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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, February 24, 2009

“A Videira do Desejo” de Chitra Banerjee Divakaruni (Dom Quixote)


De novo o dia, de novo a noite
Madrugada e entardecer, Inverno e Primavera.
Com o jogo do tempo, a vida escoa-se
Só o Desejo permanece

De novo o nascer, de novo a morte
De novo a escura viagem pelo ventre
Aeste mundo em mudança nada se fixa
Excepto a retorcida Videira do Desejo

Baja Govindam, Sri Shakaracharya


(Epígrafe que introduz o romance AVideira do Desejo)
A Autora nasceu em Calcutá onde concluiu o bacharelato. E, em 1976, emigra para os Estados Unidos onde tira o mestrado em literatura na Wright State University. O doutoramento é obtido na Universidade de Berkeley, Califórnia, em 1985. Para sobreviver e pagar os estudos Chitra Banerjee Divakaruni trabalhou como
baby sitter, cortadora de pão, fiel de armazém, empregada de mesa e ajudante de laboratório. Actualmente, vive no Texas e dá aulas na universidade de Houston, inserida no programa de Escrita Criativa.

Foi também co-fundadora de uma linha de atendimento para mulheres asiáticas sujeitas a maus tratos e outros tipos de abuso.

A escrita de Chitra Banerjee Divakaruni abrange uma vasta gama de géneros literários desde a poesia até ao romance, passando pelo conto e pelo romance de fantasia, direccionado ao público juvenil. O espaço onde decorre a acção situa-se, normalmente, entre a Índia e o Ocidente.

Bad and tentatively I began writing early poems (…) I destroyed those sentimental and bad poems so that archivists could not find them.

Foi premiada com o Poetry Prize por Leaving Yuba City: New and selected Poems; com o Best books Los Angeles Times por A Senhora das Especiarias, já adaptado ao grande écran; com The American Book Award por Casamentos forçados: contos, titulo que lhe valeu também o Prémio Pen assim como o Bay Area Book Reviews Award for Fiction.
A autora define-se como uma
ouvinte, facilitadora, um elemento de ligação entre as pessoas”. Para ela, “a vida é a arte de dissolver obstáculos.
A maior parte da ficção divakaruniana tem um cunho autobiográfico. No caso de
A Videira do Desejo, a acção passa-se na baía da Califórnia e debruça-se sobre a experiência de imigração das mulheres asiáticas nos EUA. Para Chitra Banerjee Divakaruni, a escrita serve para destruir estereótipos e aproximar gentes oriundas de gerações e mundos diferentes: Quero que as pessoas se reportem, se inspirem nas minhas personagens.

No romance Irmã da minha Alma, a autora explora a condição de duas mulheres cuja vida é radicalmente alterada pelo casamento. Uma delas, Anju, mudar-se-á para a California enquanto a segunda, Sudha, continua o seu percurso na Índia, por mais algum tempo. No entanto, as duas voltam a reencontrar-se em A Videira do Desejo. Ambas têm muitas afinidades com a sua criadora. Por exemplo: a habilidade de Anju na escrita criativa ou o facto de Sudha desempenhar vários tipos de trabalhos temporário com vista à sobrevivência a curto prazo.

Anju é uma mulher de emoções intensas e humor depressivo em consequência de um aborto espontâneo, cuja principal consequência é o esfriar do desejo que apresará o final do casamento com Sunil.

A qualidade de vida no pequeno apartamento de uma das cidades mais poluídas do mundo é marcada por algumas dificuldades económicas iniciais, o que agrava a tendência sombria do humor de Anju. A chegada de Sudha, a prima de beleza cinematográfica, da Índia acabará por precipitar os acontecimentos…

Anju dedica-se a escrever diários, um processo de catarse, uma forma de terapia de onde nasce um talento que se manifesta numa prosa rica na expressão de emoções, as quais explodem sob a forma de ousadas comparações e metáforas. A inscrição no curso de escrita criativa marca o início de uma nova etapa seguindo de perto o percurso de vida da própria Autora.

Sudha, por sua vez , sai da Índia em busca da independência após a derrocada do casamento como resultado do choque da personalidade individualista da jovem face a alguns aspectos da cultura tradicional onde, desde tempos imemoriais, se valoriza a produção de filhos varões e onde face a um sistema de planeamento familiar decretado pelo governo, baseado na existência de um filho apenas por casal, a população reage eliminando os recém-nascidos do sexo feminino ou convencendo as jovens a abortar.

Sudha decide optar por romper o casamento e abandonar a estabilidade económica proporcionada por um casamento que lhe confere um estatuto social invejável, preferindo enfrentar a censura familiar e as dificuldades de integração numa cultura diferente daquela em que foi criada.

Inicialmente, um dos objectivos de Sudha é o de ajudar Anju a ultrapassar o trauma do aborto, onde a filha Dayita actua como catalisador facilitando o processo de fechar algumas feridas de Anju e Sunil. A bébé não consegue, no entanto, salvar o casamento dos tios.

A dada altura Sudha acaba por ser contagiada pelo desejo, retorcido, tortuoso como a videira, o que precipita a sua saída do apartamento para não prejudicar o casamento da prima.

Mas o principal móbil da acção de Sudha é sempre a busca da liberdade e, simultaneamente, do prazer de se saber desejada, sem culpas. Conhece uma jovem indiana, Sara, livre como o vento e, simultaneamente, frágil, mas sem medo do futuro, que a inspira. Também a cerebral e prática Lupe, a empresária do trabalho temporário hispano-americana que a encaminha para um emprego como enfermeira a cuidar de um idoso, indiano como ela, cuja personalidade o tornou intratável após sofrer um AVC, se revela providencial marcando um ponto e viragem no seu percurso. Sudha caminha com passo lento firme e sem desvios em direcção à autonomia, ao mesmo tempo que se aproxima das próprias origens em terra estranha.

