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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, January 28, 2013

"Adeus , minha Concubina" de Lillian Lee (ASA)




Tradução de José Luís Luna



Adeus minha concubina é o título de uma das mais belas e dramáticas peças do repertório da ópera tradicional chinesa (Nota do Editor).

Nos anos 30, os profissionais da ópera de Pequim eram treinados desde a mais tenra infância e submetidos a uma rigorosíssima disciplina, através da qual o erro era corrigido com espancamento, privação de comida, humilhações psicológicas. As condições de vida dos alunos, descritas nos primeiros capítulos do romance, são de extrema miséria, não lhes sendo dada sequer, a autonomia em relação ao próprio corpo, uma vez que são vendidos ao dono da escola pelos membros das suas próprias famílias. Lá, desenvolvem habilidades acrobáticas, arte marciais, expressão facial e modulação da voz. E também os laços de afectividade e camaradagem que se tornam mais apertados que quaisquer laços de sangue. A alfabetização dá-se, em contrapartida, só na idade adulta, com a instauração do regime maoísta, o qual faz da aprendizagem da leitura e da escrita componentes educativas obrigatórias, estendendo-as a todos os habitantes da República Popular da China.

Este foi um dos (poucos ) aspectos positivos do regime cuja a Revolução Cultural tentou eliminar todo e qualquer vestígio da China imperial e de carácter feudalista. O reverso da medalha é a perda total da autonomia devido à interferência, sem limites, do Estado na vida humana.

Lilian Lee consegue mostrar-nos, através de um belíssimo texto literário onde são intercalados alguns dos mais sublimes trechos poéticos da peça "Adeus minha Concubina", as mais revoltantes formas de violação dos Direitos Humanos mais básicos. A Autora exibe, sem qualquer pudor, a forma totalitária de difusão da propaganda ao regime maoísta que substitui e condiciona toda e qualquer forma de expressão artística, mutila a criatividade, expurgando qualquer manifestação de pensamento, do mais ínfimo vestígio de emoção para não deixar margem para um único átomo de individualismo. Trata-se da história do triunfo do Império da Censura e da Repressão. Todas as acções levadas a cabo pelos funcionários do Estado, têm como objectivo supremo a total submissão ao deus Mao, como conclui brilhantemente um dos personagens principais. Para isso recorre-se a métodos eficazes devido ao anonimato em que operam os seus especialistas, comosendo a delação. Encoraja-se também a traição, fomenta-se a inveja com vista à subjugação pelo medo e assim realizar o grande objectivo. Criar uma sociedade eficiente, produtiva e totalmente desumanizada.

Adeus minha Concubina não é apenas um livro que se serve de uma das mais belas e completas formas de expressão artística da China tradicional para ilustrar a situação política da época e os respectivos abalos sísmicos no seu tecido social e cultural ao longo do século XX e que se reflectem até aos dias de hoje. É, também, um riquíssimo texto literário, poético e trágico, que fala da história de um amor proibido, unilateral, e por isso mesmo recalcado, que não se pode exprimir livremente. Mas pode ser, igualmente, um documento de interesse histórico e sociológico que dá a conhecer uma sociedade desiludida por um quotidiano miserável e procura recorrer à arte como forma de evasão, uma válvula de escape para deixar fluir as emoções e ter acesso à vida heróica e sumptuosa dos seus interessantes personagens. O palco é, assim o local onde o sonho individual se materializa e o espaço onde cada um pode exprimir o que sente, recebendo o prémio do aplauso, que surge sempre que o público se identifica com o comportamento de uma determinado personagem. Até ao dia em que a própria ópera passar a ser censurada e o aplauso, controlado pela polícia política.

Adeus minha Concubina exibe a escrita de Lilian Lee no seu melhor, numa obra que reproduz, com um realismo quase cinematográfico, as alterações que a paisagem cultural que a China foi sofrendo ao longo do séc.XX, com o desmoronar do Império, a instauração da primeira República, a ocupação japonesa, a Guerra Civil entre nacionalistas e comunistas e a própria Revolução Cultural...

A visão dos bastidores de um palco onde todos os papéis, masculinos e femininos, são interpretados por homens, dá-nos uma perspectiva de amarga ironia exposta na clivagem entre o estatuto social dos actores e o dos personagens que interpretam, criando uma interessante analogia entre aquilo que se passa no palco e no bordel (a prostituta tem de ser, necessariamente, actriz) e a teia de relações de poder que tenta, por todos os meios, "lapidar" a Arte.

