportamento sexual no século XXI, a cuja pena viperina não escapam, sequer, figuras públicas ligadas ao Poder como Tony Blair.

Mas quem foi Caravaggio?

O protagonista desta biografia romanceada de Peachment chama-se Michelangelo Merisi da Caravaggio e nasceu a 29 de Setembro de 1571. Foi um artista de transição entre o Renascimento e o Barroco mas que exibia ainda muitas das características convencionais do Maneirismo – movimento que marcou uma épocas Artes Plásticas na Europa do final do Renascimento entre 1515 e 1600, e que privilegiava temáticas da épocas da Antiguidade Clássica, reintroduzidos pelo movimento Humanista durante o já mencionado período da Renascença. O pintor Caravaggio conseguiu a proeza de chocar as elites do seu tempo, ao escolher para seus modelos pessoas oriundas do povo, gente comum e mesmo dos grupos mais marginais da sociedade, incluindo boémios e prostitutas. Destacou-se pelo elevado pendor realista das obras a que dava vida nas suas telas. Muitas destas foram rejeitadas pelas entidades que as encomendavam e, depois, vendidas a preços baixos a coleccionadores privados e abastados que se apaixonavam pelas suas obras. Foi o caso da primeira versão da Conversão de S. Paulo e da Crucifixão de S. Pedro. Outras obras suas se perderam devido à devastação causada por guerras (que incluíam pilhagens, bombardeamento, incêndios) ou foram simplesmente encerradas em salas de coleccionadores privados, pelo que, algumas, poderão ainda surgir, futuramente, da obscuridade. Caravaggio pintava com paixão, de acordo com o seu temperamento violento e impulsivo. Era um homem que facilmente se envolvia em rixas, das quais chegaram a resultar mortes, pelo que acabou por ser condenado e perseguido por tal. Após uma destas escaramuças, ficou com uma cicatriz a atravessar-lhe o rosto. Veio mais tarde a sucumbir, vítima de uma vendetta.

Peachement vem, com a publicação dest empolgante biografia romanceada, lançar um pouco de luz sobre os aspectos mais sombrios deste pintor do Tenebrismo – tendência pictórica, que constitui uma derivação do Barroco, na transição do Renascimento para esta nova época no domínio das Artes, e que se prolonga até ao Romantismo (é caracterizada pela ênfase extrema no princípio do chiaroscuro nas Artes Plásticas cujo objectivo é projectar a dramaticidade da vida quotidiana na tela através de violentos contrastes entre luz e sombra).


As hipóteses explicativas da vida do pintor avançadas por Peachment são, na sua quase totalidade, pura especulação embora construídas a partir de indícios e vestígios válidos. Ma o trabalho do autor desta biografia romanceada é sobretudo fruto do estudo detalhado da mentalidade da época, sobretudo doo pensamento filosófico, religioso valores estéticos, bem como da conjuntura política europeia, em cujo centro se encontravam as cidades italianas.

Nesta versão de Christopher Peachment sobre a vida de Michelangelo Merisi da Caravaggio, vemos a Inquisição a seguir as actividades do pintor com suspeita, apesar de a sua obra ser geralmente do agrado da nobreza, cobiçada por mercadores ricos e aceite por algumas facções do clero. A obra de Caravaggio não é consensual e a ligação do artista a determinados movimentos de contestação religiosa que grassam um pouco por toda a Europa, assim como algumas amizades duvidosas, acabam por colocá-lo em situação difícil e o autor de Caravaggio soube evidenciar de forma eficaz esta faceta da vida do pintor. Por outro lado, Caravaggio espelha, talvez, com um pouco mais de veracidade do que muitos gostariam e de forma algo crua a raiar o cinismo, as desigualdades sociais, a insegurança nas ruas, a luxúria da alma humana na transição do século XVI para o século XVII. O livro em si lembra um fresco ou um mural onde se inscreve a sociedade do Antigo Regime, na qual o pintor de mexia como um peixe na água, ou melhor, uma lampreia em águas turvas: uma sociedade extremamente violenta, onde grassa uma forte insegurança nas ruas e predomina uma moralidade agressivamente homofóbica, amplamente difundida pela Igreja e punida com tortura e condenação à fogueira. No meio de tudo isto, emerge do romance deste autor britânico, uma personalidade que é fruto da sua época – um vilão com um talento excepcional.

