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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, October 31, 2015

"Vozes" de Ana Luísa Amaral (Dom Quixote)



Este magnífico livro de poesia, datado de 2011, irá certamente integrar a nova antologia da Autora a sair brevemente, publicado pela editora Assírio & Alvim no próximo ano. Trata-se de um livro que compreende, tal como dá a entender o título, um conjunto polifónico de vozes, onde a locução do sujeito poético se desdobra em vários enunciadores (conjunto que abrange não só a voz do locutor que “diz” o poema mas o conjunto das vozes citadas, directa ou indirectamente no discurso poético). Trata-se assim de um livro profusamente dialógico (envolvendo a interacção entre um eu e um tu dentro do poema ou dirigindo-se simplesmente ao leitor ou, ainda, o locutor dirige o discurso a si mesmo, assumindo simultaneamente o papel de locutor e de alocutário) mas também recheado de intertextualidades (alusões a outros discursos e obras literárias). O livro ganhou o Prémio António Gedeão em 2012.

Vozes encontra-se dividido em seis secções as quais iremos analisar individualmente: 1) IMPOSSÍVEL SARÇA; 2) BREVE EXERCÍCIO A TRÊS VOZES; 3) TROVAS DE MEMÓRIA; 4) ESCRITO À RÉGUA; 5) OUTRAS ROTAÇÕES: CINCO ANDAMENTOS; 6) OUTRAS VOZES.

O livro inicia com uma dedicatória, à laia de introdução, a que a autora dá o título de “Silêncios”, numa relação de antonímia com o título do livro, estabelecendo um paralelo entre as cordas vocais em repouso e a folha em branco que antecede a escrita do poema. O silêncio é também o pano de fundo que serve de cenário ao ritmo quer na música quer na poesia (duas artes intimamente ligadas as quais para os antigos gregos muitas vezes se fundiam) e ao coro polifónico que vozes que irá acompanhar o desfolhar das páginas do livro. Logo depois deste texto inicial, sucedem-se as seis secções que compõem o núcleo do livro, rematadas no final por um único poema, separado de todos os outros, tal como acontece com "Silêncios", numa espécie de síntese analítica a que é dado o título de “Vozes”. Assim, aos “Silêncios” no ponto de partida do livro, opõe-se o conjunto polifónico das vozes que são o resultado final do livro.

Na maior parte dos poemas de Vozes está inscrita a nostalgia dada pela voz do sujeito poético, o qual estabelece interessante dicotomia entre um tempo passado e o tempo presente, o “outrora” e o “agora”, conferindo dinamismo à leitura através desta modalização temporal. Esta assenta no contraste entre um tempo idílico de felicidade, e a ausência (uma característica muito proustiana na poética de ALA) e um tempo de solidão, onde o “eu” poético projecta um ethos envolto em sombra evocando o paraíso perdido.

As seis secções ou conjuntos de vozes que formam o núcleo duro do livro, compreendem cenários ou temáticas diversas que se ligam, de forma directa ou mais ou menos remota, ao conteúdo do poema inicial.

A primeira das seis partes nucleares do livro, A IMPOSSÍVEL SARÇA, cujo título é uma alusão ao livro do ÊXODO (o segundo livro da Bíblia) e ao episódio da sarça ardente do qual é protagonista Moisés no Monte Sinai  – sendo o fogo que envolve a sarça sem a queimar tomado pela voz do narrador uma manifestação do divino, da voz de Jahveh  –, inicia-se com o poema “Biografia (Curtíssima)”. Nele, o discurso é construído de forma a explicar o que motiva a escrita poética dando a entender ser o sentimento de perda a força que poderá impulsionar este tipo de discurso literário. O poema incarna o tema central desta primeira secção do livro, na qual é executada numa impressionante dança entre os elementos água e fogo os quais, nos poemas que fazem parte deste primeiro subconjunto, se digladiam, na oposição entre os tempos, o outrora a o agora, declinando-se por vezes na dicotomia entre "luz" e "escuridão", sendo esta última trazida pela água (esquecimento) a qual tem o poder de apagar o fogo que arde por acção da memória e se expande pelo difundir da palavra:

Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa.
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer

Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita abençoada
mas de mais e cristã
também castigo

Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras

que não chegam

 – mas cegam

(Vozes, p.15)