Conhece Lalit, o médico-cirurgião cuja leveza na forma como encara as situações mais dramáticas ajuda a jovem a sair de situações complicadas.

Também a libertação do paternalismo de Ashok, o amor da adolescência, contribui largamente para o seu amadurecimento ao tomar consciência de que o passado não se repete, uma vez que O Desejo é caprichoso e retorcido como a planta da vinha. A raiz desta sede de independência de Sudha reside na forma como olha para a educação das meninas indianas: um ensaio para se tornarem mulheres casadas – na Índia não há lugar para a Mulher fora do casamento.

A primeira parte do romance, intitulada Verdades subterrâneas fala dos impulsos do inconsciente logo introduzida pela epígrafe inicial:

Eros é a força que se entrega a algo de impalpável, algo que arde

In O Casamento de Cadmo e Harmony de Robert Calarso

Nela, Anju prossegue a escrita dos seus diários em cores sombrias e ácidas mas polvilhadas de referências à Índia , sobretudo no que toca à gastronomia. Impressionantemente culta, no seu discurso encontramos uma profusão de referências literárias a Tolstoi, D. H. Lawrence, F. Scott Fitzgerald, para além dos clássicos da literatura indiana.

Registe-se ainda o peso dos silêncios nas cenas de diálogo com Sunil e a referencia a acontecimentos que marcam a actualidade internacional e que ajudam a situar a acção no tempo – década de 1990 – como a guerra na Jugoslávia, os conflitos étnicos na África do Sul, entre Zulus e o ANC ou entre Utus e Tutsis; as descobertas científicas no campo da astronomia e da arqueologia, a atribuição do oscar a Steven Spielberg por A Lista de Schindler ou o caso mediático deO.J. Simpson.

A própria narradora Anju, faz a interpretação da do significado subjacente aos silêncios incómodos entre esta e o marido com excepcional nitidez, permitindo ao leitor a visualização da cena com precisão cinematográfica: três pessoas, com pequenina caixas pretas, que encerram outras caixas mais pequenas e mais pretas. Segredos empacotados em segredos
O único aspecto menos positivo na obra será pelo menos na parte inicial, talvez, a tradução que transpõe palavras do inglês que têm tradução portuguesa como guava (goiaba) ou mango (manga) a par de uma deficiente revisão ortográfica - ex: confusão de gazes com gases ou cozer e coser.

Da Índia chegam-nos ecos da mentalidade e cultura locais através do intercâmbio epistolar entre Anju e Sudha e as respectivas mães, tias e sogras, onde nos apercebemos da importância do papel da mulher na sociedade hindú, como elemento de ligação de onde ressalta a preponderância do papel expressivo na gestão emocional das relações familiares. De onde se compreende a preocupação de todas elas relativamente ao desenraizamento cultural de ambas as primas, sobretudo pelo receio do esquecimento de todas as tradições ancestrais que as ligam.
Numa carta auto-censurada, de Anju para a mãe, vemos que a preocupação destas não é, de todo, descabida. O tom é demasiado emotivo, denunciando o estado de esgotamento nervoso e perigosamente denunciador de instabilidade emocional, pelo que é substituída por outra missiva mais optimista mas, também, mais superficial.

Sudha e as lendas tradicionais

Quando Sudha assume o papel de narradora, a partir da pag 87, a escrita de Divakaruni passa a adoptar o discurso de uma ouvinte que revela a uma extraordinária capacidade de executar uma escuta activa e, simultaneamente, atenta à descrição detalhada dos cenários, aos movimentos das pessoas, às expressões faciais.

Para Sudha é especialmente importante a expressão da memória, as recordações da infância, as histórias e lendas tradicionais como a epopeia do Ramayana para entreter a filha, obra utilizada como ferramenta pedagógica de forma a transmitir valores e padrões de conduta, como o peso da mentira, o perigo da ingenuidade, que permite cair na cilada de um mentiroso, as consequências de se atravessar os limites do proibido, do interdito. Ou da princesa no palácio das cobras – parábola à vida de casada da própria Sudha – que exprime o conflito entre o desejo e a culpa, que compara à poderosa força das massas tectónicas da libido que condicionam os impulsos mais primitivos porque incontroláveis:

Passam-se coisas por baixo da superfície – a poderosa força das correntes que nos querem levar para além de tudo o que conhecemos, o sorriso invisível de criaturas aquáticas, que se enrolam e desenrolam.
Sudha pensa, escreve e fala sobre o amor em todas as suas dimensões: erótico, filial, maternal, amor-amizade e, principalmente, sobre a inconstância do amor erótico.

Mas o amor é como um código desenhado no pó. Olha-se para o outro lado, sopra o vento, o padrão altera-se e, quando se volta a olhar, descobre-se que já diz outra coisa

Sudha é uma mulher de beleza magnética a quem os homens raramente conseguem ficar indiferentes.

Não consegue, no entanto, fixar-se e encontrar a pessoa que a consiga “prender “de livre vontade, numa relação duradoura sem ser opressiva. No entanto, é-lhe, também, impossível, tal como À Princesa do Palácio das Cobras, encontrar a escadaria de pérolas que a leve de volta ao palácio das cobras – metáfora ao casamento.

Para Sudha, o dever é representado pela filha Dayita, a qual mantêm Sudha ligada à realidade, à Mãe-Terra.
O amor maternal parece ser a forma de amor mais venerada na ala mais conservadora da sociedade indiana, porque consagrado ao culto da deusa Kali, um amor que na perspectiva de Sudha chega a ser: aguçado como estilhaços, doce como chá a ferver. Quem me dera senti-lo mais vezes. Isto porque a alma de uma mulher como Sudha não se esgota, apenas e só, no papel de mãe.