Um livro que permite compreender até que ponto os verbos "amar" e "suportar" se encontram em campos opostos.

E que, ao contrário daquilo que afirmava o pai da Revolução Cultural, enquanto o amor não tem justificação, o ódio, por sua vez, pode ter milhares de justificações diferentes.

Sublime e acutilante.


Cláudia de Sousa Dias

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Thursday, January 10, 2013

“Receitas de Amor para Mulheres Tristes” de Héctor Abad Faciolince (Quetzal)




Tradução de Pedro Tamen

Dados Biográficos:

Héctor Abad Faciolince nasceu em Medellín, na Colômbia, país onde realizou os seus estudos deixando, no entanto, incompletas as licenciaturas em Medicina, Filosofia e Jornalismo, tendo sido expulso da Universidade Pontifícia Boliviana por escrever um artigo irreverente contra a figura do Papa. Decide, então, viajar para Itália, onde aí sim, se licencia em Literaturas Modernas, regressando ao seu país em 1987. Mas nesse mesmo ano, é alvo de várias ameaças de morte por parte de grupos de paramilitares, pouco depois de lhe terem assassinado o pai, a mando da elite reaccionária. Refugia-se novamente em Itália, onde conclui o doutoramento, ficando a seu cargo a cátedra de Espanhol, na Universidade de Verona.
Anos depois, mais uma vez de volta ao seu país, Faciolince traduz obras de vários autores de língua italiana, entre os quais Umberto Eco e Giuseppe Tommasi di Lampedusa, ficando a seu cargo também a reitoria da Universidade de Antioquia. É então que inicia, finalmente a sua carreira de escritor. Publicou já quatro romances, dentre os quais Basura que lhe proporcionou o Primeiro Prémio da Narrativa Inovadora da Casa da América, em Madrid. Publicou ainda um livro de contos, um livro de viagens e a obrao de que aqui falamos hoje, que alguns classificam “de género incerto”. Assim, Tratado de culinaria para mujeres tristes conta com a belíssima tradução do poeta Pedro Tamen mas o título atribuído à edição portuguesa perde um pouco da força original ao ser modificado para Receitas de amor para Mulheres Tristes, oferecendo, desta forma, aos leitores uma perspectiva bastante redutora da obra. A fórmula em português dá a entender tratar-se este conjunto de textos de uma obra do género “literatura de água com açúcar”, um estilo light que nada tem a ver nem com o Autor nem com a obra. Porque em primeiro lugar, não se trata apenas de receitas de amor, nem mesmo de uma colectânea de afrodisíacos, destinados a servir de paliativos a mulheres solitárias, amargas ou ma-amadas, com efeito placebo. Não. Em segundo lugar, não se trata de buscar na culinária uma forma de adoçar a vida ou encontrar no prazer da gula a fuga à tristeza, seja ela passageira ou crónica. Trata-se de uma forma de olhar a vida com uma pitada de estoicismo sim, mas imbuído de humor negro , rir das desgraças, escarnecer delas para assim esconjurá-las. Assim se logra diminuir a força dos “demónios” interiores, dos medos, muitas vezes infundados ou irrealistas mas que ampliam o lado cinzento da vida. Assim se impede muitas vezes que a tristeza interrompa o curso natural da vida. Claro que isto nem sempre acontece e o Autor é suficientemente honesto para demonstrá-lo: a maior parte dos textos encerram em si os constrangimentos a que estão sujeitas as mulheres na sociedade colombiana, profundamente católica e conservadora, onde se percebe que a maior parte dos dramas existenciais das do género feminino naqueles país, ao longo das últimas décadas, tem a ver com questões de desigualdade de tratamento das questões sociais entre homens e mulheres ( a traição, as relações sexuais antes do casamento, o assédio, sexual, o receio da perda da beleza e do envelhecimento) aspectos aparentemente pueris, mas que resultam de todo um condicionamento cultural a desembocar numa série de contradições entre o desejo e as normas sociais. Nas soluções propostas por Faciolince, percebe-se que o ultrapassar desses constrangimentos sociais implica um processo lento, desenvolvido com paciência, astúcia e muita subtileza. Há, no entanto um texto que descreve sim, uma receita de amor, para uma mulher entristecida pela doença, mas de cuja identidade só nos apercebemos quando lemos a obra autobiográfica de Héctor Abad Faciolince Somos o esquecimento que seremos. Aliás, todas as pessoas a quem são dirigidos estes textos estão presentes naquela obra, que será tratada no âmbito deste blogue dentro de alguns meses. O texto a que me refiro é uma reflexão onde se tenta mitigar a dor recorrendo a medidas drásticas, mas sem qualquer esperança de alegria.
A comida e a culinária neste Receitas de Amor para Mulheres Tristes são apenas um pretexto para mostrar um olhar diferente face aos muros ou obstáculos que vão surgindo ao longo da vida.
A cozinha é somente uma forma de abstracção das contrariedades que se nos apresentam no quotidiano. A verdadeira fórmula contra a tristeza está, na verdade, contida na capacidade de provocar o riso, de despoletar a explosão de uma gargalhada em alguém. É essa a finalidade das receitas “milagrosas” de Héctor Abad Faciolince, cujo humor ácido e profundo sentido de ironia revela um detalhado conhecimento da psique feminina, natural num homem que cresceu rodeado de mulheres: a mãe, a ama, avós, tias e cinco irmãs.
O livro é dedicado à primeira e às últimas e parece que, a acompanhar cada receita há, senão uma gargalhada, pelo menos um sorriso, usado como fórmula mágica para dissolver ou, na menor das hipóteses, atenuar a tristeza ou a melancolia em cada situação específica, seja ela a infelicidade crónica, a traição ou suspeita de, o ciúme, o nervosismo, o receio da competição com as sogras na cozinha, o mau hálito, a culpa...
Os textos dirigem-se a diversas destinatárias nas mais variadas circunstâncias, onde o verdadeiro remédio para afugentar a tristeza é simplesmente...ler o livro.