O elemento “fogo", continua a surgir nos poemas seguintes: “Feitos de Lava” podem ser os amantes, mas também os planetas no princípio da sua formação, só depois se combinando a água e restantes elementos para dar origem à vida. Em “Nocturnal, desatraindo o som” e “Da solidão da Luz” o fogo que tudo queima à sua volta parece já estar distante. Em “Nocturnal” há a presença da luz a iluminar a consciência (inspiração claramente iluminista), mas já sem expulsar o expulsar o "frio" que é sentido na expressão na voz do eu poético, apesar do Verão que desponta (está-se em Junho); e em “Da solidão da Luz” onde também não há propriamente alegria, pois a mesma crueza com que esta "luz" ilumina o real não permite de todo erradicar, ignorar um cenário de ruína de escombros que se desdobra diante do olhar do locutor:

“Da Solidão da Luz”

A casa em ruínas que vejo daqui
salta da janela, entra nesta sala,
mas não tem janelas que a façam brilhar,
as molduras rotas carregadas de ar,
as portas cobertas da hera mais pura,
as telhas brilhantes da ausência de cor,
e um buraco imenso onde o coração
devia luzir, se as ruínas não -

Morre devagar, como o universo,
galáxias e mares de estrelas e sóis:
política rara sem reis nem senhores,
mas tenso equilíbrio de forças sem luz.

Morrem devagar o tempo e os livros,
as estantes todas que habitam a sala:
pobre microcosmo do Bem e do Mal,
e do que nem isso, que é o mais vulgar.

Lembra-me, escarlate, só pela memória
um livro mais, de forças a sério:
o claro e o escuro de um igual terror.

(…)

E um poço vazio onde o coração
foi visto bater: partícula igual
ao pó de um cometa que um dia rompeu,
devorando o ar. E a casa em ruínas
abrandada em tempo, vogando no branco
de resplandecentes seis sílabas. Sós.

(Vozes, pp. 25-26)


No último terceto aqui citado, digladiam os arquétipos puros das forças do Bem e do Mal lembrando também clássica dicotomia Andresiana que a opor a "luz" e a "claridade" associadas à liberdade e à felicidade,  e a "escuridão" e "terror" conotadas com a morte. Esta ideia exprime-se, de forma inequívoca na última estrofe, onde domina a "luz" mas após se desenhar um rasto de destruição provocada pela noite dos tempos.

Segue-se “Nem diálogo, ou quase” cujo tema principal é a inspiração ou a pulsão que leva o poeta, que aqui é um sujeito anónimo, à escrita. Esta pulsão representa também uma espécie de “fogo”, sendo este "fogo" aquele que anima o espírito, a sede de conhecimento, tal como o que levou Prometeu a desobedecer a Júpiter, partilhando-o com os humanos. Neste poema voltam a estar presentes os elementos associados a sensações térmicas como “a luz” (que também pode queimar através de um vidro, sobretudo se este for côncavo, a cor “vermelha”a lembrar o sol poente, símbolo do calor e também do masculino pela associação com o deus Apolo na mitologia clássica. O tema do fogo da inspiração na escrita poética que norteia o tom do discurso do locutor nesta primeira parte surge também despoletado pela acção das Parcas como vemos em “Do ar: apontamentos”, onde está, novamente presente o elemento solar, desta vez captado pelo olhar do sujeito poético a bordo de um avião. O mesmo sol aproxima-se do ocaso encontrando-se quase a desaparecer na linha do horizonte afogando-se no oceano, criando mais uma vez a polarização entre os elemento fogo (o sol) e a água (o mar). O sujeito poético manifesta, aqui , uma afinidade com outra figura mitológica, a de Ícaro: tal como ele ruma em direcção ao sol, graças a um par de asas inventadas pelo homem, mas este foge-lhe, escondendo-se para lá da linha do horizonte, “viajando” para outro hemisfério. Na terceira parte do poema, o terceiro apontamento, é já a noite e o frio da água quem domina o discurso do locutor.