Um dos aspectos mais importantes do romance é dado precisamente pelo olhar de Sudha foca a importância de se estar presente nos momentos essenciais daqueles a quem amamos, ao referir-se à filha: como percebermos os olhos da pessoa mais importante na nossa vida quando damos o primeiro passo para algo que é vital…e que se torna trágico quando não é notado pela pessoa certa. E, quando isso não acontece, São pequenas tragédias, as rachas da espessura de um cabelo nas nossas relações.

Sudha é amiúde assaltada por uma angústia que a leva a pensar vir a sofrer um dia uma espécie de punição por sair fora da protecção do círculo familiar, de vir a ter um destino trágico como o de Nicole Simpson. Ou da criada indiana, Mangala, por amar alguém fora do seu alcance. Por desejar o fruto proibido.

Ambos os casos, quer o de Nicole, quer o de Mangala, são reveladores acerca da dificuldade em destrinçar a verdade da mentira quando se trata de fazer justiça.

As lendas tradicionais que traçam paralelismos com a realidade quotidiana vivida em ambos os continentes vêm sublinhar a propensão destes pensamentos, para além da modelagem efectuada no meio familiar. Tomando como exemplo o conto sobre as Vich Kanyas – mulheres criadas na prisão, cujos beijos traziam a destruição para onde quer que fossem - expressam o receio de Sudha acerca do próprio futuro sentimental, expressa numa carta destinada a Ashok, o primeiro namorado.

Sudha, tal como as heroínas mitológicas, atravessa, também, a dada altura, a fronteira do proibido, uma vez que, após o deslize com Sunil, As paredes da casa estão pintadas com a s cores do êxtase. O sofá está estofado com as cores do arrependimento.

Por outro lado, Anju, a propósito, ainda, do amor e das relações interditas e dos direitos das mulheres, estabelece a comparação das duas realidades culturais da seguinte forma: “Há, aqui (na América) muitas mulheres silenciadas. A regra “sem dinheiro, sem direitos” também funciona aqui. E os subornos. Só não é tão frontal. Apenas mais hipócrita.
Por outro lado, as directivas para os trabalhos de escrita criativa de Anju, parecem constituir pistas que despoletam no leitor insights que lhe permitem adivinhar o desenrolar da história. A narradora Anju confunde-se muitas vezes com a própria Autora, durante o processo de escrita, apesar de esta se projectar, de forma inequívoca, em ambas as figuras femininas do romance.
Existem ao todo quatro narradores participantes n’ A Videira do Desejo: Anju, Sudha, Sunil e Lalit.

Após a ingressão de Anju na Universidade, esta defronta-se com os rígidos parâmetros de avaliação dos mestres face aos quais sente a crescente necessidade de se afirmar pelo próprio estilo – o clássico drama dos escritores em início de carreira.

Nos que respeita às dificuldades de integração social de Anju, o principal obstáculo parece ser a impossibilidade de partilha das mesmas angústias com as colegas americanas, as quais não conhecem a realidade da condição feminina na Índia.

Sunil e Lalit – o lado masculino da questão

A narrativa de Sunil é feita através de uma gravação que é dirigida, aparentemente a Dayita, mas na realidade destina-se a Sudha. O tom é melodramático e fala repetidamente do desejo obsessivo que sente pela mãe da criança. O aparente cepticismo de Sunil, esconde a amargura do desejo frustrado. Os métodos utilizados para chegar à mulher que ama são revestidos da ingenuidade presente nas histórias tradicionais para crianças.

As pessoas não passam de más para boas – bum! – assim, de repente. Mas o contrário, sim .

Isto a propósito, mais uma vez, de uma notícia sobre o julgamento do caso O.J. Simpson, o qual, para Sunil, se trata de uma personagem interessante porque multifacetada:

As pessoas boas tornam-se más. Um homem pode estar a atravessar um pântano, julgando que é um jardim, sem nunca imaginar que é um pântano. Até se afundar.

E Sunil, tal como O.J. , afunda-se num pântano de emoções turbulentas.

A introdução de um episódio burlesco – como a reprodução de um cenário de Bollywood – como a festa em casa de Chopra, o chefe de Sunil, serve não apenas como o cenário mágico onde Sudha conhece Lalit, que se torna o rival de Sunil – ambos se encontram de certa forma na orla da festa, isolados como e não pertencessem ali – é o sítio onde é dado a conhecer ao leitores a forma como os americanos vêem os indianos: seres excepcionalmente extravagantes e vulgares, numa impudica exibição de racismo, patente no diálogo entre os seguranças da festa que comentam a aparência e o hábito dos comensais.

Lalit, o médico-cirurgião indiano, um dos convidados apaixona-se por Sudha à primeira vista, insinuando-se de forma subtil.

No discurso de Lalit, há um jogo interessante entre este e Sudha , patente nos diálogos entre ambos, sobretudo na dicotomia entre aquilo que se diz e aquilo que por dizer. Esta dicotomia entre o discurso expresso e o discurso tácito, confirma aquilo que antes já se suspeitava: a tendência do médico em aligeirar situações dramáticas – vício da profissão – sobretudo em relação às próprias emoções, o que acaba por ser um mecanismo de defesa.

Livro dois – Lembrança e Esquecimento


A segunda parte é desenvolvida no sentido de traçar o caminho da superação dos traumas vividos por ambas as primas.

O curso de escrita criativa absorve Anju cada vez mais, tal como o idoso com AVC, doença que o torna incómodo para a família, ocupa cada vez mais a rotina de Sudha.

A família com quem está a viver pertence à classe média alta onde a nora do enfermo, a sofisticada Myra, casada com um jovem imigrante oriundo da Índia. É uma pessoa algo superficial , que exibe alguns sinais de riqueza e cultura como símbolos que lhe conferem um determinado estatuto social. Myra preocupa-se muito pouco em dar atenção às pessoas mais próximas ; é incapaz de pensar por si, limitando-se a seguir as instruções do terapeuta.