Aqui ficam, pois, três textos extraídos de Receitas de Amor para Mulheres Tristes para alegrar a semana:

«Se estiveres nervosa, ainda serve o velho chá de macela, mas não deves cortá-lo com limão ou com doce. Não funciona se o que te preocupar for mais forte do que tu. E, se assim for, convém que estejas nervosa.»

ou

«Essa tendência para traíres, para mentires – e para seres perfeitamente franca. Para te esconderes ou para te mostrares muito. Esse cuidado de te preservares tanto – para acabares a contar a tua história, com todos os pormenores a um desconhecido. Essa vontade se fugires, de saíres a correr quando alguém mostra que começa a conhecer-te, embora não te reveles, e essa vertigem de ficares. De envolveres as carícias em palavras. Essa vontade de mudares sem renunciares a nada. Essa fome de impossíveis. Como pensar no meio desta confusão contraditória? É verdade e mentira, está bem e está mal, e não há saída.

Nada a fazer. Toma um copo de água.»

e ainda

«Àquele insolente que anda atrás de ti sem perceber que tu não queres; a esse que te encosta a coxa ao joelho e te põe a mão no corpo sem graça e sem efeito, ou com efeitos de rejeição; a esse, mais fastidioso que um mosquito ao adormecer, mais incómodo que uma pedra no sapato, importuno como uma bolha no nariz, como comichão em má hora e pior parte, nauseabundo como fedor em hora de almoço, como um cabelo na sopa, a esse enjoativo como mel com açúcar e marmelada, detestado como ave de mau agoiro, a esse bocejo humano, a esse impertinente, eu te digo como o hás-de afastar.

Prepara este caldo: duas onças de estricnina, seis gramas de cicuta, uma pitada de arsénico e três colherinhas de sais de mercúrio, tudo muito bem misturadinho com azul de metileno. Eu bem sei que és muito educada e que o farmacêutico não há-de querer aviar-te a receita. Por ambas as razões, aquele impertinente voltará à carga com as suas baboseiras e mãozinhas.

Podes pôr de lado por um instante as tuas boas maneiras e dar-lhe um grito imenso que o envie para aquela infinita e inultrapassável distância designada pela palavra merda.

Mas, melhor ainda, sem perderes a estribeiras, podes usar uma receita – horrível – para o fazer desandar, um prato que vá fazendo estragos em língua e palato, e produza catástrofes no esófago e na barriga.