Por fim, um “Quase soneto de amor”, em jeito de homenagem, marca a aproximação ao final desta primeira parte do livro. O discurso deste poema opõe-se ao seguinte, o último da secção, no qual a materialidade, as sensações físicas os elementos dominantes no quotidiano feminino desta “Salomé Revisitada”, a qual dirige parte do seu discurso, a alguém que se encontra presente no mesmo quarto (como demonstra a forma verbal na segunda pessoa do singular) e parte a si mesma assumindo simultaneamente o papel de locutor e alocutário na última estrofe (sublinhados meus):

Salomé Revisitada

Deixa-a lá dentro, cortada, na cozinha,
e traz-me só café. Pousa a bandeja
ali, e depois vai. Não quero o seu olhar:

recorda-me a prisão que ele habitou
(sem ser por mim) e a outra
em que eu morei, e onde fiquei,

lembrando o seu olhar. Bolo de figos
e de mel, conchas de som – mas não é
Salomão que eu sinto em sonhos.

nesse corredor, mas Salomé, a outra,
a mesma que aqui está. E o teu olhar:
amputado de mim não pela espada

mas por gume maior: o tempo
a insistir que eu nunca fui: multiplicada
pela sua íris. Agora, sai: é largo o corredor,

está certo o quarto e eu decerto fiz bem.
Tão brilhante e tão quente. Como
sabe a vermelho este café

(Vozes, p. 36)

Nas secções seguintes, o discurso poético atenua um pouco o teor dramático, adoptando um tom um pouco menos intimista, apesar de quase sempre apontar um aspecto comovente do quotidiano mesmo nas descrições mais naïf, assim como na alusão a temáticas filosóficas ou ainda alusivas a episódios históricos. Este aspecto é bastante notório na secção seguinte, BREVE EXERCÍCIO A TRÊS VOZES. Esta é composta por três textos poéticos, cada um deles formando um diálogo inter-textual, com a voz de outro poeta e respectiva criação poética. Deste modo, “A Pantera de Rainer Maria Rilke” é uma outra perspectiva, um “outro olhar”  que completa a perspectiva do poeta francês, criador de “La Panthère”. O eu poético neste poema de Ana Luísa Amaral, entra na alma do animal selvagem mas enjaulado, protagonista do poema de Rilke. Este último apresenta o animal apenas do ponto de vista externo, da observação comportamental por alguém que se encontra a uma certa distância da jaula. O de Ana Luísa Amaral entra na alma do animal para lhe dar voz. A voz de um animal vencido pela solidão, em prisão perpétua. Mas conservando no mais recôndito de si, a sua alma de fera, a gana de viver, a raiva e a revolta pela privação da liberdade.
A segunda voz com que nesta secção o sujeito poético estabelece um diálogo é a do poeta Luís Vaz de Camões em “Amordaçando a serpente”, criando, pelo recurso à alusão, uma ligação inter-textual e também dialógica com o soneto “amor é fogo que arde sem se ver”. Trata-se de uma réplica ao soneto camoniano que homenageia o amor-paixão e enfatizar a acção do tempo na gestação do seu simétrico: o desamor.
A última voz deste trio a fechar o conjunto tripartido de alusão a três poetas tão díspares é José Maria Barbosa du Bocage, com uma variação do poema “Tu maligno dragão, cruel harpia/ que assim desarranjaste a minha vida”(Vozes, pg. 41), a que Ana Luísa Amaral intitula “Et pourtant, antes que a terra fria”, para sublinhar até que ponto, por vezes, é preferível o desamor à indiferença e, em última análise, à morte.

Passemos à terceira secção, TROVAS DE MEMÓRIA, composta exclusivamente por poesias de inspiração trovadoresca. A começar em tom de sátira de onde sobressai a extrema habilidade linguística da Poeta, com “Palimpsesto”, onde se faz um trocadilho com a palavra para explicar o processo de construção dialógica deste tipo de poesia que é comparável ao acto de tirar um par de cerejas de dentro de um alguidar, em que agarrada à última cereja, neste caso sílaba, vêm mais umas quantas para servir de base à construção do poema seguinte em que um segundo enunciador pega nos últimos versos do primeiro para construir a sua réplica, como o poema que se segue onde a Poeta joga como humor para construir uma definição meta-poética da figura de estilo que é o "palimpsesto":

Palimpsesto

Limpa o cesto bem limpo,
mas deixa ficar uma sombra ligeira:
essa primeira sílaba.
Sobre ela
podes encher o cesto com mais sílabas,
e até outras palavras.

Terás assim um cesto
que aos olhos de quem vê
é um cesto só teu,
onde escondeste as coisas
do costume dos cestos: flores, solidões,
rastilhos, bombas.