Enquanto isso, Sudha leva com o rancor e ódio do doente, cuja incapacidade para ultrapassrar a própria condição, o leva a agredir quem está mais próximo.

A inversão da situação é despoletada por Dayita, mas o facto de Sudha ser indiana, conhecer a cultura e a gastronomia, ajuda bastante no caminho para a recuperação.

Sudha inicia, tal como algumas figuras da mitologia, o processo de bordar o trajecto da própria vida numa colcha, colocando a criatividade e imaginação ao serviço do bordado, da mesma forma que Anju o faz na escrita. Confecciona uma colcha autobiográfica.

No final, Anju Já não escreve aos mortos como fazia no início do romance – o filho Prem. Está preparada para lidar com os vivos e livrar-se das lembranças dolorosas. Aprende a “voar”. Em todos os sentidos.

Sudha reflecte sobre o destino de Anju e de Nicole Simpson – Os mortos não dão conselho. Observam com tristeza enquanto repetimos os nossos erros.

As primas reencontram-se e através da intervenção facilitadora de Lalit.

Mas o aguilhão da culpa e do remorso continuam a ocupar o pensamento de Sudha, que receia que lhe aconteça o mesmo que a Mangala ou a Nicole caso regresse à Índia natal.

Quanto a Anju ela própria identifica a prima com a figura mítica de Draupadi, criando um conto com esta personagem, inspirada na beleza sedutora da prima:

Ela tinha nascido do fogo (…)onde quer que fosse deixava pegadas chamuscadas (…), o seu único defeito era que ela queria – e obtinha – aquilo que era proibido a todas as mulheres. Por isso tinha de pagar um preço exorbitante e, numa espécie de antevisão ao destino de Sudha, …e juntamente com Draupadi, começa a sua fatal viagem às montanhas do Himalaia onde ela morrerá.

Posteriormente decide aligeirar a tragédia, imaginando a personagem num contexto diferente do anterior – menos fatalista, visualizando-a a plantar uma misteriosa planta – talvez a própria videira do desejo – que nos dá sempre tudo aquilo que pedimos embora sempre diferente daquilo que esperamos.

Anju supera o rancor pela prima projectando-o na escrita.

Sudha volta à Índia mas não a Calcutá, de forma a evitar mexericos mas a uma cidade da qual conhece a cultura e as normas que dela fazem parte.

O final é aberto sugerindo um leque de possibilidades. Embora o passado deixe sempre cicatrizes:

Atrás das palavras proferidas está a decorrer uma conversa completamente diferente. Esmagam-se emoções contra as janelas do carro como pássaros tentando fugir.

A dor é no entanto apagada num oceano de fogo de diamante num voo de asa delta…

Um romance de emoções observadas a partir do ponto de vista de todos os intervenientes o que nos dá uma visão muito ampliada e completa de todas as personagens onde a preocupação em contextualizar as atitudes de cada uma delas, conjugada com uma criatividade impar expressa no discurso narrativo coloca a obra e a Autora num patamar superior da escrita poética e ficcional.

Cláudia de Sousa Dias

Thursday, February 12, 2009

“O grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald (Relógio d’Água )


Sobre o Autor, Anthony Burgess afirmava que a escrita de Fitzgerald era dotada de “uma arte demasiado requintada e de uma ironia demasiado subtil para o Grande Público”.
Isto porque a opinião pública, leitora assídua dos seus contos publicados no
Saturday Evening Post” ignorava-o como autor de um grande livro, daquilo que, para nós, hoje em dia, se afigura como um inequívoco talento de romancista, apesar do sucesso dos seus contos sobre a sociedade da era do jazz, no período entre as duas grandes guerras.

A popularidade póstuma de Fitzgerald deveu-se, sobretudo, à conturbada vida conjugal com Zelda, uma mulher marcada pelo alcoolismo e pela esquizofrenia, na qual, ao que tudo indica, parece ter-se inspirado para compor os principais traços de personalidade da protagonista do seu mais célebre romance: Terna é a Noite.

T.S. Elliot, o autor de Pigmaleon, a peça de teatro que deu origem ao filme My Fair Lady, considerou-o como “o único progresso significativo no romance americano desde a morte de Henry James”.

Após a morte de Fitzgerald, num editorial do New York Times, afirmava-se que “ele era melhor do que pensava uma vez que, tanto no plano dos feitos como no plano literário, foi o inventor de uma geração”.

Sobre O Grande Gatsby podemos dizer que se trata de um romance que não anda muito longe do paradigma da perfeição no que respeita à fluidez do discurso, à construção da narrativa, à descrição de situações que caracterizam o comportamento de um grupo, considerado como “a nata” da sociedade americana da costa leste, durante o período de expansão dos loucos anos 1920: uma sociedade hedonista, onde o gosto pelo luxo e pelo álcool (numa altura em que era proibida a sua comercialização devido à publicação da Lei Seca, nos EUA) despertavam o impulso que comandava o desejo de viver uma vida trepidante o qual se sobrepõe, nas personagens de O Grande Gatsby, a outros valores considerados como fundamentais. O Autor dá a voz a Nick Carraway, o narrador, e co-protagonista, o alter-ego de Gatsby que sobressai pela discrição e low-profile.

A Trama

Trata-se de uma estória, contada como um depoimento, uma reflexão sobre os limites da conduta pessoal e da tolerância por Nick Carraway, um jovem proveniente de uma família rica do Middwest que, ao acabar os estudos, decide mudar-se para Nova Iorque, onde arranja emprego como corrector da Bolsa, através da intervenção dos familiares que se reúnem, propositadamente, para discutir a colocação que melhor se adeqúe às posição e ambições do jovem. A proximidade da bela, rica e mimada prima, Daisy, e do influente marido, cuja casa acabará por frequentar assiduamente, torna-se decisiva para a escolha do lugar onde morar.
Daisy é uma jovem encantadora, cativante mas superficial, uma característica que está patente não só nas suas atitudes, que englobam o discurso, gestos e expressões mas, sobretudo , nas escolhas que faz: Daisy é uma jovem que prefere sempre optar pela segurança material e pelo status social do que pelo amor.