Faz uma maionese com ovos nem podres nem muito frescos e com o azeite rançoso que usaste para fritar peixe. Muita, muitíssima maionese. Entretanto, põe ao lume um punhado abundante de talharins e deixa-os a ferver três vezes o tempo recomendado na caixa. Liquefaz o feijão que sobrou do almoço de quarta-feira, com pedacinhos de fígado e um pouco de mão-de-vaca. Retira do lume os talharins esbranquiçados e babosos, deita-lhes a maionese e o feijão e rala-lhes em cima um pouco do queijinho que sobrou do outro dia.

Nega que tenhas fome e serve-lhe a mistela, bastante morna e quase a puxar para o frio. Não proves esta mezinha. Olha antes para a maneira como se vão nublando os olhos do impertinente. Há-de fazer elogios ao teu prato porque é bajulador. Até pedirá para repetir. Beberá dois copos de água morna (põe na mesa assim, temperada na cozinha). A certa altura, há-de perguntar onde é a casa-de-banho. Pouco depois há-de lembrar-se de uma coisa de que se esqueceu, de um assunto urgente, e sairá pela porta fora. Nunca te esquecerá, nem a ti nem ao teu prato. Mas não voltará. Ufa, não voltará, enxotaste-o para sempre.

Se voltar, cianeto ou estricnina (imaginários).»


H.A.F.




06.08.2012-06.01.2012
Cláudia de Sousa Dias

Thursday, January 03, 2013

“A Herança de Eszter” de Sándor Márai (Dom Quixote)

Tradução de Ernesto Rodrigues

A trama deste romance de Sándor Márai Autor do qual já falámos neste blogue a propósito de As Velas ardem até ao fim e de A Mulher Certa, tem como cenário principal o universo de duas mulheres idosas, Eszter e a prima pobre Nana, ambas solitárias que esperam já muito pouco da vida. Nana fora ama das crianças filhas da casa, tendo cuidado inclusive de Eszter e dos seus irmãos, Vilma e Marius.

A existência das duas últimas habitantes daquela casa de família é perturbada por uma visita, inesperada pela longa ausência, que se faz anunciar por carta. Trata-se de Lajos, viúvo de Vilma e o grande amor de juventude de Eszter, que a trocara pela irmã mais nova.

Mas desenganem-se aqueles que pensarem tratar-se este romance da busca do tempo perdido cujo objectivo consiste em resgatar uma paixão que ficou cristalizada no passado. Trata-se sim, da descrição de todo um processo que edifica um engenhos esquema de manipulação, partindo da fragilidade de um sentimento imorredoiro numa mulher, vítima de uma desilusão amorosa na adolescência e a qual carrega as feridas ainda mal cicatrizadas dessa mesma paixão, ao longo de mais de duas décadas. Trata-se do sentimento persistente de que algo lhe foi roubado, um sentimento que sobrevive à custa da esperança de uma restituição eternamente adiada. Lajos, que vai buscar o nome a uma personagem pouco simpática da tragédia Édipo Rei de Sófocles, representa nessa obra de Sándor Márai o papel de anti-herói,cuja personalidade vai sendo gradualmente revelada por Eszter, a narradora, que decide contar a sua história e a de Lajos, já no fim da vida. Trata-se, portanto, de um romance auto-diegético onde o narrador é também personagem e protagonista. A perspectiva dos acontecimentos chega-nos através de Eszter, num tom assaz fatalista, já que esta é uma narradora omnisciente, que conta os factos já depois de estes terem ocorrido estando, por esse mesmo motivo, na posse de todos os elementos que lhe permitem obter um conhecimento profundo do ocorrido. No tempo presente, Eszter tem a perfeita noção de todas as nuances do carácter de Lajos e das jogadas que é capaz de fazer, algo que antes apenas intuía, sem contudo conseguir escapar à teia de intrigas edificada por Lajos, sempre envolto na aura de falsa amabilidade com que atrai as suas vítimas. Os acontecimentos desenvolvem-se assim a partir de uma analepse, isto é de uma regressão ou flash back, arquitectados num encadeamento de situações ocorridas como que sob efeito dominó, cujo desfecho se adivinha inexorável.