Foi limpo o cesto
aos olhos de quem vê,
mas tu sabes que não.
Que houve ali um momento de ladrão,
quando nele ficou
a sombra dessa sílaba.

E agora mostrar
a toda a gente o cesto,
e não há sombra.
Há só a mão que surge
e pega no teu cesto,
o toma devagar.

E o olha com olhos de quem lê,
e o limpa muito limpo,
ao teu antigo cesto,
deixando lá no fundo,
disfarçada,
uma segunda sílaba.

(Vozes, pg.46)


O mesmo sucede aos poemas que se seguem nesta secção, cujas réplicas se iniciam com vestígios do final do poema precedente, servindo à construção dialógica de um texto composto por várias partes encadeadas. Assim,  em “Mais um sul de memórias: fala o cavaleiro”, o enunciador é identificado no título, não sendo já o narrador anónimo mas agora uma personagem, a qual dirige as suas palavras à uma outra: a musa que habita nas entrelinhas das páginas do seu caderno, a dama que é objecto dos seus versos de amor cortês a qual é o seu alocutário (entidade a quem se dirige o discurso). No poema seguinte responderá a dama, trocando ambos os enunciadores os papéis (ela passa a enunciador e o cavaleiro, passa a ser o ouvinte a quem a dama dirige o discurso, o seu alocutário) no poema “Outro sal de memórias: a dama responde”. Aqui, é dada a voz à musa resgatada ao silêncio (uma característica muito frequente na poesia de Ana Luísa Amaral, a de dar a voz às mulheres sobre quem escreveram ou escrevem os poetas). No poema seguinte “E a memória, a sextina: fala o cavaleiro” invertem-se novamente os papéis na relação dialógica entre estas duas vozes , relação essa que assume aqui um formato que muito se aproxima ao dos tradicionais cantares ao desafio, forma actual das cantigas de amigo medievais para depois finalizar a interacção com a resposta categórica de afirmação da vontade por parte da dama em “Trovas de memória: a dama responde”. O último poema desta secção apresenta-se como um epílogo do romance de Dom Pedro I e Inês de Castro, onde nos é apresentado o desdobramento de um desfecho hipotético, ou seja, de como se teria desenvolvido a relação entre ambos, caso a morte não houvesse interferido. O poema mostra a acção no tempo nos corpos e nas almas dos amantes, a erosão do ardor passional pela rotina do quotidiano:

Inês e Pedro: quarenta anos depois

É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
“Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!”

Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora,
uma artrose tornou tão reticentes.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caĩbras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando a chama era alta e o calor
ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.

O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror de derreter
neurónios).

Mais sábia e precavida (sem três dentes
da frente)
Inês come, em sossego,
uma papa de aveia.

(Vozes, pp. 60-61)

A quarta secção de Vozes é composta pelo conjunto de poemas ESCRITO À RÉGUA, os quais formam um coro de vozes em perfeito equilíbrio, a que é dado o mote na epígrafe que antecede o primeiro do poema do conjunto, também ele intitulado “Escrito à régua”. A epígrafe serve de orientação temática a toda uma secção e ao poema homónimo em particular, que fala de amor feliz como um estado de equilíbrio precário:

«O poema sustenta o universo
como em equilíbrio
muito breve.»


Escrito à Régua

Ancoras o sentir
em instrumento certo e
objectivo:
um quilómetro agora de palavra,
depois a solidão enumerada,
e em frente:
o quase abismo

(…)
No fim,
lançar a régua contra o vento,
lançá-la em direcção
à nuvem mais distante

E ter aos pés
coisas que tinhas antes:
mandrágoras, dragões,
ligeiríssimo grifo arrebatado,

uivante
sílaba –

(Vozes, p. 65)


A mesma temática do equilíbrio instável  reaparece um pouco mais adiante na forma de síntese mas já com o objectivo de recordar o amor do passado. O anseia e a perseguição desse mesmo equilíbrio precário está inscrita na voz do sujeito poético em “Junto a levíssimo pormenor de estilo”:

Junto a brevíssimo pormenor de estilo

Oscilar entre teia de desejo
e um olhar que se afoga em horizonte:
as rochas que ali vejo:
um pormenor de estilo, um excesso
na paisagem que nada sobressalta
na memória

Em que fio resplandece
o mais palpável:
dizer amor ou estendê-lo por frase:
jogo de espelhos liso,
solitário

Que podes dar-me tu
que não possa este mar
de ausente areia?
Que podes dar-me tu
que eu não possa colher
desta paisagem?