O medo em relação ao futuro, a falta de segurança e autonomia toldam-lhe a visão e a capacidade de análise face ao carácter das pessoas, nublando-lhe a capacidade de discernimento.
Nick conhece, ainda, Jay Gtasby, o fulgurante milionário, cujo passado misterioso suscita toda uma gama de especulações acerca da forma como conseguiu fazer fortuna em tão pouco tempo – menos de uma década. Nick terá, ainda, a oportunidade de perceber a existência de uma ligação entre Daisy e Gatsby no passado.

É estabelecida, também, uma espécie de atracção ou ligação superficial entre Nick e Jordan Baker - uma desportista com poucos escrúpulos, uma vez que é perfeitamente capaz de adulterar as regras do jogo e fazer batota descaradamente. É bastante mais independente e cerebral do que Daisy, contudo, as limitações de ordem financeira fazem com que não tenha autonomia suficiente para viver sozinha (vive com uma tia) ou casar com alguém sem antes pensar na respectiva situação económica.

Tom Buchanan, o marido de Daisy, é um homem boçal, com “um corpo cruel”, paternalista, de ambições imperialistas no que respeita ao domínio da civilização ocidental face a outros povos. Algo que está patente na forma como exibe uma ostenta uma ofensiva condescendência face aos povos tecnológica ou economicamente “menos desenvolvidos”, a denunciar convicções muito próximas dos ideais do nazismo, com raízes no darwinismo social.

No entanto é, ironicamente, atribuída a Jay Gatsby ligações ao Kaiser e ao lado inimigo durante a primeira Grande Guerra, pelos vizinhos e habituais frequentadores das loucas festas em sua casa, devido às movimentações deste dentro do império austro-húngaro como agente secreto.
Tom Buchanan é, ainda, amante de Myrtle, - foco de discórdia entre este e a esposa, que se apercebe do facto. Myrtle é uma mulher bela, mas de uma sensualidade lasciva, algo vulgar, sexualmente excitante e sexualmente (muito) activa. É esposa de um homem ingénuo, o mecânico de automóveis, Clifford. Myrtle é, portanto, o oposto de uma jovem como Daisy, feita para brilhar em sociedade e ser idolatrada. Nick compara-a, a dada altura, a ela e a Jordan, a dois ídolos de prata.

Daisy, por sua vez, mostra ser, em vários momentos da narrativa, uma jovem frívola, superficial e irresponsável, um traço de personalidade que comunga com o marido, o qual, além da incapacidade de assumir os próprios erros acumula, também, um temperamento violento e vingativo, patente na forma como esbofeteia Myrtle e como humilha as mulheres em geral.
Nick Carraway, é um personagem cuja ética foi solidamente implantada e desenvolvida segundo o modelo do pai, seguidor de uma moral de inspiração kantiana. E é por isso que não consegue evitar repudiar este tipo de conduta afastando-se, inclusive, da fria e algo cínica, Jordan, cuja companhia acaba por saturá-lo e levá-lo a identificar-se muito mais com Jay a quem chega a admirar, apesar dos meios duvidosos que utiliza para construir fortuna. Porque Gatsby, apesar de tudo, manteve-se sempre igual a si mesmo, com uma fidelidade absoluta à trave mestra orientadora da própria conduta: o amor incondicional a uma única mulher: Daisy. Esta, no entanto, não está nem nunca esteve à altura da afeição mostrada por Gatsby ou, provavelmente, nunca teve consciência da sua importância. Jay Gatsby coloca o bem-estar da mulher amada acima de tudo: da lei, da ética, do dever-ser, da própria segurança. Facto de que ela nunca sequer chega a aperceber-se por várias razões. A única mudança que consegue perceber em Gatsby é a alteração da sua situação económica, que se concretiza num tempo errado, em relação às próprias conveniências.

A temática central de O Grande Gatsby consiste na forma como o protagonista constrói a fortuna que o tornou em alguém malvisto pela “boa” sociedade e às motivações que lhe estão subjacentes. Também a integração daqueles que vêm de fora da Big Apple, da Grande Metrópole, provenientes do interior ou de outros estados, pessoas como Nick, Jay ou Daisy, e se vêem a braços com sérias dificuldades para serem aceites nos restritíssimo círculo composto pela nata da sociedade nova iorquina – a ultra sofisticada e prestigiadíssima elite da Costa Leste, composta pelas famílias mais antigas pertencentes à upper-class – o que os transforma em seres algo inadaptados, que são sempre vistos como alguém que vem “de fora”, que não pertence exactamente ao “meio”.

Neste contexto, Jay tenta passar por aquilo que não é, para cativar a atenção de Daisy e ser aceite pelos seus pares, fingindo-se um rico herdeiro de uma família tradicional. No entanto, as suas palavras e atitudes acabam por traí-lo, ao mesmo tempo que tenta seduzir a mulher amada pelo fausto e pelo exibicionismo que acaba por deixar entrever as suas raízes provincianas.
Daisy, apesar de gozar de uma situação económica invejável e de uma reputação acima de qualquer suspeita, é uma mãe desatenta, que mostra em vários momentos não estar a par do desenvolvimento da filha, o que vem sublinhar o seu temperamento frívolo. É depressiva – tendência que se acentua após o parto – notando-se-lhe um progressivo toque de desesperança em relação ao futuro, à medida que o romance se vai aproximando da sua conclusão.
Tom torna cada vez mais evidente a sua vulgaridade, fruto de um temperamento boçal, cada vez mais vincado, e da ausência de cultura.

A única personagem que cria um vivo contraste em relação às restantes é Nick Carraway, a quem os restantes elementos recorrem com frequência como confidente, desempenhando a função de psicanalista (não oficial) do grupo de inadaptados da alta-sociedade.