Ao que tudo indica, Caravaggio nasceu num meio social que lhe criou algumas dificuldades: apesar de ser filho de um artífice, surge nesta obra como alguém incompreendido pela própria família, sem origem aristocrática e com alguma dificuldade de relacionamento com os seus pares, o que parece coincidir com as fontes históricas. É também mostrado por Peachment como um artista promissor, inicialmente explorado por mestres de talento medíocre, na sua cidade Natal. Nesta conjuntura, o protagonista desenvolve uma personalidade violenta, fruto de um temperamento irascível e potenciado pelos obstáculos que se lhe deparam e vão criando à sua progressão na carreira. No romance, o discurso que corresponde à expressão do pensamento e sentimentos do pintor é feito quase todo na primeira pessoa, ou seja, é o seu ponto de vista que nos é apresentado, dado que a personagem Caravaggio acumula aqui, as funções de protagonista e narrador, sendo o discurso construído como se fosse um diário ou mais propriamente, uma compilação de memórias. O discurso de Caravaggio enquanto narrador e as atitudes demonstradas enquanto elemento a interagir com as restantes personagens onde é facilmente perceptível, ao leitor mais atento, uma boa dose de soberba contida na concepção de si próprio, em grande parte fruto da consciência do seu talento e do desprezo que os outros lhe votam pela falta de “berço” ou da inexistência das ligações certas.

Outro aspecto hipotético acerca do desenvolvimento da personalidade de Caravaggio apresentada por Peachment tem a ver com a sexualidade do pintor, cuja exuberância e heterodoxia face à moral católica então vigente e amplamente difundida para as massas parece estar na base de grande parte dos conflitos e perseguições sofridas pelo Pintor, conjugada, de acordo com a visão de Peachment, com uma sua hipotética simpatia pela causa francesa nas questões da Reforma, opondo-se ao Governo da Corte Espanhola (acerrimamente católica) em Nápoles e na Sicília. Precisamente as duas cidades onde teve os maiores dissabores.

Na verdade, os motivos que poderão estar relacionados com a condenação de Caravaggio à prisão, assim como as causas directamente relacionadas à sua morte, parecem ligar-se directamente a esta componente político-religiosa. Esta convicção de Christopher Peachement está expressa no discurso do narrador de Caravaggio a revelar um ethos ou construção de imagem de si de alguém em permanente guerra com o Mundo. O objectivo do Autor é tirar o máximo partido da mais do que documentada agressividade do protagonista, segundo relatos da época, de forma a criar uma personagem que se mostra como um homem enérgico, de grande poder de observação e excelente memória “fotográfica”, e é que se pode usar de tal anacronismo numa personagem de finais do século XVI, para captar expressões faciais e movimentos corporais até ao mais ínfimo detalhe, transpondo as cenas do quotidiano para o plano bidimensional inspirando-o a recriar episódios bíblicos ou mitológicos de forma tão vívida e carregada de realismo, movimento e energia vital (líbido) quanto possível. Ou quase para além do impossível.
Os quadros de Caravaggio mostram, pelas cores utilizadas, expressões dos rostos e movimentos corporais que o pintor era um homem que se deixava atrair por sensações visuais (e não só) fortes para ilustrar uma insaciável fome de prazer, faceta a que o discurso do narrador do romance, o Caravaggio construído por Peachment dá expressão na sua forma verbal.

As primeiras frases do texto, logo no primeiro capítulo, ilustram um profundo ódio ao mundo , expresso pelo protagonista, face a uma sociedade regida por aparências e muita hipocrisia, na qual praticamente não existe mobilidade social, sendo quase impossível triunfar pelo mérito quando o nascimento ou as origens familiares não são favoráveis. Assim Caravaggio é um livro que anuncia o apodrecer das estruturas que levaram à queda, quase dois séculos depois, da sociedade tripartida do Antigo Regime, como se consegue entrever pelo discurso do protagonista, logo no Prólogo:

«Eu Caravaggio fiz isto.

(…)

O frade, amável, de rosto imbecil, vem três ou quatro vezes por dia para me lavar

(…)

Viajei durante quatro anos, fugido das cortes papais em Roma, por Malta e Sicília e, depois, finalmente, dei comigo em Nápoles, local que odeio e que acabou comigo.»

O tom é confessional porque assinalado pela marca linguística do discurso na primeira pessoa (pronome pessoal “Eu” e o verbo que a ele se liga, na primeira pessoa do singular). Além de que o vocabulário utilizado denuncia uma situação de decadência ou remete para algo que se desmorona sugerindo que, no momento em que o protagonista começa a narrar a sua história, não lhe resta já muito tempo de vida:os verbos no passado “viajei” e “dei” indicam um estilo de vida de atribulado que no momento em que está a narrar já não existe. Agora Caravaggio é um homem “acabado”, dependente, como mostra a frase que se refere ao frade de rosto “amável” e “imbecil” que o vem lavar e o próprio verbo “acabar”, usado no pretérito perfeito anuncia um estado pessoal que terminou num dado momento no tempo e num dado espaço (Nápoles).