Assim te vejo: um pormenor de estilo,
nem sequer sobressalto
a ameaçar

Oscilando entre teia sem desejo:
pontos de brilho
refractados até brilho de mar
tecido a infinito.
E é como se eles fossem
mais meus do que tu és

Porque me foste já, como esse
foi de Rodes.
Mas isso de uma ponte
de eternidade mil que eu tinha dentro

Agora o tempo é este:
oscilar levemente sobre teias
ou afogar o olhar entre
horizontes

O resto: pó disperso,
reduzido
a muito simples pormenor
de estilo

(Vozes, pp. 67-68)

O tempo é aqui mais uma vez factor de modalização do estado de alma do sujeito poético: a um tempo de paixão (no passado), sucede-se um tempo de solidão (penúltima estrofe).

No poema seguinte surge a imagem do gato como símbolo da graça da leveza, e da agilidade, e que é o mestre absoluto deste equilíbrio precário: ele é precisamente o “supremo equilibrista”, não só em termos físicos mas um autêntico seguidor de Epicuro; e, também, o companheiro de todas as solidões, ele próprio amante da sua solidão e privacidade que não se escusa de procurar o afecto sempre que dele sente a falta. O gato e a voz do sujeito poético figuram aqui com necessidades muito parecidas. Uma delas é o isolamento, a paz e o silêncio de que necessita o poeta para escutar a própria voz; e, por outro lado, a mesma necessidade de isolamento no gato o qual recorre a ela para para escutar a sua própria voz e o seu próprio corpo na sua busca incessante do prazer (os dois primeiros versos do poema remetem para uma imagem de grande sensualidade). Dois seres cheios de contradições, os gatos e os poetas (neste caso temos um gato carnívoro, que não desdenha mordiscar vegetais):

Gato em apontamento quase barroco e de manhã de sábado

Gentilmente curvado sobre a flor,
Percorre devagar nervura e centro.
E em tantos delicados argumentos
Vai avançando lentamente as folhas.

A cabeça pondera e repondera
Defronte a haste fácil, rente a terra,
E uma pedra minúscula e serena
Sobe no ar, acesa como fera.

Não conhece os segredos do soneto,
Sendo de ofício muito ignorado
A sua arte. E em curto minuete:

Uma garra afiada em pé de valsa,
Um dente a desdenhar a flor e a folha
e a cravar-se, feroz, na minha salsa.

(Vozes, p. 69)

“Sonho em quase soneto” é mais um poema matinal mas que incide desta vez na zona de fronteira, no limite entre o sono e a vigília, de onde emanam os sonhos que assentam no equilíbrio precário entre a realidade e a sua (re)construção através dos misteriosos processos cognitivos. A partir deste acto de “sonhar” o sujeito poético recria o real durante o sono: um mundo ou momento perfeito, mas tão frágil na sua volatilidade que a mínima pressão do quotidiano implica a sua desintegração, como ilustra o último verso do poema:

– que nunca acontecera se acordado.

(Vozes, p.70)

No poema “Estratégias” verificamos já uma atitude oposta: um acentuar do pessimismo no Eu mostra o reverso da medalha no tocante ao estado de alma. O tom do discurso já não é solar mas sombrio, o estado de equilíbrio precário (ou de ilusão) parece ter-se desintegrado. Apesar disso, o eu continua activo na procura da felicidade que é um ideal de bem-estar. Este é um processo que passa pela busca da poesia a qual que proporciona a capacidade de dar sentido à vida e conferir sentido ao mundo. A poesia enche de sentido a vida e dá sentido à passagem do Tempo aqui personificado na imagemdas Horas:


Estratégias

Há tanto tempo aqui, à espera delas,
em amoroso espanto, e espreito
as horas,

(…)

É tarde e eu não posso estar aqui
nesta espera, espreitando
desamor.

Odeio-as nesta ausência de equilíbrio,
quando não se organizam
como devem,
e porque existe só, em estado
puro,
em dicionários, filas de alfabetos,
inumeráveis filas de ditongos.

Tenho-as junto de mão,
e não são minhas.

Armá-las em quadrado e transformá-las
em coisa nuclear,
saber como as lançar
umas por sobre as outras, em cisão.