Quanto a Nick, no momento em que abandona a família de orientação, a protecção do lar, mudando-se para o Leste é obrigado a enfrentar algumas restrições económicas e a ficar numa casa relativamente modesta, sem a cobertura social e financeira que tinha dos pais, tios, tias e primos do middwest.
Nick parece estar destinado a tornar-se num celibatário convicto, por não se identificar com a mentalidade superficial da alta sociedade de Nova Iorque ou, já agora, com o mundo das aparências que gravitava à volta da casa de Gatsby, um autêntico bando de mariposas a esvoaçar à volta de um candeeiro de rua.
Mais: a crítica social, feita com especial mestria pelo Autor, o qual através do recurso ao sarcasmo e à ironia, temperada por um delicioso humor negro, é marca de distinção estética e estilística que garante a qualidade literária da escrita do Autor pela forma genial como faz a caricatura da Destemperança dos comportamentos, sobretudo durante as festas loucas na principesca mansão de Gatsby onde “o álcool corria como um rio”. Estes deliciosos momentos de pausa na narrativa destacam-se pelas sensações de movimento de som – é impossível não ficarmos com a sensação de a ouvir o animadíssimo charleston - , mas sobretudo pela atribuição jocosa de hilariantes sobrenomes que compõem as listas de convidados, semelhante a um herbário ou bestiário onde figurariam os mais exóticos espécimes.

A simplicidade da estrutura narrativa, a fluidez dos diálogos e o realismo crítico impresso nas cenas descritas dão ao discurso presente neste livro, uma tonalidade aparentemente leve, mas de contornos precisos, através de uma evocação realista e pertinente de uma época e sociedade específicas, com um toque de ironia muito particular, que delicia quem lê, pela proximidade dos diálogos com o quotidiano…

Um clássico da literatura americana que vicia e alimenta o vício da literatura.

Cláudia de Sousa Dias




Saturday, February 07, 2009

“De Zero a vinte” de Armando Soares Coelho


A escrita de Armando Soares Coelho, neste seu romance autobiográfico, escrito durante a sua juventude, revela já o talento extraordinário para evocações precisas característico da sua escrita, neste caso referindo-se aos episódios da infância (apesar de algumas dificuldades com a cronologia durante os primeiros cinco anos de vida) e da adolescência e das emoções turbulentas, típicas destas idades.
De Zero a Vinte é Considerada a obra-prima deste Autor nascido no concelho de Marco de Canaveses, amante das artes, das ciências humanas e acima de tudo da Poesia, homenageado há alguns meses atrás, a título póstumo, por parte dos escritores locais na Biblioteca de Vila Nova de Famalicão, onde residiu durante grande parte da sua vida. E é nada mais nada menos do que este romance autobiográfico, escrito durante a sua juventude, retratando o período da infância e da adolescência – dos zero aos vinte anos – a viva expressão da “voz” de Armando Soares Coelho. Trata-se de um romance que se detém, sobretudo, na evocação de uma infância que se caracteriza por uma série de perdas afectivas, que se sucedem umas às outras e que desencadeiam o empobrecimento do rendimento familiar e, também, a dispersão e desunião dos membros da família mais chegada como o pai e os irmãos.

O jovem Armando S. Coelho passaria os primeiros anos de vida, após a morte da mãe, em Marco de Canaveses, ressentindo-se fortemente do seu falecimento ao dar à luz o irmão mais novo. Os irmãos, dispersos pela família, são distribuídos entre tios e avós.

Mas para o protagonista da estória, a presença dos primos revela-se fundamental para o seu desenvolvimento como pessoa: sobretudo Alcino e António, de personalidades antagónicas: o primeiro, certinho e convencional, o segundo idealista e revolucionário, mistura de Baudelaire e García Lorca, combatente na guerra civil espanhola, tuberculoso e consumidor de ópio que, acabará por ser a influência mais marcante na vida de ASC, o qual virá a dedicar-lhe este mesmo livro. António é o maior contributo para a modelação da personalidade do Autor ao decalcar-lhe na mente influências ideológicas fundamentais, tais como: o amor às letras, às artes e às ciências e, sobretudo, à liberdade de expressão. Também a prima, Edite, dez anos mais velha, de beleza romântica, uma fada de beleza moira que serve de musa ao Autor, durante toda uma vida.

António e Edite são os grandes pilares afectivos que, durante muito tempo, compensaram a perda de entes queridos como a Mãe e a Tia Julinha ou, ainda, a morte prematura da irmã “Branquinha”, do irmão, Sílvio, e do avô, “cujas ordens eram ditas em tom calmo mas que se saia de antemão que era para obedecer”.

Anos mais tarde, o primeiro emprego no consulado alemão, no Porto, vai colocá-lo em contacto com a ideologia fascista. A partir daí, temos a oportunidade de assistir ao processo de mudança ideológica, que acompanha a perda da ingenuidade infantil, de alguém que, inicialmente, se deixa fascinar pelo garbo das fardas e pela ideia de ordem e disciplina mas que vai, gradualmente, consolidando as próprias convicções, facto a que não é alheia a influência do primo revolucionário assim comoa observação da vida duríssima de pessoas do povo como o colega Zé da Carvoaria que lhe inspira um dos mais emotivos poemas da obra O Passante.

Pouco depois, o emprego na Carris como operário, que abraça com o objectivo de ajudar a cobrir as despesas dos estudos de electrotecnia – um trabalho que o pai considerava como sendo “de futuro” – leva-o ao esgotamento físico e a optar por dedicar-se exclusivamente aos estudos. Um facto que ocasiona ainda mais dificuldades económicas num orçamento, já de si, magro.