As condições para que isto se passe desta forma, seguindo este caminho e não outro, têm a ver não só com a extrema fragilidade emocional da protagonista, do seu extremo isolamento, mas também com a sua noção de honra e dever, a forma como encara a missão de zelar pelo património, pelo bom nome e bem estar da família, como um todo. E Lajos e os filhos de Vilma fazem arte dessa família. É nestes dois pilares que assenta a personalidade de Eszter, que Lajos conhece muito bem e através dos quais consegue manipular a antiga namorada. No início, quando conhece a família, Lajos é apenas um colega da faculdade de Marius, mas que forja a sua própria situação económica ao dar a entender ser originário de uma família abastada e cosmopolita. No entanto, para um um olhar mais experiente, com o advogado da família e um jovem pretendente de Eszter, os hábitos e estilo de vida de Lajos indiciam muito mais um carácter indolente dissimulado. No primeiro caso, um certo grau de exibicionismo utilizado com habilidade para conseguir cativar uma família de origem provinciana, simples mas com posses, consegue fazê-lo passar-se por um homem cultivado, vivido, experiente e apresentar-se como um verdadeiro presente dos deuses para duas jovens que nunca saíram da povoação e as quais passam, então, a disputá-lo. Por outro lado, o excessivo cuidado na toillete, e o excesso de dramatismo como no dia do funeral de Vilma, a teatralidade do discurso ilustram um carácter voltado para a interpretação de um papel, como se fosse um actor a vestir a pele de uma personagem de um filme ou de uma peça de teatro.
Ao referir-se à figura de Lajos, Eszter denuncia, no seu discurso, um certo sentimento de inferioridade não que parte não só de si própria, mas que se estende à sua família após começar a conviver com Lajos. A partir desta altura, as dívidas começam a acumular-se, não só porque o patriarca, de certa forma, se envergonha de parecer mesquinho, mas porque Lajos, sobretudo após casar com Vilma e começar a participar nos negócios do clã, esgota as reservas financeiras do mesmo e, à data da morte do pai de Eszter, resta já muito pouco do património familiar. Um amigo da família consegue ainda salvar uma pequena parte da herança e de forma a garantir a Eszter o mínimo de sobrevivência.

As personalidades de Eszter e Lajos situam-se nos dois extremos do mesmo continuum no tocante aos escrúpulos. Eszter é tão sensível à possibilidade de ser injusta ou de magoar alguém que cede facilmente à mínima pressão emocional. Trata-se da presa ideal para alguém como Lajos. A Herança de Eszter é assim um romance que assenta ,não num conflito de personalidades opostas, mas numa relação de domínio e submissão de uma perante a outra. Não se tratando, no nosso entender, do melhor romance de Sándor Márai, que provavelmente necessitaria de um desenvolvimento mais detalhado em termos diacrónicos para que o leitor tomasse consciência do processo lento e gradual de fragilização de Eszter fruto do desamor, mas que é compensado pela verosimilhança e dramaticidade do discurso da protagonista.

Eszter é o produto de uma sociedade rural, conservadora, onde imperam os valores da honra , do sacrifício e também uma mentalidade, especialmente vincada no género feminino – exceptuando no carácter frívolo de Vilma – da noção de altruísmo e piedade judaico-cristã. Lajos, pelo contrário, é o produto acabado de uma sociedade urbana, onde domina o cinismo que implica a sobrevivência do mais forte ou daquele melhor se adapta. É o lugar dos camaleões sociais. Uma selva humana onde a competição para conseguir ascender socialmente leva, muitas vezes, a seguir caminhos tortuosos que nem sempre se pautam pelo mérito ou pela transparência dos meios usados para atingir determinados fins. E Lajos escolhe caminho à margem da meritocracia. Habituado à vida boémia dos bares e salas de jogo é realmente um homem mundano, sedento de aventuras, indisciplinado e temperamental, mas que sabe representar o papel de homem íntegro para iludir aqueles que caem nas suas armadilhas.

A ingenuidade é o traço que se encontra patente na voz da narradora, que só muito mais tarde se apercebe do verdadeiro carácter do ex noivo o qual mente não só com palavras mas também com actos e factos. Aqui, Eszter recorda a já mencionada da encenação de viúvo inconsolável de Lajos durante o funeral de Vilma. Assim, Lajos mente não só porque é um hábito que parece estar enraizado já no seu carácter por longos anos de treino intensivo, mas porque o acto de mentir se lhe apresenta útil para conseguir os seus intentos, dizendo o que lhe convém consoante as circunstâncias,permitindo-lhe, assim triunfar.