Que se auto-pulverizem
e eu seja ausente
da sua existência:
o espanto só de um mundo,
só em verde,
um mundo só de rios e só de gente.

Um céu mudo de espanto,
sem nasais.

Que eu possa ir para casa
finalmente

 – o tempo: mancha igual,
a mesma sempre:
eterno ano, o mesmo traço a fogo,
e um rio correndo em direcção:

Igual –


(Vozes, pp. 71-72)

A mesma ideia perpassa, embora já noutra perspectiva, mais crítica e mais serena, num dos mais belos poemas deste livro: “A Vitória da Samotrácia”. Nele, as assimetrias são condição para a manutenção deste frágil equilíbrio,que assenta na polarização entre extremos. No tcante ao inlecto, às convicções e ao conhecimento trata-se da mesma ideia mas assente na recusa da arrogância extrema, das certezas absolutas, dos excessos de autoconfiança, onde o orgulho se aproxima perigosamente da soberba. O poema mostra antes que a vida é composta por uma sucessão de momentos-chave que se transformam em imagens, um caleidoscópio a convoca memórias e dúvidas, as quais se geram mediante uma uma multiplicidade de caminhos (aqui mais uma alusão a um dos anteriores livros da Autora) a implicar sempre uma escolha:

A Vitória da Samotrácia

Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.

Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia, em direcção ao sul,
mediterrânica, jubilosa ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha do horizonte:

qualquer linha, por onde os outros morressem
e nascessem, outra feita de fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.

Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?

O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente o joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas –

(Vozes, pp. 73-74)

Este seria o caminho para a verdade, a sabedoria. O poema aponta assim o caminho da humanização e da liberdade.

A secção prossegue com o poema tetrapartido “Outras metamorfoses da memória”, em quatro fracções poéticas: na primeira, o sujeito poético exprime o seu estado de alma recorrendo a uma selecção lexical evocativa de objectos aguçados ou pontiagudos como “farpa”, “espada” ou “pena” (que arranha o papel), nomes que sugerem dor. E é a memória do Eu que assim se exprime que é resgatada ao esquecimento através da escrita poética, a qual exerce, ao mesmo tempo, a função de catarse. N segundo fragmento, no “poema 2”, são evocadas lembranças relacionadas com a gravidez e a maternidade, a expectativa de preparar a chegada do novo ser. Aqui domina a ternura na voz do locutor, a par da mestria na construção do discurso poético e das múltiplas possibilidades dos jogos linguísticos e de polissemia. No terceiro fragmento volta a dominar a alusão a objectos perfurantes, ajudando à evocação de sentimentos dolorosos: “a saudade pontual e única”, “o fio mais afiado que o punhal” o qual “fere como um raio” para deixar, onde antes havia vida, apenas “fumo e algum carvão”. Escombros, portanto, quase o resultado de um cenário de guerra. No quarto e último fragmento, o “poema 4”, é evocada a frágil sombra de um passado distante, cujos vestígios, cada vez mais ténues, testemunham a passagem do tempo, como atesta a insistente durabilidade das aparentemente vulneráveis “relíquias” escondidas nos seus “pequenos sarcófagos”. Trata-se de um poema evocativo da memória cujo fio, tal como o novelo de Ariadne é desfiado através das pequenas relíquias do passado. Aqui alude-se, também, ao método da psicanálise na reconstrução do caminho trilhado pelo Eu.

No poema seguinte, “Comunicações”, o sujeito poético chama ao presente, tal como Orfeu quando desce ao Hades em busca da sua Eurídice, o ser amado, inexoravelmente ausente. Neste poema é a nostalgia o sentimento dominante, trazida pelo sol de Inverno a recordar um Verão distante. O mesmo sol, cujo calor e luminosidade se declinam agora na sua versão de Inverno, traz o conforto possível aos dias gelados.

“Dores provocadas” é o último poema desta secção aborda a questão da penitência e do remorso, onde o eu se nega a si mesmo qualquer possibilidade de alegria, sentindo-a como uma espécie de traição ao ser amado:

(…)

Há horas em que me sabe bem
sentir-me mal:
é então que se dá enorme tempo
de lembrar coisas de sofrer.