De zero a vinte é também um livro de grande riqueza histórica e documental, sobretudo, para quem se interessar pela análise dos aspectos sociológicos e da psicologia social do Portugal rural da primeira metade do século XX, nomeadamente: a forma como é vivida e encarada a infância (a criança é vista como um adulto em miniatura e, na maior parte dos casos espera-se que ela reaja como um adulto), os métodos de ensino e respectivos conteúdos, o nível de desenvolvimento económico, o conceito de higiene.

O Autor e a caracterização social do Portugal do Estado Novo

Esta é outra das vertentes do desenvolvimento da narrativa em De Zero a vinte, obra que dá a conhecer um Portugal onde a maioria da população vivia abaixo daquilo que hoje se considera como o limiar da pobreza, onde grande parte da população passa fome - sobretudo durante a segunda grande guerra. É neste momento da narrativa que nos apercebemos das vantagens em ser-se filho de uma autoridade – o suprimento de senhas estaria, então, garantido.

Por outro lado, a tacanhez de espírito, a mesquinhez das gentes que habitavam então o Portugal dominado pela beatice, pela superstição e pelo medo de algum, inesperado, castigo divino ou da danação do inferno como se nota a partir do discurso da Avó e nas atitudes de Sara ao esconder de todos aquilo que considera como sendo “o maior de todos os pecados”- a quebra do tabu absoluto em ter relações sexuais antes do casamento – a negligência por parte dos adultos no cuidado com as crianças de onde resultava, muitas vezes, morte por acidente doméstico.

Também a necessidade e o desejo compulsivo de estudar para progredir, determinada por uma insaciável sede de conhecimento que é, no entanto, desviada das artes e das letras para abraçar uma área técnica por pressão do pai, preocupado com a garantia do futuro profissional do filho.

Sara é o primeiro amor, com raízes na infância e nos bancos da escola, que vai marcar a entrada do jovem Armando na vida adulta.

A fatalidade surgirá, mais uma vez, como um terramoto, fruto do extremo condicionamento económico, por um lado, e do confronto dos desejos com as normas sociais, ou seja, da incompatibilidade entre a Moral vigente e o Desejo.

Estilo e Linguagem

A utilização de linguagem típica das gentes do Minho (“ougar”, “rilhar”) e todo o imaginário popular que inclui um manancial de lendas, contadas à volta da fogueira, para impressionar os mais pequenos (ciganos papões, bruxas...) onde o Autor chega mesmo a mostrar que, por vezes, a implacabilidade do braço da deusa Némesis se manifesta, por vezes, mais facilmente pela mão das crianças do que pelos tribunais. Nesta obra, é abordado e vividamente descrito o problema da pobreza, da mortalidade e trabalho infantil nas camadas sociais mais modestas a remeter-nos para um conto de Charles Dickens ou para o polémico Capitães de Areia de Jorge Amado escrito, também, durante os verdes anos do universalmente conhecido autor brasileiro.

Uma prosa recheada de ironia e ternura, com destaque especial para o nível de ignorância que grassava no Portugal da época, sobretudo ao mencionar que muitos conhecidos seus “apoiavam o Duce por ser vizinho do Papa” ou quando joga com a frase atribuída a Salazar, à porta das escolas: “Se soubesse o que custa mandar gostarias mais de obedecer”, substituindo-a por “Se soubesses o que custa obedecer gostarias menos de mandar”.

ASC não deixa, também, de lançar um ou outro virote a organizações como a Mocidade Portuguesa ou os Escuteiros cujo objectivo, na época, seria o de moldar as consciências juvenis, imprimindo-lhes o cunho do regime político da época. Tal como aos temas os temas “quentes”, para a época, como a Concordata e os privilégios concedidos pelo estado à Igreja Católica, a Censura, a propaganda do regime.

Mas o que mais salta à vista neste romance/autobiografia é a magnitude das cicatrizes deixadas pelas perdas afectivas, desde a já mencionadas como a Mãe, a Tia Julinha, os irmão, Sílvio e Branquinha a que se juntam outras fontes de afecto dos verdes anos como os animais de estimação, o primo e melhor amigo, desaparecido após uma prolongada agonia, suavizada pelo ópio, mas sobretudo, o primeiro amor, vitima dos preconceitos e apertadas convenções sociais da época.


Cláudia de Sousa Dias

Monday, February 02, 2009

O Capitão dos Adormecidos” de Mayra Montero (Civilização)


Nascida em Havana, em 1952, a Autora reside, actualmente, em Porto Rico – o local onde decorre a acção de O Capitão do Adormecidos. Após ter trabalhado como jornalista correspondente em vários países da América Central e, posteriormente, como editora, Mayra Montero dedica-se, hoje, à escrita em full-time, tendo os seus livros estão traduzidos em várias línguas, abrangendo já um vasto curriculum de obras publicadas: Veintitrés y una Tortuga, Del Rojo y su Sombra, Tú, la Obscuridad, Como un Mensagero tuyo e Purpura Profundo, romance erótico com o qual obteve o Prémio La Sonrisa Vertical.

O Capitão dos Adormecidos fala de uma paixão triangular, ocorrida em contexto de guerra civil em Porto rico. O romance é dedicado a duas figuras cujo destino trágico lhes mereceu destaque especial na trama: o barbeiro, Vidal Santiago e o guerrilheiro independentista Roberto Acevedo, um homem da cepa de Che Guevara . Apesar de se movimentarem como personagens secundárias, estas duas figuras têm um papel fundamental na engrenagem, uma vez que ambos desejam um estado livre da tirania dos interesses norte-americanos que interferem, directa ou indirectamente, na política e economia locais.

A História é introduzida na trama através de uma epígrafe de William Faulkner:

Past is not dead;
it’s not even past.

Já a estruturação da narrativa é desenhada pelo confronto entre a visão dos dois co-protagonistas sobre o mesmo acontecimento, de forma a completar as peças que faltam no puzzlle incompleto da memória e a esconjurar os fantasmas do passado, que se reconstrói pela justaposição de ambos os pontos de vista. Um processo que implica mexer nas velhas feridas de forma a extirpar o abcesso da dúvida curado, então, a partir da raiz, pelo processo da catarse.