Logo que lemos as primeiras linhas do texto somos imediatamente capazes de intuir os demónios que atormentam Eszter. Após manifestar a intenção de contar a forma como Lajos a despoja da sua herança, a narradora refere imediatamente a mensagem do cunhado a anunciar uma visita após uma ausência de vinte anos. Esta referência a um encontro entre duas pessoas que não se vêem há tanto tempo trás à memória o reencontro entre outros pares de personagens de Márai: os dois participantes no jantar à luz de velas em As Velas arde até ao fim. Mas apesar de a personalidade base de Eszter ser muito semelhante ao carácter do protagonista daquele romance, A Herança de Észter toma um rumo completamente diverso. Lajos por seu lado assemelha-se mais ao carácter escorregadio e dissimulado de Judith de A Mulher Certa”.

É também frequente, nos romances de Márai, a presença de um adjuvante, um confidente do protagonista. Em As Velas ardem até ao fim é a velha ama a guardiã que ela pela conservação da casa, tal como a prima de Eszter, Nana, no romance de que aqui tratamos. Em A Mulher Certa é o escritor, amigo de Péter, que assiste à queda do amigo em simultâneo com todo um sistema económico. Sándor Márai é um escritor muito hábil na descrição dos meandros e contradições que envolvem a natureza humana bem como na construção dos perfis psicológicos das suas personagens. Os seu livros são autênticas sessões de psicanálise onde o protagonista que normalmente coincide com o narrador,se deita no divã que a mente da pessoa que lê o romance.

A Herança de Eszter é um livro que se pode ler numa tarde, mas cujo impacto é tão forte que dificilmente conseguimos deixar de pensar nas suas personagens durante as horas seguintes após a leitura do último parágrafo. Tal facto deve-se à verosimilhança do discurso, como se o ouvíssemos da boca de um familiar nosso ou de uma conversa ocasional escutada, confidenciada no eléctrico a caminho do emprego, como verificamos no texto que se segue:

Não sei o que Deus ainda me reserva. Mas antes de morrer quero escrever a história do dia em que Lajos veio ver-me pela última vez e me roubou. Há três anos que venho adiando estes apontamentos. Agora sinto como se uma voz, contra a qual não posso defender-me, me exortasse a escrever a história desse dia – e tudo o que sei acerca de Lajos – porque esse é o meu dever, e já não tenho muito tempo. Uma voz assim é inequívoca. Por isso obedeço, em nome de Deus. Já não sou jovem nem tenho saúde e, em breve, terei de morrer.
Talvez devido ao tempo, que não me perdoou, talvez devido às recordações, tão cruéis como o tempo, talvez por um particular estado de graça que, segundo os ensinamentos da minha fé, também toca por vezes os indignos e destinados, talvez, simplesmente pelo peso da experiência e da velhice, olho a morte de frente, com serenidade. Presenteou-me a vida maravilhosamente e, implacavelmente me despojou...o que mais posso esperar? Tenho de morrer, que isso é a lei, e porque cumpri o meu dever.
Sei que palavra é esta e, vendo-a agora, escrita, sinto-me um pouco intimidada. É uma palavra arrogante, pela qual vou ter de responder, um dia perante alguém. Demorei algum tempo a reconhecer qual o meu dever e obedeci, contrariada, sim, uivando e protestando desesperadamente. Senti, então, pela primeira vez, como a morte pode ser redenção, e soube, também, como a morte é resgate e paz. Que estranha foi essa luta! Quem me obrigou e porque não pude esquivá-la? Tudo empreendi para escapar dela. Mas o inimigo vinha atrás de mim. Agora já sei que não podia ser de outro modo. Estamos ligados aos nossos inimigos e eles também não podem fugir de nós.”

Aqui está, evidentemente, explícita a ideia de redenção. Mas está também implícita, não a ideia de vingança mas de justiça onde, através de um longo relato se pretende desmascarar, de uma vez por todas, um vilão. A história é, portanto, uma narrativa circular, na qual os últimos parágrafos do epílogo se encaixam e explicam esta introdução, fechando o círculo como uma bracelete rígida. Assim A Herança de Eszter apresenta-se como um livro de grande intensidade dramática, um desfile de desilusões, iluminadas pela tomada progressiva de consciência, levada a cabo pela protagonista, e da destruição da esperança de ter vivido um amor que nunca o foi.

Cláudia de Sousa Dias
06-08-2011 – 23-12-2012