(Vozes, pg.81)

A quinta secção de Vozes agrupa os poemas que formam entre si um recuo no tempo até à época renascentista, à revolução do pensamento filosófico e científico e dos Descobrimentos e expansão marítima portuguesa: OUTRAS ROTAÇÕES: CINCO ANDAMENTOS. A secção é constituída por um único poema, dividido em quatro partes (ou andamentos, como numa sinfonia) com o subtítulo “Galileu, a sua torre e outras rotações”. Seguindo as pisadas do filósofo e astrónomo que ousou pôr em causa a concepção dominante do mundo e do universo tal como era até então conhecido, o poema que ocupa toda esta secção surge como a expressão da voz do contra-poder. A divisão em quatro partes e não em cinco como sugere o título prende-se com a analogia do Quinto Império anunciado em “A Mensagem” de Fernando Pessoa, império esse que, tal como o último movimento (em falta no poema) está ainda por cumprir. A imagem dominante transmitida pela voz que enuncia (e pronuncia) o poema é a de alguém que é possuidor de uma intensa e inesgotável sede de conhecimento, sempre à procura de novas descobertas. Mas o conhecimento Absoluto, tal como a concretização do Quinto Império (o qual seria tão perfeito que duraria eternamente) é uma utopia. O conhecimento absoluto do universo implicaria a apreensão do elemento desestabilizador, causador da desarmonia e consequentemente iria despoletar a destruição do mesmo universo.


A última secção antes do epílogo intitula-se “Outras Vozes”, tratando-se de um conjunto polifónico e heterogéneo de poemas. A começar por “A Génese”, poema em que o sujeito poético dá a voz a quem normalmente não tem voz: às mulheres que perdem, para a guerra ou para a exploração de terras longínquas, os filhos, pais e maridos que passam a alimentar predadores e necrófagos. Ou antes: que abdicam da vida para servir o Poder, restando-lhes, a elas, a mera sobrevivência. Ana Luísa Amaral empresta neste poema a voz essas mulheres, as que ficam, colocando em palavras os seus medos, anseios e esperança. Este é o primeiro do conjunto de seis poemas desta secção. O segundo partilha o título com o da secção onde se integra “Outras Vozes”: outras vidas, votadas também ao pó e ao esquecimento. Nele, o mar surge como elemento de todas as possibilidades, origem da vida e lugar onde repousam também os mortos. Há aqui uma analogia entre o poema e o mar: tal como o poema, o mar apresenta-se como o mais polifónico elemento da natureza, lugar onde todas as vozes e todos os ecos se multiplicam e a vida se renova, notando-se uma discreta alusão a “As Ondas” de Virginia Woolf.

(…)

Não eleger nem mar nem horizonte.
E embarcar sem mapa até ao fim
do escuro”.

(Vozes, pg. 101)


Já em “O Sonho” a voz do locutor emana de entre o sonho e a vigília, lugar onde nasce a inspiração para o poema. Evoca-se D. Dinis, o Rei-poeta, a esposa cuja lenda a tornou tornou santa, o pinhal plantado por sua (dele) ordem e cuja madeira serviria para construir a armada. Esta, por sua vez, seria a base do império (não é ele que diz mas outras vozes depois dele que são aqui evocadas), o seu sonho maior do Infante Dom Henrique, aludido também no poema:

O Sonho

Disse quem veio muito depois dele
em seta pelo tempo
que os ramos dos pinheiros e o cheiro a resina
entraram na feitura desses navios,
mas que era feito de carvalho o tabuado do seu casco.

Porém ele acreditara porque o sonhara,
que as formas esbeltas e doces
vagando à superfície das águas
levavam no futuro a sua gente
e vinham das sementes pensadas nessa noite.

E como os quase nenúfares na noite, elas seguiam
para a frente, na esteira
dos seus mais belos versos.

(Vozes, pp. 103-104)

Mas será em “O Promontório” onde é dada directamente a voz ao Infante Dom Henrique, ao seu sonho de conquista e descoberta do mundo, colocando a ênfase na sua imensa solidão de visionário:

(…)

Os meus irmãos levaram-me a lutar,
e eu lutei, singrando pelo fervor dos tempos em que vivi.
Mas eu não sei se era luta
ou o fervor o que mais contava.
Fui pasto longo para a história de livros,
mas a minha história só eu a devia saber.
E havia de contá-la aqui,
se me livrasse dessa elipse de luz
e conseguisse alcançar-me outra vez no meu tempo, comigo.

A sós , comigo.