A densidade emocional patente no discurso de ambos e, particularmente, no do co-piloto norte-americano, John-Timothy Bunker, faz lembrar um pouco o doloroso processo de exploração da memória utilizado pelo genial Sándor Márai em As Velas ardem até ao Fim. Apesar de este romance não atingir nem a profundidade nem a carga dramática presente na escrita sombria e absorvente do escritor nascido no seio do Império Autro-húngaro, numa cidade actualmente situada na Eslováquia. Um facto que se deve, talvez, à particularidade de a prosa de Mayra Montero estar um pouco mais temperada pelo clima soalheiro das Caraíbas, de cuja luminosidade e temperatura a Autora não consegue alhear-se e que acaba por se reflectir no humor das personagens que representam a cultura e a mentalidade típicas da região, como é o caso da cozinheira do hotel.

Personagens e articulação

John Timothy Bunker é o “Capitão dos Adormecidos”, isto é, um aviador vindo dos EUA que transporta “os adormecidos”, isto é, os mortos da ilha, por via aérea.

J.T. apaixona-se por Estela, a mãe de Andrés, a bela mulher de Jasín, dono do pequeno hotel da ilha, de quem é amigo. O pequeno Andrés, começa por ver no piloto uma espécie de herói que transporta “os adormecidos” para o local onde descansarão para sempre. Mas, a partir do momento em que se apercebe da obsessão doentia deste pela mãe, passa a vê-lo como uma ameaça.

Cinquenta anos depois, J.T. está a morrer mas deseja encontrar-se com Andrés para esclarecer factos mal explicados e dissipar as nuvens do passado.

O desenvolvimento da narrativa é, portanto, feito a duas vozes; por um lado, o passado é contado num estilo diarístico, como o conjunto de memórias que estão contidas nas cartas que J.T. escreve a Andrés, já doente, o que implica o uso da técnica da regressão – analepse – num discurso que alterna com a “voz” de Andrés. Esta última manifesta-se através de um monólogo interior, enquanto este deambula pelas Ruas da cidade que serviu de cenário à sua própria infância. A visão dos lugares onde decorreram os acontecimentos de cinco décadas antes ajudam a evocar um passado de meio século de forma mais nítida do que uma mera descrição. Também o confronto entre a forma de olhar para as coisas e a diferente interpretação dos factos pelos dois protagonistas vem ajudar muito na evocação da mulher amada por ambos: Estela, a protagonista feminina.

Estela é uma personagem-tipo, misteriosa e fascinante, pelo pouco que revela de si própria. É uma personagem muito pouco “redonda”, um poço como a Maria Eduarda Maia de Eça de Queirós, uma vez que, em praticamente nenhum momento da trama, conseguimos entrar no universo emocional que orienta a sua conduta, a não ser por via indirecta – comportamental – o que vem dificultar o acompanhamento da sua linha de pensamento. É somente através de Andrés e JT que temos acesso ao seu íntimo, embora sempre colorido com a afectividade que ambos lhe dedicam assim como da visão particular dos factos de cada um destes.

Estela personifica a típica heroína trágica dos autores clássicos. Trata-se de uma mulher de beleza loira, arcádica e, por isso, muito admirada em terras sul-americanas, desencadeadora de paixões violentas e fulminantes, embora aparentemente fria, como o mármore de Pharos, encerrada na sua beleza de estátua.

Entretanto, J.T. demonstra uma dedicação total a Estela (Stella, como lhe chama)e que se traduz num amor que se prolonga para além da morte, inclusive, após a reconstituição da própria vida afectiva.

Jasín, exibe a mesma dedicação a Estela enquanto casado com ela. Contudo, não parece aperceber-se do imenso vazio, da incomensurável insatisfação que a devasta, do tédio que a mortifica. Porque Estela, ao contrário daquilo que aparenta, é uma mulher incompleta, que parece sempre buscar algo de sublime: o amor que não encontra nem na vida rotineira com Jasín nem nas visitas periódicas de J.T.

O Andrés adulto é um homem já prestes a entrar na idade da reforma mas, ainda, marcado pelo impacto de uma imagem retida há cinquenta anos atrás que adquire uma configuração monstruosa aos olhos de uma criança, mas que se reveste de contornos mais suaves à luz do entendimento adulto.

E é este o motivo do encontro de ambos: alterar a configuração dos factos ao preencher o vácuo e aquilo que parece incompreensível pelo acesso à informação que faltava e à qual uma criança nunca poderia ter acesso – a componente cognitiva e emocional da atitude. A violência do vórtice passional.
A cena que envolve a morte de Estela está envolvida numa intensíssima carga dramática à qual se junta a tragédia do revolucionário Roberto Acevedo.


A exibição da prepotência das tropas norte-americanas em terras porto-riquenhas nos anos cinquenta e o respectivo apoio ao governo totalitário de então – cujo objectivo seria o de “esmagar os revoltosos de esquerda” – as atrocidades, os abusos cometidos pelos soldados americanos face à população civil local – como o caso do assassínio da jovem sobrinha da cozinheira do hotel, Santa, perpetrado com requintes de sadismo – é uma das vertentes do romance que causam mais incómodo no leitor.

Da mesma forma, a paixão entre a mesma empregada Braulia e a milionária Gertrudis que as colocam na franja das socialmente marginalizadas, embora ainda sem serem totalmente excluídas apesar das inegáveis qualidades de ambas, é outros dos ingredientes que vêm encaixar-se na trama principal enriquecendo-a, assim como o realismo doloroso que envolve o falecimento da avó de Andrés, o ponto culminante do longo processo de dissolução da memória.

Um romance que, sem ser uma obra de culto, não consegue deixar ninguém indiferente.

Cláudia de Sousa Dias