O fragmento mostra também um Eu em permanente conflito com o mundo e que está patente no uso do adjectivo “imbecil” (modificador da palavra “rosto”), referindo-se ao frade “amável”que o lava e cuida dos seus ferimentos. O adjectivo revela que o autor do discurso se coloca numa posição “superior” em relação ao frade, de cuja ingenuidade desdenha, embora a aprecie, porque lhe dá a sensação de deter ainda algum poder sobre o Outro. Também a cidade de Nápoles é objecto do seu rancor de que nos apercebemos pelo verbo de forte conteúdo psicológico e emocional (odiar) do qual a cidade é seu complemento - “Nápoles, lugar que odeio e que acabou comigo”. Um lugar onde percebemos ter sido onde aconteceu algo que o colocou na situação em que se encontra no momento em que começa a narrar a sua história. Estas são as pistas deixadas pelo Prólogo, das quais seguiremos a continuidade com a leitura do romance. O início do primeiro capitulo, que relata a infância do pintor, contada pelo homem de meia-idade cuja vida está em vias de terminar dá-nos uma ideia ainda mais precisa da personagem e da forma de esta de colocar em relação aos outros:

«De meus pais, direi pouco. Deus sabe que há pouco a dizer. O meu pai estava ao serviço de um duque da região, na verdade muito bem nascido e, portanto, alguém para quem tive algum tempo. O meu pai chamava-se a si próprio arquitecto e era verdade que sabia desenhar planos e supervisionar a construção de edifícios ou acrescentos a edifícios. Era um pedreiro consumado, mas o duque queria que ele fosse escudeiro e, assim, foi esta a sua principal ocupação. A minha mãe pouco fazia, para além de criar os meus irmãos. Era uma mulher estranha, pois afirmava frequentemente, a nós e a outras pessoas, que o seu casamento era infeliz e, contudo, continuava casada, como em qualquer outro casamento, e não parecia assim tão insatisfeita. Nunca consegui compreendê-los completamente. Penso que a razão para tal é que eu percebi, ainda em tenra idade, que era mais esperto do que eles os dois juntos. E isso deu-me uma perspectiva enviesada do mundo.

Quando tinha seis anos fiz um pequeno esboço do edifício contíguo ao nosso. Tinha andado a desenhar às ocultas desde que me conseguia lembrar. E a minha mãe encontrou o pedaço de papel e levou-o depois ao meu pai. Da divisão contígua, conseguia ouvir-lhes exprimir a sua perplexidade em voz alta. E o meu pai zangou-se, pensando que eu vadiara e andara a ter lições de um arquitecto mais estranho ou melhor do que ele. Foi então que eu fiquei a saber que tinha algo que mais ninguém tinha, embora não soubesse que nome dar-lhe, pois era demasiado jovem. E passei a ver os meus pais a uma luz inteiramente diferente a partir deste incidente. Eles eram estúpidos. E eu não.»

O tom discursivo que encontramos neste excerto oscila entre o cinismo e a ironia, tal como acontece nos restantes capítulos do romance.

A voz do narrador exprime-se como vimos na referência que faz aos pais, em tonalidades cruas, que se traduzem num humor cáustico, muitas vezes com laivos de crueldade. O texto de Peachment, ao reconstruir a “voz” de Caravaggio apresenta, por vezes alguns anacronismos. Por exemplo, ao exibir uma personagem do século XVI em situações que seriam pouco verosímeis para a época, como na cena em que o protagonista se passeia pelas vielas sicilianas, deslocando-se a uma taberna para tomar um café e fumar, sendo que estes dois hábitos não fariam parte dos rituais do homem comum da época, sendo apenas difundidos em grupos muito restritos, dada a raridade e o elevado preço destes dois produtos – o café e o tabaco – ainda pouco disseminados na Europa ou, pelo menos, não ao ponto de serem massivamente consumidos pela população. No romance sentimos ainda, uma certa diluição das fronteiras temporais, pecando a obra por ser talvez demasiado sintética e não explorar determinados aspectos históricos que não estejam directamente relacionados com a biografia do pintor. Mas o facto de lá aparecerem mencionadas duas cenas aparentemente anacrónicas mereceria, de facto uma contextualização.

Estrutura Narrativa

Os capítulos de Caravaggio são curtos, recheados de acção que se mescla com a descrição detalhada da sua obra pictórica, desnudando ao mesmo tempo os seus vícios humanos, a par da imensa, profunda, sensibilidade estética, contida no perturbador jogo de luz e sombra das suas telas. As palavras de Peachment fazem emergir das trevas os detalhes mais secretos da vida do pintor ao mesmo tempo que nos permitem mergulhar nos mistérios do pensamento mais íntimo de Michelangelo Merisi da Caravaggio.


16.06.2013-25.12.2013

Cláudia de Sousa Dias