(Vozes, pg. 106)

 O locutor enuncia o seu discurso, num tempo "para lá do tempo", como mostra o verso “séculos que passaram sobre mim”, falando para si mesmo ou para um alocutário indefinido, podendo englobar inúmeros destinatários de entre os quais aqueles que agora se encontram a ler o poema:

(…)

disseram-me depois junto do mundo.
Mas o Mundo era pequeno no meu tempo,
assim o imagino.

Como podem, pois,
os que depois de mim vieram
julgar-me assim, e ao meu mundo?
Com toda a certeza,
sei somente de mim aquilo que me sonharam.
E que este promontório só existe comigo
porque ali me puseram, de frente para ele.

E eu queria tanto estar-lhe de costas, 
poder dormir e mergulhar no escuro.

(Vozes, pp. 106-107)

O elemento “escuro” surge mais uma vez a desempenhar o papel de universo paralelo, de anti-matéria, um desejo de aniquilamento que também pode ser a paz, a ataraxia. Mas também o ponto de partida para um novo big bang, um recomeço. O mesmo elemento, que traduz o anseio pelo afastamento de tudo, pela paz absoluta, também surge em “A Cerimónia", o poema que dá a voz à rainha cuja descendência originou a “Guerra das Rosas” em Inglaterra, entre The House of York e The House of Lancaster, uma voz feminina resgatada ao silêncio, ao esquecimento e à obscuridade:

Por que outra noite trocaram
o meu escuro?

(Vozes, pág. 111)

Mas em “O Retrato”, o discurso do locutor remete para um outro discurso, o do escudeiro do Rei Dom Pedro que dirige o seu discurso àqueles que olham o seu retrato mas nunca tiveram a oportunidade de conhecer o seu verdadeiro "Eu". O discurso do locutor dirige-se aos alocutários que se poderão situar também fora do seu (do locutor) tempo, num universo paralelo, no sentido de apelar aos espectadores que olham o retrato do Rei para repararem naquilo que diz o olhar que é representado no retrato: um olhar desfigurado (o cronista usa a palavra “enrouquecido”) pela loucura. Aqui há uma ousadia linguística, onde uma consoante líquida é substituída por outra, também líquida, mas vibrante (o l pelo r) criando uma construção invulgar, semanticamente desconcertante. O poeta empresta, aqui, a sua voz à do cronista, cujo papel testemunhal se torna particularmente relevante pela função que ocupa, a de escudeiro de D. Pedro. Esta função implica um considerável grau de proximidade com o monarca, mas mantendo a distância hierárquica, o que o torna um observador privilegiado, pois conhece de perto as alterações de humor do monarca sem, contudo, ver-se privado da objectividade necessária a uma análise fria dos factos, evitando que esta seja toldada pela afectividade que, eventualmente, pudesse emanar de uma amizade muito próxima. Além do mais, trata-se de uma das raras pessoas que contactou de perto com o Rei e a sua forma de pensar, as suas emoções, na altura em que este havia sido marcado pela fatalidade.

(…)

Nunca me chamou para junto se si, o meu senhor,
nos dias em que posou para o retrato.
Nem nunca teve comigo confidências
sobre aquela que perdera
por obra do pai -

Mas eu, porque o servira todas as manhãs
e o acompanhei durante tanto tempo,
eu conhecia-lhe os tons e à sua dor
as paletas de cor por detrás das íris dos olhos,
as formas mutantes
conforme as jardas do sofrimento.

E eu juro que o pintor
soe resguardar o seu olhar.
Como se fôsseis presente
poderia agora esguardá-lo.

E meditar sobre ele.

(Vozes, pp. 112-113)

Por fim chegamos à cauda do livro, a qual contém um único texto, à laia de epílogo. Nele o Eu poético fala no presente e na primeira pessoa, situando-se este sujeito anónimo, num tempo indeterminado. Essa suspensão temporal é usada pelo eu poético para evocar a presença que alguém que já está também num tempo fora do Tempo, efectuando como que uma viagem idêntica à de Ulisses aos Infernos. Neste poema-síntese, busca-se a reunião de dois seres num “universo paralelo”, fora deste tempo ou de qualquer tempo histórico, pelo da Memória, também como como Orfeu. Como Ulisses. Trazendo à luz do dia os diversos "Eu", vozes que emergem das profundezas do Escuro.


Bilbao, 29.07.2015

Cláudia de Sousa Dias